Mídias e Máquinas Pedagógicas

Uma leitura da ficção seriada "Sítio do Pica Pau Amarelo"


Cláudio Cardoso de Paiva, Universidade Federal de Paraíba



RESUMO:

Neste texto, de caráter ensaístico, buscamos examinar os produtos de comunicação como diversão e entretenimento, mas também como um dispositivo pedagógico. De modo específico, colocamos em discussão a relações curiosas entre as mídias e as crianças. Oportunamente, recuperamos alguns trechos da pesquisa que engendrou uma tese de doutorado em Ciências Sociais, intitulada “As Imagens Dionisíacas no Contexto da Cultura de Massa, Uma Interpretação Estética da Ficção Televisiva Brasileira”. A tese, defendida na Sorbonne, no inverno de 1995, teve a orientação do Prof. Michel Maffesoli.
O presente texto nos parece relevante, primeiramente porque propõe um debate sobre as relações intertextuais entre a literatura e a televisão; depois porque estimula uma reflexão sobre a ética e a estética da ficção televisiva, e finalmente, porque colocando em perspectiva a obra de Monteiro Lobato, “O Sítio do Pica Pau Amarelo”, adaptada para a televisão, discute os problemas do encantamento, assédio e “possível” esclarecimento do público infanto-juvenil face à mídia eletrônica.


Palavras-Chave: Comunicação, Mitologias, Ficção Televisiva, Monteiro Lobato

 

1. Prólogo

2. O eterno retorno das mitologias

3. Mídias e máquinas pedagógicas

4. Walt Disney, Asterix e Monteiro Lobato

5. Eros e Psiquê no jardim da infância

 

1.      Prólogo

 

O espírito das crianças já serviu como objeto de estudo para inúmeros curiosos: Freud (1), Piaget (2) Bruno Bettelheim (3) devastaram as “dobras da alma” infantil com o pretexto de sondar as formas do desejo, da inteligência e do mundo onírico dos meninos e meninas. No campo da literatura, certamente, Lewis Carroll (“Alice no País da Maravilhas”) foi um autor que avançou bastante na arte de encantar as crianças. Astutamente, Gilles Deleuze, o “filósofo do século XXI”, mostrou como Lewis Carroll contribuiu para a abertura de um vasto campo desvendando os “mistérios” da psiquê pelo viés dos contos infantis (4). Há uma linha muito tênue que distingue a pedagogia e o controle dos espíritos, a persuasão e a interação, a transferência de informação e a experiência de comunicabilidade. O nosso objetivo neste texto é examinar os limites entre estas dimensões que parecem tão próximas e, no entanto, são tão diferentes.

Encontramos nas páginas dos Irmãos Grimm, La Fontaine e Christian Andersen as descrições fabulosas de contos e lendas populares, que funcionam como motores do lúdico e da fantasia infanto-juvenil, e ao mesmo tempo, prescrevem sempre uma moral da história, que serve como pedagogia e orientação, mas que não deixa de revelar uma dimensão de assédio e persuasão. Num outro registro, as imagens e textos da obra “Lolita”, na passagem da Literatura (Vladimir Nabokov, 1955) ao cinema (Stanley Kubric, 1962, e Adrian Lyne, 1997) traduzem de modo surpreendente a atração despertada pelo mundo das crianças, junto ao público adulto. Abstraindo-nos do “mito da psicanálise” (5), sem descartar a importância do desejo no campo da imaginação criadora, propomos um enfoque das mitologias pelo crivo da ficção televisiva, e de modo mais preciso, colocamos em relevo o imaginário infantil, recuperando as emanações do mito do deus Dionísio.

Interpretar a cultura na perspectiva do mito de Dionísio (6) é também uma maneira de propor uma contemplação das experiências de passagem, transformação e metamorfose, estimulando a percepção para uma “psicologia das profundezas”. De maneira análoga, o mito dionisíaco contém uma dinâmica que nos permite vislumbrar as três idades do homem. A criança divina, o jovem herói e o velho sábio diante das figuras do destino são passagens fundamentais na imaginação simbólica, entre outros motivos porque instigam uma reflexão dos mundos social e cósmico, abrangendo as dimensões do consciente e inconsciente. Estas figuras constituem imagens arquétipicas que persistem no imaginário coletivo como um meio de orientação, também na vida adulta. Podemos encontrar a epifanização destas figuras no contexto das imagens, sons e letras que constituem o campo das mídias, seja na literatura, no cinema ou na televisão. Convém ressaltar que sob os estereótipos emanam significações ancestrais (arquetípicas) que podem elucidar aspectos importantes do cotidiano.

As imagens mitológicas foram estudadas com rigor e objetividade por Jung (7), M. Elíade (8) e Bachelard (9), e mais recentemente, os textos de Gilbert Durand (10) e Michel Maffesoli (11) podem contribuir para um exame do repertório das mitologias contemporâneas. Encontramos no diálogo intersemiótico entre as imagens antigas e recentes um vasto acervo de emblemas, signos e sinais que nos servem de “alavanca metodológica” para definir o campo de uma antropologia da comunicação. Esta subárea do conhecimento no ramo das humanidades não representa originalidade (11); entretanto, as novas formas de individualização e de sociabilidade, as relações entre os sujeitos e os sistemas simbólicos na sociedade mediatizada pelos audiovisuais e novas tecnologias de informação solicitam novos recortes epistemológicos.

 

2. O eterno retorno das mitologias

 

O espírito das Luzes, ocupado em sua obsessão de esclarecer, deixou à sombra o potencial estético das imagens mitológicas. A bela recuperação do poema épico de Homero, A Odisséia, na filosofia de Adorno e Horkheimer (12), tem como fim estabelecer uma forma de autoridade; isto é, promovendo a crítica da razão instrumental utiliza-se das mitologias para desfazer os equívocos da "falsa consciência" ou do "irracionalismo". Com tudo o que existe de “iluminação” nos estudos dos filósofos da chamada Escola de Frankfurt (há estudos de Adorno ainda por serem lidos e compreendidos), a chamada “dialética negativa” proposta pela primeira geração da teoria crítica tende a enxergar os mitos apenas como uma forma de ilusão do espírito. Neste sentido, Walter Benjamin (13), catalogado apressadamente como expoente frankfurtiano, conseguiu avançar em relação aos seus companheiros da teoria crítica. O filósofo mostrou que “não há um só traço de civilização, que não contenha também um traço de barbárie” e mostrou igualmente que as mensagens contidas nos produtos da comunicação –como alegorias- podem abrir as portas para o refinamento da percepção dos indivíduos.

Por outro viés, tomamos aqui as imagens dionisíacas (como imagens mitológicas) na medida em que nos permitem pensar a imaginação criadora em seu aspecto de devaneio, mas também, como despertar, como surpresa, descoberta e aprendizagem do mundo.

As elevações e descidas de Dionísio têm um sentido metafórico, o deus desce às trevas para encontrar a luz. A sombra de Dionísio nos aparece como um vetor de esclarecimento para algumas questões aparentemente nubladas. A contemplação do mundo como estesia, a consciência trágica como afirmação da vida e a razão sensível como apreensão do real por meio do lúdico são passagens presentes no mito dionisíaco, e nos instigam a decifrar o sentido da ficção televisiva de modo mais abrangente.

           

3. Mídias e máquinas pedagógicas

 

Em nosso estudo das telenovelas e ficções televisivas seriadas buscamos examinar a irradiação das tecnologias audiovisuais no imaginário coletivo (e vice-versa), e no momento, examinamos a relação entre as mídias e as crianças.

Numa época em que a programação infanto-juvenil se expressa marcada pelos signos da violência, da força bruta e da velocidade, convém assinalar a importância de uma ficção seriada, que há décadas permanece encantando as crianças, jovens e adultos, ao mesmo tempo em que assegura e intensifica a dimensão pedagógica das mídias.

O mundo de ficção proposto pelo escritor Monteiro Lobato (14), com todas as suas figuras de monstros e fadas, estimula marcantemente a imaginação das crianças, logo é pertinente tratar da série O Sítio do Pica Pau Amarelo neste estudo sobre a ficção televisiva brasileira, pois nos serve como janelas para contemplar aspectos da formação cultural brasileira, além de consistir num produto-exportação de qualidade reconhecida. 

As crianças são seres muito espontâneos e suas questões levam os adultos a pensar; mas são também seres extremamente narcisistas, que vêem o mundo como um prolongamento de si próprios. A contemplação do universo infantil nos remete às três idades do homem e as experiências da infância, juventude e maturidade. Elas vivem num universo imaginário bem particular. A programação infantil é um espaço de projeções e identificações, em que os contos de fadas servem de encontro entre o mundo real e o mundo imaginário da infância. Desde os primórdios do cinema e principalmente na era da televisão, as mídias nos desafiam a compreender os “novos” estilos das emoções coletivas das crianças. Elas permanecem fascinadas durante longas horas diante da televisão. Ali, então, experimentam, simultaneamente, as sensações de prazer e de medo. Esta experiência nos leva a refletir sobre a face diurna e a face noturna da realidade à luz das ficções infantis; isto é, sobre os diferentes modos como as crianças, por meio das mídias, lidam com o princípio da realidade através das ficções televisivas (15).

            Sob os diferentes aspectos da informação, pedagogia e divertimento, a mídia recorre às imagens que têm uma influência considerável junto às crianças. Existe um tipo de ligação perigosa entre os meios de comunicação, enquanto máquinas de Narciso (16) e as crianças que são, por definição, seres egocêntricos, no sentido que confundem o mundo, como se este fosse uma extensão deles mesmos. Por outro lado, os meios de comunicação, são também máquinas dionisíacas (pois levam ao êxtase e a outras formas de percepção do real) e as crianças são –também- seres complexos (ao mesmo tempo, inocentes e egocêntricos). O outro lado da dimensão do “perigo” entre as mídias e as crianças, consiste num tipo de acontecimento estimulante, em que estão presentes –de modo misturado- as experiências de êxtase, desconfiança, suspeita e imaginação criadora. Este parece ser um aspecto positivo na relação entre as crianças e as mídias.

            Na televisão brasileira, desde os anos 70 até hoje, podemos assinalar a difusão de um programa de televisão, O Sítio do Pica Pau Amarelo, cuja importância é inestimável. Sua importância se deve ao fato de que este programa foi, e nos anos 90, ainda é muito prestigiado pelo público infantil (atualmente em exibição na TV Cultura). Não se pode ignorar que as crianças o adoram. Além do mais, a programação infantil ocupa um lugar importante no debate entre psicólogos, sociólogos e pedagogos. Além da crítica ou das exaltações, do amor e do ódio dos pais, dos professores, pesquisadores e profissionais de comunicação, o fato é que esta emissão permanece há muito tempo na televisão para que possamos ignorá-la; ela faz parte do universo da cultura televisual do Brasil.

           

            4. Asterix, Walt Disney e Monteiro Lobato

 

            Nos anos 70, a televisão iniciou sua adaptação da obra do escritor Monteiro Lobato, considerada um clássico na literatura infantil e se inscreve no contexto da grande literatura universal. O seu universo é repleto de imagens oníricas, em que o sonho e o devaneio ocupam um lugar importante no processo que leva ao êxtase, não somente o público infantil, mas também os adultos. Entretanto, a singularidade das narrativas de Monteiro Lobato reside em despertar os mitos e lendas que povoam o imaginário popular brasileiro (17), numa perspectiva universal e cosmopolita. O cosmos está em cena, com toda a sua pluralidade de mundos; ali o mundo da natureza invade o mundo da cultura. O domínio da consciência é perturbado pelo inconsciente e toda a sua fauna de seres imaginários que conferem sentido ao mundo de vigília. O Sítio do Pica Pau Amarelo, por meio das figuras oníricas e mitológicas, desperta os leitores e telespectadores para o resgate das experiências fundamentais que revigoram a imaginação criadora.

            De certo modo, os personagens de Monteiro Lobato possuem uma importância para o imaginário infanto-juvenil e popular, de modo análogo à importância dos personagens de Asterix, para os franceses e os personagens de Walt Disney para os americanos. Nos tempos da globalização, cada um destes gêneros traduz, de certa maneira, os modos de pensar, dizer e agir das “culturas híbridas”, e seus recortes na cartografia do planeta. Convém sublinhar que cada um desses gêneros narrativos atualiza as experiências de linguagem, de comportamento, de desejo e de realização dos indivíduos no âmbito dessas culturas. Contudo, guardadas as especificidades de cada uma dessas narrativas, de modo mais amplo, representam um acervo importante e bastante fecundo para o imaginário coletivo universal. Considerando o consumo internacional das imagens de ficção, “O Sítio do Pica-Pau Amarelo” de certo modo, equilibra os desníveis no tocante à distribuição mundial das imagens, no que respeita às indústrias do imaginário. A série brasileira persiste como um produto que possui especificidade, difundindo o repertório mitopoético brasileiro (18).

O “Saci Perêrê”, a “Iara” e a “Cuca” são alguns dos personagens mitológicos do imaginário popular, que animam as narrativas de Monteiro Lobato. São habitantes das florestas, lagos e rios, são seres do interior e da profundidade, que transpostos para a televisão, agregam os indivíduos em torno daquilo que lhes é familiar, próximo e cotidiano. Neste sentido, estes personagens mitológicos funcionam atualizando uma forma de experiência que se transmite de pai para filho, de geração à geração, como nos revela Walter Benjamin (19).

As narrativas do Sítio do Pica Pau Amarelo, cujo princípio é ficcional, despertam os telespectadores infantis pela identificação com os personagens que mobilizam as histórias, mas também seduzem os adultos porque tocam no emocional coletivo que mobiliza os indivíduos de todas as idades.

As personagens de Pedrinho e Narizinho encarnam as crianças no aprendizado do mundo, elas funcionam como elos que criam redes junto à recepção infantil. Dona Benta, a dona do Sítio, a avó das crianças, representa a grande mãe natureza, significa a autoridade e a sabedoria. Tia Anastácia, uma negra exuberante e bondosa é a cozinheira do sítio, que incorpora a ama de leite, presente no imaginário brasileiro e pelo hibridismo cultural. O Visconde de Sabugosa é uma espiga de milho que virou intelectual, expressando uma fina ironia à lógica convencional que ignora o conhecimento comum. O Marquês de Rabicó é um porquinho hilariante que remete a pensar sobre a parte animal, instintiva, ou antes, a dimensão pulsional da cultura; um estímulo fértil para considerarmos a alteridade da cultura fisgada pela racionalidade técnica. Emília é uma boneca que fala, como Pinóquio, mas tem a razão do grilo falante. É um personagem muito importante de Monteiro Lobato, pois instaura a dúvida, a curiosidade. No universo ficcional do “Sítio do Pica Pau Amarelo”, Emília é uma boneca de pano que representa o princípio da realidade pelo viés de uma imaginação criadora. A mistura destes personagens imaginários, fictícios e em carne e osso, partilhando um universo encantado torna importante a dimensão do sonho e do despertar no Sítio do Pica Pau Amarelo.

            A criatividade, o espírito crítico e a imaginação de Monteiro Lobato sensibilizaram de modo marcante o público; em sua narrativa, percebemos como o autor soube despertar paixões para além das fronteiras do tempo e espaço. As sensações dos personagens (de alegria, raiva, medo ou felicidade) nesta ficção infanto-juvenil foram partilhadas tanto pelos leitores das gerações dos anos 1920/30, quanto pelos telespectadores de todas as idades durante os anos 1970/80/90 e também no ano 2000.

            O caráter dionisíaco desta ficção maravilhou o público. No vídeo, as crianças voam extáticas após aspirar o pó de pir-lim-pim-pim (o que coincide com trechos da fábula de Peter Pan, recuperando os referenciais sensíveis do “paraísos artificiais”); os seres humanos são transformados em sapos e outros bichos, o que remete ao mito das metamorfoses e transformações; em outras aventuras, Anastácia entra em transe amoroso, após ser fulminada pelas flechas de Cupido (a dimensão erótica e sensual, em sua banalidade e essencialidade faz-se presente nos livros de Lobato, com discrição, sem alardes). Os elementos presentes na trama do Sítio reconstroem os elementos da mitologia universal, inclusive aqueles da mitologia antiga. Aliás, o autor é hábil também pela alquimia que mistura os personagens arquetípicos da mitologia universal com as lendas e mitos do imaginário popular da sociedade brasileira dos anos 20/30. A adaptação da obra para a televisão foi bem sucedida também porque soube atualizar este recurso.

            Apesar do exagero e da repetição das narrativas adaptadas para o vídeo, encontramos ali, ingredientes que compõem um universo tipicamente dionisíaco à disposição das crianças. Mesmo que a transposição das narrativas literárias para a televisão passe por filtros, cortes e trucagens, há imagens persistentes que ultrapassam o crivo dos estereótipos e revelam o seu lado mais vibrante e dionisíaco.

           

5. Eros e Psique no Jardim da Infância

 

            Hoje quando o sexo e a violência assolam as telas e redes do planeta (incluindo a Internet), parece cada vez mais pertinente colocar em discussão um eixo temático como “As mídias como máquinas pedagógicas”. O mito dionisíaco, fio condutor do nosso trabalho sobre as culturas contemporâneas, colocando em perspectiva as telenovelas e ficções contemporâneas, abrange –de certo modo- uma psicologia das profundezas, o mundo do inconsciente, e, no fim das contas, uma antropologia da comunicação, pois discute efetivamente as relações entre os indivíduos e as mídias. Assim sendo, toca no tema delicado do desejo das crianças. Isto se refere tanto no plano da vontade (é recorrente lembrar o chavão que cita as crianças como seres “cheios de vontade”), mas também concerne ao desejo, no plano hormonal, orgânico, biológico. Fazendo nossas as premissas do pensador Edgar Morin, tratamos também do (“vivo do sujeito” ou de modo mais apropriado, o “vivo dos pequeninos”). Isto nos parece relevante, considerando as novas formas de tratamento da sexualidade no campo das mídias, aos códigos de ética e de moralidade que permeiam as culturas urbanas contemporâneas, assim como os dispositivos institucionais (e instituintes) que regulam os discursos sobre a sexualidade em nossos dias.

            Hoje, quando o cinema, a televisão e a Internet se propõem a mostrar tudo, parece ser preciso lidar dos assuntos difíceis com franqueza e naturalidade. Não dá para moralizar no que respeita a estas questões porque as crianças têm um faro muito aguçado para as formas de hipocrisia e já vai longe o tempo em que os segredos dos adultos ficavam confinados nos quartos dos pais. A pedagogia inteligente alerta para a estratégia de não reprimir, mas de apostar na redescoberta de outras imagens, sons e letras, levando as crianças (e jovens) ao cuidado de si no uso dos prazeres.

            É preciso prudência na exibição dos discursos e imagens sobre a sexualidade junto ao público infantil; primeiro porque os pequeninos não possuem maturidade suficiente para gerenciar as informações (e contra-informações) no que concerne às relações entre eros e thanatos; depois porque numa época em que tudo se tornou visibilidade, vaidade e dizibilidade, não dá para “tapar o sol com a peneira”; assim é conveniente abrandar as informações sobre as questões mais complexas junto às crianças, sem utilizar os artifícios da mentira. E finalmente, considerando que a maior parte da programação da TV deriva da “indústria cultural” norte-americana, que notadamente mantém fascínio pela violência, “O Sítio do Pica-pau Amarelo” é importante porque constrói as imagens do Eros e Psique por meio do lúdico. Diferentemente da programação infantil convencional, centralizada na dimensão narcisista, fortemente competitiva, excludente e espetacular, trabalha com prudência a dimensão dos afetos, da sensibilidade, da curiosidade e do lúdico. Daí a série ter-se mantido durante décadas, em suas versões na literatura e no vídeo, educando, distraindo e despertando o público infanto-juvenil e adulto para as experiências fundamentais da estética, da poética e da catarse.

            Os aspectos dionisíacos presentes nas visões (e revisões) de Monteiro Lobato, na literatura e na televisão, deslocam-se em meio às formas arbustivas, orgânicas e vitalistas. O Sítio do Pica Pau Amarelo consiste num tipo de “paidéia” (pedagogia) midiática ou num tipo de “máquina pedagógica”, o que representa um diferencial no contexto midiático sob o signo da “pornéia” (ou seja, a dimensão da pornografia). O pornô, evidentemente, possui a sua função em meio aos códigos de moralidade, ao processo civilizatório e às relações de sociabilidade. Entretanto, no que concerne à sensibilidade infantil, “O Sítio do Pica Pau Amarelo” continua funcionando como um dispositivo de educação afetiva, erótica, sentimental e estética; aí reside a sua positividade.

           

Notas Bibliográficas:

 

(1) FREUD, S. A interpretação dos sonhos. Rio de Janeiro: Imago, 2000 (1900).

(2) PIAGET, Jean. Epistemologia genética. S. Paulo: Ed. Abril, 19__. Col. Os Pensadores.

(3) BETTELHEIM, Bruno. Psicanálise dos contos de fadas. Rio: Paz e Terra, 1974.

(4) DELEUZE, Gilles. Lógica do Sentido. S. Paulo: Perspectiva, 1975.

(5) HILLMAN, J. O mito da psicanálise. Rio de Janeiro: Imago, 1972.

(6) Relembramos os estudos de Pierre GRIMAL, Dicionário da Mitologia Grega e Romana. Em língua portuguesa consultar também BRANDÃO, Junito. Mitologia Grega. Petrópolis: Vozes, 1998. 3 vol.

(7) JUNG, C.G. O homem e seus símbolos. Rio de Janeiro: Imago, 1964.

(8) ELIADE, M. Le mythe de l’éternel retour. Archetypes et répétition. Paris: Gallimard, 1969; __ Mythes, rêves et mystères. Paris: Gallimard, 1957; __ Aspects du mythe. Paris: Gallimard, 1963; __ Le sacré et le profane. Paris: Gallimard, 1957.

(9) BACHELARD, G. vide a vertente poética do filósofo, um estudo dos símbolos apoiado nos quatro elementos da natureza: A psicanálise do fogo; O ar e as canções; A terra e os devaneios do repouso; A terra e os devaneios da vontade; A água e as canções.

(10) DURAND, G. Estruturas Antropológicas do Imaginário. S. Paulo: Cultrix/Edusp, 1988.

(11) MAFFESOLI, M. A sombra de Dionísio. Contribuição a uma sociologia da orgia. Rio de Janeiro: Graal, 1982.

(12) Num outro registro, encontramos as sugestões que definem o campo de uma “antropologia da comunicação visual”. Cf. CANEVACCI, M. Antropologia da comunicação visual. S.Paulo: Ed. Brasiliense, 1985.

(13) ADORNO, T; HORKHEIMER, M. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 19__.

(14) BENJAMIN, W. Obras Escolhidas. Vol. I. Arte, Técnica, Magia e Política. São Paulo: Brasiliense, 1985; __ Vol. III Charles Baudelaire, Um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1989.

(15) Podemos situar a literatura infantil de MONTEIRO LOBATO ao lado das obras dos Irmãos GRIMM e dos contos de C. ANDERSEN, como uma tradução do imaginário popular universal. Os seus livros são conhecidos no mundo inteiro, assim como os seus personagens. Ver MONTEIRO LOBATO, Obra Infantil Completa, S.Paulo, Editora Brasiliense, s/d; Sobre a biografia de LOBATO, consultar KOSHIYAMA, A. Monteiro Lobato: Intelectual, Empresário, Editor. S.Paulo, T.A. Queiroz, 1982.

(16) Cf. DURAND, G. As estruturas antropológicas do imaginário. Op.cit. O filósofo demonstra como as categorias de regimes diurno e noturno servem como estruturas que consolidam fortemente o imaginário coletivo.

(17) O termo é utilizado no livro de SODRÉ, M. Máquina de Narciso. Rio: Achiamé, 1984.

(18) Acerca de um repertório completo das lendas e mitos populares do Brasil, consultar, CASCUDO, L.C. Geografia dos mitos brasileiros. Rio: Melhoramentos, 1947.

(19) BENJAMIN, W. “O narrador” in __ Walter Benjamin, Obras Escolhidas. Vol.I Arte, Técnica, Magia e Política. São Paulo: Brasiliense, 1985.