1 de Setembro de 2001
1. Introdução
No contexto do mito de Dionísio, encontramos
as imagens das mulheres bacantes, conferindo sentido e potência à imaginação
criadora (1). Elas parecem-nos pertinentes num enfoque da história da cultura,
primeiramente porque são inscrições da desordem permanente da natureza no dorso
da cultura, depois porque mostram como o mito é uma recorrência fundamental
para observarmos o modo “como se escreve (e se interpreta) a História”, no longo
percurso das civilizações, e finalmente, porque encarnam a experiência da sexualidade
e suas emanações no simbolismo de vida, morte e transcendência, que orienta
as experiências cotidianas dos indivíduos (2).
A imagem da fêmea sexualizada, como signo de êxtase, violência e destruição,
aparece nos textos históricos, bíblicos e pagãos em vários contextos, nas figuras
de Cleópatra, Dalila, Jezebel ou Salomé. Outrora, no tempo dourado das lendas
e mitos, como Lilith, Morgana ou Lorelei, aparecem em sua ampla significação,
enquanto figuras que desencadeiam as pulsões eróticas, como personagens de iniciação
e como elementos que encarnam o princípio desestabilizador (3). Desde “As
Bacantes”, na tragédia de Eurípides, esta modulação da imagem das mulheres
tem ocupado um lugar bem preciso no imaginário coletivo, passando pelas páginas
da literatura, em Flaubert, com “Madame Bovary”, em Tolstoi, com “Ana
Karenina”, em Machado de Assis, com “Capitu” ou em Jorge Amado, com
“Gabriela”. Isto se faz presente também nas formas exuberantes das artes
plásticas, nos gestos, cores e traços de Rodin, Gauguin, Lautrec, Portinari
ou Carybé. A figuração erótica das bacantes reaparece nos simulacros do cinema,
nas expressões de Greta Garbo, Bardot, Marylin Monroe e Madonna, entre outras.
Hoje, a cultura de massa da televisão brasileira atualiza a imaginação do erotismo
masculino, nas personas sexuais, em modulações diferentes, por exemplo, com
Sonia Braga, Vera Fischer, e mais recentemente, na estética erótico-trash com
a Tiazinha e a Feiticeira.
Como vamps, vadias, megeras, ninfetas, namoradas, a simbologia
do feminino é carregada de sentido, deslocando-se desde a figura da amante,
da companheira, da parte desejada ou das encarnações sagradas do mito da “Grande
Mãe” ou da “Deusa Terra” (4).
O tema tem sido revisitado em nossos dias, na contra-luz dos movimentos
feministas, nos debates do politicamente correto e no campo genérico da revolução
sexual, desde os anos 60/70 (5). Recorremos ao tema, em nossa argumentação sobre
o cotidiano na “cultura das mídias”, buscando situar alguns aspectos pertinentes
para atualizar a discussão do desejo e da representação, da ética e da comunicabilidade,
e enfim, o problema das identidades e das formas de sociabilidade contemporâneas
(6). Tudo isso nos serve como uma alavanca metodológica e como estímulo para
examinar a modulação dos afetos, sensações e sentimentos, que regulam as relações
entre os gêneros. De certo modo, as imagens das “Bacantes” na televisão, implicam
numa inserção de elementos da natureza, no contexto de modernização da cultura;
isto abrange tanto as formas regressivas, como emancipatórias que, simultaneamente,
perturbam e animam o cotidiano dos seres.
No longo itinerário da cultura brasileira, encontramos um conjunto de imagens
de mulheres, cujas lendas se tornaram significativas para compreendermos os
tipos de exclusão e inserção do feminino no contexto da História. Elas reaparecem
ampliadas e glamourizadas pelas cenas da televisão; contudo a precisão e detalhamento
das imagens, proporcionados pelo refinamento dos efeitos tecnológicos, contribuíram
para revelar os aspectos mais intimistas do feminino. A nudez dos corpos, as
cenas eróticas, o enfoque sobre a anatomia do desejo e da sexualidade, na época
das tecnologias do erotismo, atualizaram as pulsões dionisíacas e impuseram
uma nova configuração às relações com o corpo (7). Do confessionário católico
ao divã do psicanalista, dos cartazes publicitários às capas de revista, do
cinema à televisão, a evolução dos discursos e práticas das mulheres do Brasil
revela os modos específicos de identidades e identificações, assim como estilos
distintos da experiência nos domínios da vida, trabalho e sexualidade (8). Um
enfoque das imagens do feminino na ficção seriada televisiva mostra-se relevante
por vários motivos: primeiramente porque abriga as expressões públicas e intimistas,
na casa e na rua, servindo como ponte para discutirmos os enlaces entre a publicidade
e a privacidade; depois porque remete à alteridade, ao tema dos gêneros e do
amor erótico; um olhar sobre o feminino reenvia também a um enfoque sobre o
masculino, e no fim das contas, à parte de agregação dos seres, reunindo a anima
e o animus, uma ressonância da grande união cósmica que revigora a existência
e o desejo de longevidade dos indivíduos. A aparição das “bacantes” no vídeo
é importante porque abre espaço para percebermos alguns aspectos do nosso hibridismo
cultural, que encerra expressões simultaneamente coercitivas e liberadas. Isto
é, revela tanto os matizes da repressão sexual, como as marcas de um hedonismo
sem limites, expõe os resquícios da ideologia patriarcal, mas também exibe formas
emancipadas da cultura e do comportamento.
No percurso da televisão brasileira, encontramos inúmeras mulheres
que se fixaram na imaginação coletiva, mas elegemos algumas que permanecem importantes
pelos vínculos sociais e históricos, nos interstícios dos tempos e lugares em
que viveram, e que ainda hoje, sinalizam estilos particulares de autonomia e
subjetividade (9).
Primeiramente, percebemos em “Xica da Silva”, a significação da
figura da mulher como escrava, como agente e objeto de desejo, mas que utilizou
os ardis eróticos para não se submeter aos poderes opressivos, na época do Brasil
colonial. Em seguida, “Dona Beija”, a dita Feiticeira de Araxá, aparece
como uma persona sexual que mudou os rumos da economia e da política, na sua
cidade, em Minas Gerais, no século XIX, invertendo as regras do jogo num país
de vida provinciana, transformando um mundo arcaico e subdesenvolvido em um
mundo de riqueza e prosperidade. Depois, relembramos a figura de “Anaíde
Beiriz”, que embora ainda não tenha sido “representada” no contexto das
telenovelas, já foi imortalizada na literatura, no teatro, no cinema (e na televisão),
configurando um ícone bem expressivo, cuja lenda se confunde com o percurso
histórico da Revolução de 30. Dentre as grandes obras literárias adaptadas para
a televisão, “Hilda Furacão” (Roberto Drummond, 1993) representa um caso
atípico de uma jovem burguesa, que deixa o noivo à sua espera no altar e decide
fixar residência num bordel, e em seguida apaixona-se por um jovem padre, em
pleno clima do golpe de Estado de 1964. Finalmente, não poderíamos deixar de
referir, mesmo ligeiramente, a figura de “Chiquinha Gonzaga”, que atualiza
no vídeo, a liberalização dos costumes de uma mulher do século XIX, imprimindo
suas marcas na história da cultura, através das paixões amorosas, revolucionárias
para o seu tempo, mas, sobretudo, pela inserção da música e da cultura popular
(e mestiça), no cotidiano de um país, cujas expressões artísticas e culturais
limitavam-se à representação do “bom gosto” das classes brancas e dominantes.
2. Sinopse de Xica da Silva
“Xica da Silva” foi uma escrava que virou do avesso o Arraial
do Tijuco, na província do Rio de Janeiro, à época do Brasil colonial, no século
XVI. O Intendente Joaquim Fernandes, representante da Corte Portuguesa no Brasil,
apaixonado por Xica da Silva, cobriu-a de riquezas e jóias preciosas. Em troca
dos seus favores, o Intendente lhe satisfazia os desejos mais extravagantes,
como lhe oferecer uma imensa galera numa praia artificial ou lhe erguer uma
capela particular, pois a igreja oficial era interditada aos escravos. Todas
as despesas e excentricidades atraíram a inveja dos moradores do Arraial, que
denunciaram João Fernandes às autoridades da Corte, causando a sua demissão
e extradição para Portugal. Xica da Silva amargou a perda da proteção do amante
e foi ultrajada pela população do Tijuco, mas reaparece vigorosa, ao final da
história, exercendo os seus dons com o filho do antigo patrão.
A história de “Xica da Silva”, adaptada para o cinema, por Cacá Diegues,
em 1976, não obteve sucesso na televisão, talvez por ter sido exibida pela Rede
Manchete, uma emissora sem os recursos técnicos e financeiros de um império
como a Rede Globo; afinal de contas, a TV Globo permanece no imaginário brasileiro
pelo primor e sofisticação de suas narrativas, incluindo os estilos arrojados
dos novelistas, o rigor e experiência dos diretores, e a contratação de artistas
consagrados no meio da dramaturgia nacional.
A lenda de “Xica da Silva” se mostra fértil no enfoque da discriminação
racial, mas extrapola os códigos de uma ficção historiográfica banal, na medida
em que situa a personagem “Xica da Silva” como sujeito de um discurso
e ação afirmativos em meio às representações sociais excludentes. Enquanto “A
Escrava Isaura” consistia numa projeção do emocional ressentido, que se
liberta das compressões éticas e culturais pela dramatização romântica da luta
dos escravos, “Xica da Silva” subverte os códigos dominantes pelos recursos
do erotismo e da sexualidade. “Xica da Silva” realiza a inversão das
relações de poder e torna o seu amo escravo das suas experiências sexuais. Assim,
a narrativa é animada pelo vigor da libido e pelo fogo sexualizado, que desestabiliza
a lógica da dominação machista.
A dimensão dionisíaca presente na história de Xica da Silva não se esgota na
explosão do erotismo, mas se investe também nas experiências místico-religiosas
advindas da cultura africana e o seu cortejo simbólico, sem culpa e em comunhão
com as forças mágicas da natureza. As imagens de “Xica da Silva” reafirmam
os traços étnicos de um hibridismo cultural que se manifestam no estilo do comportamento,
na linguagem, na ginga do corpo, nas falas e sotaques, e no repertório comunicativo
brasileiro.
É pertinente remontar a esta ficção porque ela mostra o estilo de aproximação
entre as fronteiras raciais do Brasil, pelo viés da cultura, da música e da
sexualidade, ao mesmo tempo em que alerta, para as segregações ainda vigentes
nos espaços da vida social, no campo do trabalho, da educação e na participação
das decisões públicas. Deste modo, “Xica da Silva” se presta a uma reflexão
sobre a cultura, naquilo mesmo que oculta ou deixa à sombra, ou seja, a caracterização
da cidadania do negro ainda em vias de realização. Entretanto, o que permanece
da narrativa de “Xica da Silva” é, de fato, a exibição do modo como a
dimensão orgânica, sensual e vitalista constitui um elemento fundamental na
fabricação da História, e isto não pode ser desconsiderado num enfoque da comunicação,
da cultura e dos modos de sociabilidade do cotidiano.
3. Anayde Beiriz e as revoluções de 30
Dentre as histórias das mulheres míticas, como exibição do “reverso” da
história oficial, ocorre-nos retomar o caso singular de “Anayde Beiriz”,
cuja paixão, serviu também como estopim para a Revolução de 30, na Paraíba.
Anayde Beiriz era uma normalista, poeta, cultivada, amante das artes e da literatura
e era igualmente, a companheira de João Dantas, um jornalista engajado na vida
política de sua época. Sendo uma mulher emancipada para os costumes do seu tempo,
Anayde, perturbou a sociedade conservadora da Paraíba, nos anos 30. Ousou exprimir
uma sensibilidade que chocou o modelo de moralidade prevalente: sua maneira
de se vestir (o uso dos decotes), o corte dos cabelos, “à la garçonne”, as suas
idéias políticas (quando as mulheres não tinham sequer o direito ao voto) e
a maneira de vivenciar o amor livre causaram escândalo. O seu companheiro, João
Dantas, era adversário de João Pessoa, candidato à Presidência da Paraíba. Em
1930, a política brasileira sofreu reviravoltas importantes; historicamente,
a chamada política do “café com leite” dividia o poder entre os Estados de São
Paulo e Minas Gerais, causando o mal-estar dos outros Estados. O bloco político,
do qual a Paraíba fazia parte, interveio nas disputas políticas, que se tornaram
violentas e as questões pessoais se misturaram às questões da vida pública.
A ligação amorosa entre João Dantas e Anayde Beiriz não era bem vista pela hipocrisia
social, uma vez que não eram casados. Eles tinham o hábito de trocar cartas
de amor, que após sua publicação foram consideradas “indecentes” para os costumes
da província. Os inimigos políticos de João Dantas, sob as ordens de João Pessoa,
arrombaram a casa, apropriaram-se da correspondência erótica e publicaram-na.
Eclodiu o escândalo e João Dantas, furioso, matou João Pessoa com arma de fogo.
Este ocorrido, entre outros fatos, serviu de pivô para uma convulsão nacional
que mudou o rumo nas decisões políticas do Brasil. Os grupos políticos se incumbiram
do alarde, ampliaram os fatos e, em seguida, teve curso a Revolução
de 30. Isto é, as cenas da vida privada, pelo viés das relações amorosas, provocaram
uma revirada na ordem das forças políticas nacionais; as quais eram representadas,
de um lado, pelos correligionários políticos de João Pessoa, e do outro lado,
pelas facções que tinham o apoio de João Dantas. Em seguida, João Dantas morreria
em circunstâncias misteriosas e Anayde se mataria na prisão. Hoje, a sua história,
tematizada no teatro, no cinema e na literatura, instiga a pensar sobre a intersecção
entre os fatos da vida privada e da vida pública, no contexto da história nacional.
A encenação da vida de Anayde Beiriz nos chama a atenção para as “dobras do
lado de dentro” da história oficial, isto é, a dimensão do intimismo no contexto
da experiência pública.
Neste sentido, caberia aqui nos reportarmos aos estudos
de Michel Foucault e ao modo como o filósofo sistematiza as formas de consciência
social, acerca do fenômeno do poder. Foucault mostra, por exemplo, que o exercício
do poder não se restringe à esfera do Estado e aos seus aparelhos ideológicos,
nem tampouco se limita à legiferância das instituições; para Foucault, o(s)
poder(es) se dissemina(m) na microfísica da vida cotidiana, nos atos de fala,
na língua, nos ditados populares, nas relações afetivas, enfim, na ordem dos
discursos que se capilarizam, organizando a vida de todo dia (10).
Assim, a história de Anayde Beiriz sensibiliza o público pela potência
vigorosa de uma narrativa, que expõe os nervos do sistema ético-político da
vida burguesa. Pelo viés da intimidade revelada, através da publicação de uma
série de cartas de amor, Anayde, detona o estopim de uma revolução silenciosa,
em que as pulsões eróticas desencadeiam a fúria da sociedade conservadora e
reprimida. A sociedade contemporânea mostra-se mais tolerante para com a modernização
dos costumes e o excesso orgiástico das imagens eróticas na televisão, que de
algum modo, realizam um novo tipo de intervenção nos estilos de subjetividade
e sexualidade dos indivíduos.
No que respeita às relações entre a mídia e o erotismo, encontramos
posições diversas, como a do sociólogo Jean Baudrillard, sugerindo que a repetição,
clonagem e multiplicação das imagens sexualizadas desviam os sujeitos de suas
orientações no campo do desejo (11). O assunto se presta a controvérsias e,
evidentemente, remete sempre aos tipos de educação sexual e à predisposição
dos indivíduos para a contemplação do erótico, em suas formas visíveis, insinuadas,
metafóricas ou hiperbolizadas.
Em todo o caso, a história de “Anayde Beiriz”, no livro, no cinema
ou na televisão, afirmativamente, mantém uma certa radicalidade ética, que se
mantém expressiva, no que concerne à interpenetração de limites tão tênues entre
a experiência da vida intimista e da vida publicizada.
4. Dona Beija, a Feiticeira de Araxá”
Muitas histórias
de mulheres se tornaram lendárias e apresentam um repertório importante na história
da cultura brasileira. Estas lendas nos incitam a repensar sobre as formas de
preservação, subversão e reinvenção da História. O exame da lenda de “Dona
Beija”, transposta para o vídeo por Wilson Aguiar Filho, em 1986, estimula
a uma reflexão sobre o modo como os audiovisuais permitem uma reinterpretação
histórica por meio de recursos intertextuais e semióticos. A telenovela “Dona
Beija”, mostra como a TV permite recuperar o sentido das narrativas históricas
a partir da significação visível de algumas arestas do cotidiano, ausentes da
representação livresca.
Estávamos habituados a uma descrição da duração do tempo,
do trabalho e dos dias pela ótica da cultura hegemônica que, de uma maneira
genérica é reprimida, ressentida, reativa e preconceituosa. As máquinas de visão
trouxeram à visibilidade pública os detalhes intimistas, privados e secretos
da vida pessoal dos personagens ilustres; a televisão, através das telenovelas
e minisséries, libertou a porção dionisíaca da História do Brasil, via de regra,
confinada a uma demonstração apolínea e racionalista dos marcos e ocorrências
oficiais. A observação da vida social e política, por um viés diferente da história
oficial, isto é, através dos discursos e imagens da intimidade ou de um olhar
atento à sensibilidade feminina, traduz uma concepção dionisíaca da História.
Certamente a figura de “Dona Beija” faz parte da história das
riquezas do Estado de Minas de Gerais, e do Brasil, e se tornou uma telenovela
popular em diversas partes do mundo. A adaptação do livro “Dona Beija, a
Feiticeira de Araxá”, de Tomás Leonardo & Carlos Heitor Cony, para a
televisão, em 1986, foi uma realização importante, dentre outras coisas porque
atualizou os símbolos que animam o imaginário universal.
No século XIX, em Araxá, cidade de Minas Gerais, havia uma moça chamada Ana
Jacinta de São José, que se enamorou de um rapaz chamado Antonio. Mas desde
cedo a jovem atraíra a atenção de Mota, político importante, que se fez o seu
“protetor”. Após o retorno de Mota para Portugal, a moça tornou-se objeto de
falatórios. Os amigos e familiares desprezaram Ana Jacinta, que decidiu abandonar
Araxá. Com o passar do tempo, Antonio se casou com outra, e Jacinta, seu antigo
amor, retornou a Araxá. Entretanto, as damas da sociedade se opuseram ao seu
retorno, considerando-a indesejada. Sendo bonita e atraente, Jacinta decidiu
se prostituir. Dali em diante, ela se tornaria “Dona Beija”, com o apoio
dos homens ricos e poderosos de Araxá. Ajudada por seus amigos, construiu uma
magnífica casa de campo, com o intuito de ali instalar um luxuoso bordel, conhecido
como a “Chácara do Jatobá”. Beija decidiu dormir a cada dia com um homem diferente
se este lhe pagasse bem, mas à condição de poder decidir com quem dormir. Ela
se tornou célebre, atraindo os homens das regiões mais remotas, para conhecer
os seus encantos; estes a cobrirão de dinheiro, jóias e pedras preciosas.
A lenda conta a existência de uma “Fonte da Jumenta”, água miraculosa, que concederia
juventude, saúde e beleza à Dona Beija. Através deste recurso Dona Beija conquistou
os homens importantes de Araxá e alhures. Atualmente, a cidade de Araxá é famosa
devido às águas termais, fonte de vigor e rejuvenescimento.
Conta-se que Beija jamais esqueceu Antonio e que permaneceu sempre o seu grande
amor. Uma noite, movido pela embriaguêz, invadiu a “Chácara do Jatobá” e Beija
terminou por escolhê-lo, dormiu com ele, engravidou e deu luz a uma menina.
Contudo, Antonio jamais abandonou a sua esposa, Aninha. Há muito tempo, o pai
de Antonio, revoltado com o caso amoroso entre o seu filho e Dona Beija, adoecera
e, antes de morrer, pediu-lhe para que casasse com Aninha. A vontade do pai
seria realizada, mas Aninha, era infeliz, pois sabia que Antonio preferia Beija.
Após a morte do pai, a mãe de Antonio cultivara um ódio profundo por Beija,
pois sabia que esta era a causa dos desregramentos do filho. Antonio, não podendo
aceitar o sucesso de Beija junto aos outros homens, desencoraja-se e abandona
o trabalho na fazenda da família. A mãe de Antonio, um dia, deu um veneno a
um dos escravos de Beija, para que este a matasse. Mas, querendo ter Beija nos
braços, o escravo mudou de idéia e lhe contou a verdade. Beija o aceitou na
cama e ele salvou a sua vida. Em seguida, foi Beija quem ordenou para que matassem
Antonio. Ela, por causa disso, foi à justiça, mas seria libertada com a ajuda
dos seus fiéis amigos. Enfim, Beija decidiu partir de Araxá com a filha e, assim
nasceu uma lenda.
O que interessa nessa “ficção histórica” é a maneira como uma parte da História
do Brasil pôde ser contada através do componente emocional, que mobiliza toda
a vida em comunidade. Ao inverso da história oficial de uma cidade de Minas
Gerais, contada pelo viés dos fatos políticos, históricos e econômicos, são
os afetos, as emoções, as paixões que dinamizam a história narrada pelo viés
da ficção. As inclinações do padre, do banqueiro, do militar e do poeta, em
torno do personagem maldito em que se transformou Dona Beija, são ocorrências
que nos permitem enxergar outra maneira de se narrar a História. O que mostra
a telenovela, na história da “vida em flor de Dona Beija” é a apresentação social
sem véus, ou seja, a visão de uma sociedade, em que as decisões públicas são
tomadas nos bordéis (o que ocorre também em “Gabriela” e em “Roque
Santeiro”).
“Dona Beija” representa o que caracterizamos como imagens dionisíacas
no contexto da ficção. Constitui uma espécie de arquétipos da mulher liberada
que, ainda em nossos dias, demarca a convergência de sensibilidades em torno
de uma ética autônoma, particular e dissonante, no conjunto das moralidades
prevalentes de cada época. Talvez a história de “Dona Beija” não tivesse
tal repercussão se não fosse inscrita num contexto social de moralidade fechada,
coercitiva, burguesa; entretanto, a inscrição da história num contexto de interesses
tão divergentes, imprime o relevo da narrativa.
O público participa dos encontros e desencontros entre Antonio e Dona Beija
porque simplesmente a paixão amorosa -mesmo virtual- fala às profundezas da
alma, anima o desejo de estar junto, e de sonhar. Num certo sentido, esta história
recupera o repertório mítico da paixão amorosa em Tristão e Isolda, a matriz
de todas as histórias de amor (12).
A transgressão do código ético, tal como esta se inscreve no
universo ficcional, é excitante porque -simbolicamente- estremece as amarras
de um contrato social que parece arbitrário. Mesmo o ato de matar o amante infiel,
abala a sensibilidade do público porque circunda as inquietações do espírito,
de modo latente, ou seja, é um ato familiar e conhecido na intimidade do desejo
do telespectador. Somos -virtualmente- cúmplices deste crime, mesmo como possibilidade
remota. Conhecida, íntima e -ao mesmo tempo- estranha, é uma pulsão que faz
parte integrante das paixões da alma. Um olhar antropológico sobre estas imagens,
pode nos fazer compreender os fenômenos extremos, que conferem sentido à vida
e, ao mesmo tempo, não cessam de ameaçá-la.
5. Hilda Furacão
Esta novela de Roberto Drummond,
escrita em 1993, adaptada pela Rede Globo, no ano 2000, de certa maneira assinala
um ritual de passagem das jovens gerações dos anos dourados (50/60) à perda
das ilusões pelas gerações dos anos 60/70. Trata-se de um romance de costumes
que se particulariza pelo percurso insólito da personagem de Hilda, que decide
abandonar o noivo no altar, indo se instalar num bordel em Minas Gerais.
“Hilda Furacão” tem traços da peça de Jean Genet, “O Balcão”
(1960), em que a imaginação da vida política se mostra às avessas; por outro
lado, suas imagens parecem saídas dos quadros de Toulouse Lautrec, delineando
os aspectos pitorescos dos bordéis; como os romances de Jorge Amado, sua representação
do cotidiano contempla os personagens marginais, incluindo prostitutas, travestis,
gigolôs, boêmios e jogadores, que se inscrevem num cenário urbano brasileiro,
em fase de modernização.
Como um retrato excêntrico e hedonista do cotidiano brasileiro, a minissérie
“Hilda Furacão” exibe a atmosfera dos desencontros amorosos, temperados
pela eclosão dos acontecimentos políticos. As imagens e figuras de “Hilda
Furacão” se inscrevem num ambiente tenso, marcado pelas paixões revolucionárias.
Ali se projetam imagens extremas, entrecortadas por encontros e desencontros,
que relembram a paixão amorosa na fábula de Tristão e Isolda, mas também, a
história de amor de Marius e Cosette, em plena “guerrilha”, nas páginas de “Os
Miseráveis”, obra memorável de Victor Hugo (1862).
Trata-se de uma narrativa fecunda que pode dar margem a diversas interpretações;
contudo, aqui observamos alguns traços específicos, que podem nos auxiliar em
nosso intuito de esboçar uma interpretação de determinados aspectos da cultura
brasileira, pelo viés da estética e das mitologias.
Como fio condutor desta ficção seriada, encontramos o mistério de uma
jovem da alta sociedade mineira, que experimenta uma mudança radical indo morar
num bordel. Contudo, o que se percebe, a partir de um olhar mais apurado é um
conjunto de tramas que expressam as pulsações políticas no cotidiano do Brasil,
nos anos 60/70. O bordel, que se coloca no centro da cena, em “Hilda Furacão”,
funciona como um tipo de metáfora para a desordem da natureza no contexto da
ordem civilizacional. De maneira análoga, a imagem do “bordel” aparece como
elemento dinâmico e poético na prosa do filósofo pernambucano Jomard Muniz de
Britto, em “Bordel Brasilírico Bordel” (1992); isto é, como uma tradução
alegórica da desordem, que faz parte do próprio contexto social, político, econômico
e cultural brasileiro, ou seja, a face dionisíaca da sociedade brasileira.
Num outro registro, a minissérie “Hilda Furacão” mostra alguns
aspectos do “imperialismo sedutor”, expresso pela usina de imagens de Hollywood,
que funcionam (ainda) como tentáculos fascinantes para as gerações de jovens,
ávidos pelo brilho das celebridades do show business (e isto também nos leva
a entender o fascínio exercido pelo repertório de imagens fabricado pela Rede
Globo, sobre o público juvenil). Por exemplo, o personagem de Aramel encarna
a vontade dos jovens, em sua ambição narcísica de se tornar um astro de Hollywood,
o que se contrasta, com outros personagens, como o noviço Malthus, em conflito
entre a fé e a paixão amorosa ou com o jornalista Roberto (alter ego do autor),
que afinado com o espírito do seu tempo, mostra-se preocupado antes com as idéias
comunitárias e voltado para as utopias de um projeto coletivo.
Uma percepção mais aguçada pode apreender nesta minissérie um microcosmo
explosivo, em que se entrelaçam as paixões políticas, religiosas e sexuais.
As linhas de subversão do romance (e da minissérie) se inscrevem nos interstícios
da linguagem e estesia de uma narrativa, cujos fios de alta tensão se emaranham
nas ligações amorosas entre uma jovem meretriz e um rapaz religioso; o Eros
furioso reaparece nesta ficção arrebentando as certezas e ideologias. Um expediente
análogo será reprisado numa minissérie exibida posteriormente pela Rede Globo
“Aquarela do Brasil” (2000), em que os jogos de tensão se expressam pelo
viés das ligações entre um militar e uma cantora de rádio, na época da ditadura
de Vargas; ou seja, um amor mundano que irrompe, subvertendo o contrato entre
os poderes da burguesia industrial e as elites das forças armadas. De maneira
similar, a irrupção das imagens dionisíacas se farão presentes na história de
“Chiquinha Gonzaga”, que não se submete às pressões do matrimônio e revoluciona
sua ambiência social, escolhendo as experiências amorosas com um rapaz mais
moço. Além disso, Chiquinha Gonzaga projeta, no repertório de suas composições
musicais, os símbolos e sinais da sensibilidade popular e mestiça; este recurso,
em última instância, contribui para ampliar as arestas culturais do país, na
medida em que as letras, melodias, ritmos e sonoridades da música popular traduzem
as diversas modulações da sensibilidade brasileira, incluindo os diferentes
níveis acústicos e discursivos do Brasil.
6. Notas Bibliográficas
(1) As Bacantes aparecem na peça homônima de Eurípides (sec.V, a.c.), na Grécia clássica, como as seguidoras do cortejo do deus Dionísio. Segundo o poeta trágico, as Bacantes (Ménades ou Thyades) enfurecidas, despedaçam Penteu, o Rei de Tebas. Tal simbolismo encarna o espírito de contestação de Eurípides; este autor, crítico com relação aos deuses e heróis Gregos, compôs sua obra numa época de decadência de Atenas, quando as classes sociais contestavam as tradições, as leis, as instituições e a moral herdada dos antigos. Ao invés de celebrar a grandeza dos heróis lendários, preferia descrever as paixões humanas em sua verdade e seu despojamento. Ver também JEANMAIRE, H. Dionysos, Histoire du culte de Bacchus. Paris: Payot, l991 (l951).
(2) Acerca do dionisismo no contexto da vida cotidiana, ver MAFFESOLI, M. A sombra de Dionísio, Contribuição a uma sociologia da orgia. Rio: Graal, 1985.
(3) PAGLIA, C. Personas Sexuais, Arte e Decadência de Nefertite a Emily Dickinson, S. Paulo: Companhia das Letras, 1992.
(4) Cf. DARAKI, M. Dionysos et la Déesse Terre. Paris: Champs-Flammarion, 1994.
(5) Ver, a propósito, PAGLIA, Camile. Vampes e Vadias. S. Paulo: Cia das Letras, 1990.
(6) Sobre a terminologia “cultura das mídias”, ver o livro homônimo de SANTAELLA, Lúcia. S.Paulo: Experimento, 1996; num outro contexto, ver também, FAUSTO NETO, A; PINTO, M. (org.) Os indivíduos e as mídias. Rio: Diadorim, 1996.
(7) Sobre o erotismo e a televisão, consultar SODRÉ, M. Máquina de narciso. Rio de Janeiro: Achiamé, 1984; e para uma leitura amistosa da TV, veja-se MACHADO, A. A televisão levada a sério. S.Paulo: SENAC, 2000.
(8) Sobre a evolução das diferentes formas de controle sobre a sexualidade no Ocidente, ver FOUCAULT, M. História da Sexualidade, vol. 1, A vontade de saber. Rio: Graal, 1984; Neste sentido, vide igualmente, ARIÈS, P; BÉJIN, A. (Orgs.) Sexualidades Ocidentais, Contribuições para a história e para a sociologia da sexualidade. S.Paulo: Brasiliense, 1985 (1982).
(9) Com respeito às minisséries ver o trabalho de Narciso LOBO, Ficção e Política. Manaus: Editora Valer, 2000.
(10) Cf. FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio: Graal, 1984; __ L’ordre du Discours. Paris: Gallimard, 19[--].
(11) BAUDRILLARD, Jean. “ ‘Mass media’, sexo e lazeres”. In __ BAUDRILLARD, J. A sociedade de consumo. Lisboa: p. 153-318.
(12) FRANCO JUNIOR, Hilário. “A vinha e a rosa: Sexualidade e simbolismo em Tristão e Isolda” in JANINE RIBEIRO, Renato (Org.) Relembrar Foucault. S. Paulo: Brasiliense, 1985, p. 153-185.
01.09.2001