Afinidades Estéticas no Contexto da Latinidade:
Metamorfoses no Realismo Mágico de Dias Gomes

Cláudio Cardoso de Paiva, Universidade Federal da Paraíba
(Outubro de 2001)


1. Introdução

Procuramos observar aqui o modo como a mídia eletrônica formaliza os textos de ficção, atualizando o gênero do realismo fantástico. Assim, percebemos que a televisão se utiliza deste recurso, nos anos 70, na telenovela “Saramandaia” (Dias Gomes, 1976), abrindo novas arestas para a produção de um discurso que renovou o sentido da teledramaturgia, numa época de fechamento ideológico, imposto pela censura. Verificamos que esta telenovela consiste num estilo de ficção que mantêm uma certa afinidade com outras narrativas, em diferentes registros midiáticos. Encontramos traços análogos da obra de Gomes nos expoentes do Teatro do Absurdo, na pintura de Frida Kahlo, no cinema de Fellini e nas obras literárias de Gabriel Garcia Márquez, como “Cem anos de Solidão” (1962) e “A triste história de Când! ida Erêndira e sua avó desalmada” (1972). O que está em jogo nesta aproximação, que pode parecer insólita, é a maneira como a ficção televisiva brasileira nos antecipa elementos para discutirmos o problema da globalização, pelo viés da noção de “latinidade”, que demarca um tipo de “identificação cultural” [1]. Isto é, colocamos em perspectiva os textos ficcionais para repensar a aproximação das fronteiras entre as culturas latinas, observando inclusive, como em cada recorte regional, podem ser percebidos tratamentos específicos da experiência informativa e comunicacional, e suas vinculações no plano das configurações históricas [2].

No momento, delimitamos nosso enfoque nos domínios do imaginário mítico, que distingue o continente sul-americano, no contexto híbrido das culturas latinas; assim temos um conjunto de temporalidades e espacialidades caracterizado pela complexidade étnica, econômica, política e ecológica dos seus países. Os diversos países que compõem a chamada “América do Sol” comportam semelhanças e disparidades que não se deixam apreender num conceito totalizante, preocupado em agrupá-los em torno de uma “identidade cultural”. Na América Latina, as formas de colonização, resistência e mediações culturais apresentam, ao mesmo tempo, as similitudes e diferenças entre os países de língua espanhola e o Brasil. Estes países, de formação católica, mas permanentemente irradiado pelo eco dos seus arquétipos ancestrais, apresentam dificuldade para uma reflexão do conjunto, porque quase tudo os aproxima e ! ao mesmo tempo os particulariza em setores distintos. São próximos na medida em que partilham as raízes latino-americanas, consomem igualmente os produtos da globalização cultural, sofrem na pele as disparidades sociais e o desemprego no campo e na cidade; aproximam-se, igualmente, pelos jogos de recepção, apropriação e adequação das mensagens à sua própria lógica cultural. Em contrapartida, a química das misturas raciais, o estilo de suas relações com a civilização técnica e os seus referenciais éticos e estéticos define modos diferenciados de participação no concerto das culturas latinas. Ocorre-nos pensar uma convergência entre estas culturas vizinhas, por meio das mitologias que estruturam o seu imaginário coletivo. O cimento das emoções coletivas, entre os países de língua hispano-americana e o Brasil, encontra a projeção das suas instâncias mitopoéticas no realismo fantástico de Gabriel Garcia Márquez, como também em Vargas Llosa, nas novelas de Manuel Puig e na sátira s! ocial do dramaturgo Dias Gomes. As formas de carnavalização da política, o culto e a derrisão dos valores machistas, a paródia dos sincretismos religiosos e a inserção de traços de paganismo e, enfim, a introdução dos elementos tragicômicos típicos das tradições populares revelam os signos presentes, no cotidiano fabricado pelas narrativas ficcionais latinas. O estilo híbrido dos discursos e enunciações latino-americanas, cuja permanência se inscreve ao longo da história da civilização ocidental, no terceiro milênio, solicita um olhar mais detido, entre outras coisas porque o multiculturalismo que caracteriza a sensibilidade pós-moderna abriga, esteticamente, os afetos, emoções e sentimentos dos indivíduos integrados e dispersos no mundo globalizado. É interessante observar como hoje, em registros diferentes, os textos sociológicos de Gilberto Freyre, a literatura de Jorge Amado, o teatro de Ariano Suassuna e as teleficções de Dias Gomes respondem às inquietações coletivas e s! e prestam, sociologicamente a um enfoque do cotidiano irrigado pelas mídias.

SARAMANDAIA

"O realismo necessário para construir um retrato da realidade brasileira não pode se abster do fantástico". Dias Gomes. [3].

Dias Gomes é um autor que reconstruiu as imagens do cotidiano brasileiro por angulações imprevistas e inquietantes. Sem abrir mão de tocar nas feridas nacionais e ao mesmo tempo, desvelando as visões de mundo e as experiências coletivas de modo afirmativo, Gomes fabricou janelas para uma contemplação do Brasil, muitas vezes utilizando-se dos recursos estéticos do realismo fantástico e isto aparece na epifania das imagens de diversas telenovelas.

Saramandaia” é uma cidadela onde vivem 1000 habitantes e sua riqueza é produzida por uma usina de cana-de-açúcar chamada “Bole Bole”. Quase toda a população trabalha na cultura de cana-de-açúcar ou no alambique de cachaça. Um plebiscito para mudar o nome da cidade "Bole Bole" em "Saramandaia" vai dividir os eleitores: de um lado, estão os tradicionalistas, liderados pelo Coronel Chico Rosado; do outro lado, aqueles que querem as mudanças, liderados pelo Coronel Tenório Tavares [4].

Esta história manterá como fio condutor o realismo fantástico, utilizando-se de procedimentos estéticos que também estão presentes na estética do Teatro do Absurdo e dos elementos da cultura popular universal.

Homens viram pássaros, poetas se transformam em lobisomens, mulheres engordam até explodir, coronéis espirram formigas, homens botam o coração pela boca e virgens incendeiam o leito com o “fogo sexualizado”: tudo isso é parte do repertório das metamorfoses da telenovela "Saramandaia". O resgate do "realismo fantástico" ou "realismo mágico" traduz um estilo de ficção que fez a sua aparição, inovando a linguagem da televisão nos anos 70. Num mundo às avessas, num regime político fechado, a saída parecia ser estimular a imaginação pelo exagero.

No delirante universo do realismo fantástico, quase tudo é metáfora e alegoria. Todavia, parece-nos que a recorrência ao "teatro do absurdo" é mais pertinente para interpretar o sentido da telenovela "Saramandaia". Assim, podemos encontrar afinidades de estilo entre a obra de Dias Gomes e as peças dos autores do "teatro do absurdo", tais como Jarry, Pirandello, Kafka, Beckett e Ionesco, entre outros que, na dramaturgia e na literatura universal, experimentaram focalizar os fenômenos extremos pelo viés da provocação, da derrisão e do riso. É uma experiência em que o público chega ao delírio, ao êxtase, entrando num transe dionisíaco pela carnavalização absoluta [5]. O quadro dos personagens do realismo fantástico, como no “Teatro do Absurdo” aproxima as fronteiras entre o mundo real e o mundo ! fictício, a razão onírica e a imaginação criativa. Dias Gomes é o mais dionisíaco dos autores brasileiros porque sempre soube apreender os modos de ser dos personagens da vida real, captando um tipo de sensibilidade que surpreende pelo vigor, pela persistência, pela maneira afirmativa como rearranja os seus meios de sobrevivência num ambiente minado pelas adversidades.

A telenovela “Saramandaia” ritualizou, no Brasil dos “anos tristes”, a loucura necessária; funcionou como uma espécie de pulmão que permitiu os indivíduos respirarem numa atmosfera sufocada por um regime político autoritário e, foi igualmente, uma das expressões originais de descontração, apesar de todas as interdições da época. Um olhar atento às relações entre ficção e política brasileira encontra na linguagem de Dias Gomes, uma leitura derrisória da "lógica das dominações". Na cartografia dos poderes que regem os ofícios e lazeres, o tempo do trabalho e o tempo do ócio, pelo viés da telenovela “Saramandaia”, compreendemos o modo como os poderes se constituem historicamente, também num nível micrológico. A série mostra como além dos poderes políticos e das classes sociais, da vontade de pot! ência e da representação arbitrária das normas coletivas existe toda uma vasta rede de capilaridades, que confirmam as experiências de “contra-poder” e revolta, desmontando a rigidez das hierarquias, dos discursos verticais de dominação. Por outro lado, na simulação cotidiana de “Saramandaia”, verificamos também a efervescência dos micropoderes que dinamizam experiências enriquecedoras no plano das culturas populares. Em oposição às formas normativas, à legiferância dos códigos de linguagem e comportamento, à dureza do mundo regido pelos sistemas econômico, político e religioso, os indivíduos no curso de suas práticas cotidianas reconstroem o sentido da vida, a partir dos modos específicos como interpretam e interagem no mundo.

A investigação inspirada numa antropologia atenta à “imaginação simbólica” pode compreender o universo ficcional de "Saramandaia" num contexto de significação que percorre campos mais vastos e não se reduz a uma crítica da experiência política; ou seja, existe uma perspectiva de crítica do poder na obra de Dias Gomes, mas esta não é movida -a priori- pelo espírito de negação. Estrategicamente, Gomes se instala no interior dos espaços de decisão política, subvertendo as imagens e valores, implodindo o sistema por dentro e virando do avesso as regras do jogo.

As metamorfoses presentes na ficção televisiva revelam a incidência das imagens dionisíacas e suas relações com a idéia da vida indestrutível [6]. A transformação dos homens em outros seres representa, no imaginário universal da humanidade, as imagens permanentes da vida após a morte; numa palavra, a vontade de longevidade e imortalidade, em sintonia com o mito do “eterno retorno”, persiste na construção imaginária das diferentes civilizações; mesmo naquelas culturas, como a nossa, que celebram a afirmação do presente. Deste modo, a narrativa mitopoética não se reduz a uma mera explicação pelo viés da História, pois se instala no imaginário social a partir de informações que advém de tempos trans-históricos, primitivos, remotos e extemporâneos. Os desejos e as representações que possibilitam a formalização! de uma ficção seriada como “Saramandaia”, tem a idade do percurso da humanidade desde a aurora dos tempos. Encontramos os seus ingredientes, por exemplo, na fábula milenar de “As Mil e Uma Noites”, assim como na comédia de Bocaccio, em Dom Quixote, de Cervantes ou mais recentemente, no cinema de Fellini (Desde “Amarcord” até “La Nave Va” ou “A Cidade das Mulheres”).

Com “Saramandaia” o público reencontra o riso que faz parte de uma cultura que experimenta o sentido do trágico. A sociedade brasileira se sustenta também por meio dos humores que estimulam os atores sociais a gozarem a vida apesar de tudo. Neste sentido, a cultura brasileira distingue-se frontalmente, da cultura européia, caracterizada por uma experiência cotidiana que se define, aprioristicamente, enquanto racionalista; por outro lado, a cultura brasileira diferencia-se também da cultura norte-americana, que se marca por um estilo de vida de cunho mais pragmático. Assim, estas diferenciações mostram na concretude da ficção das telenovelas, algo que o Brasil leva muito sério. O realismo mágico de “Saramandaia” reafirma o espírito dionisíaco que caracteriza a cultura brasileira: a desd! ramatização da vida, a teatralização do cotidiano, avesso ao melodrama, sob a forma do riso e da carnavalização. A sensibilidade -simultaneamente- dionisíaca e barroca do Brasil coloca em relevo a exuberância e o exagero. Num certo sentido, a ficção brasileira é similar à descrição do universo imaginário de François Rabelais [7], em que o grotesco, o mórbido e o trágico são ingredientes do riso. “Saramandaia” é um vetor de produção e disseminação de sentido e de linguagens lúdicas, excêntricas, carnavalescas, dionisíacas.

Encontramos as imagens alegóricas com os requintes do realismo fantástico em outras realizações da ficção seriada brasileira, como comprovam, em registros diferentes, as telenovelas “Pedra sobre Pedra” (Aguinaldo Silva, 1992), “O Fim do Mundo” (Dias Gomes, 1998), “A Indomada” (Aguinaldo Silva, 1999), “Porto dos Milagres”, (Aguinaldo Silva, 2001) e a minissérie “O Auto da Compadecida” (peça teatral adaptada para a televisão e para o cinema por Guel Arraes, 2000)


2. Cultura e Política: Globalização e Latinidade

Após as controvérsias do “nacional-popular”, das militâncias políticas e das patrulhas ideológicas, que movimentaram o debate em torno da produção cultural nos anos 60/70, ficou arriscado discutir o eixo cultura e política sem recair nos lugares comuns do populismo, do ressentimento e das camisas de força ideológicas. Hoje, o enfoque dessas questões tem tomado outro rumo; a própria expressão dos termos “cultura” e “política” tem uma conotação desgastada; com a profusão dos inúmeros procedimentos midiáticos, temos uma diversidade cultural quantitativamente importante, ao mesmo tempo em que se multiplicam as formas de identificação nas diferentes dimensões da vida cotidiana. Hoje, no contexto da “cultura das mídias”, a estética, como uma faculdade de compreensão do mundo por meio de critérios não apenas intelectivos e racionais! , mas também pela forma dos sentimentos que agregam os indivíduos, pode nortear a discussão do “cultural”. O problema da ética, por sua vez, reaparece à exaustão na época do neoliberalismo e das culturas midiáticas e isto é sintomático, porque de certa forma demonstra uma falta, ou seja, a ausência da ética no plano das relações entre a sociedade e as instituições públicas, assim como no plano das relações intersubjetivas. Mas há um aspecto afirmativo na retomada do debate sobre a ética, que implica também no exercício da responsabilidade. A discussão sobre a ética, que se distingue de uma discussão sobre as moralidades vigentes, alerta para o modo de realização dos desejos e das necessidades do indivíduo, mediante os limites do outro, isto é, considerando as fronteiras com as alteridades e com as diferentes subjetividades, com compõem a realidade objetiva do social [8]. Então, neste sentido, o papel desempenhado pela arte tecnológica, particularmente, no caso da telenovela “ Saramandaia”, consiste em situar parâmetros éticos e estéticos que podem oxigenar a vida dos sujeitos em sociedade. Isso distingue uma ficção seriada, que partindo do inconsciente coletivo da sociedade brasileira, desperta o público pelo expediente do risível, do cômico, do encantado e do trágico. Esteticamente a ficção reúne elementos que cimentam as emoções coletivas por meio dos afetos, dos sentimentos e das emoções, e eticamente, Dias Gomes, estimula um tipo de “politização do cotidiano” libertando os fantasmas da cultura, pelo viés do irônico, do absurdo e do sobrenatural.


3. Comunicação e Latinidade

Numa época em que se enfatiza o problema da globalização e sua repercussão no âmbito das culturas locais, discutir as formas de aproximação no interior das culturas latino-americanas, o eixo temático formado pelos campos da cultura e da política consiste como uma passagem quase obrigatória [9].

Este nosso estudo da ficção aparece como um campo possível de aproximação entre culturas tão distintas; o mercado dos bens simbólicos, o plano da cultura, deve ser considerado como uma referência importante para se discutir, por exemplo, a consistência da uma organização como o MERCOSUL, também em matéria de informação e comunicação [10]. Primeiramente, partimos do pressuposto que é preciso observar as formas como cada uma dessas culturas realiza suas mediações face à internacionalização da cultura, para entendermos como conseguem se fortalecer no mercado internacional; depois, suspeitamos que se a Europa, com todas as suas distinções territoriais, lingüísticas e culturais, tem buscado estrategicamente formalizar a sua unificação para enfrentar as pressões da economia, cultura e política dos EUA, uma atitude semelhante no que respeita à América Latina p! arece ser pertinente. E finalmente, cumpre estimular as iniciativas realizadas em fóruns internacionais, para estabelecer um debate voltado para a compreensão do papel da “latinidade” no novo concerto das nações, merecem um enfoque mais rigoroso.

No campo das Ciências da Informação e da Comunicação observamos que alguns agenciamentos têm sido postos em prática, sinalizando para uma certa convergência que se mostra salutar. Os discursos latino-americanos sobre as mídias, de uma maneira geral, inscreveram-se nos anos 70/80 de maneira senão panfletária, apocalíptica, como um tipo de guerrilha ideológica e marcado pelas limitações geradas pela reação anti-imperialista. Hoje percebemos uma certa evolução que aponta para contribuições inteligentes que atualizam as perspectivas de análise.

Os estudos realizados pelos Grupos de Trabalho da Metodista (S. Bernardo, S. Paulo) e suas afinidades com os estudos latino-americanos significam um passo importante no sentido de ampliar os horizontes para a pesquisa em informação e comunicação no Brasil [11]. Do mesmo modo, a atualização dos estudos de folkcomunicação tem funcionado como uma ponte entre as diferentes gerações interessadas nas investigações da comunicação e seus produtos [12]. Tal perspectiva mostra-se pertinente para uma investigação de novas arestas e para a experimentação de pesquisas em novas subáreas que designamos, provisoriamente, como a folkmídia, o folkmarketing, o folkpop e o ciberfolk,

No que concerne à especificidade da cultura lusófona, positivamente, a Internet tem propiciado um intercâmbio fértil entre a produção intelectual realizada no Brasil e em Portugal. Além dos congressos luso-brasileiros e da participação de profissionais, docentes e pesquisadores, na conexão luso-brasileira, percebemos que novos encadeamentos têm fecundado um diálogo promissor [13].

Ainda com relação à questão da latinidade, no que respeita ao intercâmbio franco-brasileiro, no setor das Ciências da Comunicação e saberes afins, tem-se mantido a tradição de reciprocidade entre a produção francesa e a brasileira. Hoje, libertando-se dos transplantes culturais, das clonagens e importação de modelos, observamos que o diálogo entre estes dois centros culturais se mostra bastante fértil, principalmente no que concerne à busca de alternativas para escapar à maciça penetração da cultura americana na América Latina e, também, no que respeita às afinidades latinas entre ambas as culturas [14].


4. Conclusão: Estética e Politização do cotidiano

O que está em jogo nas simulações do realismo fantástico, inscrito no formato das telenovelas e minisséries, é a maneira como as alegorias propostas pela ficção atuam sobre a forma dos sonhos e do despertar dos indivíduos. Antes de possuir uma funcionalidade, a tragédia antiga funcionava como vetor de experiência estética, poética e catártica; a ficção televisiva, como expressão de um tipo de arte tecnológica, desempenha um papel análogo na cultura brasileira e latina contemporâneas.

Numa época em que tudo vale quanto pesa ficou difícil exercer a faculdade de julgar o objeto estético. A obra de arte, como produto de comunicação e ao mesmo produto de marketing, é constantemente irradiada pelos valores em trânsito da sociedade de mercado. No fim das contas, os critérios de felicidade na idade mídia, não são os mesmos que nortearam as diversas modulações da arte brasileira, passando pelo barroco, romantismo, realismo, modernismo ou regionalismo. Na segunda metade do século XX, os indivíduos experimentam as emanações estéticas no contexto de uma produção cultural, que enfrenta  o ritual dos individualismos “pós-modernos”. Entretanto, a cultura popular de massa da televisão criou a possibilidade de mediação, na microfísica das narrativas do cotidiano, entre as imagens do particular e do geral, do local e do mundial, do regional e do universal. Temos partido de um ponto ! de vista que busca perceber os traços humanistas nessa cultura midiática forjada pelos audiovisuais; estrategicamente, encontramos em Nietzsche (particularmente, em “A Origem da Tragédia”), a figura mitológica de Dionísio como parâmetro para perceber a ética e a estética, como experiências afirmativas que podem nortear o imaginário coletivo ligado nas redes de comunicação. Assim, observamos que a telenovela brasileira, como dizia, Dias Gomes, não pode prescindir do “fantástico”. É por intermédio do realismo fantástico ou realismo mágico que os telespectadores projetam as imagens obsedantes que perseguem a imaginação cotidiana. As imagens oníricas e as de vigília, as figuras diurnas e noturnas, a parte consciente e inconsciente da cultura fervilham nos pontilhados da televisão e, desta forma, fisgam a atenção e curiosidade dos sujeitos. Sustentamos que essas imagens se formam a partir da própria experiência cultural e aparecem nas fotografias da televisão, captadas a par! tir de diferentes angulações. Partimos do pressuposto, que a televisão, como um gigantesco processador de imagens e sons, inibe e, ao mesmo tempo, intensifica os desejos e necessidades do público. Uma interpretação do sentido da televisão no contexto da cultura brasileira demonstra a sua legitimidade, na medida em que desvela este processo informativo e comunicacional; isto é, como a mídia eletrônica, pelo viés da ficção seriada, assimila, reconstrói e devolve ao espaço público tudo aquilo que absorveu na própria substância viva da existência social. Este é um desafio que se impõe a todos aqueles predispostos a uma investigação da televisão e da telenovela. Neste sentido, temos rastreado algumas tendências que podem servir como pistas para um trabalho de pesquisa sobre mídia, cotidiano e sociabilidade.

Aqui, neste texto, particularmente, colocamos em discussão o recurso do realismo fantástico, no contexto de um produto cultural que prioriza o naturalismo e para isso utiliza os recursos industriais e tecnológicos. As telenovelas recriam uma profusão de mitos antigos e recentes, estruturantes do imaginário coletivo e das maneiras como dialogam com as instâncias reais, históricas, políticas e culturais, em que se inscrevem os indivíduos. Aqui, em se tratando da telenovela “Saramandaia”, Dias Gomes, enfoca o espírito comunitário de uma pequena cidade, que de certo modo, consiste num simulacro de uma cidadela do Brasil, provavelmente, no Estado da Bahia, mas que poderia estar situada alhures. Partimos de uma perspectiva que privilegia a imaginação popular com seus mitos, crenças, sonhos e utopias, como uma estrutura que se mantém vigorosa, assegurando o lugar afirmativo das “representações sociais”, junto com a dimensão hist! ória da realidade.

 

5.  Notas Bibliográficas

[1] Sobre as “identificações”, ver HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade. S. Paulo: DP&A Ed., 2000.

[2] Sobre o eixo temático concernente aos estudos culturais, têm-se debruçado os “cultural studies” anglo-saxônicos, como por exemplo, JAMESON, F. Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. S. Paulo: Ática, 1996; SAID, E. Orientalismo. S. Paulo: Companhia das Letras, 1998; HUYSSEN, A. “After the great divide: modernism, mass culture, pos-modernism”. In: __ Memórias do modernismo. Rio: Ed. UFRJ, 1996. Consultar igualmente, a coletânea HOLANDA, H.B. (org.) Pós-Modernismo e Política. Rio de Janeiro: Rocco, 1991. Ver ainda a Biblioteca Virtual de Estudos Culturais -PACC/UFRJ.   http://www.prossiga.br/estudosculturais/pacc/

 [3] Acertando os ponteiros com esta nova perspectiva de análise das culturas, no contexto da comunicação na América Latina, ver os seguintes “estudos de recepção”: AZAMBUJA, Germano. As idéias de Luiz Beltrán, O homem e seu pensamento. In: MARQUES DE MELO, J. (org) Revista Científica On line Pensamento Comunicacional Latino Americano – UNESCO. http://www.umesp.com.br/unesco/pcla/revista1/perfis1.htm#;
BARBÉRO, J. Martin. Identidade Tecnológica e Alteridade Cultural”. In: FADUL, A (Org.) Novas Tecnologias de Comunicação, Impactos políticos e sócio-econômicos. S.Paulo: Summus/INTERCOM, 1986, p.121-132; __ MARTÍN-BARBERO, Jesús. “El Futuro que habita la memoria”. In MARQUES DE MELO, J. (org) Revista Científica On line Pensamento Comunicacional Latino Americano – UNESCO, nº 5, p.1-17. http://www.umesp.com.br/unesco/pcla/index.htm
MARQUES DE MELO, J. (org.) Comunicação na América Latina, Desenvolvimento e crise. São Paulo: Papirus, 1989; __ Teoria da Comunicação: Paradigmas Latino-americanos. Petrópolis: Vozes, 1999.
A propósito, ler também CANCLINI, N.G. Culturas Híbridas. S. Paulo: Edusp, 1998.

[3] Cf. Depoimento do dramaturgo Dias Gomes para RAMOS, J.M.O; BORELLI, S.H.S. "A telenovela diária" in __ Telenovela, História e Produção. S.Paulo: Ed. Brasiliense, 1989.


[4] Cf. FERNANDES, I. Memória da Telenovela Brasileira. S. Paulo: Brasiliense, 1994, 3a edição (1982), p.198.


[5] A ficção realizada por DIAS GOMES tem semelhanças com vários aspectos da obra de Alfred JARRY, sátira profunda do poder e dos valores da sociedade burguesa. Diversos elementos presentes nas peças "Ubu Rei", "Ubu Pai" e "Ubu Acorrentado" se reencontram na dramaturgia singular de DIAS GOMES. Encontramos igualmente, o eco da ironia fantástica de Luigi PIRANDELO, nos trabalhos de GOMES. As imagens da metamorfose presentes na obra de Franz KAFKA, reaparecem, de modo particular, no repertório das imagens em movimento de "Saramandaia". Certamente é difícil encontrar os aspectos de uma dramaturgia tão intimista, que caracteriza a obra de Samuel BECKETT, numa ficção como "Saramandaia", marcada, sobretudo pelo humor. Entretanto, em outras ficções escritas por Dias GOMES, que consideramos como imagens poéticas do es! paço urbano brasileiro, podemos reconhecer os personagens e as figuras patéticas das peças de Beckett, encarnado, principalmente, o aspecto tragicômico da experiência da incomunicabilidade. Cf. ESSLIN, M. O Teatro do Absurdo, Rio, Zahar, 1968. As transformações que têm lugar no repertório das imagens fantásticas da telenovela "Saramandaia" são análogas àquelas representadas na peça "Rinoceronte" (1959), de Eugène IONESCO. A crítica das instituições sociais, políticas e religiosas empreendida por IONESCO, faz-se presente, também, na dramaturgia de DIAS GOMES.

 

[6] KERÉNYI, C. Dionysos, archetypal image of indestructible life. New Jersey: Princeton University Press, l976.

 

[7] CF. BAKHTIN, M. A cultura popular na idade média e no renascimento, O contexto de François Rabelais. S.Paulo: HUCITEC/Ed.UnB, 1987.

[8] Sobre os problemas das alteridades e subjetividades na cultura pós-moderna, vide GUATTARI, F. GUATTARI, Félix. “Da produção de subjetividade”. In: PARENTE, A (Org.) Imagem Máquina. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1996 (1993), p. 177-194.

[9] No que respeita aos estudos sobre cultura e política, particularmente, sobre comunicação e política, consultar o artigo de fôlego de Albino RUBIM, Mídia e Política no Brasil: Estudos e Perspectivas. Disponibilizado na Biblioteca On line de Ciências da Comunicação. http://bocc.ubi.pt/  Texto capturado em junho de 2000.

[10] Sobre a inserção da temática do mercado nos estudos de comunicação e cultura, vide CANCLINI, N.G. “Das utopias ao mercado” in __ Culturas Híbridas, Estratégias para entrar e sair da modernidade.  S.Paulo: Edusp, 1997 (1989), p. 264-287; __ “Contradições Latino-americanas: Modernismo sem modernização”. In: CANCLINI, N.G. op.cit., p.67-98.

[11] Ver os textos disponibilizados nos diversos números do periódico on line Revista Científica On line Pensamento Comunicacional Latino Americano – UNESCO. http://www.umesp.com.br/unesco/pcla/index.htm ; uma edição sob a responsabilidade de MARQUES DE MELO, J; PERUZZO, C, e editoria de GOBBI, M.C.

[12] Ver a propósito o estudo de BENJAMIN, Roberto. A nova abrangência da folckcomunicação. In : MARQUES DE MELO, J. (org) Revista Científica On line Pensamento Comunicacional Latino Americano – UNESCO. http://www.umesp.com.br/unesco/pcla/index.htm

[13]  Ver FIDALGO, António (org.) Biblioteca On line de Ciências da Comunicação – BOCC   http://bocc.ubi.pt

[14] Ver entrevista concedida por Giovandro Ferreira (coord. Brasileiro do VI Colóquio Brasil-França de Ciências da Comunicação) para Iluska Coutinho in: Revista Científica On line Pensamento Comunicacional Latino Americano – UNESCO. http://www.umesp.com.br/unesco/pcla/index.htm