Judge Dredd: Homem-Lei
Luís Carlos Nogueira
Abril 1998

1. "Judge Dredd", filme de Danny Cannon que adapta um personagem de culto da banda desenhada inglesa das últimas décadas, apresenta-nos a sociedade humana no seu nível mínimo de auto-regulação e, consequentemente, num estado de extremo controlo do indivíduo por uma corporação exterior, misto de entidade política, força policial e estrutura judicial.

Das inúmeras batalhas que o ser humano tem travado desde sempre (uma espécie de instância ontológica e disponibilidade pragmática que o caracteriza de sobremaneira), um dos principais embates (talvez o principal) tem sido o da confrontação com o seu semelhante. Contraposto a esta constância da luta individual ou colectiva, o trabalho da humanidade nas suas formas de organização política, por seu lado, tem sido não mais que o esforço (organizar exige a conjugação improdutiva de recursos, uma espécie de custo sem retorno), a tarefa desmesurada, inacabada e insustentável de regulação dessa propensão, natural ou cultural (motivações de sobrevivência, posse, poder, etc.), para o conflito. Ao indivíduo é imposta uma normatividade enquadrante (premissa básica da sociabilidade). Do indivíduo espera-se uma aceitação.

Mas, apesar do pragmatismo da norma e da divinização da lei, a tendência do indivíduo é inevitavelmente (mesmo que se aceite como suficientemente ordenada a convivência humana em função da força vinculativa da moral ou da obrigatoriedade coerciva do direito, ou talvez por causa disso) para a desregulação, para a criação de situações de difícil administração, aproximadamente de caos — seja em função da operatividade das pulsões ou do enunciado e prática de desobediências.

São essas desobediências que ao homem abrem possibilidades de auto-definição múltiplas. A cada momento, colocado perante cada acção específica, há sempre, pelo menos, uma dualidade de opções: praticar o mal/praticar o bem, fazer/não fazer, viver/morrer, lutar/condescender. O devir humano regula-se, se não pela imprevisibilidade, no mínimo por uma previsibilidade nunca completamente fechada. Para conformar essa possibilidade da acção no sentido da concretização de um fim ou de uma presumível essência que habitaria a humanidade, a política e a filosofia incutiram-nos ou ficcionaram ideias mais ou menos familiares de Bem, de comunidade, de sociedade ou mesmo de utopia. Ou seja, delimitações de trajecto, prescrições, pertinências, linhas de guia para uma transcendência inelutavelmente contingente. O contratualismo, o futuro, a escrituração são algumas das fórmulas do Destino. A tarefa pode ficar eternamente incompleta, mas o seu trilho nunca se apaga.

Estas construções, ideário que é objecto de reconversão cíclica, são, no entanto, demasiados frágeis e, ao exporem essa fragilidade como evidência, convocam um sentimento de liberdade (no sentido de denegação iminente, de rebeldia) tão mais apetecível e sedutor quanto mais burocrática, restritiva se apresenta a sua doutrina. A configuração jurídica ou moral torna-se então dissoluta, intolerável, prestes a ser rejeitada, reprimida, caduca, indiferente.

2. Judge Dredd é uma entidade onde são inseparáveis os níveis judiciais (acusação, julgamento, sentença, execução) de administração do castigo àqueles que transgridem a prescrição accional numa sociedade onde toda e qualquer acção está juridicamente prevista (e onde essa minuciosa prescrição legislativa não consegue operar). Contra o desprezo que o cidadão dedica à lei, aventura-se a concretização humana da mesma, concentrando num único ser (dispositivo) a responsabilidade da sua implementação.

Júri, juiz e executor confundem-se no acto de punição do delito numa única figura, Representação e Presença da ordem. Arbitrário ou cirúrgico, o seu modo de acção é, por suposição, legítimo. "Eu sou a Lei" é o seu mais elevado mandamento, e Dredd assume-se (crê-se) uma instância terminal que nos casos mais extremos não permite apelo ou remissão possível — somente a condenação à morte. Dredd é a mais material das figuras da Justiça, excluindo o institucionalismo processual da sua aplicação, aproximando o criminoso do abstraccionismo legalista sem mediação, o qual aplica sem escrúpulos, conhecedor de todas as leis, indiferente a atenuantes e imune a ambiguidades. É por isso que julgar e punir confluem num ser do qual toda a emoção ou arbitrariedade são excluídas como condição fundamental para poder aplicar, sem erro possível, a pena adequada. Trata-se da procura de uma exactidão matemática, uma espécie de profissão de fé absoluta na mecânica jurisdicional. O arbítrio é, nesse sentido, tanto menor quanto toda a sentença está devidamente estipulada nos livros da lei.

O que se ganha com a metodologia sumária, abreviada, de Dredd? Antes de mais, concentrando funções, encurta-se o tempo que a averiguação policial e a tramitação processual implicam, tempo tão mais necessário quanto os juizes actuam numa fictícia metrópole (Megacity 1, um aglomerado de centenas de milhões de habitantes resultante da fusão das cidades da costa leste dos EUA, que apesar da sua hiperbólica dimensão se revela exígua), num mundo onde o caos é a figura na qual se inscreve e, de certa forma, se governa a vida e a convivência/conflitualidade dos cidadãos nesse mesmo espaço — daí a morte, se necessária. Na margem social, reservada às enormes hordas cosmopolitas e excluídas, não há racionalidade nem estabilidade. Em face da penúria (de emprego, bens consumíveis, assumpção moral), a confrontação armada é uma constante, uma inevitabilidade, a desordem é a primeira lei, natureza adormecida do devir urbano aqui em vigília permanente — a justiça estaria, neste estado de permanente transgressão, em reiterado atraso, sem resposta possível. Isolar focos de desordem, medida prisional por excelência aqui levada a volumes desmesurados (quarteirões encarcerantes), já não basta.

Judge Dredd, um mito negativo entre os criminosos da sua metrópole, assume a lógica e a ética da generalidade dos super-heróis: seres que, por um ou outro motivo, se excluem do espaço social, nem fora da lei nem a ela absolutamente obedientes (Dredd seria, neste aspecto, um caso de certa forma distinto), que desenham para si mesmos uma ética e um código de conduta ao qual, e apenas a ele, devem respeito. São a encarnação (fantasmagórica, é certo, e viril) de uma espécie de deus de justiça infalível na qual a sociedade pode rever-se e que deverá, mais do que simbolizar ideias de Bem, agir eficiente e exemplarmente contra o crime que ela por si mesma não está habilitada a contrariar. Tais entidades são, simultaneamente, a prova da fragilidade e da impotência das sociedades e das suas instituições policiais e vigilantes para lidar com a desordem e a delinquência, carências que revelam uma espécie de maldição inescapável de que eles são o inverso e a superação: esses super-heróis são poderosos (normalmente apenas um pouco mais que os criminosos, para nos provar que as forças maléficas e benéficas praticamente se equivalem e evoluem na mesma proporção) e são, sobretudo, a figuração de um desejo, a materialização de um poder sonhado (ou múltiplos poderes: imortalidade, imponderabilidade, omnividência, telepatia, mutação biológica ou sobrenatural, imutabilidade moral) pelo homem comum que a vulnerabilidade carnal e ética não lhe possibilitam.

Contra as estratégias institucionais de poder e administração, ou melhor, condensando todas essas estratégias, Dredd é sobretudo um aplicador (operador), alguém para quem o julgamento e a punição se inscrevem num processo extremamente sumário e contínuo, e do qual a subjectividade não está de todo excluída mas assume antes um valor de acção: "eu sou a lei" — lei gloriosa, fé cega que porá o próprio Dredd encurralado num processo de acusação injusto mas que ele não pode contrariar.

Nesta figura e no mundo retratado no filme não há qualquer desejo ou espaço para a separação de poderes. Dredd é um projecto radicalmente novo. Nele reside uma crença plena das mais altas instâncias governativas na depuração genética e intelectual de um ser que, mais do que criado, é o resultado de um cálculo laboratorial, supostamente capaz de decidir infalivelmente, com total correcção, uma vez que transporta em si o que de Bom e de Bem as figuras tutelares da Ordem (os Juízes) que o pariram traziam em si.

Neste mundo de ficção, o Homem tem no espaço hiper-urbano e super-povoado o reflexo gráfico (quase diríamos estético) e a materialidade de uma configuração social da qual a secreta utopia de uma sociedade da fraternidade e da perpetuação da bondade está completamente arredada. Podemos adivinhar a solidão de cada ser humano no espaço estranho (infra-humanidade, purgatório?) das grandes cidades-continente, espécie de selva ininterrupta ou Babel sobre a qual nenhum deus já quer descer para corrigir ou abençoar pois, adivinhamo-lo, não detém sequer o poder de a destruir. Numa cidade que cresce por si, como um organismo indomado, a entropia é o único modo de a descrever e explicar. A arbitrariedade individual abdica da comunicação ou da política universal para se dar como concertação de interesses grupais, onde o conflito pode tomar várias formas que podem ir da sobrevivência ao egoísmo, do territorialismo à gratuitidade.

3. Que ser se pode substituir a Deus num mundo onde a primeira e inevitável carência é a de ordem? Só um ser nascido da mais pura, benigna, vontade e do saber mais experimentado (com o discernimento para equacionar, sem erro, misericórdia e crueldade) que o homem conseguiu subtrair da sua história de recontros e oposições. Uma fabricação absolutamente científica onde a categoria da humanidade só pode ser medida de dois modos não exclusivos — não mais que um resíduo ou que um excesso: Judge Dredd e Rico, gémeos, são as faces antagónicas (caricaturas ou sermões?) de um mesmo risco. A saber: a tecnologia e o conhecimento que podem criar o juiz mais imperturbável podem também criar o mais nefasto ou ganancioso criminoso; um só existe porque é lembrado (ou requisitado) pelo outro. Se um se reclama a vida, Rico, orgulhosa e exacerbadamente (des)humano, o outro assume-se como a lei (Dredd: alteridade, mediação). Podíamos ver esta parábola como o reino do pleno artifício, um mundo onde um holograma pode ser mortífero, se não estivesse a nossa realidade neste fim de século saturada de esboços destas ficções mais ou menos prováveis. É essa capacidade escalonada e utópica de usar a tecnologia como instrumento para atingir todas as metas que faz, num momento de desespero, um juiz-chefe enunciar com plena clareza essa visão da potência que habita a tecnologia: "play god", como se o excesso de saber (e de poder) fosse uma ultrapassagem irremediável (irreversível) dos próprios limites do humano: ao homem não estaria reservada qualquer via de regresso desse lugar diabólico da tecnopolis e da tecnicização antropológica.

A alta tecnologia é, aliás, um dos aspectos mais interessantes que povoam esta obra: a computadorização atingiu níveis de "auto-consciência" elevadíssimos e a sua natureza torna-se quase orgânica e personalizada. Se as armas utilizadas pelos marginalizados na sua constante luta armada, nas suas tarefas de terrorismo e carnificina permanente possuem já um elevado poder destruidor, mas de certo modo mantendo ainda uma estável familiaridade, as armas utilizadas pelos juizes quase se furtam à nossa imaginação: elas não são já um prolongamento do corpo mas integram-se nele como peças híbridas, tecnologia e organismo em contacto e interrelação — só uma pessoa pode usar determinada arma porque é através do reconhecimento do código de ADN que ela se torna operacional (importa aqui talvez referir que tem sido no campo da BD, impalpável e multi-possível, que mais se tem "pensado" e imaginado o alcance, poder e natureza das armas e dos seres que povoam as suas narrativas).

A velha e saudosa imagem do pistoleiro do Oeste ou do snipper mais extremoso ganham aqui contornos exponenciais: já não é uma identificação exterior (afectiva) entre utensílio e utente, feita de um conhecimento proveniente da experiência, que aqui dá sentido ao conjunto — é antes do interior do próprio organismo, da mais profunda singularidade biológica que vêm os mecanismos de fusão entre homem e arma. Os níveis de injunção entre máquina e corpo atingem então parâmetros extremamente elevados, mas não irreais. Importaria, de certo modo, a este respeito, reconstituir o modo de inscrição e evolução das armas na história da humanidade desde o arco e a flecha até ao míssil mais sofisticado e às armas imaginárias enunciadas em filmes e narrativas várias e mesmo avançar o último desafio a vencer: a incorporação da arma no corpo, tornando-os unidade bélica absoluta.

O belicismo é uma espécie de segunda pele estética deste mundo sobrelotado, um mundo de gangsterismo e agressividade quase animal (os bens e o emprego escasseiam e guerrear é a actividade principal) onde a impotência das autoridades instituicionalizadas é irremediável e a ideia de cidadania não passa de um continente para uma retórica vazia. A paz é um anseio, a guerra uma perpetuação. Incêndios, "riots", explosões, guerras de quarteirões, apelos à reciclagem alimentar, neons, miscegenização étnica são elementos de uma espécie de iconografia que sintetiza ou descreve este mundo epidemicamente violento em busca obsessiva e, obrigatoriamente, frustrada de pacificação. O paraíso, de tão afastado, nunca chegará talvez a ser mencionado ou, se calhar, nem mesmo recordado — o passado e o futuro são cortinas negras, intransponíveis, excertos de um devir mergulhado na completa desestabilização da forma das relações humanas.

4. Numa sociedade sempre à beira da implosão e do extermínio, a justiça vê-se debilmente colocada entre a facultação da liberdade e a inevitabilidade da repressão: as execuções sumárias tornam-se "inevitáveis" (como diz Dredd, resguardado pela sua dignidade inquebrantável). A ética é uma questão de oportunidade, refere Rico no seu mais elementar realismo.

A escassez de tempo para averiguação de culpas e inocências institui a pena capital como medida recorrente numa sociedade onde a tolerância está no seu grau último de desvanecimento e onde a confiança não é mais que um fantasma bondoso mas empalidecido. "Sou inocente", diz o criminoso, inevitavelmente — "sabia que ias dizer isso", riposta Dredd invariavelmente. Não há palavras verdadeiras ou sinceras, apenas vocábulos úteis, retóricas e argumentações, persuasões e fraudes.

À escassez de tempo junta-se a burocratização em catadupa das relações sociais, uma espécie de governação total das experiências, resultante da tentativa de implementação de uma nova ordem: a tradição legalista e escriturária que, pelo menos, desde Moisés se assume como modelo de solidificação da justiça encontra-se aqui num patamar altíssimo (tudo está discriminado e registado no livro que Dredd simbolicamente venera e enaltece, com as suas cláusulas, artigos, arrumação numérica, etc.).

Há ainda um esforço estratégico de vigilância permanente, uma espécie de radiografia pormenorizada de todos os espaços urbanos, método que, apesar da sua constância, se revela impotente. O sonho da omnividência está bem patente na distribuição zonal e sectorial da população — de entre essas zonas uma há que pelo seu carácter segregacionista se destaca: a Terra Amaldiçoada, local estrangeiro na medida em que neste conceito resiste ainda uma possibilidade de significação, refúgio (ou depósito) dos mais perigosos marginais, habitado, entre outros, por mutantes impiedosos e selváticos canibais. Uma espécie de cidade pretensamente inexistente ou manifestamente ignorada, contígua com Megacity mas cuidadosamente incomunicável, materialização de uma certa concepção de mundo apocalíptico (e lugar onde os juizes cumprem um dos seus últimos destinos: levar a paz aos bárbaros, a esse Inferno inóspito onde resta abandonado o ícone inanimado de uma ideia em tempos esvoaçante: a estátua da Justiça com a sua venda nos olhos, mutilada como um cadáver cuja integridade vai sendo carcomida). Em certo sentido, também aqui, no universo da mais radical excomunhão, estaríamos perante duas imagens de um mesmo conceito: Megacity não seria mais que o outro lado, hiper-habitado e dinâmico, sôfrego mas não de última penúria, um inverso da Terra Amaldiçoada.

Num mundo de ruínas e desilusões, de facções, ostracismo e detritos, Dredd tem repulsa até pelas palavras: ele não quer ouvir o que o acusado tem para dizer, numa inclemência por vezes bem próxima do fascismo. Juntamente com as palavras, Dredd afasta também as emoções porque a Justiça não deixa caber na sua operatividade a paixão e qualquer desordem afectiva traz em si um capital de perturbação cuja mensurabilidade e amanho são difíceis — como se comprova no embate entre Dredd e o seu negativo, Rico, em que aquele se vê obrigado a escolher entre a carne fraterna (o sangue) e o Livro. Só na solidão reside a imunidade à culpa e a devoção da justeza. Dredd não é mais que a sua missão, fora da qual não lhe advém qualquer sentido e carece de preenchimento. Ele é lei, puramente lei, intransigentemente lei, apenas lei.