Unidade e diversidade do filme
documentário
Manuela Penafria, Universidade da Beira Interior
1998
Introdução
O núcleo central do presente
estudo diz respeito à questão da identidade do filme documentário, ou seja, o
que permanece face à multiplicidade das manifestações de carácter documental. Tal
questão é equacionada com a sua produção, ou seja, com a prática fílmica que se
denomina de documentarismo. Nesta área é patente uma profunda ligação entre os
meios técnicos disponíveis e a prática documental. Por tal razão, coloca-se a
ênfase no modo como esses meios influenciaram o documentarismo e condicionaram
o seu desenvolvimento.
Ao reconhecer no filme documentário potencialidades diversas tal como a
possibilidade de tratar as mais diversas temáticas, acentuou-se a necessidade
de procurar aquilo que daria unidade aos diferentes documentários, usualmente
conhecidos como documentário científico, documentário etnográfico, documentário
histórico, etc.
Por não existir uma definição unânime sobre o objecto aqui tratado, iniciou-se
este estudo pela problematização do uso da palavra documentário, por um lado
enquanto adjectivo e, por outro lado enquanto nome. Este ponto tem como
objectivo não o de esgotar o assunto mas, de reconhecer que este tipo de filme
assume diversas formas. Trata-se pois, mais de dar conta das questões que se
lhe colocam que propriamente de encontrar uma definição rígida a filme que
provou já a sua versatilidade.
O documentário tem cumprido, ao longo da sua história, a função de
"documentar" a vida das pessoas e os acontecimentos do mundo de modos
diversos. Dar conta desses modos implicou apresentar as grandes linhas da sua
evolução. A história do documentário será apresentada tendo em conta a relação
entre as tecnologias e as formas documentais que, através das primeiras se
tornaram possíveis. Apresentam-se quatro grandes estilos que, de algum modo, serão
os essenciais para abranger a evolução do género. Pretendeu-se com essa
evolução destacar os momentos históricos cuja evolução tecnológica tornou
possível diferentes formas de documentários. Esta parte assenta na suposição de
que cada nova tecnologia constituiu sempre uma nova oportunidade para o
documentarismo se manifestar e, embora as diversas práticas documentais não
tenham sido nunca mutuamente exclusivas, ganhou-se na criação de novas formas
e/ou expansão das anteriores. Simultaneamente, serviu esta parte para se
encontrar verdadeiramente a sua unidade. A unidade aqui defendida pretende ser
a base que permite distinguir o documentário da restante produção fílmica. O
passado histórico do documentário remonta aos anos 20, onde se encontra a
possibilidade de se constituir um género com características próprias,
seguem-se os anos 30 onde se afirma a sua identidade, ficando a mesma
definitivamente estabelecida. As suas perspectivas de desenvolvimento futuro
serão, também, referidas. O documentarismo é um constante ponto de referência,
o que exige que se demarque o território no qual o autor de documentários, ou
seja, o documentarista, se coloca e se move.
O que de novo trazem as "novas tecnologias" ao documentário é a
questão que se segue. A abordagem será a de averiguar a possibilidade de
criação de um novo produto multimédia: o documentário digital.
Esta e outras questões que dizem respeito ao documentário encontram-se ainda
numa fase de afirmação. A resolução desta situação implicaria que o documentário
fosse objecto de uma teoria fílmica própria. A sua constituição encontra
dificuldades em se afirmar face à reacção comum de que o documentário é uma
ficção como outra qualquer. (Bill Nichols, 1991). Contribuir para que o
documentário seja discutido é contribuir para que seja possível definir-lhe os
seus exactos contornos, a sua especificidade e uma justificada demarcação em
relação a outros filmes.
Em muitos momentos deste trabalho, mais são as questões que se colocam do que
as que se respondem. Fica, no entanto, fica a intenção de, pelo menos,
posicionar o documentário no âmbito da produção em geral e, de dar relevo a um
género que Orlando Inocentes (1997) apelidou de "gata borralheira do
cinema". Se assim for, o documentário aguarda então um toque para que
revele toda a sua beleza; toque esse que é sempre mágico.
Conclusão
O registo in loco, o ponto de
vista e a criatividade do documentarista são os princípios que constituiem a
unidade do filme documentário. Essa unidade, que foi aqui estabelecida, circunscreve-se
à produção de documentários. Foi neste âmbito que o documentarista se destacou
enquanto figura-chave do documentarismo e enquanto base em que se subsume o
próprio documentário.
O documentário exige que muitas ou mesmo a totalidade das suas imagens e sons
sejam obtidas nos locais onde as pessoas vivem e os acontecimentos ocorrem. Por
outro lado, as temática abordadas devem ser tratadas aprofundadamente, para tal
exige-se que sejam vistas a partir de determinado ponto de vista ou abordagem. Finalmente,
é necessário criatividade para que a sucessão e/ou sobreposição de imagens e
sons apresente, não só o ponto de vista adoptado mas, também, que seja capaz de
tornar o documentário um género atractivo e que o documentarismo seja, cada vez
mais praticado. Por seu lado, o documentarista garante a unidade do
documentário pela relação próxima que estabelece com a temática que aborda,
pela definição do ponto de vista que deve percorrer a produção do documentário
e reflectir-se no mesmo; e, finalmente, pela criatividade que deve ser um seu
atributo, em especial no que respeita às escolhas realizadas relativamente à
sucessão das imagens e dos sons, seja através do corte da montagem, seja
através do link a que o suporte digital obriga. O documentário é um espaço onde
existe e deverá existir sempre, a possibilidade de construção de significados a
partir das imagens e dos sons do mundo que nos rodeia.
Os meios técnicos existentes em determinada época historicamente situada,
requerem a intervenção criativa do documentarista, para que a partir deles seja
possível produzir documentários. No passado, o documentário revelou-se capaz de
acompanhar o evoluir dos meios técnicos, evoluindo também. O documentarista
explorou esses meios no sentido de com eles produzir novos documentários que
com anterior equipamento não eram possíveis. Exemplo marcante foi o
aparecimento das câmaras de filmar e som síncrono, ambos portáteis. Só esse
novo equipamento tornou possível que o documentarista filmasse os
acontecimentos consoante os mesmos decorriam. De igual modo, só com esse novo
equipamento se facilitou a mobilidade do documentarista junto dos
acontecimentos. No seguimento da evolução dos meios técnicos surge, hoje em
dia, um novo suporte: o digital. Também aqui, e mais uma vez, o documentarista
é uma figura de extrema importância pois assegura a transição do documentário
para o suporte digital. A este aplicam-se os mesmos princípios que para as
anteriores tecnologias e, em vez do suporte digital constituir um recuo do
documentarismo antes se avança para mais um espaço de manifestação de conteúdos
e formas diversos.
Manuela Penafria, O filme
documentário. História, Identidade, Tecnologia. Prefácio de João Mário
Grilo, Edições Cosmos, Lisboa, 1999