Razão e Sensibilidade Tecnológica:

Um estudo da ficção seriada Lampião e Maria Bonita

Cláudio Cardoso de Paiva, Universidade Federal da Paraíba.

SETEMBRO de 2000

1. Introdução

2. Telenovela, recepção e estudos culturais

3. Heróis, vilões, guerreiros e visionários

4. Ética e estética dos cangaceiros na televisão

5. Antropologias e tecnologias da comunicação


Resumo

Como na tragédia clássica, narrativas orais ou textos literários, nas ficções televisivas seriadas, os personagens de ficção portam valores que influenciam o público. Do outro lado do processo comunicacional, do lado de cá do vidro, no pólo da recepção, na intimidade caseira, os telespectadores assimilam os valores encarnados pelos personagens em cena. Mas não o fazem de maneira mecânica, neutra ou conformista; pelo contrário, interagem ativamente, face aos meios, a partir dos valores da sua comunidade ou das suas próprias referências culturais. As máquinas de visão focalizaram aspectos da vida, por ângulos inéditos, captando flagrantes do cotidiano, que até então não haviam sido expostos à visibilidade pública. O uso das tecnologias do som e da imagem, por meio dos infinitos recursos de audição e visibilidade, ampliou e intensificou a percepção dos indivíduos para os pequenos detalhes.


1. Introdução

As narrativas da televisão, nas telenovelas ou ficções seriadas, exibem as imagens dos atores sociais, como heróis ou vilões, de acordo com os critérios técnico-instrumentais e mercadológicos. Cumpre examinar em que medida os produtos da televisão participam dos procedimentos éticos e estéticos que norteiam a vida em sociedade.

Como na tragédia clássica, narrativas orais ou textos literários, os personagens de ficção são carregados de valores que influenciam o público. Do outro lado do processo comunicacional, do lado de cá do vidro, no pólo da recepção, na intimidade caseira, os telespectadores assimilam os valores encarnados pelos personagens em cena. Mas não o fazem de maneira mecânica, neutra ou conformista; pelo contrário, interagem ativamente, face aos meios, a partir dos valores da sua comunidade ou das suas próprias referências culturais. Este não é um fato novo; a novidade está na forma como as lentes e telas do cinema, da televisão e do computador têm modificado as relações entre os indivíduos e o “mundo real”. As máquinas de visão focalizaram aspectos da vida, por ângulos inéditos, captando flagrantes do cotidiano, que até então não haviam sido expostos à visibilidade pública. O uso das tecnologias do som e da imagem, por meio dos infinitos recursos de audição e visibilidade, ampliou e intensificou a percepção dos indivíduos para os pequenos detalhes. Hoje, o nível de sofisticação dos programas de TV tem propiciado a emergência de novos fatos culturais de ordem ética e estética, e isto tem modificado de tal modo a cena cotidiana que podemos perceber a presença de uma nova razão e sensibilidade tecnológica.

2. Comunicação, Recepção e Estudos Culturais

A diferença inovadora dos estudos sobre comunicação (principalmente, sobre a televisão) consiste na ultrapassagem dos esquemas funcionalistas que explicavam o processo comunicacional centrado no autor, no produtor e nos meios de comunicação, enquanto agentes de controle e dominação sobre os receptores. Hoje, encontra-se em curso uma compreensão crítica da comunicação, permitindo-nos perceber que as formas de controle e dominação persistem, e até se tornaram mais sofisticadas; entretanto as teorias da recepção demonstram que as informações geradas pelas mídias são sempre negociadas, mediadas e adequadas pelos indivíduos de acordo com os seus modos de vida. Os estudos de recepção, voltando-se para o leitor, usuário ou consumidor, circunscreveram um novo círculo para compreendermos o telespectador enquanto elemento ativo no processo da comunicação. Neste sentido, os “novos” estudos culturais brasileiros (em parte inspirados nos “cultural studies” anglo-saxônicos) se voltam para a efervescência dinâmica da vida coletiva e para as novas formas de subjetividade. Logo, os estudos de comunicação têm-se atualizado no diálogo com a antropologia, abrangendo o conjunto das ciências sociais que colocam em perspectiva os estudos sobre as identidades, no contexto da sociedade globalizada. Encontramos as bases para uma “antropologia da comunicação”, em alerta para o lugar do receptor, como elemento dinâmico da comunicação, no campo dos estudos culturais. Neste contexto os textos de autores clássicos, como Raymond Williams, ou mais recentes, como Federic Jameson, Edward Said, entre outros, contribuem para enriquecer o repertório dos estudos sobre comunicação. Tais estudos, em sintonia com uma “sociologia compreensiva” (no sentido utilizado por Michel Maffesoli, apoiado em Weber, Simmel, Maffesoli) recolhem a vitalidade do social em conexão com as atividades técnicas, lúdicas, sensoriais e políticas. Numa “coincidência feliz”, estes pensadores, em suas distintas orientações epistemológicas, imprimem uma certa dinâmica ao conhecimento científico, que se torna mais próximo do processo dinâmico da sociedade, cujos valores se encontram em permanente transformação.


Neste texto buscamos mostrar como os audiovisuais, particularmente, a televisão, atuam junto às dimensões éticas e estéticas que estruturam o mundo sensível. Isto é, discutimos como a mídia eletrônica, por meio das imagens e sons apresentam as formas da lei e do desejo, que estimulam ou inibem os estilos de agregação entre os indivíduos. Mostradas na TV, as imagens do bem e do mal, da exploração e da liberdade, da injustiça social e da luta pela dignidade são aspectos que permitem uma compreensão da ética. Os afetos, sensações e sentimentos, em seus diferentes matizes, de tristeza e alegria, agonia e êxtase, ódio e fraternidade, por sua vez, criam elos de identificação com o público, exprimindo uma concepção estética da realidade. Partimos do pressuposto que as máquinas de visão, para além das técnicas e ideologias que as possibilitam, propiciaram a configuração de um mundo sensível, com repercussões importantes para o imaginário coletivo.

De modo empírico, recorremos à figura lendária do cangaceiro Lampião, atualizado pelas lentes da televisão, na minissérie “Lampião e Maria Bonita”, por vários motivos:

- Primeiramente porque o cangaço, malgrado as controvérsias sobre o fenômeno, significa um tipo de resistência, reveladora da dimensão ocultada pela história oficial, que, ideologicamente, promoveu a imagem do povo brasileiro, de modo pacífico e conformista.

- Em segundo lugar porque exibe elementos para a compreensão dos agenciamentos socio-políticos que, historicamente, opuseram-se às formas de dominação e exploração, ao longo da formação brasileira, desde as revoltas de Canudos, Contestado, Inconfidência Mineira, etc., até o Movimento dos Sem Terra e os conflitos que explodem hoje no cotidiano dos condomínios e favelas do Brasil.

- E, finalmente porque a minissérie “Lampião e Maria Bonita” promove um diálogo fecundo entre a ficção e a história, ultrapassando os limites de uma mera narrativa jornalística, e mostrando a dimensão humana e sensível dos marginalizados.


3. Heróis, vilões, guerreiros e visionários

Nas lendas e contos populares as imagens dos mocinhos e bandidos ocupam um lugar de distinção bem precisa; suas ações são sempre marcadas por um certo maniqueísmo que divide o mundo entre heróis e vilões, numa espécie de cópia canhestra da realidade.

Cada época, por meio das suas ideologias e técnicas de linguagem, constrói o perfil dos personagens à sua maneira, como anjos ou demônios, de acordo com os códigos de ética e de tolerância. Assim, no Brasil do começo do século XX, nos anos 20/30, sob o espectro do espírito científico positivista, da ideologia do Estado liberal burguês e dos códigos de moralidade da família, tradição e propriedade, as imagens de Lampião e dos cangaceiros se inscrevem de forma estigmatizada.

É curioso perceber que tal regime de imagens se modifica gradativamente a partir da segunda metade do século, notadamente, com a expansão dos modernos meios de informação e comunicação. Isto ocorre, particularmente, a partir dos anos 70, em que a ditadura e os atos de exceção revoltaram parcelas importantes da sociedade civil, gerando um tipo de mito (e culto) da marginalidade, como se percebe, por exemplo, na expressão de artistas como Hélio Oiticica, criador do slogan “seja marginal, seja herói”. Ou então, na filmografia do período, em que constam filmes insólitos e apologéticos dos “desviantes”, como “O bandido da luz vermelha” (Rogério Sganzerla) ou ainda, “Matou a família e foi ao cinema” (Júlio Bressane), ambos realizados em fins dos anos 60. Na década seguinte, o realismo do cinema toma o partido dos excluídos, com os filmes “Lúcio Flávio, o passageiro da agonia” (1977), em que se mostram o bandido glamourizado e a face corrupta da polícia. Ainda neste contexto, encontramos o filme “Pixote, a lei do mais fraco” (Hector Babenco, 1980), sobre os menores abandonados e a violência nas grandes cidades, que mereceria um enfoque mais detido porque, de certo modo, prenuncia o assassinato do ator Fernando Ramos, pela polícia, pintando com cores fortes a transformação de elementos da ficção em fatos reais.

Hoje, a mídia faz estardalhaço e coloca nas páginas policiais o envolvimento dos intelectuais com os marginalizados pela sociedade. É pertinente relembrar o caso curioso do cineasta João Sales, conhecido pela elaboração de trabalhos audiovisuais importantes, sendo processado por suas supostas ligações como o traficante Marcinho Vip. O exemplo, em princípio, parece um caso de sensacionalismo midiático, mas pode ilustrar alguns aspectos da dialética entre os intelectuais burgueses e os marginalizados pela sociedade.

As mídias, particularmente, o cinema e a televisão, popularizaram as imagens dos cangaceiros criando elos de simpatia e de solidariedade junto à opinião pública, transformando os vilões em heróis. Remetendo-nos ao lado oculto do receptor, como leitor e como espectador ativo, percebemos que os excluídos da sociedade de massa experimentam formas de identificação com a imagem dos fora da lei. A ideologia das mídias não propiciou um tipo de consciência crítica, nem vetores de ética e responsabilidade social. Entretanto, favoreceu um espaço de acolhimento para os indivíduos, que se reconhecem nas cenas de rebeldia e revolta encarnadas pelos bandidos, transformados em heróis e justiceiros, no cinema e na televisão. Ao se sentirem representados pelo espírito de transgressão à norma, que lhes parece injusta, os indivíduos encontram elos de identificação com as formas de violência exibidas nos meios de comunicação. Existe hoje uma simbiose entre o real e a ficção, de modo que não se pode afirmar com certeza onde começa a violência que assola a sociedade irradiada pelos audiovisuais. Poderíamos especular que existe um processo de contaminação coletiva dos afetos e isto passa pelo crivo das redes midiáticas. Quando a impunidade, injustiça e exclusão se tornaram uma norma, a violência aparece como uma estratégia bizarra de participação e integração dos indivíduos na esfera pública.


Na época da reprodutibilidade técnica das imagens, persiste o arbítrio moralista que reveste os personagens numa camada de "aura" ou de "espectro", mas os efeitos especiais podem alterar o sentido ético da narrativa; assim, as novas tecnologias fundam novos parâmetros éticos e estéticos. É sintomático que as revistas sobre cinema e televisão celebrem o valor do produto pela sua qualidade técnica. As tecnologias dos audiovisuais absorvem as narrativas da tradição popular e o seu universo povoado pelas imagens do bem e do mal, do sagrado e do profano, dos deuses e diabos, imprimindo-lhes um novo sentido.

A globalização não uniformizou a cultura planetária, mas pôs a nu uma paisagem multiforme em que convivem o arcaico e ultramoderno; isto caracteriza o que Garcia Canclini designa por “culturas híbridas”. Há regiões, como o Nordeste brasileiro, em que, no cotidiano das cidades, inscrevem-se signos aparentemente tão anacrônicos como a foice e computador. Os avanços nos campos da engenharia solar, das telecomunicações e da medicina especializada traduzem os quadros de uma modernidade cultural, mas em contraste permanente com o atraso social. Percebemos que o desenvolvimento científico e tecnológico não chegou para todos, e que se realiza numa direção que não contribui para uma melhoria da qualidade de vida das comunidades. Este desajuste consiste num fato sócio-histórico permanente ao longo da formação brasileira e traduz uma circunstância que se apresenta minada por tensões e conflitos. Em despeito das narrativas oficiais, que descrevem os fluxos progressivos de uma nação cordial e pacífica, o percurso da História do Brasil é pontuado por lutas e resistências às injustiças sociais. Ontem as artes literárias e hoje, as artes visuais, como expressão de uma consciência crítica da realidade, utilizando-se de recursos técnicos, terminam por mostrar, a partir de ângulos sensíveis, as novas dimensões dos conflitos.

4. Ética e estética dos cangaceiros na televisão

A lenda de "Lampião e Maria Bonita", adaptada como minissérie para a televisão, permite repensar o mito a partir de um prisma diferente, em que as tecnologias de comunicação têm um papel importante. O personagem de Lampião ocupa atualmente, no imaginário social, um lugar semelhante àquele ocupado pelos “olimpianos” na mitologia greco-latina, como nos mostra Edgar Morin. Lampião e o seu bando mataram muita gente, violentaram moças no sertão, queimaram casas no campo e nas pequenas cidades. Eram temidos como o diabo, mas também respeitados como deuses, mesmo pelos seus inimigos; os cangaceiros eram espécies de justiceiros, sujeitos fora-da-lei que, indignados com as péssimas condições de vida do sertanejo, decidiram fazer justiça com as próprias mãos.

Os cangaceiros se consagraram, de maneira simpática, na cultura popular, apesar de todos os esforços da cultura oficial para estigmatizá-los, reduzindo-os às imagens de bandidos e assassinos; eram seguidores da religião católica; bandidos na perspectiva dos poderosos, mas, heróis na imaginação popular. Entre os cangaceiros do Nordeste do Brasil, destacou-se o seu líder, Virgulino Ferreira da Silva, vulgo “Lampião". Tendo sido expulso da fazenda onde morava, com a família, após ter sido acusado injustamente por roubo, iniciou-se nas atividades que o levariam ao crime. Sua reputação se espalhou devido aos crimes cruéis, como incêndios criminosos, pilhagem, torturas e assassinatos. Viveu com sua tropa nos sertões de Sergipe e Bahia; mas também percorreu outros vários estados do Nordeste; dominou vilarejos, atacando feiras e mercados, e devastou fazendas e cidades. Nos anos 20, Lampião conheceu Maria Bonita que deixou o seu marido para seguir o cangaceiro. Lampião foi morto, com a sua companheira e outros membros do bando, em 1938, no Estado de Sergipe, por João Bezerra, sob as ordens da polícia de Alagoas. Os seus corpos foram mutilados e as cabeças de Lampião e Maria Bonita, permaneceram expostas, durante quase 30 anos, para visitação pública, em Salvador, no “Museu Nina Rodrigues”.

No começo dos anos 90, a Rede Globo quis renovar a paisagem televisual brasileira. As telenovelas faziam sucesso, mas era imperativo propor inovações no quadro da teleficção. Assim, utilizando-se da estética da telenovela, absorvendo as sugestões da nova geração do vídeo, renovando a linguagem e o formato da ficção, a Rede Globo realizou a minissérie "Lampião e Maria Bonita". Um novo gênero nasceu na cultura televisual brasileira. A emissora tinha decidido inaugurar o estilo diferente, mas vários desafios se opunham ao projeto: a minissérie teria de preservar o público fiel das telenovelas, conquistando também um público mais exigente, cultivado e amante da literatura. Exigia prudência apresentar, às gerações informadas pela cultura audiovisual, um assunto que tinha sido tema de numerosos estudos sobre a cultura popular, e adaptado, anteriormente, para o cinema, em produções cinematográficas importantes como "O Cangaceiro", (de Lima Barreto, 1952). Além disso, a história de Lampião e Maria Bonita permanecia sempre um tema indesejado, uma vez que tocava diretamente nos problemas causados pelos poderes localizados no Nordeste. A distribuição desigual das terras, as relações de exploração entre patrões e empregados -ainda num regime semi-escravagista- a questão da seca e a gestão arbitrária do Estado na vida social, a corrupção eleitoral, os matadores de aluguel, enfim, os problemas estruturais e permanentes do Nordeste não poderiam estar ausentes na dramatização de "Lampião e Maria Bonita". Aparentemente "apolítica" e esquiva aos temas de contestação, a Rede Globo tocou num tema tabu. A emissora, buscando audiência, utilizou-se de ficções que atraíssem no mínimo três gêneros de telespectadores diferentes, ou seja, a "retaguarda" (norteada pelos códigos da cultura tradicional), a "vanguarda" (orientada pelo espírito crítico) e a “transvanguarda” das novas gerações (informada pelas redes mediáticas). A Rede Globo decidiu tomar partido: optando pela simbiose entre a imaginação histórica e a fabricação tecnológica, adicionou mais uma camada mitológica à narrativa lendária de "Lampião e Maria Bonita". Além dos heróis e bandidos, dos carrascos e vítimas, das figuras do "bom" e do "mau", os efeitos especiais das imagens chamam à atenção, redimensionando os detalhes de uma história marcada pelo trágico.

Lampião é supersticioso e, quando pressente o perigo, a câmara flagra o rosto crispado do ator, que se funde, no plano geral do vídeo, com a imagem de uma cascavel. Esta aparição efêmera, que se repete como signo de morte, a cada situação de risco, mergulha o telespectador num ambiente de tensão. Em close, participamos da crise de ciúmes de Maria Bonita, arrancando o brinco de uma rival, a golpes de faca (com orelha e tudo), pois Lampião a traíra, numa noite de amor. O brilho da lâmina, a cor do sangue, os gritos de dor compõem uma semiose, uma leitura bem produzida pela máquina de visão; o emocional do espectador é fisgado pelo olho tecnológico; as sensações de risco, de instabilidade e de perigo ganham prolongamento e intensidade por meio dos audiovisuais. O olhar da televisão e do cinema capta o gestual e as expressões de uma circunstância marcada pelas idéias obsessoras de justiça, de salvação e de destino. As câmaras, lentes, filtros e trucagens têm o poder de ampliar ou reduzir os ângulos, criando aproximação e distanciamento: propiciam, por meio da técnica, novos estilos de consciência trágica ou promessas de felicidade.

O respeito de Lampião por Padre Cícero, a crença dos fiéis, o messianismo do sertão, as visões de guerra do fim do mundo, que formam as imagens de um materialismo místico marcado de selvageria, projetam-se na minissérie como aparições fantásticas. Cultura e natureza selvagem se confundem no universo do cangaço mostrado pelo vídeo, e isto contém uma certa originalidade porque consiste numa circunstância que a televisão normalmente exibe com prudência. É curioso se reconhecer, nas cenas visionárias do cangaço, elementos das tribos em guerra nos anos 90. Revendo hoje, no vídeo, a saga de Lampião passada nos anos 20/30, experimentamos as sensações de um ambiente que parece longínquo, mas, ao mesmo tempo, torna-se familiar, pela identificação com as cenas da história contemporânea. A imagem violenta de "Lampião" já se diluiu como personagem de ficção, se comparadas às cenas de violência dos telejornais e filmes na TV. Contudo, há flashes na televisão que, em meio à dispersão dos noticiários, são indícios de uma consciência orientada pelo espírito crítico e de transformação. Três produtos de ficção recentes parecem apropriados para ilustrar: Em primeiro lugar, a telenovela “O Rei do Gado”, que atualizou a dramática e corajosa situação do “Movimento dos Sem Terra”, mostrando “como se escreve a história”, apesar dos clichês da mídia, do neoliberalismo e da globalização. Em seguida, a telenovela “Terra Nostra”, por meio de sofisticados recursos tecnológicos, remonta os trechos de documentários e as imagens ficcionais dos imigrantes italianos, despertando uma percepção estética para as mudanças na vida, trabalho e sexualidade, no Brasil, no início do século. Em terceiro lugar, a minissérie “A Muralha” mostrou, em plena comemoração da descoberta dos 500 anos do Brasil, os fluxos e refluxos de uma história marcada pela circunstância trágica, característica da colonização.

5. Antropologias e Tecnologias da comunicação

Uma antropologia compreensiva atenta às relações de poder, aos desníveis socioeconômicos, às formas do desejo e da revolta, hoje, volta-se para uma reinterpretação do mito dos cangaceiros, considerando as novas formas de sua inscrição no mundo das técnicas, ideologias e linguagens do fim século. A estética das mídias traduz o estilo da sociedade contemporânea, onde também as figuras dos cangaceiros se tornaram objetos de contemplação e de consumo.

A minissérie "Lampião e Maria Bonita", que refaz o imaginário do Nordeste à época do cangaço, construiu um campo de significações, que serve de atualização para a história da cultura, principalmente se considerarmos a situação dos "sem terra", que mantêm traços dos inconformistas do começo do século. A modernidade cultural nos chegou sob a forma das parabólicas e dos computadores, e, se quisermos pensar em modernidade social, em termos de avanço sócio-político, o Movimento dos Sem Terra atualiza um estilo de consciência política de resistência a uma situação de arbítrio secular.

As tecnologias da imagem, por meio dos efeitos especiais, possibilitaram múltiplas leituras do universo do sertão. A estética da minissérie propôs uma nova ética das imagens. A ficção televisual trata da história de Lampião sob diferentes ângulos; estimulando as sensações de susto, simpatia e indignação, o que cria a oportunidade para se interpretar a narrativa à luz de uma "antropologia das sensações". A estética proposta pela midiatização do mito tornou-se, ela própria, espetacular e mitológica. Ao lado da dramatização dos conflitos e da reconstituição histórica, as técnicas audiovisuais redimensionam o universo da saga e atuam na trama como "coadjuvantes". Na ficção televisiva, os elementos acessórios se tornaram parte integrante da narrativa.

Na prosa moderna de Guimarães Rosa, encontramos um conjunto de elementos que definem um novo estilo: o monólogo, o discurso interior, a polifonia e a intertextualidade são recursos que modificaram o modo de produção do texto e, conseqüentemente, as formas de sua recepção; alteraram a experiência ética, cognitiva e estética do leitor. A moderna linguagem literária adaptada e reutilizada no cinema novo (nos anos 60/70) por Glauber Rocha, entre outros, criaram as condições para a evolução da linguagem cinematográfica e, por conseguinte, na ampliação da experiência estética. Há dois filmes de Gláuber Rocha, em que se inscreve o mito do cangaço: "Deus e o Diabo na Terra do Sol" (1964) e "O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro" (1969). Ali se percebe a oralidade em diálogo com os jogos de luzes e sombras, um estilo da linguagem que traduz e renova as imagens do misticismo visionário, o fanatismo e as crenças religiosas, as tensões e lutas sociais no universo mitológico do cangaço. A estética das imagens, no cinema de Gláuber Rocha, traduz a complexidade ética daquele universo. Entretanto, é, sobretudo, a palavra falada, que esteticamente, através da sonoridade, revela a ética dos justiceiros em "Deus e o Diabo na Terra do Sol". Na televisão, a retórica das imagens, que estrutura a narrativa de Lampião e Maria Bonita, mostra o êxtase e o horror, sob outros matizes, despertando novas sensações e transformando o telespectador em elemento ativo. Os efeitos especiais, por um triz, não roubam a cena da dramaturgia.

No contexto deste "mundo visível", as imagens são vetores de fascínio e de idolatria em torno da vida de crimes e da vida amorosa, como dos outros objetos de culto, postos em cena. No contexto das máquinas de visão, imagens impertinentes nos dizem da situação extrema de uma guerra no fim do mundo; uma guerra que, como mostra o Movimento dos Sem Terra, ainda não acabou. Estas imagens dionisíacas, vistas no vídeo em seus pequenos detalhes, sob vários ângulos, de maneira multiforme, criaram um novo hiperrealismo do universo dos sertões e do cangaço. Deslocando-se da História e imortalizando-se nas páginas de “Os Sertões” (de Euclides da Cunha), há uma frase profetizada por Antonio Conselheiro, sobre no mundo do sertão, que nos soa como uma metáfora pertinente, experiência e visão características de um imaginário cuja materialidade mística é sedutora: "O sertão vai virar mar". Assim, a abundância das águas viria irrigar a aridez da terra ressecada pelo calor do sol. É uma imagem mítica importante no repertório do Nordeste, que está presente também na transposição da lenda de Lampião para a ficção televisiva.

Na riqueza da imaginação mitológica, driblando a secura do clima, o sertão virou mar no imaginário coletivo, desta vez, atualizado pela televisão. A dureza da realidade imanente mudou o seu estatuto, no plano do imaginário. Libertou-se do signo do fogo (do sol causticante) e livrou-se também do signo dominante da terra seca. Através de um conjunto de imagens, da informação midiática, o mundo do sertão se eleva e se difunde no ar, pelas antenas da televisão. Simbolicamente, a "previsão" se cumpriu: o sertão virou mar na liquefação das múltiplas imagens, transcendendo o céu e o inferno do mundo dominado pela secura do clima e da violência dos jagunços.

O mito do cangaço engendrou uma literatura de cordel cantada pelos trovadores e menestréis do sertão brasileiro, que recitavam as lendas do seu tempo usando os instrumentos de corda. Este gênero de literatura foi interpretado pelo teórico da comunicação, Antonio Fausto Neto, como "uma literatura da punição"1. Consiste numa interpretação que se reporta ao simbolismo revestido do ressentimento que marca o cordel. Os valores católicos, a mística cristã e a crença messiânica, que estruturam e animam o regime simbólico do Nordeste, estão presentes nos relatos tradicionais à época de Lampião e são signos freqüentes na "literatura de cordel.

Hoje, esta sensibilidade que representou o universo simbólico do cangaço, de "Lampião e Maria Bonita", é deslocada e cede lugar à imaginação televisual que revela a "mesma" história por outro viés. Ao repertório mitológico (tradicional), uma nova camada de significação emerge, possibilitada pelos audiovisuais. As novas tecnologias, à força de tudo mostrar e obcecadas pela idéia de "transparência", criaram uma nova visão do universo do sertão; também se tornaram mitológicas. Distintamente das cabeças de Lampião e Maria Bonita, expostas durante mais de trinta anos no museu da Bahia, as novas imagens dos cangaceiros se agitam, doravante, à disposição do telespectador no museu imaginário da televisão. O universo mitopoético que descreve a vida difícil no mundo do sertão, em sua passagem para a ficção na TV, cedeu terreno a um modo diferente de contemplação. Estas pequenas distinções levam a pensar nas modificações técnicas e ideológicas que se processam à época da mídia. Elas não estão imunes ao crivo das transformações gerais de ordem ética, estética, religiosa, sensual e mitológica que perturbam os sentidos.


Hoje a consciência romântica dos “outsiders” se encontra diluída. No fim do século XX, com a disseminação da violência, a atmosfera urbana se tornou mais densa. Os abismos sociais se tornaram profundos e a visão positiva dos rebeldes evanesceu. A sociedade parece ter se tornado mais conformista e intolerante. As mídias, particularmente a televisão, por um lado, absorvem e neutralizam os discursos rebeldes e, por outro lado, propõem uma estética orientada pela “lógica do pior”, em que o “outsider” aparece como um “outro” dissonante e degradado, ou seja, como pior. Entretanto, como expressões de uma arte tecnológica, em meio às imagens de uma guerra de fim do mundo, ainda captam, nos flashes ligeiros do vídeo, imagens de afeto e sensibilidade


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João Pessoa, 11 de SETEMBRO de 2000





1 Cf. FAUSTO NETO, A. Cordel, literatura da punição, Rio, Cortez, 1983.