Ok marcianos! Vocês venceram!


Gisela Swetlana Ortriwano*



“No início do século XX o mundo estava sendo atentamente vigiado por inteligências superiores à do homem, mas igualmente maléficas. Enquanto os humanos desempenhavam suas atividades quotidianas eram observados, tão minuciosamente quanto o homem com seu microscópio pode examinar as criaturas que se multiplicam em uma gota d’água...”


Ouvintes de rádio em pânico tomam drama de guerra como verdade

New York Times, 01.11.38


Nove horas da noite de 30 de outubro de 1938. Durante 40 minutos, a CBS - Columbia Broadcasting System - e suas afiliadas de costa a costa, dentro do programa Radioteatro Mercury, transmite A invasão dos marcianos. Adaptada da obra A guerra dos mundos de H. G. Wells (1866-1946), centenas de marcianos chegam em suas naves extraterrestres a uma pequena cidade de New Jersey chamada Grover’s Mill. Os méritos públicos da adaptação, produção e direção do programa foram para sempre creditados ao então jovem e quase desconhecido ator e diretor de cinema Orson Welles (1915-1985). E a história do rádio passou a ter um antes e um depois...


Guerra falsa no rádio espalha terror pelos Estados Unidos

Daily News, 01.11.38


Pânico: marcianos virtuais atacam terráqueos reais


No especial do Raditeatro Mercury da véspera do Dia das Bruxas de 1938 - denominado Mercury’s Halloween Show -, através dos sons, foi representada uma invasão de marcianos do ponto de vista de uma cobertura jornalística. Todas as características do radiojornalismo usadas na época - às quais os ouvintes estavam habituados e nas quais acreditavam - se faziam presentes: reportagens externas, entrevistas com testemunhas que estariam vivenciando o acontecimento, opiniões de especialistas e autoridades, efeitos sonoros, sons ambientes, gritos, a emotividade dos envolvidos, inclusive dos pretensos repórteres e comentaristas, davam a impressão de um fato real, que estava indo ao ar em edição extraordinária, interrompendo outro programa, o radioteatro previsto.1 Na realidade tratava-se do 17º programa da série semanal de adaptações radiofônicas realizadas por Orson Welles e o Radioteatro Mercury (ou Teatro Mercury no Ar) que explorava as técnicas jornalísticas com a ambientação sonora requerida.


“O impacto foi tal que mesmo Orson Welles se surpreendeu quando milhares de pessoas saíram às ruas, angustiadas e em pânico; algumas, desejosas de testemunhar um fato que, acreditando verdadeiro, lhes parecia significativo e histórico.”2


A CBS calculou na época que o programa foi ouvido por cerca de seis milhões de pessoas, das quais metade passaram a sintonizá-lo quando já havia começado, perdendo a introdução que informava tratar-se do radioteatro semanal. Pelo menos 1,2 milhão tomaram a dramatização como fato verídico, acreditando que estavam mesmo acompanhando uma reportagem extraordinária. E, desses, meio milhão tiveram certeza de que o perigo era iminente, entrando em pânico e agindo de forma a confirmar os fatos que estavam sendo narrados: sobrecarga de linhas telefônicas interrompendo realmente as comunicações, aglomerações nas ruas, congestionamentos etc.

Três cidades foram paralisadas pelo medo. Pânico ocorreu principalmente em localidades próximas a Nova Jersey, de onde a CBS emitia e Welles situou sua história. Houve fuga em massa e reações desesperadas de moradores de Newark e Nova York (além de Nova Jersey), invadidas pelos marcianos da história. “No bairro negro de Harlem, em Nova York, centenas de pessoas saíram às ruas gritando que Roosevelt (então presidente dos EUA) havia conclamado a população a que ‘fosse para o norte. Estão se aproximando as máquinas de Marte.’”3


“O pânico se espalhou entre os ouvintes, especialmente daqueles que casualmente rodavam o dial à procura de um programa interessante, e passaram a acreditar naquelas ‘notícias’ como verdadeiras. Foram estes espectadores casuais os que mais se envolveram, como mostrou o noticiário da época.”4


O conceito de rotatividade de audiência, que hoje faz com que as notícias sejam repetidas à exaustão, ainda não era cogitado. Na prática, estava presente. A recepção era coletiva, dando margem à existência de uma comunidade de ouvintes que, diversamente da recepção intimista e individualizada que caracteriza o rádio atual, facilitava - e até incentivava - os comentários interpessoais, a troca de informações, experiências e emoções. Ainda hoje, a grande maioria dos acontecimentos importantes chegam primeiro pelo rádio, seja direta ou indiretamente: quem avisou, ficou sabendo pelo rádio.


A peça radiofônica é de autoria de Howard Koch com a colaboração de Paul Stewart, baseada na obra de H.G. Wells, e ficou conhecida como “rádio do pânico”.5 O roteiro foi reescrito pelo próprio Orson Welles que, além de diretor, foi também o produtor junto com a Mercury Players e, na dramatização fez o papel de professor da Universidade de Princeton que liderava a resistência à invasão marciana. “Orson Welles misturou elementos específicos da estética radioteatral (o ficcional, a dramatização) com os existentes nos noticiários da época (o verossímil, a realidade convertida em relato)”.6


“A fixação por parte dos marcianos de suas máquinas destrutivas, a total interrupção das comunicações e a derrota de milhares de ‘defensores’ pegou o público ouvinte de surpresa. Durante um total de 40 minutos, centenas de milhares de ouvintes atônitos acreditaram que os marcianos haviam ocupado várias regiões do país, dizimado ao acaso centenas de pessoas e incendiado vilarejos inteiros com seus ‘raios de calor’. Os ouvintes da rede CBS reagiram como esperado: eles entraram em pânico.”7


Herbert George Wells foi um dos precursores da literatura de ficção científica. A Guerra dos Mundos, publicado em 1898, sob a influência das idéias do astrônomo Schiaparelli, era um de seus livros mais conhecidos, com o palco da ação da história ambientado em Londres, Inglaterra. Orson Welles apressou o ritmo da trama. No original, os episódios se desenvolvem ao longo de vários dias. Na adaptação, tudo acontece em 40 minutos, criando uma poética para o rádio: “Revelou a força de fixação e a credibilidade devotadas às notícias transmitidas por rádio, mostrou a capacidade de mexer com a psique do espectador quando se trabalha com o ritmo de sua respiração (descansos quebrados por notícias quentes, novamente substituídas por descansos)”.8


“Ao invés de entreter (como parecia anunciar no início do programa, ao apresentar música de orquestra), o programa travestiu-se de informativo (o que também não era). Brincou de jornalismo, jogou com a noção de tempo (a certa altura da peça, quando os ouvintes ainda acreditavam que o tempo da emissão decorria naturalmente, o narrador - o astrônomo Pierson - num longo monólogo começa a ler seu diário da invasão e menciona a passagem de vários dias, quando para o ouvinte tudo passara em pouco mais de uma hora (nesse momento, a farsa se revela); falou de congestionamentos de trânsito (que ademais aconteciam mesmo, provocados pelo programa); e abriu o programa lendo um boletim meteorológico.”9


Segundo Jacques Chambron, agente literário de H. G. Wells nos EUA, “a Columbia tinha obtido permissão de dramatizar uma irradiação mas não fora explicado que a dramatização seria feita com uma liberdade que equivalia a uma remodelação da obra, tornando-a diferente”.10



Limites da tecnologia, a presença real: as guerras do rádio


O radioteatro começa com sua abertura habitual, interrompido pelo anúncio da apresentação de um suplemento musical, bem ao estilo da época (inclusive se, por algum motivo um programa não pudesse ser apresentado, entrava o suplemento para cobrir a lacuna) e pela prestação de serviço, o boletim meteorológico. O assunto central de A Guerra dos Mundos foi sendo introduzido aos poucos. Interrompendo a música de tempos em tempos, são anunciadas as novidades, cada vez mais ameaçadoras. A pretensa transmissão jornalística vai ocupando cada vez maior espaço até que os flashes se tornam uma extraordinária que cancela o suplemento musical que, por sua vez, cancelava o radioteatro. Um locutor simula passar notícias, um repórter entrevista especialistas e autoridades, outro finge estar presente no palco da ação presenciando ao vivo os efeitos produzidos pelos marcianos invasores em uma das regiões mais povoadas dos Estados Unidos.

Formato jornalístico foi o padrão utilizado por Welles para a introdução das informações, aproveitando a credibilidade que este desfrutava, tudo fundamentado nos recursos reais disponíveis em 1938 e aos quais os ouvintes estavam acostumados. A adaptação tomou por base a análise acurada da realidade econômica, social, tecnológica e do comportamento humano. O padrão dramático foi utilizado para o desencadeamento da obra radiofônica. O desenvolvimento tecnológico permitia as transmissões ao vivo11 desde os anos 20. Merece destaque a introdução de reportagens externas, uma vez que possibilitavam as transmissões dos acontecimentos jornalísticos ao vivo, diretamente do palco da ação.


“No final de 1927, o rádio tem a satisfação de participar de um grande momento histórico: a transmissão da chegada de Charles Lindbergh à Washington, em seu próprio avião. A CBS e a NBC registraram o fato, realizando a primeira transmissão diretamente do palco da ação.”12


Outras inovações importantes seriam adotadas ainda nos anos 30. Entre elas, o telefone tornou-se um instrumento fundamental para o sucesso das coberturas radiojornalísticas.


“Os repórteres podem informar de qualquer local e seu relato coincide, em muitos casos, com a própria ocorrência do fato. Graças ao telefone, foram feitas coberturas jornalísticas que ficarão na história, como o seqüestro do filho de Charles Lindbergh; são produzidas importantes reportagens, como ‘Nós, o povo’ e informes e reportagens sobre a guerra espanhola, algumas transmitidas ao vivo do palco da ação.”13


Reportagens com a participação de vários repórteres, falando de diferentes locais, também eram realizadas. O rádio e seu jornalismo faziam parte do cotidiano dos ouvintes na década de 30.


“Em 1938, a CBS norte-americana, em função da ‘Crise de Munique’, realizou o diálogo informativo com a participação de correspondentes de cinco cidades: Londres, Viena, Berlim, Paris e Roma.” 14


O radiojornalismo torna-se mais complexo e ganha maiores espaços. As transmissões passam a ter melhor qualidade sonora aos avanços tecnológicos e à própria necessidade de informar a população que se acostumara a receber as notícias em primeira mão. A credibilidade conquistada pelo rádio era indiscutível. Não se tratava mais de uma novidade fascinante, de um modismo, mas de uma necessidade. As emissoras passam a montar suas próprias estruturas de informação e a trabalhar com fontes especializadas, não dependendo mais dos veículos impressos e suas agências de notícias para poder informar. O rádio conquista espaços mas pouco sabe do papel que desempenha na vida dos ouvintes.

A partir de meados dos anos 20, a concorrência com a imprensa já era bastante evidente e a rivalidade começa a ficar cada vez mais acentuada. Também os meios impressos percebem, logo, a potencialidade jornalística do rádio e tratam de engendrar medidas procurando preservar para si o direito de informar.

Entre 1923 e 1940, o rádio, nos Estados Unidos, defrontou-se com dois problemas, resolvidos posteriormente a seu favor: um, relacionado com a transmissão de músicas (gravações versus apresentações ao vivo) e, outro, que nos interessa particularmente, com a possibilidade de emitir boletins noticiosos. A transmissão da invasão marciana de 1938 respeitou a marca deixada pelas duas guerras do rádio no formato dos programas.

Com os avanços do rádio, os jornais impressos norte-americanos começaram a perder anunciantes, fato que se agravou com a inclusão de noticiários na programação. Assim, no início dos anos 30, as agências de notícias (principalmente a Associated Press, a United Press e a Internacional News Service) deixaram de fornecer seus serviços às emissoras radiofônicas. Em sua maioria, as agências noticiosas eram controladas por órgãos de imprensa e o rádio perdia uma fonte de notícias fundamental para o desempenho de suas funções.

Em dezembro de 1933, foi fechado um acordo entre as emissoras e as empresas jornalísticas, baseado em três itens: os programas de notícias no rádio teriam cinco minutos de duração e duas edições diárias; as emissoras utilizariam a agência Press-Radio Bureau, constituída em 01.03.1934 especialmente para atender ao rádio; os programas de notícias não poderiam ser patrocinados.15

Desvantajoso para o rádio, esse acordo não foi cumprido totalmente. Algumas emissoras formaram suas próprias agências de notícias (como a Transradio Press Service e a Columbia News Service) e, a partir de 1935, a United Press e a International News Service (que, posteriormente, formaram a UPI - United Press International) passaram a fornecer material para o rádio. Apenas a Associated Press manteve-se contra até 1939. Em 1940, foi levantada a proibição dos programas informativos serem patrocinados publicitariamente.

Os principais motivos que levaram ao término da disputa foram o fato de o rádio conquistar espaços (aumento do número de emissoras, de investimentos publicitários e de audiência) e de muitas empresas jornalísticas passarem a explorar, também, a radiodifusão de forma sistemática.16



A estética do formato jornalístico


Os formatos radiojornalísticos conhecidos e bem sucedidos em 1938 foram utilizados com rigor. Estão presentes aqueles que mais atraiam o ouvinte norte-americano, reunindo as características próprias de qualquer mensagem radiofônica.

Na peça há uma mescla de formatos entre o padrão dramático do radioteatro e o padrão dos serviços de informação jornalística construindo, assim, um novo modelo estético radiofônico. Welles misturou elementos específicos da estética radioteatral (a ficção, a dramatização) com os elementos presentes nos noticiários (o verossímil, a realidade convertida em relato). Na apresentação comemorativa do Dia das Bruxas de 1938, os acontecimentos se sucediam, num crescendo, desde os relativamente críveis até os totalmente inacreditáveis. As primeiras notícias foram mais ou menos verossímeis, apesar de não usuais, como o informe meteorológico anunciando “uma ligeira perturbação atmosférica de origem indeterminada” ou “várias explosões de gases incandescentes, produzidas a intervalos regulares, no planeta Marte”. Como se uma viagem interespacial dessa magnitude pudesse ser feita em minutos. Emocionalmente envolvido, o ouvinte não percebe, mesmo que tenha os conhecimentos para tal, as incoerências da narrativa.

Nos dias atuais, em tempos em que há quantidade muito maior de informações disponíveis, facilidade para acesso a fontes diversificadas etc., ainda convivemos com as barrigadas da imprensa. A história do boimate em meados dos anos 80 merece citação. Alguns órgãos de imprensa brasileiros caíram em uma brincadeira de 1º de abril norte-americana e publicaram que foi conseguido o cruzamento de tomates com bovinos, apresentando inclusive depoimentos de renomados cientistas brasileiros sobre a façanha. Jornais e revistas (que são meios impressos, com documentação disponível em mãos de leitores), relutaram em admitir o logro mesmo depois da história ter sido desmascarada por outros órgãos de imprensa...

Continuamos, no dia-a-dia do jornalismo, a utilizar uma linguagem inadequada e, muitas vezes, o jornalista não entende o assunto que está abordando, apenas passando adiante o que ouviu. Há molduras e pedestais que isolam o jornalismo e precisam ser derrubados para que a informação se integre com os demais gêneros de programas em que esteja presente, de acordo com a linha da emissora e o público - segmentação - ao qual é destinada, sem confundir realidade com ficção.

Os especialistas ouvidos no enredo de Welles são mediadores que, com riqueza de informações, explicam o acontecimento. O astrônomo é um tipo de cientista que tem especial importância no relato, aparecendo sob diferentes personagens que confirmam os dados e avaliam a situação durante o transcorrer da ação. Outros especialistas são chamados para sustentar a tensão argumentativa da transmissão e entram quando a narrativa exige a presença de uma ação social organizada, aparecendo então as autoridades constituídas: comandante de polícia, vice-presidente da Cruz Vermelha, Capitão da Marinha, Secretário do Interior dos EUA etc.


“O horror do ouvinte é compartilhado pelo testemunho ocular. Quando o próprio cientista se sente perplexo, o leigo reconhece a inteligência extraordinária das estranhas criaturas. Não é possível dar uma explicação sobre o acontecimento. A resignação e a desesperança do Secretário do Interior, ao aconselhar que ‘depositemos nossa fé em Deus’, não indicam uma direção efetiva frente aos acontecimentos.”17


A narrativa utiliza terminologia científica, ouvindo vários cientistas que reforçam as idéias expostas, confirmando o inusitado e surpreendente do evento. Narrado por locutor de estúdio e repórteres, vai em crescendo emocional conforme os acontecimentos se desenrolam, reforçado por ambientações sonoras e descrição de locais e objetos que levam o ouvinte a criar imagens mentais. A racionalidade científica é aliada à pretensa imparcialidade do jornalista e à atuação organizativa das autoridades. Em contraposição está a emocionalidade das testemunhas populares. Até que o quadro geral da situação se torne claro, a emocionalidade e descontrole vão tomando conta de todos os envolvidos. Talvez o clímax desse crescendo esteja no momento em que o cientista admite não saber o que acontece... há fatos que a ciência não explica.


“Todos estes atores da trama radiofônica entram em cena a partir de um dos recursos utilizados pelos noticiários: a entrevista jornalística. Ou seja, o diálogo entre os locutores que comandavam o programa do estúdio e os entrevistados que, fundamentados nos conhecimentos de suas especialidades, emitiam opiniões sobre a avassaladora invasão marciana à Terra.”18


O timing é correto, tanto das informações jornalísticas como da ambientação sonora. Na época, o rádio era realizado sem muitos dos recursos técnicos atualmente disponíveis. Ao vivo, sem gravação prévia, os efeitos produzidos no momento, no próprio estúdio, a partir dos mais variados materiais, exigiam planos de som muito bem planejados e executados. Os sustos são não apenas informativos: os efeitos sonoros cumprem papel fundamental.


“O resultado é uma série de intervenções que aguçam a audição, e que vão de simples aplausos, gritos e sirenes de carros de polícia, a silêncios e murmúrios da multidão, soluções intuitivas para alcançar uma variedade de espaços radiofônicos, determinados por uma conjunção de distâncias do microfone, sobreposição de vozes e silêncios.”19


A cobertura em si, jornalisticamente correta quanto aos procedimentos, é um fenômeno de abrangência geográfica, possível com a tecnologia disponível na época nos EUA, onde as redes de rádio estiveram presentes desde o início,20 assim como eram comuns as unidades móveis e o uso do telefone nas transmissões jornalísticas.

No final do programa, o narrador, Dr. Pierson, constatava a morte dos marcianos, vítimas de microorganismos terráqueos, contra os quais não tinham defesa. Os terríveis marcianos foram vencidos pelo seu próprio corpo. Mas essa notícia, na peça, só foi dada quando os ouvintes já tinham vivenciado o pânico.

Esses modelos são utilizados ainda hoje, por exemplo, em programas policias, que já fizeram muito sucesso no rádio e hoje estão à granel na televisão. De maneira geral, em coberturas jornalísticas de eventos que envolvem comoção pública, o padrão continua presente e é explorado à exaustão por muitas emissoras que têm no sensacionalismo seu principal trunfo. A questão ética parece ficar esquecida. Basta pensar em casos como a cobertura da doença e morte de Tancredo Neves (21.04.1985), a morte do piloto Ayrton Senna (01.05.1994) ou dos componentes do conjunto musical Mamonas Assassinas (03.05.1996), entre tantos outros.

Lembrar das coberturas esportivas que os speakers brasileiros faziam desde os primeiros tempos do rádio também é ilustrativa: se a condição técnica ou econômica não permitia, criava-se uma transmissão virtual, simulando a presença do narrador no palco da ação. Ou então, um evento virtual, como os jogos inventados para o 1º de abril, em que resultados inverossímeis eram criados visando a deixar os torcedores inconsoláveis. Desmentidos, às vezes, dias depois... Que o diga Nicolau Tuma, o Speaker Metralhadora!21

O modelo parece ser tão promissor, motivando e cativando o ouvinte, que é utilizado com muita freqüência pelos programas políticos que, sob o formato jornalístico, com repórteres, comentaristas e locutores (que podem ser verdadeiros ou representados por atores), apresentam suas idéias e programas partidários, ouvindo especialistas e trazendo o palco da ação.


E atenção!!! Em edição extraordinária...


Quanto à forma de difusão das informações a invasão começa com o flash e termina como uma edição extraordinária, em que as mensagens são estruturadas rigorosamente em função da oportunidade, conteúdo e tempo empregado na emissão. Resumidamente, a categoria flash pressupõe um acontecimento importante que deve ser divulgado imediatamente, em função de sua oportunidade mesmo que não se conheça todos os dados do fato. A edição extraordinária também se refere a acontecimentos importantes, cuja divulgação é oportuna, interrompendo qualquer programa. Mas, nesse caso, a notícia já é apresentada com pormenores, sendo mais longa. De acordo com a importância do fato, a emissora pode interromper toda a sua programação e ficar informando sobre o acontecimento enquanto houver novidades a apresentar.

Tanto o flash quanto a extraordinária podem ser emitidos do estúdio ou diretamente do palco da ação, ou seja, o local do acontecimento que deu origem à notícia. O texto pode ser previamente redigido ou emitido de improviso. Em qualquer dos casos, os fatos divulgados podem referir-se a eventos inesperados ou já previstos, mas que devem ser transmitidos no momento de sua ocorrência. A linguagem utilizada é determinativa, aproximando-se das manchetes. Se a transmissão da edição extraordinária é muito longa, a linguagem tende a perder o caráter determinativo, assumindo o aspecto de uma narração do que está acontecendo no momento.22 Esses dois tipos de difusão da informação são mais utilizados por emissoras que têm sua preocupação voltada para o jornalismo de natureza substantiva que envolve a transmissão direta do local do acontecimento. Nem sempre a transmissão, mesmo nesses casos, é direta, ao vivo; sendo emitida do estúdio, é adjetiva.23 No caso, foram utilizadas tanto emissões de estúdio como ao vivo, diretamente do palco da ação, somando a credibilidade do locutor com a dos repórteres/entrevistadores e especialistas/autoridades, enriquecidos pelo som ambiente e a emocionalidade do testemunho ocular do fato.



A invasão marciana no espaço da imaginação


O público sabia, nos Estados Unidos de 1938, que o rádio tem características muito adequadas à transmissão jornalística.24 Algumas delas merecem ser destacadas em função de sua relevância para a discussão da questão do jornalismo radiofônico, formato adotado na adaptação de A Guerra dos Mundos.

O rádio fala e, para receber a mensagem, é apenas necessário ouvir. A linguagem oral pressupõe a presença das virtudes da linguagem coloquial como clareza, objetividade, simplicidade etc. E, apesar de ainda não funcionar efetivamente com dupla mão-de-direção, o rádio nasceu como um meio de comunicação interativo que se viu limitado em sua capacidade bidirecional à medida em que se constituía o sistema econômico de sua exploração. A dupla mão-de-direção permite, por outro lado, o diálogo real entre emissor e receptor. Como norma geral, é preciso criar condições para que se estabeleça um diálogo mental, levando o ouvinte a se tornar participante, a raciocinar junto, a ter condições para compreender e reagir à mensagem que está recebendo, participando interativamente na elaboração da mensagem.

Nos anos 30, o rádio ainda não tinha mobilidade quanto ao receptor (não havia transistor), mas do ponto de vista do emissor, o fato já era conhecido. Com o desenvolvimento tecnológico ficava cada vez mais fácil transmitir de qualquer lugar, podendo acompanhar os acontecimentos diretamente do palco da ação.

A mobilidade - tanto do emissor como do receptor - permitiu que fosse explorada plenamente a característica do imediatismo, de suma importância em se tratando da questão do jornalismo. Os fatos podem ser transmitidos no mesmo momento em que ocorrem, possibilitando ao rádio estar à frente da televisão (cujo aparato tecnológico é mais complexo) e do jornalismo impresso. Um aparelho telefônico (celular, telefone público) possibilita levar ao ar uma mensagem que está sendo elaborada no mesmo momento em que é transmitida. Se, no início, as unidades móveis de transmissão permitiam que as emissoras praticamente se deslocassem para o palco da ação do acontecimento jornalístico, com a tecnologia atualmente disponível o rádio ganhou ainda mais agilidade e baixo custo de produção. A notícia no rádio pode chegar ao ouvinte antes mesmo de ter sua forma final, ainda quase um boato, sendo novidade até para o jornalista que a transmite.

A mensagem precisa ser recebida - e compreendida - no momento exato em que está sendo emitida/transmitida. Não é possível ouvir de novo ou deixar para ouvir mais tarde, como acontece com os meios impressos (lemos e relemos o jornal quando, como e onde nos for mais conveniente e aprazível). A característica da instantaneidade é muitas vezes confundida com a do imediatismo, inclusive em algumas de nossas poucas obras sobre o rádio e o radiojornalismo.

Instantaneidade e imediatismo são características distintas, não se confundem. O imediatismo diz respeito à questão da defasagem temporal entre o acontecimento e sua divulgação. A instantaneidade está intimamente ligada às condições de recepção por parte do ouvinte, simultânea à transmissão, mas não necessariamente à ocorrência (como no caso do imediatismo).

O rádio envolve o ouvinte, fazendo-o participar por intermédio da criação de um diálogo mental com o emissor: é a sensorialidade que se faz presente. O ouvinte visualiza o fato narrado através dos estímulos sonoros que recebe, da entonação vocal, da tonalidade, do ritmo da mensagem. A imaginação é despertada pela emocionalidade das palavras e dos recursos de sonoplastia, permitindo que o receptor dê asas às suas expectativas individuais, à sua imaginação.

A sensorialidade é uma característica que pode trazer resultados benéficos para uma série de tipos de programas (humor, dramatizações etc.). Mas na transmissão jornalística é necessário vigiá-la: qualquer deslize pode levar a reações indesejáveis como pânico, revolta etc. É conveniente conter a imaginação do receptor limitando-a aos fatos, elaborando a mensagem jornalística sob seu aspecto mais racional, evitando a linguagem e a interpretação apelativas que levam, fatalmente, ao sensacionalismo. Se aliamos a esse quadro a sonoplastia adequada, recriando o pano de fundo das transmissões jornalísticas, as imagens mentais serão criadas e o diálogo mental estabelecido, ocorrendo a comunicação.

Cada vez mais, o rádio é visto como um amigo, ou o substituto de um amigo ausente. Por intermédio do diálogo mental, os apresentadores, locutores, repórteres, cantores etc. tornam-se íntimos do ouvinte. É a característica do intimismo: o rádio fala com muita gente ao mesmo tempo, como se falasse com cada um em particular.

A recepção é hoje individualizada e o walkman o receptor preferido. No entanto, a audiência coletiva não pode ser esquecida: nos anos 30, o rádio ainda não tinha as características do intimismo e da recepção individualizada, somente possíveis graças ao transistor e à miniaturização. Era ouvido pelas famílias ou grupos de pessoas reunidos em torno de um único receptor, permitindo que um aumentasse a angústia e a ansiedade do outro, situação que colaborava na geração do pânico, reforçando a ação: os que não estavam ouvindo a transmissão iam sendo informados pelos outros, provocando reação em cadeia.

A credibilidade foi reforçada pela reconstrução da ambientação sonora, pela recriação dos sons que a imaginação popular acreditava serem próprias de naves espaciais e de ambientes externos e a credibilidade das vozes dos personagens foi dada a partir de estereótipos firmados na cultura americana da época.

O rádio existe em um espaço imaginário, criando imagens mentais e estabelecendo o contato pelo diálogo mental. “Uma imagem vale por mil palavras”. Para criar uma imagem mental adequada ao jornalismo, vai ser realmente necessário utilizar as mil palavras para que seja a imagem certa, aquela que corresponda ao fato. Para Walter Sampaio, existe uma estrutura redacional que contém as informações e uma torrente verbal encarregada de garantir que as informações cheguem ao ouvinte do modo mais correto possível.25

No que diz respeito a esse aspecto, podemos fazer uma comparação com os conceitos de território e mapa, emitidos por Hayakawa. Território representa “o mundo de primeira mão”, os acontecimentos que estão diretamente diante de nossos sentidos e, mapa, os acontecimentos que recebemos verbalmente, “relatos” feitos por pessoas que presenciaram o fato e que, muitas vezes, são apenas “relatos de relatos de relatos, que afinal vão ter aos relatos de primeira mão, feitos por pessoas que foram testemunhas oculares do acontecimento”. Junto a esses “relatos”, recebemos também as “inferências” feitas sobre os “relatos”, ou até “inferências feitas sobre outras inferências”, fazendo com que o material original - o fato - muitas vezes chegue deturpado - seja voluntariamente ou não.26

Outras peculiaridades do meio radiofônico devem ser levadas em consideração. Algumas, decorrentes das próprias características básicas, como, por exemplo, a capacidade de persuasão, de formação de opinião, de chegar diretamente aos domicílios atingindo a todos que estejam sintonizados etc.

Mas nem sempre as características do rádio são positivas quanto à comunicação pretendida. Entre as ocorrências negativas, podemos citar a ausência de percepção visual, que pode levar à deturpação da imagem real, o condicionamento da instantaneidade na decodificação da mensagem, a possível fadiga, a distração, eventual dependência (do meio, do programa, do apresentador), a fugacidade da mensagem etc. O rádio tem necessidade de referências anteriores para que as imagens mentais correspondam ao fato uma vez que não se pode criar imagens reais do que é desconhecido. De narração em narração, ou como diz Hayakawa, de “relato em relato”, as imagens mentais vão sendo criadas de acordo com as informações anteriores disponíveis por cada indivíduo e sua formação cultural como um todo, com tendência maior ou menor para a crendice, a credulidade ou a comprovação científica. Mesmo neste final de século - ou até por isso, segundo alguns -, são comuns as ondas de fenômenos (hoje em dia, pela velocidade das informações, cada vez mais globalizadas) como o chupa-cabras, as loiras-vampiras, ou até a crença de que seja possível que as pessoas, mesmo depois de mortas, embarquem com suas bagagens materiais na cauda do cometa que as levará à nave espacial e a outros mundos e vidas melhores... com variantes, presença eterna entre os humanos na busca da terra sem males.

Welles aproveitou a atualidade e oportunidade do momento vivido nos EUA. A transmissão constituiu um alerta para o próprio rádio. Ficou demonstrado que sua influência era tão forte e determinante que poderia causar reações imprevisíveis na audiência. As características do meio, aliadas a determinadas condições do momento histórico como, por exemplo, o anseio em sair totalmente da Grande Depressão, as tensões na Europa deixando cada vez mais próxima a possibilidade de um novo conflito mundial (situações que geravam insegurança), a credibilidade no jornalismo e na ciência, a divulgação de obras de ficção científica aventando a hipótese de haver vida inteligente em outros planetas e possíveis viagens interplanetárias etc., levaram a uma reação que fugiu a qualquer previsão: estavam reunidos naquela radiofonização os ingredientes certos para provocar o pânico.

Transmissão histórica, deixou como principais legados a certeza de que a realização de estudos sistematizados sobre audiência/recepção eram fundamentais, assim como comprovou, na prática, o poder do rádio na formação da opinião pública. Evidenciou, sobretudo, a necessidade de pesquisas aprofundadas sobre os mistérios do meio radiofônico. Começando a estudar especificamente o rádio, veio à tona a problemática muito mais complexa das audiências e de suas possibilidades de manipulação.

A experiência permitiu que várias das características do rádio, da audiência e da estrutura da mensagem radiofônica, pudessem ser analisadas e posteriormente utilizadas - ou evitadas - conscientemente. Deixou patente, acima de tudo, a questão da responsabilidade do comunicador com relação à mensagem que emite e suas conseqüências, entre elas, o sensacionalismo.



Noites virtuais: antes e depois... BBC e Rádio USP


Os resultados de A Guerra dos Mundos são mundialmente famosos e dividiram a estética radiofônica em antes e depois dessa transmissão. Mas outras irradiações do tipo, menos abrangentes e espetaculares - ou menos famosas por não terem conseguido reunir tantos elementos desencadeadores da reação dos ouvintes - , têm sido realizadas - ou tentadas -, em diversas ocasiões desde as primeiras experiências de transmissão radiofônica.

Um dos antecedentes conhecidos e consideráveis teve características semelhantes com a produção de Welles e ocorreu na Grã-Bretanha. Em 16 de janeiro de 1926, na BBC - British Broadcasting Corporation - o sacerdote católico Ronald Knok descreveu a revolta de uma suposta multidão de desempregados que, depois de atravessar a cidade de Londres, tomava de assalto o Parlamento e executava um ministro do gabinete do governo. Esta narrativa de Knok, um conhecido escritor de novelas policiais, provocou grande tumulto em uma comunidade que passava por período de penúria econômica que levou a uma greve geral durante o mês de maio do mesmo ano.27

Entre os casos mais recentes, citamos o que ocorreu na Rádio USP, de São Paulo. Numa imitação e homenagem a Orson Welles, o produtor independente Geraldo Anhaia Mello, no terceiro programa Verdades e Mentiras,28 transmitido pela Rádio USP/FM, das 20h00 às 21h00 do dia 04 de dezembro de 1985, noticia a mentira do deslizamento de uma parte da Serra do Mar, na Cosipa, em Cubatão, provocando vazamento de gases perigosos, advertindo ainda que todos deveriam fugir da região. “O fato só não causa pânico devido à pequena audiência da emissora.”29


“Não fiquem em suas casas, abandonem a cidade, fujam do gás venenoso, peguem carros, barcos, navios, o que puderem”. Essa advertência foi feita à população da Baixada Santista, “em voz grave, sobre os acordes angustiantes da música ‘Mr. Gones’, do grupo americano ‘Weather Report’, após o mesmo locutor ter anunciado um desmoramento na serra do Mar. Ele informou que as instalações da Cosipa e os depósitos da Union Carbide, em Cubatão, haviam sido soterradas, anteontem à noite”.30


As conseqüências não foram tão graves ou marcantes como as de 1938 uma vez que as variáveis em jogo não tinham a mesma força de meio século atrás: a diversidade de fontes de informação é muito maior e a Rádio USP tem pequena audiência e não atinge com facilidade a Baixada Santista.


“A notícia, repetida com insistência ao longo de 22 minutos do programa, acrescentava que os danos causados às instalações industriais haviam provocado vazamento em depósitos de isocianato de metila, um gás mortal, e aconselhava a população de Cubatão e da Baixada a abandonar suas casas, para evitar a repetição das tragédias de Vila Socó e da cidade de Bhopal, na Índia, em que milhares de pessoas morreram envenenadas pelo gás.”31


Existindo clima propício, o rádio do pânico tem terreno fértil para prosperar sob o formato jornalístico. A proliferação de boatos continua a existir mesmo com muitas fontes de informação à disposição. Houve transtornos diversos, tanto para ouvintes quanto para a direção da emissora. O desmentido só foi feito 30 minutos após iniciada a transmissão. Inúmeras pessoas ligaram para a polícia, o Corpo de Bombeiros e a Defesa Civil, os meios de comunicação se mobilizaram para checar a informação e a Rádio USP foi ameaçada de ter seu funcionamento suspenso.

Também neste caso, uma série de elementos circunstanciais eram favoráveis. Para começar, era noite e chovia. A Serra do Mar, segundo os especialistas, está realmente ameaçada de deslizamentos devido à poluição causada pelas indústrias petroquímicas sediadas em Cubatão e pelos constantes desmatamentos das encostas, fato que estava sendo bastante divulgado em 1985. Na região envolvida, a Vila Parisi, os problemas de poluição eram muito graves, sendo inclusive conhecida como Vale da Morte. Além disso, pouco tempo antes, havia ocorrido a tragédia de Vila Socó, também na região, quando o vazamento de um gasoduto provocou explosões seguidas por incêndios que destruíram todos os barracos da vila, deixando quase uma centena de mortos. Como pano de fundo, existia a própria instabilidade político-econômica do país que iniciava sua fase de transição democrática.


“Na verdade, a tensão na cidade foi muito grande. Por volta das oito e meia da noite já havia pânico entre os órgãos ligados à emergência e à defesa civil em Cubatão. Eram centenas de telefonemas de São Paulo, de Santos, de Cubatão.”32


A Rádio USP tem pequena audiência em Cubatão. Causou tumultos nos órgãos de defesa e segurança que tiveram também dificuldade em checar a veracidade do fato e garantir que ele não existiu. Houve autoridades que deram graças a Deus pelo fato de o programa ter ido ao ar no horário da novela Roque Santeiro, da Rede Globo, que com seu ibope elevado evitou que o problema pudesse ter sido mais grave.

Em 1938 houve movimentos de censura nos EUA contra o rádio após o episódio da invasão marciana, mas não existia uma legislação prevendo o caso. Houve pressões, mas gradualmente a opinião pública foi conquistada, comandada por jornalistas influentes que passaram a mostrar que o episódio deveria servir de exemplo, alertando para o fato de que a dramatização fez um favor ao povo, chamando a atenção para os problemas que um grande pânico poderia causar se ocorresse um real ataque inimigo ao país.


“De acordo com um dos muitos estudos realizados após o caso, foram essas pessoas que, em seguida, procuraram influenciar os legisladores para que proibissem ‘tal fantasmagoria’ nas ondas do rádio. Não é provável que um programa semelhante pudesse detonar a mesma reação hoje em dia.”33


A Rádio USP também sofreu pressões, principalmente por tratar-se de uma Rádio Universitária da qual são cobrados compromissos éticos e morais que não são exigidos de emissoras comerciais, por exemplo. As pressões punitivas aconteceram sob a forma de ameaças de cassação do prefixo, advertência, suspensão, multa, prisão para o produtor etc. De concreto, uma das primeiras medidas foi a retirada do ar de todos os programas ao vivo, que passaram a ser previamente gravados. E, além da retirada do ar de Verdades e Mentiras, todo o projeto de participação de produtores independentes com novas idéias sobre o fazer rádio acabou comprometido e desarticulado a médio prazo. E, sem dúvidas, além de relembrar a todos as responsabilidades, reforçou a autocensura na criação e realização de programas...



Ok terráqueos! O rádio venceu: recompondo fragmentos

Os formatos jornalísticos básicos de A Guerra dos Mundos continuam sendo empregados. Em seus primeiros anos, o poder do rádio foi temido devido, principalmente, ao desconhecimento de suas potencialidades e conseqüências. Hoje, a situação não é muito diferente: mais que o poder do rádio, o poder da comunicação continua temido, agora pela convergência das mídias, via informática. É a vez da Internet ocupar o lugar central no palco das discussões.

Alguns estudiosos temem que programas de tecnologia da informação pública e de comunicações possam ser realizados às cegas por governos que não se incomodem com as conseqüências sociais, que podem ser potencialmente devastadoras. Joe Chester, do Instituto de Tecnologia da Irlanda diz que sempre houve, através da história, suposição de benefícios implícitos advindos de novas tecnologias. Mas muitas vezes os impactos negativos demoraram para ser reconhecidos e suas conseqüências sociais freqüentemente suplantam qualquer benefício. O mesmo pode ser dito com razão de muitas tecnologias novas, como a realidade virtual, a Internet e os softwares inteligentes.34

O rádio vive um momento de grande vitalidade criativa. A informática tem se mostrado um importante aliado. Por meio do Real Audio pode ser ouvido em qualquer lugar, satisfazendo a característica da proximidade psicológica mesmo que a distância física entre o emissor e o ouvinte seja muito grande: o amigo está lá, para muitos diálogos mentais, em seu papel de background, pano de fundo de qualquer atividade que esteja sendo desempenhada, sem requerer atenção exclusiva. Mas o acesso às novas formas de comunicação e a participação interativa exigem competência tecnológica e poder aquisitivo.

Bertolt Brecht (1898-1956), poeta e dramaturgo alemão, em textos escritos na virada das décadas 20/30 denominados Teoria do Rádio,35 imagina-o com dupla mão-de-direção, alertando que a interatividade é um anseio antigo do ouvinte. A questão é tratada muito mais sob a ótica da política, da organização democrática da sociedade e do relacionamento entre cidadãos, do que sobre a exclusividade de uma ou outra tecnologia de informação. Nesses textos, Brecht contraria uma visão desenvolvimentista e lembra que o rádio, antes de ser um meio de massas era um meio interativo de comunicação, que se viu limitado em sua capacidade bidirecional à medida em que se constituía o sistema econômico de sua exploração. E poderia ser um excelente meio de entretenimento, dando suporte a diferentes manifestações culturais.

Com a informática, o rádio ganha novas perspectivas quanto ao seu potencial interativo. Hoje, já não são poucas as emissoras que incentivam a participação do ouvinte por e-mail, assim como por fax. O correio tradicional perdeu seu lugar uma vez que não acompanha a agilidade do rádio. Tomando a liberdade de ampliar a conceituação apresentada por Walter Sampaio para a natureza do jornalismo, a interatividade solicitada pelas emissoras é adjetiva .36 Via de regra, não é permitida a participação de viva voz, no que poderíamos chamar interatividade substantiva. O uso do telefone, convencional ou celular, apesar de recurso importante para o rádio, oferece pouco espaço para o ouvinte uma vez que implica menor controle sobre o discurso, mesmo que problemas técnicos possam facilmente derrubar uma ligação telefônica indesejada...

Talvez Orson Welles tenha intuído, duas décadas antes, idéias desenvolvidas pelo canadense Marshall McLuhan (1912-1981), teórico dos meios de comunicação de massa e inventor da expressão aldeia global. Segundo McLuhan, durante pouco tempo o rádio foi um meio de entretenimento. Sua essência, é a de meio informativo, revelada mais claramente após o surgimento da televisão. Notícias, hora certa, informações sobre o trânsito, sobre o tempo, enfatizam o poder do rádio.

Hoje, a informação jornalística no rádio ocupa espaços cada vez maiores e as emissoras all news e talk radio fazem parte do cotidiano. Pecam, contudo, por esquecer a linguagem do rádio: além da informação, a correta ambientação sonora é fundamental.

Do ponto de vista da moderna tecnologia, em A Guerra dos Mundos “um mundo virtual foi descrito e apoiado por um mecanismo que, na experiência dos ouvintes, era usado apenas para acontecimentos reais. A incapacidade de distinguir imediata e claramente o real do virtual foi a verdadeira causa do pânico”.37

Se algumas idéias fundamentadas em princípios científicos, tão fantásticas que mais parecem ficção, forem verdadeiras, talvez possa vir o dia em que a tecnologia permita recompor os sons dispersos e, quem sabe, por meio de um software, recompor os fragmentos das falas desfeitas no espaço e no tempo. Lá estará a voz de Orson Welles, na noite do Dias das Bruxas de 1938...


“... Fizemos o que deveria ser feito. Aniquilamos o mundo diante de seus ouvidos e destruímos a CBS. Mas vocês ficarão aliviados ao saber que tudo não passou de um entretenimento de fim-de-semana. Tanto o mundo como a CBS continuam funcionando bem. Adeus e lembrem-se, pelo menos até amanhã, da terrível lição que aprenderam hoje à noite: aquele ser inquieto, sorridente e luminoso, que invadiu sua sala de estar é um representante do mundo das abóboras e, se a campainha de sua porta tocar e ninguém estiver lá, não era um marciano... é Halloween!”



“Ok marcianos: vocês venceram!” foi originalmente publicado In: MEDITSCH, Eduardo. Rádio e Pânico: A Guerra dos Mundos, 60 anos depois. Florianópolis, Editora Insular, 1998, pp. 133-153.

1 Simon, William G. “The Man and the Myth”. In: New York university Magazine, Inverno 1987, p. 22.

2 Garcia Camargo, Jimmy. La radio por dentro e por fuera. Quito, Ciespal, 1980, p. 19.

3 Serva, Leão. “Os marcianos estão chegando”. In: Folha de São Paulo, 29.10.1985.

4 Ibidem.

5 Vide Koch, Howard. The panic broadcast. Boston, Little Brown, 1970.

6 Bosetti, Oscar E. Radiofonías - palabras y sonidos de largo alcance. Buenos Aires, Ediciones Colihue, 1994, p. 63.

7 Barber, Bruce. “Rádio: o parente assustador da audioarte”. In: Zaremba, Lílian e Bentes, Ivana (orgs.). Rádio Nova, constelações da radiofonia contemporânea 2. Rio de Janeiro, UFRJ/ECO/Publique, 1997, p. 48.

8 Serva, Leão, op. cit.

9 Ibidem.

10 Nota publicada sobre a transmissão de A Guerra dos Mundos na Folha de São Paulo de 01.11.1938.

11 A respeito da trajetória do jornalismo no rádio, ver: Ortriwano, Gisela Swetlana. “Fragmentos da história do radiojornalismo”. In: Os (des)caminhos do radiojornalismo. São Paulo, ECA-USP, 1990 (tese doutoramento), pp. 34-96.

12 Garcia Camargo, Jimmy, op. cit., p. 16. Após realizar o primeiro vôo intercontinental, sem escalas, de New York a Paris, no Spirit of St. Louis, nos dias 20 e 21 de maio de 1927, Lindbergh era considerado um herói nacional para os norte-americanos.

13 Díaz Mancisidor, Alberto. La empresa de radio en USA. Pamplona, Universidad de Navarra, 1984, p. 18.

14 Ibid., p. 18. O autor refere-se à situação gerada pelo Acordo de Munique, assinado pela Grã-Bretanha, França, Itália e Alemanha, pelo qual foi decidida a partilha da então Checoslováquia, em setembro de 1938 (portanto, pouco mais de um mês antes da transmissão de A Guerra dos Mundos); em março, a Alemanha já havia anexado a Áustria. A Segunda Guerra Mundial era iminente e isso, seguramente, aumentou a eficácia da transmissão planejada por Orson Welles.

15 Detalhes sobre a questão das “duas guerras do rádio” podem ser obtidos em: Dill, Clarence C. “Radio and the Press: a Country View”. In: Annals of the American Academy of Political and Social Science, nº 177, janeiro de 1935, p. 177. Também em: Smith, Robert R. “The origins of Radio Network News Comentary”. In: Journal of Broadcasting, nº 9, pp. 113-122.

16 Díaz Mancisidor, Alberto, op. cit., pp. 68-69.

17 Cantril, Hadley. “La invasión desde Marte”. In: Revista Occidente, Madrid, Espanha, 1942. Citado por: Bosetti, Oscar E., op. cit., p. 64.

18 Bosetti, Oscar E., op. cit., p. 63.

19 Zaremba, Lilian. “Orson Welles: o labirinto auditivo de Guerra dos Mundos”. In: Rádio Nova, constelações da radiofonia contemporânea, op. cit., p. 90 (grifo da autora).

20 As transmissões em rede já eram usuais, com a participação efetiva de diversas emissoras no que diz respeito à produção dos programas emitidos. Na cadeia radiofônica, ao contrário, as emissoras componentes apenas retransmitem o que é produzido pela emissora líder, sem interferir com o conteúdo do programa.

21 Nicolau Tuma, que tem muitas histórias para contar, é considerado o primeiro locutor esportivo do rádio brasileiro, tendo narrado partidas de futebol, corridas automobilísticas e lutas de boxe, entre outros esportes, há quase 70 anos...

22 Sobre as categorias de transmissões informativas ver Ortriwano, Gisela Swetlana, A informação no rádio, São Paulo, Summus, 1985, pp. 91-94.

23 A respeito dos conceitos de jornalismo de natureza substantiva e adjetiva - ver Sampaio, Walter, Jornalismo audiovisual, Petrópolis, Vozes, 1971, p. 72. O autor apresenta os conceitos para o jornalismo televisionado, mas eles podem facilmente adaptar-se ao jornalismo radiofônico uma vez que envolvem a presença - ou não - do palco da ação.

24 As características gerais do rádio foram por nós tratadas com detalhes em A informação no rádio, op. cit., pp. 78-81.

25 Sampaio, Walter, op. cit. Os conceitos são apresentados na comparação entre a linguagem radiofônica e a televisionada.

26 Hayakawa, S. I. A linguagem no pensamento e na ação. 2ª ed., São Paulo, Pioneira, 1972, pp. 21-23.

27 Citado por Bosetti, Oscar E., op. cit., p. 55.

28 Verdades e Mentiras é o nome de um filme de Orson Welles, de 1973, que conta a história de um falsificador de quadros que, usando a ambigüidade, discute os conceitos do que seja verdade e mentira.

29 In: Cronologia das Artes em São Paulo: 1975-1995. Comunicação de massa - rádio e televisão. Vol. 5. São Paulo, Centro Cultural de São Paulo, Divisão de Pesquisas, Equipe Técnica de Pesquisa de Comunicação de Massa, 1996, p. 90.

30 “Rádio USP pode sair do ar por causa da farsa sobre Cubatão”. In: Folha da Tarde, 06.12.1985.

31 “Dentel pode punir rádio que deu notícia falsa de tragédia em S. Paulo”. In: Jornal do Brasil, 06.12.1985.

32 “Dentel processa a rádio que disse que serra caía”. In: O Globo, 06.12.1985.

33 Barber, Bruce, op. cit., p. 49.

34 In: Jellinek, Dan. “Especialista adverte para perigos de programas de comunicações”. O Estado de S. Paulo, 04.04.1998, p. D6.

35 Brecht, Bertolt. “Teoria do Rádio”. In: Bassets, Lluís (edit.). De las ondas rojas a las radios libres. Barcelona, Gustavo Gili, 1981, pp. 48-61.

36 Vide nota 23. A noção de jornalismo de natureza substantiva e/ou adjetiva foi aqui utilizada para a questão da interatividade, de acordo com o maior ou menor controle da participação física do receptor. No caso, não estamos considerando a interatividade envolvida na criação do diálogo mental entre emissor e receptor.

37 In: Jellinek, Dan, op. cit.