O PONTO DE VISTA NO FILME DOCUMENTÁRIO

Manuela Penafria, Universidade da Beira Interior
Dept. de Comunicação e Artes

2001

0. Introdução

A partir do conceito de "ponto de vista", este texto irá discutir uma questão essencial na produção e realização de documentários: a relação que o documentarista estabelece com os intervenientes do seu filme.
O documentário ocupa uma posição ambígua e polémica na história, teoria e crítica do cinema. Por um lado, recorre a procedimentos próprios do cinema (escolha de planos, preocupações estéticas de enquadramento, iluminação, montagem, separação das fases de pré-produção, produção, pós-produção, etc.). Por outro lado, enquanto espectadores, exigimos que um documentário, por manter uma relação de grande proximidade com a realidade, deva respeitar um determinado conjunto de convenções: não direcção de actores, uso de cenários naturais, imagens de arquivo, câmera ao ombro, etc. Estes recursos constituem o garante da autenticidade do representado. Ora, estes recursos que lhe são próprios, não lhe são exclusivos. Nada impede que um realizador de ficção os utilize. Os filmes de Lars von Trier realizados no âmbito do movimento Dogma, utilizam algumas técnicas próprias do documentário, como por exemplo, a câmera ao ombro. Por outro lado, alguns recursos que à partida não é suposto o documentário utilizar, podem contribuir para um esclarecimento e aproximação dos espectadores com a realidade; a realidade que tanto se espera que um documentário nos transmita. Por exemplo, em Errol Morris, a re-criação de acontecimentos tem o mesmo valor, está ao mesmo nível, que as imagens de arquivo (que transmitem prova de autenticidade).
Um documentário pouco se afasta dos procedimentos de produção dos filmes de ficção. No entanto, é consensual que o documentário não recorre à "direcção de actores", própria dos filmes de ficção. A natureza da relação que um realizador de ficção estabelece com os actores é diferente da natureza da relação que um documentarista estabelece com os "actores" do seu filme. Mais correctamente, estes últimos são designados por intervenientes.
Um realizador de ficção dirige os actores, é ele que constrói as personagens que os actores interpretam. É ele que decide como devem expressar-se. Um documentarista não dirige actores, não constrói personagens (pode sim, transmitir uma determinada imagem das suas personagens - intervenientes).
O texto que se segue procura discutir a natureza da relação documentarista-intervenientes.

 

1. O documentário é cinema

Apesar de ser sempre estimulante discutir as diferenças e semelhanças entre um filme de ficção e um documentário (mesmo quando à partida se sabe que não se chega a conclusão nenhuma) tenho como prioridade centrar-me no campo da produção/realização de documentários, independentemente do que haja de diferente ou semelhante com a ficção.
Um documentário pauta-se por uma estrutura dramática e narrativa, que caracteriza o cinema narrativo. A estrutura dramática é constituída por personagens, espaço da acção, tempo da acção e conflito. A estrutura narrativa implica saber contar uma história; organizar a estrutura dramática em cenas e sequências, que se sucedem de modo lógico. A suportar tudo isto deve estar uma ideia a transmitir. Essa ideia a transmitir constitui a visão do realizador sobre determinado assunto.
Considerações acerca do presente ou do passado são comuns nos documentários. No entanto, também é possível e legítimo manifestar considerações sobre o futuro, por exemplo, a partir do nosso conhecimento sobre a I e II Guerras Mundiais colocar a hipótese do que aconteceria se se repetisse uma guerra mundial.
Tendo em conta que o ponto de vista de um plano é entendido como representando uma visão individual, seja a do documentarista, seja a de um interveniente, o ponto de vista determina com quem o espectador se identifica e o modo como o espectador lê os planos (e o filme) e interpreta a acção. É través do uso da câmera de filmar e da montagem que o documentarista define qual o ponto de vista a transmitir e, consequentemente, qual o nível de envolvimento do espectador. Durante um plano longo ou um plano sequência, o ponto de vista pode alterar-se mas, em geral, podemos dizer que cada plano expressa um determinado ponto de vista. Por tal, os espectadores só têm acesso a um ponto de vista de cada vez.
Num filme narrativo pode optar-se por um (ou mais) dos seguintes pontos de vista:

Ponto de vista na primeira pessoa - os espectadores vêm os acontecimentos através dos olhos de uma personagem. Esta técnica é muito usada para efeitos de suspense em que é necessário reter informação. É difícil utilizar este ponto de vista, uma vez que o espectador não vê as reacções desse mesmo personagem.

Ponto de vista na terceira pessoa - trata-se da acção vista por um observador ideal, muito comum nos filmes de Hollywood. Raramente é usado como o único ponto de vista.

Ponto de vista omnisciente - para que um filme apresente este ponto de vista é necessário que sejam dadas indicações ao espectador sobre o que as personagens pensam. Nestas situações é vulgar recorrer-se à voz em off (também denominada voice-over). Aqui, pode cair-se facilmente na explicação, o que não é muito inventivo cinematograficamente.

Ponto de vista ambíguo - consiste em alternar entre um ponto de vista na terceira pessoa e um ponto de vista na primeira pessoa (plano subjectivo). Isto pode ser feito dentro de um plano ou com vários planos, recorrendo à montagem.

A escolha de um ponto de vista é uma escolha estética implica, necessariamente, determinadas escolhas cinematográficas em detrimento de outras (seleccionar determinado tipo de planos em detrimento de outros - por exemplo, grandes planos -, optar por determinadas técnicas de montagem - por exemplo, montagem paralela - em detrimento de outras). Cada selecção que se faz é a expressão de um ponto de vista, quer o documentarista esteja disso consciente ou não. Cada plano oferece um determinado nível de envolvimento, quer isso tenha sido ou não deliberadamente controlado pelo documentarista. Convém salientar que não é suposto um filme usar, constantemente, determinado ponto de vista. O essencial é o documentarista definir qual o ponto de vista predominante no seu filme.
O nível de envolvimento/identificação do espectador depende do modo como o ponto de vista seleccionado é articulado com a linguagem cinematográfica. Esse nível de envolvimento pode ser obtido de dois modos: através de um controlo gráfico (graphic control) e através de um controlo narrativo (narrative control). (cf. Steven Katz, 1991). O primeiro diz respeito às características formais dos planos (composição dos planos - modo como os elementos estão organizados dentro de um plano, por exemplo, em primeiro plano ou em segundo plano; grandeza dos planos - por exemplo, grande plano, plano médio; enquadramento - posição dos elementos em relação às margens do plano - por exemplo, centrado, descentrado; iluminação - que parte ou partes do plano têm mais ou menos luz; etc.). Só a título de exemplo, se se utilizar grandes planos apenas com um dos intervenientes do filme, favorece-se um maior envolvimento do espectador para com esse interveniente. Por seu lado, o controlo narrativo depende essencialmente da montagem, do ritmo com que se sucedem os planos, das técnicas de montagem, etc. Por exemplo, se um interveniente permanecer mais tempo no ecrã, é com ele que o espectador mais se envolve.
Estes dois modos, parecem dizer mais respeito à imagem que ao som, no entanto, este é um elemento importante que pode ser trabalhado para criar/reforçar determinado ponto de vista, através, por exemplo, da criação de um som específico para determinado interveniente no filme.
É possível estabelecer uma correspondência entre o controlo gráfico e o controlo narrativo e as fases de produção de um documentário: pré-produção (pesquisa e desenvolvimento); produção (filmagens); pós-produção (montagem). O controlo gráfico está presente nas primeiras duas fases e o controlo narrativo na última fase. Apesar de ser possível separá-los, o controlo gráfico deve ser trabalhado em articulação com o controlo narrativo.
A pré-produção é uma fase de preparação para as filmagens. Esta fase caracteriza-se por uma pesquisa e desenvolvimento do tema/assunto a tratar. Não há regras a seguir, aqui trata-se de justificar o interesse de um filme. Assim, há que definir a motivação, ou seja, o documentarista deve, antes de mais, interrogar-se quanto às razões por que quer fazer determinado filme, definir a abordagem ao tema, recolher informação, fazer a caracterização e selecção dos locais a filmar, a caracterização dos intervenientes ("personagens"), definir a estrutura do filme, tipo de planos, etc.
Embora não seja regra, o mais das vezes, esta fase dependente do que o documentarista encontra in loco. Antecipar determinados acontecimentos é uma tarefa impossível, pois os mesmos são por natureza imprevisíveis. Esta situação pode implicar que se altere ou se reformule o que inicialmente estava previsto apresentar no filme.
Mesmo quando se pretende partir à descoberta do mundo, entendo que é necessária alguma preparação anterior. Entendo que só é possível distinguir entre o que é interessante filmar do que não o é, se se tiver pensado sobre o assunto anteriormente. Ou seja, a preparação facilita a tomada de decisões imediatas perante situações imprevistas.
Excepto para documentários realizados especificamente para televisão, dificilmente se escrevem guiões. Frederick Wiseman é disso exemplo. O seu método é igual em todos os filmes. Antes das filmagens faz pesquisa durante cerca de um dia, no local onde irão decorrer as mesmas irão decorrer (no caso, em instituições ou locais públicos americanos). Robert Flaherty e Joris Ivens são outro exemplo, ambos passavam algum tempo apenas a observar as pessoas antes de iniciarem as filmagens.
Escrever um guião é reduzir a um já sabido o próprio filme. No documentário, essa situação é inviável; por exemplo, os diálogos, não podem ser previamente escritos, não são previsíveis, e, por tal, não podem ser escritos com antecedência. É por esta razão que é vulgar dizer-se que um documentário é o argumento encontrado. Dito de outro modo, o que o documentarista encontra in loco, ou seja, contém em si o seu próprio guião e é suposto o documentarista estar atento a isso.
O documentarista substitui o guião por uma investigação de campo, por um bloco de notas. Este percurso pressupõe à partida uma liberdade que dificilmente se encontra em qualquer outro filme. Por vezes, um documentário é construído ao longo do processo da sua produção. A preparação ou "pesquisa e desenvolvimento", mais não é que a definição clara das intenções do documentarista, da abordagem ao tema, da forma como pretende abordar os locais e as pessoas a filmar.
No documentário verifica-se diversidade ou, pelo menos, a possibilidade de uma grande diversidade temática. As temáticas que merecem ou têm merecido a atenção dos documentaristas, vão desde as que dizem respeito à vida animal até aos tabus sociais. Os únicos constrangimentos à sua possibilidade de diversidade, são-lhe exteriores, uma vez que não existe, por exemplo, a obrigatoriedade de actualidade que a notícia exige. Em certos momentos, há temas que dificilmente conseguem ser tratados como, por exemplo, os que envolvem escândalos políticos.
A diversidade advém da diversidade e complexidade do nosso próprio mundo. E se, por qualquer motivo, não se filma um acontecimento no momento em que o mesmo decorreu ou habitualmente decorre, usam-se imagens de arquivo ou, então, faz-se uso da reconstrução. Tal uso foi legitimado pela escola de John Grierson, criador e figura emblemática do primeiro movimento documentarista, na Grã-Bretanha (anos 30).
Nas imagens de arquivo o ponto de vista não foi, obviamente, escolhido pelo documentarista mas, integrar essas imagens implica uma selecção, o que permite afirmar que essas mesmas imagens se adequam ao filme que se está a realizar.
O momento das filmagens propriamente ditas é extremamente importante, não só porque é aqui que se estreita a relação documentarista-intervenientes mas, também, porque o material recolhido é decisivo para o filme final. O momento em que se liga e em que se desliga a câmera de filmar condiciona a fase seguinte - a pós-produção. Cada plano apresenta um determinado ponto de vista, quer o documentarista tenha disso consciência ou não. Neste sentido, é importante que o documentarista defina qual o nível de envolvimento que procura para um determinado momento. Cada plano deve ser pensado na sua especificidade e em relação com o todo do filme. Ou seja, é necessário articular o controlo gráfico com o controlo narrativo.
A procura de espontaneidade por parte dos intervenientes no filme coloca a questão, muitas vezes discutida, de a câmera de filmar alterar o comportamento dos intervenientes do filme. Ora, os intervenientes não são actores, por tal não é possível alterarem completamente o seu comportamento. A câmera não é um mecanismo de alteração de comportamentos; a sua presença torna-se, ao fim de algum tempo, um mecanismo que facilita a expressão de cada interveniente. Por um lado, essa facilidade deriva da relação de confiança que o documentarista estabelece com os intervenientes e, por outro lado, pelo facto de as pessoas estarem de tal modo envolvidas em determinada situação que tendem a esquecer a presença da câmera. Ou ainda, pelo facto de as pessoas verem na câmera um meio que lhes permite ter "voz".
O registo de imagens e sons do mundo não reflecte, por si só, o valor e interesse do documentário e, embora condicione, não determina a definição do ponto de vista para um filme. Só a organização/ligação que se cria entre essas imagens e sons é o momento determinante para o ponto de vista.
O documentarista organiza diversos elementos: entrevistas, som ambiente, legendas, música, imagens filmadas in loco, imagens de arquivo, reconstruções, etc. A sucessão de imagens implica uma interpretação por parte do documentarista mediante a escolha de técnicas de montagem. Mesmo quando a interpretação do documentarista se esconde por detrás de convenções (como o plano-sequência) o que se torna patente é que essa sua escolha resulta da convicção de que a mesma merece a aceitação de todos.
A sucessão das imagens e sons tem como linha orientadora o ponto de vista adoptado e encontra na criatividade do documentarista o seu principal motor.
É ao seleccionar e combinar as imagens e sons registados in loco que o documentarista se expressa. Ao proceder assim, apresenta-nos um ponto de vista sobre determinado assunto. Para além disso, cria uma interpretação que se manifesta pela maior ou menor criatividade que imprime à sucessão dos elementos que o filme integra.
A relação conteúdo-forma (ou seja, o assunto abordado pelo filme e o modo como é abordado) deve ser um todo coerente. O importante é não separar o conteúdo da forma. Neste sentido, os melhores documentários serão aqueles cuja forma se interliga de tal modo com o conteúdo, que é quase impossível pensar um sem o outro. Para cada ponto de vista, existirá, eventualmente, uma forma que deve ser encontrada, à qual o documentarista acede pelo uso criativo da linguagem cinematográfica. Esta sua autonomia não exclui o facto de que a escolha da forma do filme é uma opção que depende de vários condicionalismos: sociais, económicos, culturais, políticos, técnicos, etc. Apesar disso, podemos afirmar que no documentário a relação entre a forma e conteúdo é continuamente criada e recriada. O documentarista tem (se colocarmos de lado constrangimentos essencialmente políticos ou económicos) a possibilidade de trabalhar e explorar essa relação forma-conteúdo. O seu ponto de partida, ou seja, a "contingência do real", não é uma limitação. Pelo contrário, é uma fonte inesgotável de conteúdos e formas. São essas formas que impregnadas pela criatividade do documentarista fornecem ao documentário uma vida própria e uma especificidade especial. O único limite é a sua própria criatividade na e pela qual encontra a forma adequada à manifestação de determinado ponto de vista, a respeito de determinado tema. Esta questão não se coloca, ou, pelo menos, coloca-se de maneira menos acentuada, quando o filme a realizar é um trabalho encomendado. Nesta situação, o documentarista é vulnerável ao apelido de "propagandista". Mas, se o lado propagandístico do documentário pressupõe o objectivo último de transmitir um ponto de vista sobre o mundo e levar a audiência a partilhar esse mesmo ponto de vista, todo o documentário, aliás, toda a comunicação, é propaganda. De qualquer modo, o documentário deve ser visto como um modo pouco propagandístico. A ficção seria muito mais propagandística, pois a sua mensagem é recebida como algo diferente: entretenimento. Em contrapartida, o documentário assume-se como muito mais interventivo. Em muitas situações, a ficção funciona melhor que o documentário. Por exemplo, a tomada de consciência da doença SIDA é mais facilitada pelo desvio da ficção; esta facilita mais a identificação e a projecção que o testemunho "nu e cru" de pessoas que vivem essa situação.
Enquanto conceito mais abrangente, o ponto de vista permite-nos falar da leitura ou visão que determinado filme, no seu todo, nos apresenta sobre determinado assunto, no caso (do documentário) sobre determinada realidade.
A visão de um realizador sobre determinado assunto manifesta-se então, de modo formal, ou seja, pela utilização da linguagem cinematográfica. Assim, o espectador poderá interpretar o filme através do olhar do documentarista e aperceber-se de que determinada realidade pode ser vista de modo diferente.
Enquanto figura o documentarista é uma referência para o documentarismo. O documentarista é a base em que se subsume o próprio documentário. Em todas as fases de produção é-lhe exigida uma grande intervenção. Pelas suas características, a produção de documentários é conduzida por equipas reduzidas. É muito usual encontrarmos filmes onde o realizador é também produtor, câmera e, em especial, também editor.
Em suma, é o documentarista que com as suas próprias motivações torna patente que, não é só o movimento dentro dos planos que é importante mas, também, o movimento entre os planos, ou seja, a passagem de movimento para movimento, que a montagem torna possível. Embora estes dois movimentos estejam sempre presentes em todo e qualquer filme, é possível dar mais relevância a um em detrimento do outro. No caso, cabe a cada documentarista estabelecer essa prioridade.
Um documentário é uma obra pessoal e implica uma necessidade da parte do documentarista em expressar algo, em dizer algo sobre determinado assunto. Não se trata de egoísmo ou narcisismo. Documentaristas que fazem filmes pessoais, ou seja, sobre eles próprios, sobre temas que a eles lhe interessam ou sobre temas sobre os quais lhes interessa apresentar a sua visão, estão, obviamente, a apresentar a sua visão pessoal. Antes de mais, estão a contribuir para o desenvolvimento do género. Cada filme contribui para o cumprimento de uma das principais funções do documentarismo: promover a discussão sobre o nosso próprio mundo; confrontarmo-nos ou distanciarmo-nos de nós próprios. Estão, também, a incentivar o diálogo sobre diferentes experiências, sentidas com maior ou menor intensidade.
Apresentar novos modos de ver o mundo ou de mostrar aquilo que, por qualquer dificuldade ou condicionalismos diversos, muitos não vêm ou lhes escapa, é então a principal tarefa de um documentarista. Estes muitos a que me refiro, podem ser os espectadores ou os próprios intervenientes de um filme.
O ponto de vista implica que o documentarista sente necessidade em expressar algo pessoal. É precisamente sobre a visão pessoal que cada filme nos apresenta que a questão da sua relação com os intervenientes do filme se coloca com mais pertinência.

 

2. Relação documentarista-intervenientes

O documentário é, como vimos, uma obra pessoal. O documentarista não deve ser visto apenas como um meio para transmitir determinada realidade. A partir do momento em que se decide fazer um documentário, isso constitui já uma intervenção na realidade. É pelo facto de seleccionar e exercer o seu ponto de vista sobre um determinado assunto que um filme nunca é uma mera reprodução do mundo. É impossível ao documentarista apagar-se. Ele existe no mundo e interage com os outros, inegavelmente. O fim último é apresentar um ponto de vista sobre o mundo e, o mais das vezes, mostrar o que sempre esteve presente naquilo para onde olhamos mas que nunca vimos. O documentário tem por função revelar-nos (aos intervenientes e aos espectadores) o mundo em que vivemos.
Acima de tudo, um documentário transmite-nos não a realidade (mesmo nos louváveis esforços em transmitir a realidade "tal qual") mas, essencialmente, o relacionamento que o documentarista estabeleceu com os intervenientes. No caso de documentários mais pessoais, o que é patente é a relação que o documentarista estabelece consigo próprio.
O processo de produção dos documentários mais do que permitir, exige uma relação de grande proximidade e envolvimento com o que se filma. A quase necessidade que o documentarista tem em respirar o mesmo ar que o objecto que filma e o fascínio de colocar no ecrã a sua interpretação do que filmou é o que de melhor tem o documentário, deixarmo-nos envolver e partilharmos essa experiência com os outros, nomeadamente com os espectadores. O documentarista percorre um caminho e o filme é o resultado desse caminho percorrido, que se partilha com os espectadores.
Um documentário não é unidireccional ou seja, é necessário que o documentarista esteja, constantemente, aberto para receber informações, que advêm dos intervenientes. Por tal, fazer um documentário implica estabelecer uma relação de compromisso e uma relação de confronto com a realidade. Uma relação de compromisso porque é legítimo que os intervenientes tenham expectativas quanto à sua representação no ecrã. Robert Flaherty é um exemplo desta atitude. Flaherty viveu de 1912 a 1919 com o povo inuit, esquimós do norte do Canadá. Para ele, devia passar-se o tempo necessário com os intervenientes do filme para que a história emergisse por ela própria, a história devia ser a história do local. Ainda assim, a "última palavra" é a do documentarista (e no caso de Flaherty esta é uma questão polémica).
A relação de compromisso implica questões éticas tais como a de saber se os intervenientes estarão ou não conscientes do impacto que poderá ter na vida deles o facto de se exporem perante uma câmera. Quando é que os documentaristas têm essa certeza? Até quando devem filmar? Quem estabelece os limites entre o privado e o que pode ser mostrado publicamente? Onde termina o direito que os espectadores têm a determinada informação e começa a privacidade que é um direito inegável dos intervenientes? Um documentarista tem o direito de contar a(s) história(s) do Outro? Um documentarista é um realizador que, tal como outro qualquer, tem o direito de fazer filmes, de se expressar.
O acesso cada vez mais facilitado (embora estejamos ainda longe de uma situação ideal) aos meios de produção, incentiva interessantes registos que cumprem a função de estimular o diálogo sobre o nosso mundo, e respondem, de algum modo, às questões éticas que se colocam à realização de documentários.
A probabilidade de alguém fazer um documentário sobre uma comunidade e falhar em certos aspectos, certas nuances próprias da vida dessa comunidade, assim como interpretar mal o que foi dito pelos intervenientes, é elevada. Alguns antropólogos resolvem este problema dizendo que basta colocarem-se a eles próprios no filme. Albert Maysles diz que basta o documentarista mostrar empatia e respeito pelos outros para que a verdade surja. Mas, um documentário não deve ser julgado por isso, deve ser visto como uma interrogação sobre a realidade, sobre a nossa própria condição humana. Um documentário é sobre momentos mais profundos que se encontram sob as imagens que vemos.
A relação que o documentarista estabelece com os intervenientes é, pois, complexa. Os planos sequência e planos longos, muito utilizados no documentário, são a prova dessa relação. Este tipo de planos revelam uma necessidade em não quebrar a unidade, a complexidade e ambiguidade de que é feita a própria realidade. Em geral, este tipo de planos, implicam a selecção de um ponto de vista ambíguo em que se apela à participação dos espectadores para uma leitura crítica do filme.
A relação de confronto que se estabelece com os intervenientes advém do estatuto do documentário enquanto obra cinematográfica. A visão do documentarista manifesta-se pelas escolhas que faz ao abordar determinado assunto e a imprevisibilidade inerente à realização/produção de documentários, entra em constante confronto com a certeza do ponto de vista adoptado, que o documentarista pretende transmitir.
Enquanto processo, a realização/produção de um documentário implica uma relação especial com os intervenientes mas, também, com outra entidade que faz parte desse processo: os espectadores. Os intervenientes e os espectadores têm direitos. Aos primeiros deve-se o respeito pelas suas expectativas e motivações, aos segundos deve o documentarista oferecer uma visão do mundo que os rodeia. Um documentário não é apenas do documentarista nem dos intervenientes, também é dos espectadores.
Podendo partir de algumas ideias pré-concebidas, deve entender-se o documentário como um filme que resulta de um processo que envolve tanto a perspectiva do documentarista, como o confronto dessa sua perspectiva com a das pessoas directamente envolvidas no filme. Por isso, é essencial que um documentarista se interrogue sobre as suas motivações: porque quer fazer determinado filme? O que quer revelar/apresentar sobre determinada realidade? Qual o ponto de vista escolhido? Para tal, é necessário fazer pesquisa, ou seja, encontrar histórias da "vida real". Muitos bons documentários surgiram da leitura de jornais, ou revistas. É disso exemplo o filme de Errol Morris, Mr. Death (1999). Morris soube da existência de Fred A. Leuchter, um especialista em tecnologia usada para a execução de humanos (pena de morte) e que foi contratado por Ernst Zündel para encontrar provas de que o Holocausto nunca existiu, através do jornal New York Times.
Fazer um documentário implica uma questão essencial: há que fazer escolhas e questionar essas escolhas.
No documentário há lugar quer para narcisismos, quer para voyeurismo, quer para a defesa de vozes que não têm a oportunidade de se expressar (ou seja, fazer nossa a luta dos outros). Por isso, é importante incentivar a produção de documentários, há que permitir o acesso aos meios de produção, há que deixar surgir novas visões sobre o mundo. No caso, esta liberdade de expressão (pois é disso que se trata) manifesta-se nas construções visuais que um filme nos apresenta. Construções essas que não se devem submeter ao modo como os espectadores estão habituados a ver. O documentarista deve poder ser livre de fazer as suas próprias escolhas fílmicas de modo a transmitir-nos um ponto de vista sobre determinada realidade. Novos modos de ver o mundo, podem implicar novas construções visuais.
Experimentar o pulsar da vida das pessoas e dos acontecimentos do mundo no ecrã é o que o documentário tem de mais gratificante para nos oferecer. É, sem dúvida, um modo de incentivar um conhecimento aprofundado sobre a nossa própria existência.

 

 

Bibliografia
KATZ, Steven D., Film directing, shot by shot. Visualizing, from concept to screen, Michael Wiese Productions, 1991

PENAFRIA, Manuela, O filme documentário. História, Identidade, Tecnologia. Edições Cosmos, Lisboa, 1999

RABIGER, Michael, Directing the documentary, 3ª Ed., Focal Press, 1999