PERSPECTIVA : ÓPTICA, ÔNTICA, SIMBÓLICA e REPRESENTAÇÃO
Francisco Paiva, Universidade da Beira Interior
ensaio/lição. ubi. 19 de
fevereiro de 2001 (primeira parte)
Não procuramos fazer mais do que uma breve incursão
propedêutica na vasta problemática da relação entre o real (com o que essa categoria tem de ambíguo) e a sua representação.
Concorre para este assunto a consideração do
Renascimento nas artes visuais, na medida em que a polemização do modo como a
«recuperação» do clássico começou, nessa época, por ser feita pelos próprios
artistas, antes do proto-arqueologismo de Johannes Winckelmann, influi na
emergente cosmogonia.
A rinascitta, palavra empregue por Vasari
no prefácio das Vite (Panofsky), designa um
movimento que irá rechear-se de equívocos hermeneuticos. Pois, desde a
diferença de ratio proporcional entre a arte medieval, cantatrópica (abstracta) e esta, presumivelmente empatrópica (antropométrica) referida por Rudolph Wittkower (Architectural
Principles in The Age of Humanism); entre a buonna maniera greca anticca,
valorizada por Albrecht Durer e a depreciada maniera greca, até aos
diferendos sobre o epíteto moderno, não há interpretações apodíticas
possíveis sobre o modo como nós vemos o fenómeno renascimental e, mais
dificilmente, sobre como os seus actores estavam scientes da peculiaridade e
pioneirismo da sua acção. Todavia, parece-me próprio destas considerações
prévias, embora sem oportunidade de aqui darmos justificação cabal, afirmar que
os do Quattrocento viam nos clássicos algo equivalente àquilo que nós
procuramos neles: ambição de filiação legítima, pois nunca deixámos de lhes
imputar o que hoje nos importa.
A tradição clássica convenciona-se interrompida
por esses longos mil anos aplanados na categoria de Idade Média. Como de um
hiato se tratasse onde, salvo os epifenómenos de Aix-La-Chapelle, epígono de
S.Vitale de Ravena, e os ditos renascimentos
otaniano (Otão I) e carolíngio (Carlos Magno), prevaleceram as trevas.
Para contestar esta tese muito contribuíram as
obras de Georges Duby como as incursões e especialização de diversos
historiadores da arte neste período.
Este reparo serve apenas para precisar que não
perfilhamos a ideia de ruptura, nem a de incapacidade pictórica dos medievais ante os iluminados. Aliás,
julgamos até mais provável a nossa inépcia para nos libertarmos dos cânones
actuais de referência quando olhamos diacronicamente.
Permitindo-nos ainda notar, porque há exemplos
vulgarizados, que as formas clássicas são amiúde usadas para temas não
clássicos por interessarem ao presente, sem com isto significar que o corpo dos
interesses relevantes numa obra seja constante.
Afirmamos pois, ser este um texto
descomprometido, cruzando informações de diversas áreas do saber, semelhante ao
trabalho empírico de invenção de conceitos para equivaler a imagem com o
pensamento.
A Perspectiva Cónica Linear vinculou-se à
capacidade demiurgica de reproduzir o visível, ao partir do artifício da
redução do observador a um olho simbólico, apoiando-se na geometria, tornou-se
instrumento de conhecimento, com um código próprio que permite comunicar com
grande verismo uma ideia, monumento ou
intenção.
A representação das três dimensões torna o
desenho cosa mentale (Leonardo), em rumo ao desenho
interior de Zuccari, à actualidade recuperadora do gesto.
Nas representações pictóricas do antigo Egipto
as formas aparecem planas e um forte contorno negro sublinha o perfil
convencionado das figuras.
Parrásio e Zeuxis (pintores gregos) aludem à tridimensionalidade pelo apropriado
das sombras.
As pombas bebendo de Sosos de Pérgamo (II a.C.) ou outros frescos e mosaicos que a erupção do Vesúvio
conservou em Pompeia, longe das representações ideais estereotipadas, servem-se
de recursos de ampliação do espaço
pouco sistemáticos, mas provavelmente informados pelos teoremas de Euclides
(Albert Flocon, la perspective,
Presses Universitaires de France, 3ª ed. 1978, p.25 Op.cit Murtinho p25) de “que os planos
parecem descer ou subir, consoante estão por cima ou por baixo da vista, que as
linhas à direita inclinam-se para a esquerda e as da esquerda para a direita”
(teorema 22)
Euclides na sua
“L’Ottica” perfilha a ideia de Platão de que o olho emana a luz
que permite ver o objecto, debruça-se sobre as regras da redução do tamanho
decorrente da convergência de paralelas, relevando assim a posição do sujeito
observador no espaço (e no mundo), pela descoberta da proporcionalidade das
transformações, contribuiu para melhor corrigir a deformação, dando preciosos
instumentos aos pintores, arquitectos e escultores para controlar a óptica. (Fídias e Alcamenes haviam concorrido com uma estátua de
Minerva para ser colocada no cimo de uma coluna, sendo a do primeiro aparentemente
deformada devido à sobrecompensação (Plínio, cit.p. Murtinho,Op.cit p28))
Em De Architettura Libri Decem, Vitrúvio
( tratado romano descoberto por
Poggio Bracciolini em Monte-Cassino(1414), Benevolo p.30) designa por Scenographia
esta ilusão no plano que advém da conjugação do escorço com a orthografia (alçado) (Livro I, cap. II).
Não nos surpreende portanto, que as tragédias de
Ésquilo (525-425a.C.) possuissem cenários com a
experiência dos pontos de fuga, apreendidos por Agatarkos e que levariam Demócrito
e Anaxágoras a teorizar sobre as questões de euritmia (do ritmo dado pelas boas proporções entre sucessivos
elementos que se afastam ou sucedem).
O que notabilizou Zeuxis foi a capacidade de
enganar os próprios pássaros com uvas pintadas, embora Séneca (L.Annaei Senecae ad Lucilium Epistulae Moralles,
FCG,1991 p.203) referisse a importância da configuração que o espírito extrai da
observação.
O advento do cristianismo na Roma de
Constantino, gerou a época comummente designada por Paleo-cristã, que traz
consigo o simbolismo, pouco preocupado com a verosimilhança das cenas, com
mediocre utilização das sombras e onde a congruência estrutural e significante
das cenas substitui o contemplativo. A relidade física dá lugar à espiritual.
O universo hagiográfico da abóbada celeste,
enquanto metáfora do infinito, torna a realidade onírica simétrica do concreto.
As coisas pedem existência anoftálmica, espiritual.
No período Carolíngio dá-se a recuperação do
património clássico, por via do neo-imperialismo de motivação universalista.
Honório de Autun, após o concílio de Arras
atribui à pintura o epíteto de literatura dos leigos e, para deleite dos
ígnaros, esta descreveria e narraria as escrituras. A imago mundi estruturada,
anamnésica, proporciona júbilo místico e uma relação transcendente com o
divino, sendo mais convenção do que visão, em conformidade com as três causas
aristotélicas preponderantes: material, formal e final, cuja enteléquia deriva da ideia.
A diáspora das Cruzadas, que aumentou a
geografia do catolicismo, os movimentos de peregrinação após o ano mil e a
construção das grandes abadias muito contribuiram para romper a hegemonia
conservadora na ciência e nas artes.
Com o ressurgimento das cidades aparece uma nova
iconografia, ora centrada na catedral ora no laicismo burguês e corporativo
emergente.
Alberto Magno, confrontra-se com o poder
clerical nas hipóteses sobre a concorrência entre a fruição estética, sensível,
e a espíritual, notando a dificuldade de contrariar o tradicionalmente aceite
na boa vontade das instituições.
Desenvolver-se-iam, como havia acontecido com os
pitagóricos e aristotélicos, sistemas de relações conducentes, por via de
princípios estilísticos à beleza dos objectos.
É, todavia da Poética (Aristóteles) que emergem os preciosos conceitos de proportio
e symmetria, esta última dependente em Vitrúvio do que os gregos chamam analogia. (Cf.Vitrúvio, op.cit.,LivroIII capI)
Gherardo de Cremona (XII) traduzira o tratado de Alhazen, conhecedor dos
teoremas euclidianos, onde estaria anunciado o seu fecundo princípio de que a
partir de um corpo iluminado partem raios em todas as direcções, situando o
observador no centro de uma estrela de raios directos.
Roger Bacon (1214-1292), discípulo de Grossatesta, eminente figura de transição
para o Renascimento põe a óptica em evidência, perscruta a constituição
anatómica dos olhos, indaga sobre a reflexão e refracção da luz, investiga o
arco-íris e reflecte acerca da redução dos corpos, é pioneiro na estruturação
do método experimental, como forma de validação da experiência. Céptico ante a
filosofia escolástica, este franciscano de Ilchester perfilha a capacidade do
homem se elevar pelo raciocínio (Latino
Coelho – A Ciência na Idade Média.... vol 7.p.24).
O sentido experimental de Bacon põe a tónica na
observação, pois os canones universales regulae decorrem da perspicácia
do espírito. A laicização do espírito é acompanhada pela do visível,
legitimando as exigências do real, dos pontos de vista particulares - aspectus
(não só na representação como no
comércio, administração, ensino, etc).
Villard de Honnencourt (Bechmann) tem seguramente
presente o teorema de Tales quando especula sobre o processo de cálculo das
dimensões de uma torre inacessível cujas exigências de correcção óptica, quando
o ponto de vista era desfavorecido, trazem à memória o teorema do ângulo.
À medida em que o cristão toma noção da sua
relatividade, para o que contribuiram as expedições, desde as orientais de
Marco Polo às ultramarinas portuguesas, torna-se necessário discernir entre o
mundo alegórico, o simbólico e o universal.
Goethe estabeleceu de forma clara a distinção
entre alegoria e simbolismo: «a alegoria transforma o fenómeno num conceito
e o conceito numa imagem, mas de modo que o conceito na imagem seja considerado
sempre circunscrito e completo, e deva ser dado e exprimir-se através dela»,
o «simbolismo transforma o fenómeno em ideia, a ideia numa imagem, de tal
modo que a ideia permanece sempre infinitamente eficaz e inacessível e, ainda
que pronunciada em todas as línguas, fica todavia inexprimível». (Maximen
und Reflectinem, p246., cit. Murtinho
p.77).
Distinção que nos serve aqui para contemporizar as quatro interpretações que Dante
considerava possíveis de atribuir sentido às coisas: Literal – exacta; Alegórica
– sob as fábulas, “constituindo uma verdade oculta sob uma bela mentira” (Dante Aligheri, Convívio; tr. segundo, I,
Guimarães editores (ver
tbU.Eco- usado para mentir- semiologia)); Tropológica
– de raiz moral, aquele que atentamente se deve buscar nas escrituras , porque
em coisas muito secretas devemos ter pouca companhia ; Anagógica –
esta última quando um movimento real precede outro espiritual. (ibidem, p91)
No Século XIV
vulgarizou-se o método perspético denominado do pavimento (Panofsky, Erwin – Renascimento e Renascimentos na
História da arte Ocidental, EdPresença p.193nts40,41; tb Focillon, p.49), patente no fresco
da Apresentação de Cristo no Túmulo (Florença 1342) de Ambroggio Lorenzetti, na qual, para atribuir
maior veracidade começam a tratar-se os aspectos da paisagem e a cuidar-se a
colocação do horizonte, é revelada
preocupação de coerência no todo perspético. Esta fórmula, que no Trecento
regrava apenas o pavimento, apresenta agora o tema já em profundidade e as
figuras modeladas com alguma verosimilhança e, sem destruir o teor cénico do
acto, , supera as panorâmicas de cidade do Palazzo Público de Sienna, no qual o
mesmo autor recorre à ingénua sobreposição intuitiva de planos.
Os homens de Deus
haviam-se excluído da sociedade. As predilecções monásticas italianas do Século
XIII abominavam claramente a maniera tedesca (alemã, flamenga, nórdica), e desde que observada a
Regra e determinações conciliares, não excluiram a invenzionne por parte
dos mestres pintores, frequentemente contratados e cidadãos não religiosos.
Esta prática de encomenda (principalmente
pelas novas Ordens) foi responsável por algumas das mais eloquentes obras, de
entre as quais salientamos os (a)frescos da Basílica de Assis, onde laboraram
Arnolfo di Cambio e Cimabue, que delegariam em Giotto alguns quadros de
responsabilidade, e ainda hoje se assumem paradigma estético mas também
inestimável documento da relação entre o comendatário e executor ou entre
mestre e discípulo.
Giotto di Bondone (1266-1337) aluno de Cimabue (1250-1300?) que fora pintor de temas religiosos e históricos
desempenha um papel de charneira na conversão da pintura da manualidade em
humanismo, recupera a problemática da representação objectiva da expressão e do
gesto (Battisti, Eugenni - Giotto,
Ed. Skira, Genéve 1990, p.15), encurtou a distância da arte ao profano, ao ambicionar
além da apresentação simbólica significar.
Este impulso classicizante começou por ser preconizado
por Benedetto Antelami e Nicola e Giovanni Pisano na escultura, ditando novas convenções de figura humana,
análogas ao ideal Clássico. Apropriação que começou por ser literal,
convertendo-se uma Fedra em Maria ou Vénus em Eva. (lei da disjunção de Panofsky)
A mente, o instrumento e a matéria são os
veículos para o domínio do visto, da substituição do hilemorfismo medieval pelo
sensível.
Duccio (1255-1319) e Simonne Martini (1284.1319) com as respectivas alusões naturalistas aproximam-se das aparências
do real, dum real de cariz mitopético onde a aparente correspondência entre
personagens humanas e hagiográficas é tolerada pela atmosfera espiritual de
inspiração bizantina.
Giotto, mais do que Duccio, torna esses ícones personas,
intencionalmente submetidas às regras do quadro, mas ambos aferem métodos para
colocar essas personagens no espaço, ocluso ou externo, como actores em cuja
cena a ordenação do espaço alude à dimensão temporal. Há na mestria de Giotto
um véu que separa as figuras sacras das laicas. A paridade antropométrica não
ilude a diferença de personalidade, agora dada sem recurso exclusivo à
simbólica. É um ganho de sensoraialidade que convoca a percepção da pintura de
Giotto e de Duccio. O enviesamento empírico dos planos no espaço, realismo
anatómico, personalização fisionómica e a encenação e particularidade do gesto,
são aspectos que reflectem a via da observação.
Da função narrativa e mimética (se é que algum dia foi exclusiva) a arte assume ser visão, de
alguém do e sobre o mundo.
Falta ainda dar consistência, congruência, ao
ponto de vista, submeter a alguma regra de escala, de proporção, de estrutura e
de luz o todo construído, vegetal, orogáfico, humano, material e simbólico.
Não obstante a categoria de infinitum ser
ainda reservada a Deus, Nicolau de Cusa antecipa o conceito de Quantum
Continnum, que havia de ser cabalmente explicitado com a perspectiva
geométrica, e precocemente com algumas observações sobre os espelhos.
Pela observação o homem descobre-se criador,
capaz de compreender, demiurgo primeiro da razão das coisas, depois das coisas
elas mesmas e por fim de si próprio. O Homem arroga-se o direito de ser dono do
seu próprio destino.
Leon Battista Alberti, publica em 1435, o
De Pictura, tratado que sistematiza conhecimentos, modus operandi
dos seus contemporâneos e enfatizando a secularidade da arte faz a apologia da
proporção e harmonia (mesura).
Giorgio Vasari estabelece para a arte um
universo transdisciplinar formada por zelo, estudo, imitação conhecimento,
ilusão e ciência. Informado pela proximidade entre ciência e técnica encetada
por Filippo Brunelleschi (1377-1446), seu contemporâneo,
que na exploração das leis da visão descobre o método perspéctico, ao
ensaiar representar o Baptistério de San Giovanni e Palazzo della Signoria
florentinos. Diz-nos o depoimento do seu biógrafo António Manetti, fora graças
ao seu buono occhio mentale, que lhe permitu familiarizar-se com as
dimensões, proporção e anatomia (Eugenio
Battisti, Filippo Brunelleschi, Electa Editrice, Milano, 1976, p.110).
Da intersecção da pirâmide visual, cujo
vértice é o olho do observador, com o plano do quadro, ou dito doutro modo, da
intersecção das linhas projectantes que unem o olho aos vértices da coisa com o
plano da representação resulta a representação.
Sabe-se hoje que a experiência foi mais complexa, pois envolveu um dispositivo com
um espelho reflectindo a imagem pintada na tavoletta com um orifício pelo qual se olhava, vendo assim
a diminuta pintura reflectida. Esta experiência fora precedida por outra em que
o pintor demonstrara a sobreposição dum painel recortado aos perfis dos
edifícios da praça florentina.
Alberti reflecte problemas
de espaço ao referir-se, analógicamente, à pintura como janela, veduta,
onde o observador é activo no achamento de informações que para lá da validade
da compreensão do real, permitem-nos aceder ao conhecimento.
Os contemporâneos de Alberti estão agora
preocupados com o que vêem e como vêem. A vedutta tralucente empática,
permite analisar, interpor distância entre o sujeito e o objecto.
A intimidade de Leonardo com o real leva-o a
procurar congruência total da cena, subjugando as figuras a um princípio claro,
homogeneizando e unificando a veduta.
A exatidão da representação permite reverter do
quadro para o real, isto é, a partir do virtual inferir o espaço real, supor as
suas relações e o modo como virá a ser. Prenuncia o projecto que faz com que o
que não é seja.
Vulgariza-se também, o encontro do pintor com o
modelo, o retrato provoca um
novo olhar, cujo controlo a experiência estabelece na tensão entre
visão, representação, emoção e imitação.
Copérnico no De revolutionibus orbium
coelestium (1543), formaliza e prova o
heliocentrismo que à muito vinha sido intuído mas nunca desvelado (cisão
teocrática-nova cosmogonia).
A Flandres, ficaria marcada pelo retrato de
Giovanni Arnolfini e sua mulher que Jan
Van Eyck pintaria e assinava em 1434. Neste, apesar da não existência de
uniformidade na convergência de paralelas, pelo modelado, claro-escuro e
pormenor a cena cosnseguiu realismo quase fotográfico, cuja definição era tal
que permitiu ao próprio pintor retratar-se reflectido num espelho, ubiquamente.
Brunelleschi constroi o virtual,
e por ele a construção geométrica torna
possível o real, fixado no quadro. É pela construção que o espaço
aparece, existe, já não é um dado. Na realidade as artes plásticas são as
únicas actividades capazes de aumentar o(s) espaço(s).
Vemos claramente em Mantegna que a
realidade do quadro é prioritária, o seu controle intencional torna cada obra
um sistema.
A urgência da Perspectiva repercutir-se-á na
organização do mundo de Piero della Francesca, em cujas pinturas
quarteirões, praças e alinhamentos urbanos são dispostos em função do acto de
ver, base do urbanismo barroco. A arte torna-se projecto. Preocupa-se com a
concinnitas albertiana (De re aedificatoria). Torna-se strumento
de conhecimento, mas também meio de posse, operando a mudança antropológica que
permite a realização pessoal pelo acto de fazer. (Levi-strauss)
Aí a perspectiva projectiva supera a acepção
metafórica da realidade.
Após a finalidade óptica de correcção eurítmica
pela perspectiva naturalis matemática, passou a designar-se o método de
desenho geométrico por artificialis (ou pingentti no tratado dedicado por Piero della
Francesca a Frederico de Montefeltro).
A Perspectiva como sistema ultrapassa a arte do
simulacro, ao invés do que amiúde se faz crer, pois a matriz pictórica não é
redutível à função mimética. Ela não é alternativa mas complementar á
realidade. ( Giuliu Carlo Argan, Storia
dell’Arte Italiana.p.12)
A Perspectiva Cónica Linear trouxe uma visão
total, mesmo da virtualidade, porém interpôs um plano, ainda que transparente
entre o observador e as coisas. Trouxe o tempo para a arte visual, ela acelera
ou retarda acção, ordena, dá escala, posiciona, unifica e almeja conter,
regular o universo, sempre em torno do indivíduo.
O individuo torna-se necessário para ver, para
admitir a ilusão intelectualizada, fazendo-se sujeito predicador, convoca a persona,
aspecto que, na época, certamente constituiu um forte contributo para a
liberalização das artes visuais, e a assunção da criação como acto individual.
O espaço aristotélico de porções intramundanas
dá lugar ao contínuo cuja fixação é o ponto de fuga. Alegoria desta observação,
o fresco da Trinittá em Santa Maria Novella(1427) de Masaccio trompe l’oeil, alude a um espaço
inexistente, pelo desenho do nicho, no qual a geometria e o cálculo das sombras
iludem. Esta construção, cuja precisão coloca o observador num ponto inferior
ao da acção, permite reversivelmente estimar a profundidade virtual do
tabernáculo. Note-se ainda o emprego de vocabulário arquitectónico estilístico
e anatómico classicizante, além do traçado regulador piramidal.
N’A Divina Proporção (Veneza,1509) Luca Pacioli sustenta, citando
Aristóteles que o saber tem origem na visão e é por esta porta que ele entende
e gosta, nihil est in intellectu quin prius fuerit in sensu. (Ribeiro, Ana Isabel; Araújo, Renata - O Desejo do
Desenho, p.27), e em cuja dedicatória faz referência à Ceia que Leonardo acabara de
pintar no refeitório de Santa Maria delle Grazie.
A arte
de Quinhentos foi pródiga na produção de tratados com vista à sua
regulação, mas também difusão, que as novas técnicas de impressão e reprodução
facilitaram, permitindo-nos a análise desses registos na senda de esclarecer os
processos técnicos e mentais subjacentes quer à tradição, quer à erudição
bibliográfica.
Toda a tratadística renascentista dá conta de
uma revolução, de maravilhamento por essa capacidade de registar a
profundidade, conferindo ao discurso visual carácter de espectacularidade.
O que etimológicamente significa «ver
claramente» (Lat. Perspicere, tradução do grego optiké) torna-se
anacrónicamente sinónimo de visão natural, mas também de ilusão.
Hoje, essa janela transparente albertiana
tornou-se num dado cultural que torna a evidência óptica de uma elipse num
círculo, e isolar parte do mundo como um todo.
As leis geométricas abandonaram a esfera mística
e religiosa para progressivamente se secularizarem, sem contudo haverem perdido
a aura de poder, que a infinidade de aplicações, a capacidade de projectar, de
construir desde um quadro, escultura,
projéctil, fortaleza ou cidade lhe conferiram.
A rivalidade constante entre principados e
repúblicas e a emergência de uma nova classe sedenta de reconhecimento do seu
estatuto social, apelaram aos especialistas que pudessem assegurar a sua
preponderância simbólica, causando o afluxo de artistas aos centros de poder.
Neste contexto surgem encomendas que, bom grado
a qualidade das respostas, tornar-se-iam célebres até à actualidade, como o
fresco da Batalha De San Romano(1456-60)
pintado
por Paolo Uccello a pedido dos Médicis, para imortalizar a sua vitória
sobre Sienna, ou ainda a Adoração dos Magos de Botticelli, onde
Cosimo de Médicis se faz retratar, como prova o seu poder pessoal.
Schickardt pôs em causa a perspectiva
renascentista enquanto fenómeno visual de exatitude por as rectas se
apresentarem à nossa vista como curvas (Murtinh,
Op.cit.p131), isto é, ela na realidade pode ser recta mas à nossa vista aparece como
curva (polémica com Kepler sobre a trajectória
de um cometa), mas divergências destas, como havia acontecido entre defensores do axioma
do ângulo e os da distância, ou contemporaneamente entre os apologistas da
lente como simulacro da percepção retiniana esférica, não neutralizam o passado
e o que ele através da obra de arte tem de presente, nem tornam menos
flamejante o ímpeto da invenção, ainda que ela se funde num problema
circunstancial.
Os mundos pensados passam a ser outros, graças
ao novo medium, mantendo relações proporcionais, sem que, no entanto
haja desvantagem para o divino. Pois entre a mesma figura como Vénus ou Maria
vai uma enorme distância simbólica, aquela que permite ver o mesmo como outro.
Prova, aliás, de que nunca a visualidade foi absoluta, nem a realidade
objectiva crível, na medida em que a contingência também faz o personagem.
Aqueles que, não respeitando a perspectiva
histórica, se faziam representar em cenas bíblicas, a par com personagens
míticas, não profanizavam a acção?! Prova, ainda de que os limites do quadro
não são apenas os quatro lados e de que a profundidade da Arte alcança limites
além do espaço.
A Perspectiva polemizou sobre a velha questão
que ocupa a filosofia à séculos: as coisas giram em torno de nós ou nós em
torno às coisas. Esta arte com processo base cerebral resulta táctil
inversamente à aparente materialidade
da arte contemporânea, que exige maior intelecção.
Havendo noção da diferença existente entre o
modo como o objecto se dá e a consciência o constitui – ensinando a ver , ie, a
dirigir o olhar, a perspectiva introduz o problema do sentido temporal da
composição. Como atitude estética a perspectiva alude à relação do homem com o
universo, condiciona o modo de apreciação e
o modo de tomar posse do espaço, no limite prova, pelo carácter dessa
ocupação, as maneiras de existir num determinado período histórico.
Em rigor esta deriva resulta de poucos
princípios fundamentais, alicerces deste universo, que sintetizariamos em dois:
1.quaisquer duas linhas rectas paralelas possuem sempre o mesmo Ponto de
Fuga, no infinito, e sendo horizontais esse ponto situar-se-á na Linha do
Horizonte; 2. as verticais mantêm-se.
Mas que Piero della Francesca havia explicado
melhor: (a perspectiva)“contém em si cinco partes: a primeira é o ver, ou
seja o olho, a segunda é a forma da coisa vista, a terceira é a distância do
olho à coisa vista, a quarta são as linhas que partem da extremidade da coisa
vista e vão ter ao olho e a quinta é o termo existente entre o olho e a coisa
vista onde se tenciona pôr as coisas.”
Crê-se que o objecto empírico vive na
contingência da sua forma, mau grado os objectos extensos de Xenakis e Bruce
Naumann que se apropriam do espaço contentor, contaminando-o pela presença.
fontes bibliográficas:
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Almada, 1995
BENEVOLO,
Leonardo . La Captura del Infinito, Celeste ediciones, Madrid 1994
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MURTINHO,
Vítor . Perspectivas: O Espelho Maior ou o Espaço do Espanto, Edarq
(edições do departamento de arquitectura,UC) Coimbra 2000 isbn 972_97383_4_3
PANOFSKY, Erwin . Renascimento e Renascimentos na Arte Ocidental, editorial Presença, Lx 1960
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Gérard . Le Regard, lêtre et L’Apparence, ed du Seuil, 1988N_84-7600-787-6