A realidade é a ilusão
Luís Carlos Nogueira
Fevereiro/99

A realidade. Depois de séculos de estudos e debates filosóficos, sociológicos, estéticos, físicos ou religiosos, aparentemente todos sabemos que contornos e propriedades lhe atribuir. Mesmo que, para cada um, ela seja necessariamente distinta, há consensos e categorias (o aqui e agora, as percepções dos sentidos, o nosso corpo — último refúgio seguro) que pacificam a angústia de cada um perante o mundo.

Contudo, as perplexidades e interrogações estão longe do esgotamento. Três filmes, relativamente recentes, vêm comprová-lo e avançar algumas provocações para o debate. São eles "The Game"/"O Jogo" (David Fincher, 1997), "Dark City"/"Cidade Misteriosa" (Alex Proyas, 1997) e "Truman Show"/"A Vida em Directo" (Peter Weir, 1998). Neles o que é levado ao extremo é a noção de simulacro e a constatação de que o artificialismo pode recobrir inteiramente a realidade, reduzindo-a a não mais que um efeito de crença, uma aceitação da familiaridade — sendo essa familiaridade não mais que o resultado de uma crença na mentira . "True Lies", precisamente.

Há um dado que conecta estas três obras: os protagonistas centrais são indivíduos que, submetidos a uma conspiração maquiavélica e absoluta, encetam uma cruzada solitária para restabelecer as fronteiras entre a simulação e a verdade após o desmoronamento da confiança nas evidências. "Trust no one" poderia ser a divisa comum. Sem a certeza apaziguadora do conhecimento das coisas, mesmo que ilusória e precária, o desassossego é completo e a angústia insanável.

O Teatro do Mundo

A luta de John Murdoch, Nicolas Van Orton e Truman Burbank é um esforço de desmistificação do "establishment", na qual todos estão implicados. Quando sob o véu da familiaridade dos objectos e dos actores sociais se vislumbram ténues mas inquietantes vestígios de fraude, só com tenacidade se pode esclarecer a sua origem. Sendo os agentes dessa fraude de ordem diferente nos diversos casos, o modo de operação é coincidente: a manipulação — seja ela de todo fantasiosa (perpetrada por uma espécie alíenigena interessada em decifrar a especificidade da alma humana), encenada (um produtor e uma companhia televisiva que, literalemte, se apropria da vida de alguém em nome das audiências) ou lúdica (uma empresa de entretenimento). Se podemos, com bom senso, aceitar a plausibilidade da primeira situação, pois não podemos aferir dos poderes manipulatórios de uma espécie meramente fictícia, nos outros dois casos a trama torna-se tanto mais perturbante quanto os seus urdidores são entidades do nosso quotidiano escapista: os media e as firmas de lazer. Para mais, em "The Game", a paranóia do protagonista é criada perante os seus olhos e com (quase) total conhecimento.

Se a criação de verosimilhanças é um facto corrente (desde a mitologia aos aparelhos mediáticos, passando pela linguagem, a arte ou a política não são raros os domínios onde a duplicidade das mensagens é um dispositivo vulgar), nestes três filmes a problematização da verdade é tão mais prodigiosa quanto a ilusão é apresentada de forma absoluta e liminar, e a única esperança para os órfãos da realidade são as pistas que o acaso fornece, únicos instrumentos para decifrar o seu papel no teatro do mundo.

Não deixa de ser curioso que, depois de querelas irredutíveis em torno da relação do cinema com a realidade, que levou alguns a defender para a prática cinematográfica um registo estritamente objectivo dos factos (doutrina que na actualidade, parcialmente, é recuperada pelos cineastas do Dogma 95 que gravitam em torno de Lars Von Trier), o estatuto da realidade seja novamente objecto de interrogação ao nível da sétima arte, mas agora no interior das próprias narrativas, reafirmando a condição (não exclusiva) do cinema como arte do logro e campo de infinitos devaneios, especulações e fantasias.

Para lá dos méritos artísticos que possuem, os filmes em análise interessam-nos aqui sobretudo pelo fio comum que liga as dúvidas e eventualidades que suscitam — as quais, se não são de todo urgentes, revelam pelo menos um elevado interesse filosófico. Como construímos a nossa imagem da realidade e o que se esconde sob a cortina do quotidiano? Familiaridade, o que é isso? No fundo: e se a realidade não é, de todo, real? Sabemos que, tão longe quanto o cálculo e a observação científica nos permitem aperceber, a matéria (de que as pessoas e o universo, tendemo-nos a esquecer, são constituídos) não é mais que partículas, forças, trajectórias, embates e reacções. E mesmo as relações sociais não passam de discursos, compromissos e interacções precárias. Não é sequer necessário convocar para esta reflexão os fenómenos esotéricos e místicos que tão boa matéria têm fornecido a séries televisivas de culto.

Marionetes, nós?

Fazendo um pouco de especulação religiosa é sempre possível levar ao limite, perante exemplos tão desarmantes como os apresentados nestes filmes, a inquisição sobre os fundamentos da vontade individual e do poder de decisão. Ou seja: e se a humanidade e o seu destino, cientes como somos da sua fragilidade, não passasse de um divertimento, sádico ou lírico, ao qual uma divindade sumamente inteligente e omnisciente se dedicasse, mantendo-nos aprisionados no absurdo da ignorância dessa condição? Uma possibilidade pouco difícil de admitir quando aceitamos de modo totalmente disponível a plausibilidade dos agentes conspiradores (humanos, lembremo-nos) de "The Game" ou "Truman Show". A hipótese de uma conspiração divina ganha aqui (ainda que, como é óbvio, todo o cepticismo racionalista a recuse) uma viabilidade contra a qual nenhum argumento contrário ou qualquer prova de falsificabilidade seguros e definitivos podemos apresentar. Não é certo que o nosso destino colectivo possua contornos semelhantes ao estado de inocência de Truman, ou que estejamos submetidos a uma tormentosa amnésia como Murdoch, ou que uma ambiguidade paranóica comparável à de Van Orton nos tolde o discernimento. Assumirmos o estatuto de marionetas não é com certeza são e fere de morte o orgulho no nosso tão estimado quanto instável livre arbítrio e nas verdades que apreciamos como sinais de uma inteligência singular. Mas o convite ao devaneio poético e à reflexão metafísica é tentador. Aventurar essa suspeição do aqui e agora é mergulhar numa espiral. E conhecemos bem as propriedades angustiantes dessa figura gráfica...

Assombrações

Em filmes onde os jogos de aparências, evidências e intrigas são recorrentes, mau seria se estivessem ausentes momentos de puro prazer visual, narrativo e formal. Se cada um deles justifica inteiramente a sua visão, atrevo-me a evocar três momentos fantásticos (é mesmo o termo). Em "The Game" há uma casa que não é mais que um teatro de sombras e signos na qual, sob a superfície dos objectos, não existe qualquer profundidade — à medida que o protagonista vai descortinando o engodo, é-nos impossível não comungar a sua deliciosa perplexidade (aliás, o filme pode ser visto, na sua globalidade, como uma gigantesca sequência na qual, de forma engenhosa e cativante, a estranheza se manifesta nas coisas mais íntimas). De "Truman Show" há que destacar a fabulosa sequência que nos desvela toda a dimensão e estrutura da manipulação: uma casa de uma rua de uma cidade numa paisagem cujo horizonte se perde num céu que se confunde com um megalómano estúdio de televisão, o qual contém todo esse microcosmos. Em "Dark City" podemos deslumbrar-nos com uma das mais delirantes e fanstasmáticas aplicações das modernas tecnologias digitais e com o leque, cada vez mais vasto, de virtualidades que os efeitos especiais abrem ao cinema: as mutações de uma metrópole que, literalmente, nos são mostradas, com os edifícios a metamorfosearem-se noutros completamente distintos, reconfigurando toda a face urbanística e arquitectónica. Três momentos que atestam também o poder da arte narrativa e do talento visual para jogar com o visível e o invisível, o óbvio e a estupefacção — com as assombrações, precisamente.

A utilização das tecnologias digitais no cinema actual, as suas implicações nas narrativas e a instabilidade que, desde há de duas décadas, vêm instaurando no realismo das imagens é, também, um assunto pertinente e fascinante cuja análise fica para uma próxima oportunidade. Até porque se trata de um outro modo de questionar os limites da manipulação. E de perguntar se eles existem...