O Milénio dos Visionários
Luís Carlos Nogueira
Abril, 1999

Não é possível reflectir sobre a natureza e valor das imagens cinematográficas actuais (e quaisquer outras) ou especular sobre o seu futuro sem aceitar a tecnologia que as serve como um dos factores que mais determinam as suas formas e conteúdos. Importa por isso questionar não só as possibilidades que se abrem mas também os condicionalismos e perversidades que as acompanham.

Aqueles que têm prestado atenção aos últimos anos de produção sabem que se tem vivido sob o assombro e a estupefacção de um realismo inaudito. Conceber cenários, criaturas e acontecimentos aparentemente reais, mas apenas existentes no ecrã, de forma crescentemente sofisticada, colando com toda a fidelidade o simulacro ao referente, tem sido a grande linha de força de aplicação dos meios e efeitos digitais às obras cinematográficas — processo no qual a grande indústria tem desempenhado um papel fulcral, com todas as vicissitudes inerentes a um esforço de investigação conduzido em função de ávidos lucros. Seria fastidioso enumerar as proezas mais ou menos exuberantes neste campo. Basta apercebermo-nos do grau de indistinção que se conseguiu entre verdade e ilusão.

Essa capacidade de criar realidades irreais tem como consequência a crença mais ou menos entusiasta segundo a qual, no que toca à manipulação e criação de imagens, a digitalização promete que nada é, virtualmente, impossível. Que a indústria enfrente esse desafio quase como uma batalha ideológica, com um optimismo tipicamente americano, não é de estranhar — ideologia que tem tanto a ver com a ultrapassagem de obstáculos ao processo criativo (pôr a técnica ao serviço do visionarismo de realizadores e argumentista) quanto com uma concepção economicista que essa mesma indústria não pode recusar (a espectacularidade é um trunfo mercantil iniludível). Mas o predomínio de uma produção sobretudo virada para o grande entretenimento, em desfavor do intimismo artístico ou do pulsar quotidiano, da peculiaridade por vezes aristocrática e snob, mas evidentemente fértil, terá como conhecidas consequências nefastas a uniformização de estruturas e expectativas narrativas e a fixação dogmática de valores dramáticos que acarreta, por princípio, mais mediocridade.

É inevitável, desse modo, que olhemos com algum cepticismo o futuro. Não é de todo descabida a suspeita de que a linearidade genérica das narrativas se torne, ainda mais, um imperativo mercantilmente obrigatório (de forma a custear o alto investimento no desenvolvimento tecnológico e criar um imaginário universalmente digerido e partilhado). Ora, o que aqui é colocado em perigo — e não pode ser menosprezado, sob risco de se estar a proceder à eliminação de todas as especificidades — é a preservação ou mesmo o incremento da diversidade temática e estilística. Todos conhecemos a tendência da grande indústria para a simplificação abusiva dos enredos (o império do óbvio) e para a depauperação das personagens (o império da preguiça), facto que tantos projectos inicialmente prometedores tem defraudado. Estereotipar géneros e medianizar expectativas é uma estratégia que as grandes produtoras adoptam sem inibição ou remorso em nome do ganho económico. Toda a boa ideia é aquela que dá dinheiro, podia ser esta a máxima grosseira da indústria.

Mas, à medida que os custos de produção inerentes ao uso de tecnologia sofisticada na criação cinematográfica forem decrescendo e a sua utilização se for democratizando, a perspectiva de um sombrio futuro unidimensional ir-se-á também esbatendo. E, não nos podemos esquecer, os processos de massificação são sempre acompanhados por núcleos e movimentos de resistência e insubmissão que, assumindo princípios próprios, por vezes como se de manifestos políticos se tratasse, não transigem nos seus valores. Não deixará por certo de, mais uma vez, assim ser. Uma ideologia mais artesanal e erudita (o possível paradoxo é apenas aparente) animará com certeza aqueles que procuram, com a singularidade e a distinção, combater os axiomas da globalização e da padronização. Há que preservar o brio e a vaidade, as marcas de distinção e as experimentações.

Interessa por isso enunciar, com regozijo, a vasta amplitude de possiblidades que o desenvolvimento técnico abre ao audiovisual em geral. Não só ao nível das representações de realidades antes apenas sonhadas, mas também no que respeita à faculdade incrementada de trabalhar sobre domínios vários, fazendo uso de matérias e heranças plurais. Não está longe, por certo, o tempo em que as diversas artes atinjam um nível de influência recíproca e de transmutação de técnicas e linguagens completo (ou pelo menos muito elevado), constituindo ou um corpo único ou libertando um espaço inaudito à tão propalada interdisciplinaridade. Arquitectura, pintura, fotografia, banda desenhada, música tendem pois para uma aproximação crescente ou mesmo uma coincidência plena — um processo que já não é de agora, mas que no futuro não deixará de se acentuar sob novas e mais estimulantes formas. As virtualidades do desenho, as propriedades do abstraccionismo, o onirismo ilimitado, as metamorfoses de corpos, objectos e paisagens, as sombras e luzes, os brilhos, as auréolas, sobreposições e justaposições, os espaços do passado e as lendas do futuro — tudo isto (e o mais que se queira) constituirá um campo múltiplo e heterogéneo onde a imaginação e o discernimento poderão fazer e refazer associações de universos visuais e estilísticos, trabalhar e inventar matérias e conceitos, tempos, ritmos e aparições com uma liberdade potencial que tornará o jogo das combinatórias e reversibilidades plásticas (entre suportes, linguagens, patrimónios) o espaço de todos os possíveis. O tempo que se aproxima é, se quisermos recuperar uma imagem antropológica fascinante, o Tempo do Sonho.

O novo milénio será, parece indubitável, a era dos visionários. E dos poetas da imagem. E a própria poesia poderá, enfim, encontrar um modo de dar uma dimensão concreta às suas imagens verbais, por mais subtis ou místicas que sejam. Não será difícil imaginar — num futuro incertamente próximo, obviamente — filmes onde a animação no sentido tradicional (e outros que serão inventados) se misture com o mais estrito realismo (seja isso o que for), requerendo um novo ajustamento de categorias e conceitos, formas de ver e códigos narrativos. Podemos começar já a deliciar-nos com a hipótese de filmes (conceito que cada vez menos fará sentido, por via das reformulações das técnicas narrativas e dos suportes) inspirados em Salvador Dali, Enki Bilal, Miguel Ângelo, Frank Miller, Dave Mckean ou Jackson Pollock, nas narrativas mitológicas bíblicas ou arcaicas, novas projecções do futuro ou inéditas ficções urbanas e científicas. Fidelidade ou reconversão, a abordagem é subjectiva, as heranças estão disponíveis e a invenção em aberto. As conexões que se estabelecerão são inumeráveis, e inimagináveis a quantidade e a qualidade das suas formas. Arte popular e arte erudita serão ideias finalmente inutilizadas pela sua obsolescência, a convergência das tecnologias da informação uma realidade. A palavra multimedia aproximar-se-á então do seu pleno sentido. Quase se poderia dizer que, virtualmente, poderemos esgotar todas as imagens. Não fosse o facto de elas se encadearem numa cadeia de geração contínua e infindável.

Que esta apologia pode enfermar de exagero é uma eventualidade que apenas o tempo confirmará ou não. Que o mundo fique insuportavelmente saturado de informação visual e se instaure um desejo de regresso ao silêncio e uma iconoclastia mais ou menos fundamentalista, uma espécie de purificação estética e moral da visão, não é de todo uma hipótese infundada — há-de mesmo ser um mandamento rigoroso para alguns. Mas não é esse o caminho que o futuro parece percorrer. Nunca como agora as possibilidades figurativas atingiram um ponto tão extremo e uma abertura tão ampla. A última fronteira ainda está longe, e o território que se oferece para exploração não só é fértil como sedutor. Novos mitos, novos ídolos, novas aparições ocorrerão — e negócios, claro.