Por Mares Doravante Navegados:

Panorama e Perspectivas da Presença Lusófona na Internet

 

Marcos Palacios, Universidade Federal da Bahia

 

Em conferência recente, Alain Rouquié, embaixador da França no Brasil apresentou um quadro sombrio sobre a presença das línguas latinas na Internet[1]. Seu raciocínio foi simples e aparentemente contundente. Os países de língua latina, argumentou o embaixador, representam uma população de oitocentos milhões de pessoas (treze por cento da população mundial). Os países que falam inglês representam seiscentos e trinta milhões de pessoas (dez por cento da população mundial). No entanto, um estudo feito pela Agência da Francofonia e pela União Latina revela os seguintes indicadores:

 

   Presença do inglês na Internet

75 %

   Presença do francês na Internet

2,81 %

   Presença do espanhol na Internet

2,53 %

   Presença do italiano na Internet

1,50 %

   Presença do português na Internet

0,82 %


            Trabalhando a partir de tais dados, Rouquié conclui, coerentemente, pela necessidade de uma atitude política quanto à defesa das línguas latinas, assinalando que a defesa do idioma está associada à defesa da diversidade cultural e das identidades nacionais, numa situação de risco de uniformização estabelecida pelo processo de globalização em curso.

            As observações de Rouquié podem servir de ponto de partida para uma abordagem preliminar quanto ao problema da presença lusófona na Internet, especialmente quanto à dimensão que nos interessa neste ensaio, qual seja, a acadêmica[2].

            Em primeiro lugar, os dados apresentados por Rouquié precisam ser relativizados e contextualizados. Um dos grandes problemas com que qualquer analista se confronta ao estudar é a Internet é a baixa confiabilidade dos números disponíveis para dimensioná-la. Tal situação decorre, basicamente, da vertiginosa taxa de crescimento da rede e da falta de uniformidade dos critérios utilizados para acompanhar e quantificar esse crescimento.

            A contabilização da população mundial de usuários da Internet, elemento fundamental para a apreciação de dados locais e regionais, é altamente controversa, com distintos institutos de pesquisa fornecendo números bastante discrepantes para um mesmo período. A tabela abaixo ilustra as variações de medidas:

População Mundial de Usuários da Internet (Dados de março de 2000)

 

Fonte

Número de usuários (em milhões)

Commerce Net (www.commerce.net)

                              242

NUA Internet Surveys (www.nua.ie)

                              332,73

Cyber Atlas (www.cyberatlas.com)

259 (dezembro1999)

Global Reach (www.glreach.com)

                              302

 

            O confronto dos vários totais disponíveis, mostra-nos que é que é necessário, neste estágio de desenvolvimento da Internet e dadas suas características de expansão, tomar-se tais números apenas como indicadores de magnitude, e não como quantificações com pretensões de exatidão. Não há como medir o número exato de usuários na Internet.Podemos estimá-lo como algo entre 250 e 350 milhões, em março de 2000.

            Sendo assim, e trabalhando com as fontes disponíveis, passaremos a analisar como se comportam os dados apresentados por Rouquié, no que diz respeito à presença lusófona na Internet, quando contrastados não com o número de falantes do português no mundo, mas com o número de usuários da Internet em países lusófonos.

            Comecemos com o inglês. Segundo a NUA (New Thinking for the Digital Age[3]), uma agência especializada em estatísticas e análises mercadológicas sobre a Internet, a distribuição geográfica dos 332,73 milhões de usuários da Internet indicava, em março de 2000, uma concentração de aproximadamente 44 % de usuários somente nos Estados Unidos e Canadá. Tais dados foram produzidos a partir da compilação de vários levantamentos e amostragens disponíveis, porém a própria NUA adverte tratar-se apenas de uma “estimativa”, na verdade pouco mais que um “educated guess”:

 

USUÁRIOS DE INTERNET NO MUNDO

(Março de 2000- Em milhões)

____________________________________

 

Total Mundial              332,73 

USA e Canadá              147,48

Europa                            91,82

Ásia e Pacífico                75,50

América Latina               13,19

África                               2,77

Oriente Médio                  1,90

______________________________________________________

Fonte: NUA Internet Survey  (http://www.nua.ie/surveys/how_many_online/index.html)

 

Coerentemente com tal distribuição geográfica, temos as seguintes estimativas para usuários do inglês com relação às demais línguas, levando-se em conta não somente Canadá e Estados Unidos, mas todos os países anglófonos:      

DISTRIBUIÇÃO LINGUÍSTICA DE USUÁRIOS DA INTERNET

(Março de 2000)

Inglês         51,3 %                     Francês         4,4%

Japonês         7,2 %                    Coreano         3,6 %

Alemão         6,7 %                    Italiano          3,3 %

Espanhol       6,5 %                   Holandês        2,0 %

Chinês           5,2 %                   Português     1,6 %

                                                  Outras            8,4 %

Fonte: Global Reach (http://www.glreach.com/globstats)

               

 

                A primeira constatação que tais dados permitem é quanto à baixa presença de usuários lusófonos na Internet , apesar de o português ser a terceira língua ocidental mais falada no mundo, somente superada pelo inglês e pelo espanhol. Voltaremos mais adiante a essa questão.

              Retornemos, inicialmente  aos dados apresentados por Rouquié, contrastando agora a presença das diversas línguas na Internet, em termos de conteúdos, com os percentuais de usuários:

 

           PRESENÇAS LINGUÍSTICAS E NÚMERO DE FALANTES NA INTERNET

_________________________________________________________________________

 

Presença do inglês na Internet      75,00%           Falantes do inglês na Internet       51,30%

Presença do francês na Internet      2,81%           Falantes do francês na Internet       4,40%

Presença do espanhol na Internet   2,53%           Falantes do espanhol na Internet     6,50%

Presença do italiano na Internet     1,50%           Falantes do italiano na Internet        3,30%

Presença do português na Internet  0,82%           Falantes do português na Internet   1,60%

 

 

            Verifica-se, de imediato, que há uma flagrante disproporção entre as percentagens de  usuários da Internet e os conteúdos disponibilizados em suas respectivas línguas. A predominância do inglês, para além da proporcionalidade de usuários anglófonos, tem várias explicações, que não se restringem a uma maior produção de conteúdo (sites e páginas da Web) per capita desses usuários.

Em primeiro lugar há de se considerar, evidentemente, o lugar dos Estados Unidos no panorama econômico e geo-político mundial: à hegemonia exercida em escala internacional pelo país, dificilmente poderia deixar de corresponder uma situação de dominação do idioma na rede telemática mundial, onde a presença econômica e cultural norte-americana é fortíssima e estruturante. 

Além disso, o caráter de língua franca, incontestavelmente assumido pelo inglês na sociedade contemporânea, tem que ser levado em conta na contextualização do peso da presença de conteúdos anglófonos na rede mundial. Conteúdos em inglês são disponibilizados não apenas por usuários anglófonos, mas por usuários de qualquer outra língua que visem uma divulgação globalizada de seus conteúdos. Com efeito, calcula-se que cerca de 80% das publicações científicas, em diversos suportes midiáticos,  circulem originalmente em língua inglesa, independentemente da língua nativa de seus produtores. A disponibilização bilingüe de sites de todos os tipos (comerciais, acadêmicos, institucionais, pessoais, etc) é prática corrente na Internet, contribuindo para o estabelecimento das (des)proporcionalidades acima discriminadas.

            Por outro lado, torna-se igualmente claro que a baixa proporção de conteúdos disponibilizados com relação à proporção de usuários de línguas latinas exige ações no sentido de se estabelecer o equilíbrio. No caso da língua portuguesa, que é o objeto central de nossas considerações, constata-se uma proporcionalidade de cerca de 2:1, com 1,6% de usuários lusofônicos produzindo apenas 0,82% de conteúdos em português na Internet. Temos, portanto, não apenas uma baixa presença de usuários lusófonos, mas também uma baixa proporção de conteúdos disponibilizados em língua portuguesa, com relação ao número de usuários detectados.

            Fixemo-nos inicialmente no problema do número de usuários de língua portuguesa na Internet, uma vez que ele precede a questão da produção de conteúdos lusófonos.



O mundo lusófono é avaliado hoje entre 170 e 210 milhões de pessoas[4]. O português, oitava língua mais falada do planeta (terceira entre as línguas ocidentais, após o inglês e o espanhol), é a língua oficial em sete países: Angola (10,3 milhões de habitantes), Brasil (157 milhões[5]), Cabo Verde (346 mil), Guiné Bissau (1 milhão), Moçambique (15,3 milhões), Portugal (9,9 milhões) e São Tomé e Príncipe (126 mil).

            A primeira e óbvia consideração é que o número mais substancial de indivíduos lusófonos encontram-se no Brasil e na África, regiões nas quais a questão do acesso à Internet coloca-se de maneira  problemática, estando, no caso africano, ainda num estágio incipiente e extremamente precário.

            Além de eventuais limites e controles impostos pela ordem política vigente (como no caso da China e de alguns países do Oriente Médio, por exemplo) três fatores de ordem tecnológica, todos com componentes sócio-econômicas fundamentais, colocam-se como determinantes do acesso à Internet:

acesso a computador;

acesso a linha telefônica;

acesso a provedor de serviço.

Esses três fatores devem ser examinados por dois ângulos distintos: o de sua disponibilidade e oferta no mercado e o das condições sociais de acesso para diferentes segmentos da população. Os três fatores são naturalmente cumulativos, quando pensados como limitantes de caráter sócio-econômico, porém em casos como o Brasil, como veremos adiante, alguns deles isoladamente, por sua baixa oferta no mercado,  podem representar impedimentos absolutos, mesmo para usuários potenciais de alto poder aquisitivo.

O continente africano, como já apontado, situa-se no mais baixo patamar de acesso à Internet, com  2,77 milhões de usuários em um total mundial estimado em 332,73 milhões[6]. Além disso, esse contigente de usuários africanos concentra-se, majoritariamente, na África do Sul (1,82 milhões) e Egito (440 mil), que juntos perfazem 81,5% do total de usuários africanos.

Nos países africanos lusófonos, o acesso à Internet é extremamente reduzido, conforme se verifica pelos dados abaixo:

 

USUÁRIOS DA INTERNET EM PAÍSES DA ÁFRICA LUSÓFONA

(Março de 2000)

_________________________________________________________________________

País                             Habitantes                        Usuários da Internet

 

Angola                         10,3 milhões                         12 mil

Cabo Verde                  346 mil                                    150

Moçambique                5,3 milhões                          12 mil

Guiné Bissau                1 milhão                                  450

São Tomé e Príncipe    126 mil                              não disponível

 

Total                             27,07 milhões                    24,60 mil

__________________________________________________________

Fonte: Nua Surveys (http://www.nua.ie/surveys/how_many_online/africa.html )

 

 


Apesar de não dispormos de dados mais específicos sobre a situação desses países, é de se supor que os três fatores tecnológicos determinantes de acesso à Internet (computadores, telefones e provedores) constituam-se em barreiras consideráveis em todos eles.

No caso de Portugal, tem havido um crescimento quantitativo contínuo e significativo do número de usuários, sendo que se passou de 188 mil usuários em janeiro de 1998, representando 1,9 % da população total do país, para 565 mil em outubro de 99, representando 5,7% da população do país.

 

USUÁRIOS DA INTERNET EM PORTUGAL (Em milhares)

_________________________________________________________________________

 

Janeiro de 1998.......................... 188

Dezembro de 1998.......................200

Outubro de 1999..........................565

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Fontes: Cyberscan e IDC Research (http://www.idc.com)

 

No entanto tais dados de proporcionalidade entre população total e população conectada empalidecem quando contrastados com números de países europeus que ocupam a liderança em termos de expansão da Internet: Holanda (28,47% de conectados em março de 2000), Grã Bretanha (32,55% em março de 2000), Finlândia (41,61% em fevereiro de 2000), Suécia (44,33% em dezembro de 1999), Noruega (49,57% em março de 2000). Se considerarmos apenas a população de mais de 15 anos de idade, Portugal tem uma taxa de 11,4% de usuários, contra 65,0% da Suécia, 59,0% da Noruega, 45,6% da Grã Bretanha[7].

                A curva ascendente da proporção entre população total e população conectada em Portugal deve manter tal tendência, especialmente quando começarem a ser sentidos os impactos de diversos programas em andamento no país, como por exemplo o Aveiro Cidade Digital, que funciona como piloto para a disseminação de cidades digitais no país.

                No caso do Brasil, temos condições de fazer uma análise um pouco mais detalhada do crescimento da Internet e dos fatores impeditivos desse crescimento.

            A Tabela abaixo indica como têm se comportado as curvas de crescimento de acesso em anos recentes.

 

USUÁRIOS DA INTERNET NO BRASIL (Em milhares)

________________________________________________________________________

 

Janeiro de 1996...................................................170

Dezembro de 1996..............................................740

Dezembro de 1997 ..........................................1310

 Janeiro de 2000................................................7000

 Janeiro de 2001 (Previsão otimista).............  14000

 Janeiro de 2001 (Previsão pessimista)...........10000

________________________________________________________________________

Fontes: IBOPE (http://www.ibope.com.br) e UOL (http://www.uol.com.br)

           

 

Tais números, em termos de proporcionalidade população total x população conectada, indicam uma taxa de conexão ainda baixíssima, de cerca de 4,5%, podendo chegar a 9% no próximo ano, de acordo com as previsões mais otimistas.

            Dos três fatores limitantes de acesso à Internet já apontados (acesso a computador, acesso a linha telefônica, acesso a provedor), o menos significativo, no caso do Brasil, tem sido o da disponibilidade de computadores para compra no mercado nacional. Desde a década de 80, o Brasil tem crescentemente produzido e montado computadores pessoais, seja através de empresas nacionais ou multinacionais estabelecidas no país, seja através de uma extensa rede semi-informal e semi-legal de “montadores”, muitas vezes operando com material ilegalmente importado.

Considerável progresso foi feito, em anos recentes,  no que diz respeito a acesso à telefonia e a provedores Internet.

            Segundo dados do Comitê Gestor da Internet no Brasil[8], o Brasil ocupa o décimo terceiro lugar no mundo e o terceiro nas Américas no que diz respeito a número de servidores (hosts) em funcionamento, com um total de 446.444 servidores em janeiro de 2000.

 

NÚMERO DE SERVIDORES (HOSTS)  

(Em janeiro de 2000)

_________________________________

Estados Unidos...............................10.490.416

Canadá..............................................1.669.664

Brasil....................................................446.444

México.................................................404.873

Argentina.............................................142.470
Fonte: Comitê Gestor da Internet Brasil- (http://www.cg.org.br)

 

            Além disso, o recente fenômeno da chamada Internet Gratuíta, ou seja provedores de acesso que não cobram taxas de seus usuários, vem dando uma nova dimensão a esse  aspecto da questão do acesso. Para citar apenas o exemplo mais bem sucedido, o site IG – Internet Gratuita[9],lançado em janeiro de 2000, alcançou o marco de 2 milhões de usuários no final de maio, multiplicando por dez as expectativas de crescimento de seus criadores. Oitenta cidades brasileiras já estão cobertas pelo IG, que vem registrando um crescimento diário entre 10 e 15 mil novos usuários. Vários outros provedores de acesso gratuito estão disputando as preferências dos usuários brasileiros, já havendo inclusive oferta de discadores automáticos que comutam entre provedores gratuitos, buscando linhas livres de acesso em todos simultaneamente[10].

            Se o impedimento para o crescimento da população de usuários da Internet no Brasil representado pelo acesso a um servidor tende a reduzir-se e, a médio prazo, talvez desaparecer, o mesmo não pode ser ainda afirmado no que diz respeito ao acesso à telefonia, outro fator limitante do crescimento da população de usuários da Internet no Brasil.

                A abertura definitiva em direção à fase comercial da Internet no Brasil tem início em 1995, o mesmo ano de surgimento do Comitê Gestor da Internet no Brasil, que incentivou a implantação e expansão de diversos provedores de acesso em várias capitais do Brasil. Em janeiro de 1996, já havia no país mais de 200 provedores comerciais e cerca de 170 mil usuários.

            Um fator tecnológico crucial, no entanto, continuava a limitar o acesso à Internet mesmo por parte daqueles usuários potenciais de alto poder aquisitivo, que não tinham problemas de acesso privado a um computador: a escassez de linhas telefônicas fixas no Brasil. A telefonia fixa era monopólio do Estado e as linhas eram adquiridas pelos usuários, por preços que podiam variar entre U$500 e U$ 2000, a depender da localidade. As filas de espera para novas linhas eram enormes, o que significava, muitas vezes, espera de vários anos para se ter acesso a uma linha, através dos planos de expansão da telefonia.

            Em julho de 1997, como parte do processo de reorganização e privatização dos serviços de telecomunicações Brasil, foi criada a Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações[11]), uma autarquia especial com a missão de implementar a política nacional de telecomunicações e funcionar como agência fiscalizadora do setor. Várias empresas privadas nacionais e estrangeiras passaram a oferecer serviços de telefonia fixa e móvel. Iniciou-se um crescimento da oferta e as linhas telefônicas deixaram de ser compradas, passando a um  sistema de concessão de uso, tal como acontece na maioria dos países.

Em abril de 2000, a Anatel lançou o programa PASTE (Perspectivas de Ampliação e Modernização do Setor de Telecomunicações), durante o evento do American Telecom, no Rio de Janeiro. Os números do PASTE são bastante ambiciosos, com a agência pretendendo chegar a 58 milhões de acessos de telefonia fixa em 2005 e o mesmo número de acessos celulares. Os investimentos no setor da telefonia, para os próximos cinco anos, devem ser de R$112,2 bilhões (cerca de U$ 61 bilhões)[12].

 

TELEFONIA FIXA NO BRASIL (Em milhões de acessos)

__________________________________________________________________

 

1996.............16,5                 2001 (PROJEÇÃO)........40,5

1997.............18,8                 2002 (PROJEÇÃO)........49,6

1998.............22,1                 2005 (PROJEÇÃO)........58,0

1999.............27,8

_________________________________________________________________________

Fontes: Telecon Online ( http://www.telecomonline.com.br) e Anatel (http://www.anatel.gov.br)   


Ainda de acordo com os planos de expansão da Anatel, o número de usuários da Internet no Brasil deve atingir a marca de 34 milhões, em 2005. Tal expectativa, se atingida, levaria o número de usuários brasileiros na Internet para cerca de 20% da população total do país.

O que se pode concluir de tais dados e projeções (ainda que tais metas venham a se realizar apenas parcialmente) é que, nos próximos cinco anos, deverão estar superados os obstáculos tecnológicos para o acesso privado à Internet, por parte de usuários potenciais pertencentes à faixas sócio-econômicas  mais privilegiadas. O problema se coloca então com relação aos usuários potenciais que, situados em faixas sócio-econômicas menos favorecidas, estarão impossibilitados de se beneficiar de acesso privado á Internet, ainda quando superados os fatores limitantes de caráter tecnológico.

Mesmo no caso europeu, os dados disponíveis indicam um forte elitismo no acesso. Pesquisa realizada pelo Pan European Internet Monitor, em 1999, mostra que 50% dos entrevistados das faixas de renda mais altas tinham usado a Internet na quinzena anterior à realização da pesquisa e 18% deles haviam realizado compras online, enquanto somente 10% dos entrevistados de faixas de renda mais baixa haviam tido acesso à Internet e apenas  3,3% comprado online pelo menos uma vez[13].

O problema do crescimento da população lusófona na Internet torna-se, portanto, cada vez mais, um problema político, pois somente através de programas de acesso público o número de usuários poderá vir a aumentar, uma vez garantidos os elementos tecnológicos que permitam o acesso das parcelas mais privilegiadas em termos sócio-econômicos. Tal colocação não restringe a questão ao âmbito do Estado, mas pelo contrário coloca-a como uma urgente e necessária preocupação de toda a sociedade civil.

Voltemos então ao problema dos conteúdos lusófonos na Internet. Como já vimos, o crescimento do número de usuários lusófonos não implica necessariamente em crescimento da proporcionalidade de conteúdos em língua portuguesa, pois está ocorrendo um descompasso entre os percentuais de usuários e os percentuais totais de conteúdos lusófonos na Internet. Fazem-se necessárias, portanto, ações programáticas no sentido de incrementar os conteúdos lusófonos.

O primeiro ponto a ser destacado é que tais ações programáticas para terem maior efetividade devem ser pensadas, sempre que possível, em termos de articulação da comunidade lusofônica como um todo e não apenas como iniciativas de membros isolados dessa comunidade. Tal articulação resultará em economias de escala, através do compartilhamento de recursos, trocas de experiências, etc, e principalmente, permitirá uma organização mais racional dos conteúdos a serem produzidos e disponibilizados, uma vez que, na Internet, tão importante quanto a existência de conteúdos é a garantia de sua acessibilidade.

É evidente que  a superação do atual estado de coisas até aqui descrito, dependerá da ação conjugada de todas as instituições que direta ou indiretamente articulam ações culturais e de colaboração científica no âmbito da comunidade lusófona. É fundamental que a CPLP – Comunidade dos Países de Língua Portuguesa[14]- organização que congrega chefes de Estados de todos os países lusófonos e se constitui no principal agente articulador de políticas conjuntas, nas mais diversas áreas de atuação, bem como a Associação de Universidade de Língua Portuguesa (UALP)[15], uma ONG que congrega Universidades dos países lusófonos, venham a dar prioridade, dentre suas ações, à questão do acesso público e da presença do português nas redes telemáticas.

É significativo e indicativo do pouco desenvolvimento nessa direção o fato de que a recém editada coletânea de ensaios sobre a Lusofonia, organizada por Fernando Santos Neves (NEVES:2000) para a Edições Universitárias Lusófonas não inclua trabalhos voltados para a Lusofonia no Ciberespaço. Igualmente importante terá que ser a participação de instituições diretamente ligadas à área de Comunicação Social, como é o caso do LUSOCON, encontro anual de profissionais e pesquisadores da área de Comunicação de países lusófonos, que em abril de 2000 chegou à sua quarta versão[16] e que pode vir a ter importante papel na criação e gestão de políticas de democratização da informação disponibilizada em rede.

No que tange o modesto escopo deste trabalho, nossa preocupação está centrada na dimensão acadêmica e cultural da Internet e é, portanto, dentro desse âmbito que apresentaremos a seguir três sugestões práticas e de possível implementação a curto prazo, que podem dar início a um processo de crescimento e racionalização dos conteúdos lusófonos de tipo acadêmico:

1) Um primeiro ponto a ser abordado diz respeito às chamadas Bibliotecas Virtuais, aqui entendidas não como portais de bibliotecas físicas já existentes, nos quais são oferecidas informações sobre acervos fisicamente localizados, mas sim como sites nos quais são disponibilizados conteúdos referentes a uma determinada área de saber.

            Várias dessas bibliotecas existem hoje em língua portuguesa, mas muitas delas como iniciativas de caráter pessoal e existindo em isolamento, como é o caso da excelente Biblioteca Online de Ciências da Comunicação (BOCC)[17], iniciativa portuguesa, sem similar na comunidade lusófona, coordenada pelo Prof. Antonio Fidalgo.

 Bibliotecas Virtuais que disponibilizem conteúdos são de extrema importância para comunidades acadêmicas que se ressentem da precariedade das bibliotecas físicas disponíveis, como é o caso na maioria dos centros universitários do Brasil e, certamente dos países da África lusófona.

Nossa sugestão vai no sentido de criação de um portal único, de caráter lusófono que sirva como ponto de agregação para todas as bibliotecas já disponibilizadas e que venham a ser doravante criadas. Como no Brasil já existe um embrião de portal de Bibliotecas Virtuais, representado pelo site das Bibliotecas Virtuais do Programa Prossiga[18] do CNPq, sugerimos a transformação dessa iniciativa num portal de caráter lusófono e não apenas brasileiro. Far-se-ia necessário, naturalmente, um trabalho posterior de divulgação para que a agregação de bibliotecas já existentes de forma isolada viesse a se concretizar o que poderia ser também facilitado pela criação de programas que incentivassem a produção e manutenção desse tipo de biblioteca, através de acordos de colaboração internacional envolvendo países da comunidade lusófona.

2) Um segundo campo de ação a ser considerado diz respeito à disponibilização eletrônica de periódicos científicos e acadêmicos. Os periódicos constituem o “calcanhar de Aquiles” de toda e qualquer comunidade voltada para atividades acadêmicas. São de fundamental importância para o avanço das atividades de pesquisa e a preparação dos profissionais empenhados na docência, uma vez que ai circulam os conteúdos mais recentes e atualizados de cada área de conhecimento e, por outro lado, são de manutenção dispendiosa, dado o elevado custo das publicações impressas e a resultante dificuldade de se manter atualizadas e em boa conservação as coleções existentes.

Além disso, a disponibilização eletrônica dos periódicos científicos e acadêmicos apresenta-se como solução possível para um problema correlato ao da publicação impressa, que é o da circulação desse material. Periódicos acadêmicos têm, em geral, tiragens reduzidas e distribuição precária, não cumprindo seu objetivo fundamental de disseminar os resultados da pesquisa científica corrente para o maior número possível de usuários no âmbito da comunidade acadêmica e fora dela. Tal é claramente o caso no Brasil, no que diz respeito à maioria dos periódicos produzidos por editoras universitárias, mesmo quando operando em regime de co-produção com casas editoras comerciais. A disponiblização eletrônica, com ou sem “paredes móveis”[19](moving walls), permitiria o acesso instantâneo e universal aos conteúdos produzidos  por pesquisadores lusófonos, em muito contribuindo para o avanço da pesquisa e a atualização dos docentes e estudantes, especialmente em comunidades acadêmicas mais carentes de recursos.

É ainda bastante pequeno o número de periódicos lusófonos que estão disponíveis em versões eletrônicas na Internet. Uma política de incentivo para a disponibilização eletrônica dos periódicos correntes já existentes, deve ser acoplada a mecanismos que possibilitem que as diversas comunidades que não dispõem de recursos financeiros para publicações impressas se valham das facilidades da disponibilização eletrônica, com suas consideráveis reduções de custos.

Mais uma vez impõe-se a idéia de que um portal lusófono. Um site que agregasse os periódicos acadêmicos lusófonos seria de inestimável valor para pesquisadores de toda a comunidade de língua portuguesa, facilitando sobremaneira o acesso e até mesmo servindo como “efeito demonstração” para que um número cada vez maior de publicações viesse a ser disponibilizado eletronicamente. E mais uma vez podemos indicar um embrião de portal de tal natureza, representado pela SciELO (Scientific Electronic Libray Online). A SciELO é a aplicação de um projeto de pesquisa da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - FAPESP, em parceria com o Centro Latino-Americano e do Caribe de Informação em Ciências da Saúde - BIREME.

O Projeto FAPESP/BIREME tem por objetivo o desenvolvimento de uma metodologia comum para a preparação, armazenamento, disseminação e avaliação da produção científica em formato eletrônico. Um projeto de tal natureza poderia ser ampliado em seu escopo para acolher não somente periódicos brasileiros, mas toda a produção da comunidade lusófona ou, inversamente, passar a fazer parte integrante de uma iniciativa mais ampla de caráter lusófono.

3) Finalmente, um terceiro campo de atuação em que poderiam ser conjugados esforços da comunidade acadêmica lusófona diz respeito à criação de Bancos de Pesquisas. As Teses e Dissertações produzidas em nossas Universidades são, em geral, simplesmente depositadas nas bibliotecas físicas, muitas vezes sequer com uma indexação que permita um rápido e eficiente acesso a seus conteúdos. Depende-se, em geral, da iniciativa do autor em tornar público seus esforços. Conhecendo-se as dificuldades editoriais para a publicação desse tipo de produção nos países lusófonos, a disponibilização eletrônica  poderia constituir-se em uma forma de dar circulação a tais conteúdos, tal como já ocorre em diversas instituições universitárias dos Estados Unidos e outros países.

No caso dos Bancos de Pesquisas, talvez a melhor estratégia seja uma política de incentivos, coordenada pelas agências de fomento científico dos países da comunidade lusófona, com bancos localizados nas diversas universidades e um portal central para acesso a esses diversos bancos. Uma maneira de dar início ao processo seria o estabelecimento, pelas agências de fomento da obrigatoriedade de disponibilização eletrônica dos trabalhos realizados com o auxílio de bolsas de estudos. Esta seria, inclusive, uma forma de restituição social do investimento feito pela sociedade em cada pesquisador. Como no caso dos periódicos, poderia ou não haver “paredes móveis”, com disponibilização imediata após a defesa ou aprovação, ou num prazo posterior pré-estipulado, de comum acordo com o autor e respeitados os direitos de copyright amparados pela legislações vigentes nos diversos países da comunidade lusófona.

Uma estratégia semelhante de disponibilização online poderia ser considerada para os Relatórios de Pesquisa produzidos nas Universidade e Centros de Pesquisa que, de maneira semelhante ao que ocorre com as Teses e Dissertações, raramente têm circulação maior, servindo no mais das vezes como documentos terminais de processos de pesquisa, cumprindo uma formalidade administrativa e, a despeito dos dados e informações valiosas que em geral contém, não sendo compartilhados com comunidades acadêmicas mais amplas.

Bibliotecas Virtuais, Bibliotecas de Periódicos Eletrônicos e Bancos de Pesquisas constituem, portanto, em nosso entendimento, três campos de ação nos quais a comunidade acadêmica lusófona poderia de imediato intervir e investir, produzindo efeitos imediatos e de grande significação para o processo de expansão da presença lusófona na Internet. Para tornar-se eficaz tal intervenção teria que ser mediada e incentivada pelas agências de fomento científico dos países da comunidade lusófona (CNPq, CAPES, ICCTI, FAPEX, etc, etc), na busca de ações concertadas, envolvendo pesquisadores de todas as universidades e institutos científicos de Portugal, do Brasil e da África lusófona e carreando recursos humanos e financeiros para projetos que visem tornar realidade uma maior e mais proveitosa presença acadêmica e cultural lusófona na rede mundial.

 

 

BIBLIOGRAFIA

 

ANATEL- Agência Nacional de Telecomunicações. “Biblioteca” in: http://www.anatel.gov.br/biblioteca/default.asp (2000)

 

COMITÊ GESTOR DA INTERNET NO BRASIL. “Indicadores do Crescimento da Internet no Brasil”, in: http://www.cg.org.br/indicadores/index.htm (2000)

 

COMMERCE NET. “Research Reports”, in: http://www.commerce.net/research/research.html (2000)

 

CYBER ATLAS. Coleção de estatísticas e representações gráficas sobre a população da Internet mundial, in: www.cyberatlas.internet.com (2000)

 

GLOBAL REACHS. “Global Statistics”, in: http://www.glreach.com/globstats (2000)

 

IBGE -Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. “Contagem da população brasileira, 1996”, in: http://web.obge.gov.br/estatistica/populacao/contagem/brcont97.shtm

 

IDC RESEARCH. “Research Store”, in: http://www.idc.com/Store/default.htm (2000)

 

LOADER, Brian D. (Org.) Cyberspace Divide: Equality, Agency and Policy in the Information Society, London: Routledge , 1998

 

MEDEIRO, Eduardo. “A Língua Portuguesa”, in:  http://www.terravista.pt/FerNoronha/2030/, (novembro 1996)

 

NEVES, Fernando Santos (org). A Globalização Societal Contemporânea e o espaço Lusófoco: Mitideologias, Realidades e Potencialidades, Lisboa: Edições Universitárias Lusófonas, 2000.

 

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ROUQUIÉ, Alain, “A França e a Defesa da Latinidade”, conferência proferida pelo Embaixador da França no Brasil, na Câmara dos Deputados, Brasília,  em 15 de março de 2000, disponibilizada in: http://france.org.br/cultural/pbreves7.htm

 

TELECOM ONLINE. “Banco de Informações Telecom Online”, in: http://www.telecomonline.com.br/(2000)

 

WOLTON, Dominique. Internet et après: une theorie critique des noveaux médias, Paris:Flammarion, 1999

 



[1] http://france.org.br/cultural/pbreves7.htm

[2] Uma versão preliminar deste ensaio foi apresentada na Universidade de Aveiro, Portugal, em junho de 2000, durante visita acadêmica  no âmbito do convênio de colaboração em pesquisa CAPES/ICCTI, servindo como ponto de partida  e subsídio para um trabalho mais amplo, produzido em conjunto com colegas da Universidade de Aveiro, para apresentação no VI Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais, Porto, setembro de 2000. Uma versão impressa está em LEMOS, A.  & PALACIOS, M. (Org.) Janelas do Ciberespaço, Porto Alegre: Editora Sulina, 2000

[3] http://www.nua.ie

[4]  http://www.terravista.pt/FerNoronha/2030/

[5] Dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) a partir da contagem da população realizada em 1996.

[6] NUA Survey, in: http://www.nua.ie/surveys/how_many_online/africa.html

[7] Dados do Pan European Internet Monitor, em julho de 2000, http://www.proactiveinternational.com/

[8] http://www.cg.org.br

[9] http://www.ig.com.br

[10] http://www.bol.com.br/multi

 

[11] Para maiores informações sobre a Anatel veja: http://www.anatel.gov.br

[12] Fonte: Telecom Online, in: http://www.telecomonline.com.br (Edição 11/04/2000)

[13] http://www.proactiveinternational.com/. Para uma série de instantes trabalhos de diversos autores sobre a questão da desigualdade de acesso aos recursos da Sociedade da Informação vide coletânea organizada LOADER (1998). Vide também WOLTON (1999).

 

[14] http://www.cplp.org

[15] http://www.ualp.org

[16] http://www.umesp.com.br/unesco/agenda/lusocom.htm

[17] http://bocc.ubi.pt

[18] http://www.prossiga.br

[19] “Parede móvel” (moving wall) é um termo que se emprega para designar o período de tempo após a publicação impressa de um periódico, após o qual a totalidade de seus conteúdos é colocado online para livre acesso. Esse recurso tem sido utilizado por periódicos que têm versões impressas e online, para garantir que haja a venda da  edição impressa antes de que os conteúdos possam ser livremente acessados online.