Slashdot, comunidade de palavra

Luís Carlos Nogueira, Universidade da Beira Interior

(Fevereiro de 2002)

Introdução

"Why has Slashdot become so successful? Slashdot is successful for the same reasons anything else is. We provided something that was needed before anyone else did, and we worked (and continue to work ) our butts off to make it as good as it could be". Se começo com esta citação é porque ela desde logo responde, parcialmente, à primeira questão colocada pelo objecto em análise: como surgiu o site Slashdot, e mais radicalmente, o conceito de Open Source Journalism (OSJ). Podemos sempre perguntar: o que está na origem de qualquer projecto, serviço, utensílio? Nada mais que uma necessidade. Podemos dividir a necessidade na origem do OSJ tal como é praticado no Slashdot em duas partes: a primeira é a necessidade de extrair do fluxo global da informação os temas e assuntos que especificamente interessam; a segunda relaciona-se com a necessidade de um fórum onde comentar as notícias de forma imediata e global, estipulando os preceitos e critérios dessa discussão e os ângulos de análise.

I. Mas sabemos que a solução de qualquer problema, necessidade ou carência depende, inevitavelmente, da tecnologia disponível, isto é, dos recursos, ferramentas e saberes inventados e acumulados, devidamente integrados num procedimento funcional pertinente, apropriado e consequente. Que quero dizer com isto? Em termos bastante simples, que, de certa forma, este tipo de jornalismo só pôde surgir porque a internet apareceu, com as suas propriedades e faculdades revolucionárias. O que não significa que as questões que o OSJ coloca e a necessidade que lhe está subjacente não existisse antes. Estou, pelo contrário, em crer que todo o desenvolvimento das tecnologias da informação desde que as conhecemos não tem procurado outra coisa senão fazer aquilo que o Slashdot também intenta: aperfeiçoar mais e mais os modos de recolha, transmissão, discussão, organização e recepção de informação. Apenas variam os tipos de tecnologias e saberes. Mais limitadas, as tecnologias anteriores à internet? Talvez. Digamos apenas: diferentes, com outros intuitos e reivindicações. Mas se dizemos que é a existência da internet que permite este tipo de jornalismo, em que sustentamos essa sentença? Em primeiro lugar, pela ubiquidade da informação; depois, pela velocidade de processamento da mesma; outro factor: a possibilidade de troca imediata de dados e opiniões (a tão falada interactividade); por fim, a capacidade de indexação (ou ligação) da informação nas suas múltiplas articulações em enormes bases de dados. Nestes factores estão implicados o espaço e o tempo de vida da informação, os meios da sua circulação e a forma da sua partilha, aspectos que tão determinantes são para a realidade mediática ou comunicativa. São estas algumas das condições que é podem identificar como necessárias para o surgimento deste tipo de jornalismo - se é que esta designação ou conceito ainda tem aqui inteira propriedade.

Se queremos falar com justeza desta nova realidade mediática, e sendo inevitavelmente esquemáticos, temos de ter em atenção as duas propriedades com que o tratamento da informação (e aqui penso em todas as suas formas, discursos e tecnologias) se tem debatido ao longo da história: a quantidade e a qualidade, e, mais precisamente a articulação destas duas categorias, ou seja, a sua organização. Torna-se evidente (mas essa evidência esconde uma dificuldade) que a quantidade de informação produzida cresce segundo um regra que alguma fórmula matemática se calhar haverá um dia de deslindar e que parece encontrar-se entrevista na virtualidade da linguagem, nos meios tecnológicos ou nas trocas simbólicas. Ou talvez em nenhum deles ou em todos ao mesmo tempo. O jornalismo é uma das formas de tratar, organizar e difundir informação. Tem as suas regras, constrangimentos e objectivos específicos. Tem uma morfologia, uma linguagem, uma ética e se quisermos uma epistemologia próprias. Tem os seus esquemas de funcionamento. O que o OSJ vem fazer é instabilizar esse edifício que desde há dois ou três séculos tem vindo a ser construído.

Comecemos pelos dois pólos da cadeia mediática: o jornalista e o leitor. Logo aqui a primeira singularidade: de certa forma, o que acontece é a sua coincidência: quem escreve é quem lê, quem lê é quem escreve. Poder-se-ia argumentar que os espaços de opinião (cartas dos leitores, opinion makers, editoriais, críticas) dos meios de comunicação habituais procuravam já responder a essa necessidade de interacção e discussão, o que não deixa de ser verdade. No entanto, é possível verificar no OSJ a existência de novos moldes em que essa dialéctica se dá: em primeiro lugar, o leitor torna-se produtor de notícias, ele traz a informação para o espaço público; mas, mais importante, ele contribui para a estipulação da agenda informativa e social, ou seja, torna-se editor, ou co-autor, crítico da informação. Ele contribui para a gestão dos factos, das ideias, das opiniões; não só tem voz, como voz. Os critérios da visibilidade, da criação do espaço para que algo apareça, passa a ser uma incumbência, uma competência e uma faculdade sua através da moderação. E isto é uma novidade nos termos e nas condições da cidadania, um subsídio de vastas consequências para a natureza das relações e para a configuração, modelagem e dinâmica do espaço público. Novos papeis (ou pelo menos novas modalidades destes) estão disponíveis, novos direitos e exigências são criados. Novos direitos e exigências que implicam novas formas de arbitragem. E, neste aspecto, algo de novo há no sistema de moderação que vigora no Slashdot. Poder determinar a agenda ou ter notoriedade neste espaço implica um comprometimento na própria feitura do mesmo e o grau desse comprometimento é assegurado pelos sistemas de avaliação que permitem que uma notícia tenha um maior ou menor relevo e cada indivíduo uma maior ou menor capacidade de intervenção e decisão. O modelo do fórum, através da participação de todos, adquire contornos globais, onde há uma permuta de competências e desempenhos e as tarefas são levadas a cabo em rede (um aspecto importante que contraria a configuração do espaço mediático tradicional onde os papéis estão separados: de um lado quem produz a informação, do outro quem a recebe).

Relevância e selecção são, pois, as duas questões a que qualquer forma de transmissão de informação tem que responder. Questões que são colocadas pela enorme quantidade de informação. Ou seja: como atribuir qualidade à informação, como organizá-la, categorizá-la, hierarquizá-la, suprimi-la ou abandoná-la, acumulá-la ou entretecê-la? Talvez nestas questões esteja contida a maior dificuldade (não diremos falácia) da noção e do funcionamento do hipertexto e o maior travão à euforia com que por vezes é olhado, ocultando-se tantas vezes os seus naturais limites atrás das promessas das suas inegáveis potencialidades. Isto porque toda a informação precisa de constrangimentos, regras, formas, porque, se quisermos arriscar uma caracterização, toda ela é narrativa, toda ela conta histórias, carece de um início e um fim, elementos de um código sem os quais só a entropia pode prevalecer; mesmo que esse fim e esse princípio não sejam definitivos, irremediáveis, inegáveis, e sejam sempre abertos, deslocáveis, arbitrários. Só pode surgir algo como um conhecer e acontecer uma solidificação do saber lá, onde o fio do sentido é agarrado, onde uma morfologia se estabiliza, solícita ainda que provisória. É por isso necessário impor níveis e limites na proliferação do hipertexto, enformar as suas matérias, senão algo como a infinidade do comentário do comentário do comentário surge no fluxo ininterrupto do discurso e da informação - o que no limite deixa adivinhar a impotência de qualquer hermenêutica ou consenso.

II. Mas falávamos da coincidência do leitor com o jornalista (e, a um outro nível, com o crítico ou o opinion maker). Questão nova, a propósito da qual importa referir que não há um justaposição total, que algo se encontra alheio à ideia tradicional do jornalista, do jornalismo e da sua deontologia: aqui não há garantias de veracidade ou autenticidade. Que muito se tem debatido em torno da exigência de objectividade no trabalho jornalístico, uns partidários da sua desmitologização, outros da sua necessidade doutrinária, bem o sabemos. Mas, esteja ainda o conceito de objectividade pertinente e operacional ou não, algo se torna incontornável: se a linguagem, qualquer uma, e as palavras por maioria de razão, é um instrumento de poder e se o seu uso está, quase inevitavelmente, marcado por vectores éticos, então não podemos nunca abdicar de instâncias de juízo, de certificação e de responsabilidade. A questão sobre o que é um autor é, não só na literatura como no jornalismo, na ciência ou no quadro jurídico, de uma extrema importância, pois nela está contida uma dimensão prática, accional, logo da ordem do político, e inevitavelmente categorias como sujeito, agente e autonomia são colocadas no centro da discussão. Daí a pertinente e difícil questão do anonimato e dos pseudónimos: quem escreve o quê? E esta questão remete-nos para a célebre frase de Beckett: "Que importa quem diz?". Às vezes importa. É pois preciso saber como.

E aqui por maioria de razão: que espaço está destinado para o jornalista, esse veículo pretensamente neutro da informação, da notícia, mas ainda assim com um nome, um estatuto, deveres, direitos, competências, algo como um autor, capaz de responder, ou seja de ser responsável, numa altura em que a circulação de informação pode ser dinamizada e proporcionada por qualquer indivíduo, qualquer agente social? Ou seja, o jornalista, supostamente instruído e julgado na sua função, não só vê o seu espaço ser disputado, como vê serem dados privilégios ao leigo que não são seus. Ou não será já o OSJ algo da ordem do jornalismo, será um novo tipo de discurso, com as suas vantagens, características e funcionalidades específicas, as suas instâncias e teleologias singulares? Caminharemos para uma indistinção entre facto e opinião num certo tipo de informação que antes englobámos sob a designação abrangente de jornalismo?

Afinal, se calhar, não de um ponto de vista estilístico, mas de um ponto de vista da responsabilidade cívica ou jurídica, importa mesmo quem diz. Isto é, quem tem os direitos e os deveres inerentes à prática jornalística, a função de desvelar a verdade dos factos, de responder pelas consequências dos seus enunciados. Neste aspecto sites como o Slashdot levantam questões que, talvez, nem estudiosos da comunicação nem juristas sejam ainda capazes de responder, uma vez que surgem, com a internet e a era do digital, situações novas que invalidam premissas que anteriormente se criam extremamente sólidas. A este respeito importa citar mais uma vez os responsáveis do site para melhor esclarecer o entendimento que fazem do seu funcionamento: a responsabilidade pelo conteúdo é dos emissores e da audiência. Isso está bem claro com a resposta dada à questão How do you verify the accuracy of Slashdot stories? E a resposta é: "We don't. You do. :) If something seems outrageous, we might look for some corroboration, but as a rule, we regard this as the responsibility of the submitter and the audience. This is why it's important to read comments. You might find something that refutes, or supports, the story in the main".

Uma questão que, inevitavelmente, se vem cruzar com esta é a do anonimato e do pseudónimo, uma vez que há sempre que ter em conta as consequências éticas da informação: mentira, injúria, calúnia, boato advêm precisamente da recepção social da informação e da valorização que a acompanha no espaço público. Se os direitos e os deveres de quem informa (ou, de forma mais lata, de quem produz informação) é uma preocupação legal e jurídica, é certamente necessário saber, por um lado, quem é responsável por um enunciado e pelas consequências da sua entrada em circulação, e por outro, qual é a lei que constrange ou protege quem afirma e quem é visado. A palavra, houve já quem o dissesse, é um vírus, e é certamente um perigo. É um poder e uma acção, logo inscreve-se na polis, entra no regime do político: quem julga, quem pune, quem corrige, quem advoga, quem compensa?

III. Os tops, como as sondagens, não são coisa nova. São um dispositivo desde há muito comum de medição e ordenação, são também um instrumento útil para averiguação de tendências, preferências e desejos. São uma forma de diferenciar, um dispositivo estatístico de qualificação e valoração de conteúdos e ideologias. Aquilo que as tecnologias numéricas vieram proporcionar é a capacidade de poder ser utilizado um processo desse género potencialmente em todo o tipo de informação - ou seja: estarmos a ser objectos de uma espécie de sondagem permanente. Sendo possível fazer uma medição exacta dos acessos a uma fonte ou uma matéria informativa, tendencialmente poderemos caminhar para uma regulação absolutamente estatística da sua circulação. As divisões, classificações e escrutínio estatístico do(s) público(s) e gostos torna-se uma prática corrente. De certa forma há uma ingenuidade do indivíduo em cada passo que dá. Ele vai deixando trilhos, vai disseminando os passos da sua identidade nos percursos que faz no ciberespaço. Para quem souber recolher e integrar as marcas e as pistas de forma a resolver o puzzle, essa informação aparentemente inofensiva torna-se um possível dispositivo de controlo - logo, entra no âmbito do político, espaço onde o sujeito se joga ou é jogado, onde o cidadão se constitui ou é constituído, onde a ordem social, com os seus focos, privilégios ou exclusões é desenhada. Se calhar, com essa pan-estatística própria das tecnologias numéricas estamos num passo mais adiantado em relação àquilo que Foucault chamou as disciplinas. Talvez seja este o novo paradigma do poder nas sociedades contemporâneas, ao mesmo tempo liberais e constrangedoras, desconstruíndo modelos ou procedimentos éticos supostamente sólidos e claros, como se um mecanismo de equilíbrio invisível procurasse sempre compensações de funcionamento sem deixar a entropia invadir o reino das decisões individuais e das estratégias sociais e políticas, imbricando aquelas nestas.

Também o Slashdot faz uso dessa disponibilidade apresentada pela descrição numérica do tecido social e das preferências individuais. Lá temos os tops dos assuntos e dos artigos mais frequentados e visitados, dos colaboradores e autores mais dilectos e assíduos; a divisão em categorias e secções de interesses; a possibilidade de manifestações electivas e o sublinhado de cumplicidades e empatias, a criação de associações e dissenções (friend, neutral, foe; fan, freak - dispositivos diferenciadores de demarcação ou partilha), a possibilidade de separar ideologias e facções. No fundo, algo de muito semelhante àquilo que é o agonismo político, o qual constitui um dos mais importantes contributos históricos para o funcionamento das sociedades democráticas ocidentais e que podemos fazer remontar à ágora clássica. Que haja aqui uma espécie de émulo do regime político em vigor no espaço público e político comum não nos deve entristecer ou desiludir - a discussão é por natureza uma necessidade do saber, a partidarização pode enfermar de vícios circunstanciais e ser figurada por diferentes modelos e dinâmicas, mas o seu princípio é não só incontornável como requerido.

Salvaguardar as singularidades, as comunidades, no fundo, o pluralismo, aparece como a prioridade a eleger pela filosofia Slahsdot. E isso está bem patente na declaração de intenções dos responsáveis pelo site; assumida com inteira consciência está uma preocupação: procurar a forma apropriada para comunicar com os leitores e - muito importante - com diversos tipos de leitores, que tenha em atenção não só vários e diferentes hábitos de leitura, mas também as várias formas de atenção e a natureza dos diversos interesses e predilecções. Sem que essa diversidade deva desviar-se do caminho eleito: a busca da qualidade, precisamente através da identificação de tendências, a avaliação de competências argumentativas, a exposição de pontos de vista, a eleição de interesses, a concessão de privilégios e méritos. Com a vantagem da grande invenção do Slashdot:  a partilha comum de responsabilidades e oportunidades: quem lê é quem comenta e avalia, como se aqui se estivesse bem perto de um modelo de democratização do acesso ao saber, da sua génese e validação, bem para lá dos estandartes e expectativas típicos das dissociações esquerda/direita, sociedade civil/estado. As consequências para os regimes políticos e organização social desta nova forma de discutir e valorizar competências, saberes e desempenhos estão ainda (e estarão com certeza por algum tempo) para ser averiguadas.

IV. O dispositivo da moderação e os moldes em que ele aqui funciona é extremamente importante e deve ser objecto de atenção analítica. Sendo um instrumento restritivo, ele procura responder a uma necessidade bem prosaica e cujas implicações nos parecem sempre passar um pouco ao lado: a incomensurabilidade da quantidade de informação produzida e a forma como lidar com ela para a tornar útil, esclarecedora e discutida. Momento algum da história dispensou organismos, entidades ou indivíduos incumbidos dessa tarefa de contextualização e organização do saber (pensemos nas bibliotecas, no sistema de ensino, na imprensa, na gramática, nos dicionários, nos sonhos dos enciclopedistas, nas grelhas e programas, nas listas e catálogos, e actualmente nos motores de pesquisa, nos portais). A entrada da informação no tecido social não dispensa uma procura de sentido, um fechamento, mesmo em territórios onde esse fechamento do sentido parece ser objecto de denúncia e renúncia tal acontece - pensemos no ready-made de Duchamp ou  no non-sense irónico ou em certas poéticas.

Se não há proposição que não aspire (ainda que lhe seja vedado) a um estatuto de verdade, a possibilidade de esta surgir só acontece se existirem instâncias que assegurem e garantam a sua certificação. A natureza e tipologia dessas instâncias podem ser bem diversas: não são as mesmas para o jornalismo que para a ciência, para a literatura que para a filosofia, para a religião que para a arte. O que é interessante no caso de Slashdot é que a legitimação e crítica da informação e a confirmação ou infirmação da verdade das coisas é um procedimento integrado: são os emissores e os destinatários, os quais são os mesmos indivíduos, a mesma comunidade, que se jogam nele e o assumem, vestindo em permuta ambas as peles. As condições de enunciação sofrem aqui, portanto, algo como uma metamorfose algorítmica em relação ao património comum dos meios de informação tradicionais: se nestes, os papéis são bem distintos, os direitos e deveres bem estipulados, as tarefas e faculdades bem distribuídas (o jornalista, o leitor, o editor, o director, as fontes, as leis, os códigos), no OSJ estamos ainda (ou já, dependendo da perspectiva em que se analise a questão) numa terra de ninguém, num feedback incessante, num espaço plural e partilhado, relativamente aberto e liberal, onde os direitos e deveres são mais da ordem do compromisso que da legalidade: estará aqui em potência alguma possibilidade de uma ultrapassagem do infinito esforço e necessidade do alargamento da lei ao mais ínfimo acto ou vontade tão típico do estado de direito?

Em relação aos moderadores, se eles procedem à selecção e seriação de informação, estão também sujeitos a uma selecção. É enunciado um conjunto de critérios que asseguram ou não a sua elegibilidade, que estabelece as condições do seu desempenho, procurando assim prevenir abusos e arbitrariedades. Há um legalismo implícito a esta realidade, mas é um legalismo corporativo, digamos assim, baseado em procedimentos internos. E há depois uma instância superior de moderação: os metamoderadores, cuja incumbência é, precisamente, moderar quem modera. Como hipótese poderíamos enunciar aqui outra questão: onde cessam as instâncias de moderação, qual é o último patamar, poderemos vislumbrar um processo em espiral ou em abismo de sucessão de níveis de avaliação? Entre quem produz informação e quem a disponibiliza há uma hierarquia - e aqui volta a colocar-se a questão de quem é o autor, quem responde. No final temos o proprietário do órgão de informação: quem responde é o responsável pelo ideário e a estratégia do serviço. Ou seja, se é quem possui que decide, o autor está intimamente ligado à posse e é essa posse que lhe incute a responsabilidade.

V. Claro que poderemos colocar a questão sobre a natureza ética e política do mecanismo de moderação: será ela censura? Como dizem os responsáveis do site, não o será, pois todo o conteúdo está disponível para consulta. O que varia é a forma do seu acesso, o qual é naturalmente condicionado (para o bem e para o mal). No fundo, não se trata de qualquer procedimento singular; é aliás o que acontece não só com a informação jornalística, mas com toda ela: toda a informação exige (alguma forma de) censura, catalogação, selecção, exclusão, benefício, etc: no fundo, diferenciação. Os limites desse trabalho sobre a informação, do seu tratamento e dos seus privilégios ou eliminação são assegurados apenas pela figura jurídica do direito de expressão, o qual procura assegurar condições e oportunidades de enunciação semelhantes a todos os sujeitos, mas não salvaguarda cabalmente as modalidades da sua circulação e do seu juízo.

Todas as instâncias de valorização e gestão da informação têm, por norma, um objectivo, não evidente e não eterno, mas tácito: garantir o acesso a essa característica tão ambígua e tão querida da qualidade, se quisermos, aquilo que diferencia, enriquece, acrescenta, aquilo que é o património dos discursos, a sua memória. Ao mesmo tempo que se prossegue este objectivo de nobreza, de distinção, de sabedoria, a moderação tem também um fim bem mais prosaico: domar, categorizando, o caudal de informação que é por natureza infinito, perpétuo, exponencial: o ser humano tem capacidades de gestão de informação limitada; é preciso incentivar a discussão, para que dela nasçam os consensos e da sedimentação destes se gere a sabedoria. A sabedoria, esse património que funda e distingue o fazer humano, é o resultado do cruzamento dessas duas actividades (quotidianas, eruditas ou laboratoriais): a diferenciação e o privilégio - são estes os utensílios de fabricação da verdade. E, se aqui é permitido arriscar uma analogia com a selecção natural das espécies, não poderemos também dizer para a informação que ela é, metaforicamente falando, algo como um organismo colectivo, que a sua circulação se faz num cérebro gigante (constituído pelo conjunto dos indivíduos, das suas modalidades discursivas e aparelhagens tecnológicas, as suas instituições, linguagens e regras, as suas trocas e renúncias), sendo que todos estes elementos vão mantendo ligações de concordância ou dissenção em função dos objectivos, das ferramentas e dos contextos e desse modo incitando a metamorfose, a refuncionalização; passar-se-á algo semelhante ao processo darwiniano: haverá no circuito da informação algo como um algoritmo da mutação, de depuração de espécies de formas e conteúdos?

VI. Se, como advogam os responsáveis do site, o que é bom é o que é interessante ou inspirado, importa então perguntar: o que é o interesse ou a inspiração? Na prática, é o que os moderadores decidem. No fundo, trata-se de um trabalho crítico em nada muito distinto do efectuado nos órgão de comunicação convencionais por editores ou directores, ou, noutro plano, pela crítica e pelos opinion makers; salvo num traço bem distintivo: aqui quem faz o trabalho de edição são os também leitores. Ora, o que tal deixa ver é a existência de um sistema em paradoxo: ninguém tem, de antemão, o privilégio de vetar ou incensar assuntos ou perspectivas sobre os mesmos, o escrutínio da qualidade é constante, a discussão é ininterrupta – e nela todos participam. Poderemos vislumbrar aqui algo a caminho da situação ideal de palavra de que fala Habermas? "Um fórum completamente livre e aberto" como pretendem os fundadores do site?

Importa pois reter a ideia de fórum, de espaço de discussão, uma vez que não é o testemunho, não é o relato, não é a teoria, o género discursivo prevalecente nos conteúdos do site, mas sim o comentário. De certo modo podemos descrevê-lo como um jornalismo onde opinião e facto coabitam e a dificuldade do seu destrinçamento é evidente. Pode supor-se que se tratará de uma espécie de sabedoria partilhada ou de um iluminismo cívico, uma conquista de mais e mais inteligência, mais e mais razão, mais e mais tolerância através da participação, de uma chamada de cada indivíduo para o espaço da retórica e da argumentação que poderá muito bem deter ligações, ao mesmo tempo, com a prática sofística e com a metodologia socrática: um debate de experimentação e perspectivismo e ao mesmo tempo vigiado nas suas leis de instauração de (uma dada) verdade. Isso mesmo podemos ver numa espécie de manifesto e ao mesmo tempo guia onde um colaborador enuncia os requisitos de uma boa moderação (e, por extensão, de qualquer bom discurso ou contributo para o site): inteligência e ponderação; profundidade (na falta desta, o humor); oportunidade e pertinência; participação assídua (uma espécie de activismo que assume o debate como uma causa, um direito ou um dever); originalidade (aqui oposta à redundância, tão mais nefasta quanto maior é a quantidade de informação a processar); autocrítica e auto-reflexão; assinatura (evitar o anonimato, de certa forma visto como um acto de cobardia). Trata-se de um belo e exigente conjunto de princípios, algo entre a ética e a estética, entre a crítica e a teoria, entre a análise e a síntese, algo que, no limite, abre todas as condições para o surgimento de qualquer coisa tão vasta como o conceito de pensamento complexo – e se calhar de novas modalidades e categorias discursivas.

Conceito que, ainda a propósito da questão sobre o que é um autor que Foucault tão inspiradamente colocou, não deixa de remeter para a problemática do estilo - precisamente uma das instâncias em que a identificação e a categorização do que é um autor mais pertinente e complexamente se coloca. Se algo como um estilo remete quase sempre para uma singularidade, uma voz única, uma radicalidade fundadora, então poderíamos adivinhar nesta forma de escrita (e reescrita) plural, em regime de troca, de aperfeiçoamento, qualquer coisa como uma democratização do estilo? E de que forma é possível, neste modelo de funcionamento, assegurar aquilo que parece ser um mandamento da publicação: procura da diversidade respeitando a identidade? Que teoria dos domínios e dos conjuntos, das associações e das divergências, das influências e das rupturas se pode aplicar a esta forma de produzir e transmitir informação?

VII. E aqui gostaria de expor uma tese provocatória e arriscada: assumindo como premissa reconhecida pelos responsáveis do site que a urgência na divulgação de informação (questão de conteúdo) prevalece sobre a correcção gramatical ou sintáctica com que é feita (questão de forma), o que se poderá ganhar ou perder nessa espécie de anarquia linguística onde as regras formais são despidas até à sua mais estrita necessidade? Poderemos também aqui intuir algo de orgânico, um algoritmo que permite que, independentemente das inadequações formais da informação, ela mantenha o seu sentido, o seu conteúdo, e este consiga ser partilhado e comunicado? Bem sabemos que forma e conteúdo, ou semântica e pragmática, ou significado e significante, ou língua e fala são indistrinçáveis, mas desconhecemos de que forma cada um dos conjuntos determina o outro. E desconhecemos também como, mau grado a tendência da forma para se aperfeiçoar sempre de modo a melhor transmitir o conteúdo, o quanto não haverá de redundante e desnecessário naquela para uma boa circulação deste. O que gostava de colocar como hipótese é a ideia tão prosaica e popular de que a necessidade aguça o engenho. E se isso é verdade, que novas formas de escrita, que métodos de abreviação e mecanismos de inferência poderão desenvolver-se num espaço de escrita onde as leis morfológicas e sintácticas são, por instantes, suspensas? O que acontece aos signos quando são manejados, utilizados? Como são eles refeitos, como se enlaçam a sua componente visual, icónica, e a sua leitura, decifração? Poderá esta aludida anarquia significar a possibilidade de novos códigos de leitura?

E se proponho esta tese para o âmbito da gramática e da semântica, gostaria de a colocar também ao nível mais lato dos discursos e das ideias, onde me parece legítimo intuir-se também uma espécie de lei morfogenética: uma lei de origem e aperfeiçoamento das formas talvez não muito distinta daquela que podemos averiguar nos artefactos e tecnologias, nos organismos vivos e nas instituições. Afinal, a linguagem e o pensamento possuem uma estrutura, uma lógica e uma evolução, elementos combinados, funções e metamorfoses explicáveis. Não será o Slashdot um laboratório onde, através do acaso, da tentativa, do erro, da correcção, da adequação, da experimentação, se procura, com a contribuição e competências diversas de todos os seus colaboradores e leitores, a mutação vantajosa das formas das ideias e das técnicas que servem a sua veiculação? E não será isso algo de muito semelhante ao que se passa, por exemplo, na pesquisa em inteligência artificial, em que se estipulam algumas regras mínimas para a resolução de um problema e se espera a melhor resposta dos agentes que nele estão empenhados?

Conclusão

Para finalizar, em jeito de conclusão, voltaria de novo à questão inicial: porque surgiu o OSJ, e porquê em determinada altura? Apontaria três razões: uma possibilidade tecnológica de recolher, tratar, transmitir, guardar e aceder a mais informação de uma forma mais rápida (o aparecimento da internet e das tecnologias digitais em geral); uma preocupação epistemológica de garantir a depuração, partilha e compartimentação de saberes, assegurando as condições de um pluralismo que é uma das grandes conquistas do iluminismo e do liberalismo; uma preocupação ética de fazer coincidir os destinatários (leitores) com os emissores (editores), ou seja, de criação de condições propícias para a instauração de uma comunidade de sujeitos de enunciação, responsáveis e livres, onde os privilégios da gestão, orientação e selecção da informação típicos dos media tradicionais sejam substituídos por um mecanismo de avaliação mútua e comum. Se fosse útil, pertinente ou adequado (o que não me parece) hierarquizar por grau de relevância o contributo de cada um destes aspectos para o surgimento de um serviço como o Slashdot e de um paradigma como o OSJ, inclinar-me-ia talvez para o primeiro. Mas parece-me antes que eles são inseparáveis. Ainda que as tecnologias sejam um dos elementos fundamentais no modo de criação, circulação e partilha das ideias e, decerto, nas suas formas e conteúdos, é a disponibilidade e a exigência dos agentes individuais para usarem e discutirem a palavra que move a sua aplicação e aperfeiçoamento.