Francis Bacon: corpos, esgares e silêncios. Ensaio-sumário.
Luís Carlos Nogueira
Junho 99

1. Da arte superlativa só podemos dizer que — uma vez que reaviva fragmentos de uma linguagem divina — é avessa a interpretações. Multiplicar os discursos, as sentenças, as inquirições em nada nos pode ajudar. Nem os adjectivos, nem os substantivos, nem os conceitos. O seu discurso é sempre excessivo, arredado das palavras e dos ideários, das descrições e das mitologias. Podemos inventariar temas e técnicas, tentar discernir idiossincrasias ou heranças, no fim resta sempre o silêncio como testemunho místico, a contemplação como paradoxo afásico.

Poucos artistas nos fazem experimentar este sentimento plurimodal, esta perturbação causada pela impotência para a fixação das verdades, como Francis Bacon. Sabemos que na violência do seu gesto e da sua intuição pictórica se põem em questão e em risco a aparência e as sensações como se de uma reconquista da unidade simbólica da realidade e da mente se tratasse, do senso e do sentido — mas parecem todas as análises enfermar da senilidade desafortunada. Por isso admitimos, contrafeitos e desiludidos, o desajuste de todas as categorias e paradigmas. Falamos de uma solenidade corpórea, tangível, erótica, religiosa, de um laço que une, ao arrepio da inteligibilidade do discurso, exuberância, teologia e morte. E sabemos que é um procedimento meramente enunciativo, sem certificado, sem prova — a frivolidade do entendimento esmaga-nos e desencanta-nos. Todo o juizo é fortuito.

2. A figuração e reconfiguração da humanidade enquanto presença, enquanto índice lapidar dos volumes e dos choques é o objecto do seu trabalho. Mas uma figuração desajustada, convulsa, irónica, quer cromática quer esquematicamente. Os corpos são submetidos a uma distorção das proporções, das texturas. As formas dão-se a ver para, através do exercício pictórico, serem violentadas, escalpelizadas, sacrificadas. Os volumes rearranjam-se para que permaneçam como potência icónica. Os esgares e as feridas emergem para retorcer a harmonia e a redescrever. Deste modo, à rotina do olhar, às convenções e expectativas dos usos, vem-se opor a instabilização do ponto de vista, uma oposição pela perturbação das regularidades — num certo sentido, uma revolução dos esquemas piedodos e assépticos da forma.

Como em toda a arte que nos subleva, também aqui vivemos sobretudo a experiência, um sacrilégio das verdades vigentes, um sufrágio carnal do existente, das visões e das matérias. Matérias que se permutam em espacialidades contíguas (corpos que se fundem) ou exílios (figuras contra fundos), pedaços de carne que se deslocam, ampliam, rasuram, apagam. O sujeito da representação já não é e ainda pertence a si mesmo, como se uma nova identidade, uma máscara, um anacronismo o excluísse do nome para o perder em verdade — nenhuma linguagem diz ou referencia, apenas toca, sempre em falência. Como tal, o sujeito sai e afasta-se de uma natureza entitária para se tornar figura. Ele não se move, é demovido, desnudado, incarnado em mancha, mancha que é ainda assim o resíduo de uma verdade que lhe resta porque o desapropriou da tautologia pictórica.

3. É a realidade que interessa a Bacon. Nada nos parece mais evidente — mesmo que a sua intuição e a sua linguagem sejam feitos de visionarismo e pugilato, o que afasta os corpos do mundo para os nutrir de iconoclastia e terrorismo. Há uma realidade sublimada e suja pela provocação da morte e da deterioração. Num certo sentido, Bacon é por isso o anti-Messias, aquele que aprisiona os entes à sua evidência de trânsito e desvanecimento. Se os corpos se dissolvem e gritam é para dar ao tema da vida a nobreza bélica que a arte reclama. Os rituais místicos, os contactos obtusos dos personagens dos seus quadros não são mais que a caução que nos permite, com alguma esperança de rigor, falar da visão de Bacon como um tacto ocular, um esforço de por as matérias em confronto com os quadros através das equações ou dos pequenos relâmpagos que podemos adivinhar na sua mente.

Da obra de Bacon irrompem em nós, sem apaziguamento racional, as tensões, as encenações, as contradições (os discursos em oposição da alma e do mundo) que, nas diversas séries, nas sucessivas variações e permanências, reelaborações e cristalizações temáticas e técnicas nos perturbam como se a busca da semelhança fosse a quimera da diferença e a perfeição fosse a abençoada terra que em cada sonho se interrompe para logo se reiniciar.

Porque comunga do misticismo da imanência, no trabalho de Bacon o irreconhecido toma o lugar, não sem querela, da familiaridade. E as convulsões da carne tornam-se facto da pintura. Será que é por causa dessa transmutação, fantasmagórica e opaca, da matéria em imagem, que se torna visível e nos agoniza, que os nossos espíritos se silenciam sem faculdades que permitam sobrevoar o abismo da incredulidade?

4. Os cenários (arcos curvos e funâmbulos, mesas-arenas e morgues, caixas transparentes, superfícies monocromáticas, jaulas, divãs-enfermarias) dão-se como indício de discrição e ao mesmo tempo como palco impressionista, irregularidade metamórfica e métrica emocional, angústia e claustrofobia, lar e estúdio. Temos superfícies e minimalismo cromático, animalidade e força, o fundo e a figura em dialéctica constante, serenada e apartada nos seus termos: vectores e fricções num salão-ringue. Só podemos observar esses embates, essas dinâmicas, essas dilacerações em silêncio, sem simbologias ou crenças, apenas ingenuidades que procuramos acertar.

Observamos a descarnação dos estatutos, das identidades, das marcas nos retratos — não saberemos nunca qual a habilidade de Bacon: talhante ou teólogo? Verificamos as fracturas, os eixos, os vórtices sugeridos, as quebras oníricas: pesadelo da carne, horror da ordem, refundação da pintura, sumptuosidade, escombro? São fragmentos de existências, ora obscenas ora informais, ora misterioas ora imanentes. O orgânico e o cromático, a espessura de um corpo e a verdade da linha desafiam-se e enamoram-se.

Esta pintura não é só uma questão de técnica, é antes de mais uma questão de linguagem, a tal linguagem divina, rochosa, feérica que o mundo nos revela: convocação dos deuses da guerra e das benevolências, das louváveis proporções e dos monstros adormecidos, das vísceras e das asceses para nos falar, em criptogramas musicados, sobre os ombros, as bocas, as tripas, as poses, os perfis, os sexos.

5. Como acede a mente à pujança do real? Se escutarmos os gritos, assinalarmos os esgares, tocarmos por breves instantes intoleráveis o abismo do negrume emocional, meditarmos o exercício do entalhe, a contagem das assimetrias, o espectro de cores que cada um invoca para dar visibilidade ao mundo, podemos decifrar algo de matéria e ideia, esbarrar nas formas e nas sensações, golpear os instantes do mundo e faze-los sangrar até se tornarem visão. Podemos munir-nos com os ensinamentos de uma escola ou com a memória, íntima e intocável, dos mestres, mas só o conseguiremos se lograrmos a implosão e a incineração dos ritos e dos mitos. Só assim podemos aceder à interioridade (conceito tão vago e desiludido) das mentes, das nossas mas sobretudo das do artista, e através desta tocar o mundo, interrogá-lo, silenciarmo-nos.

Não podemos contudo nunca enunciar o seu talento, a sua singularidade, a sua poesia que ecoa sem ser recitada. Tememos que o desafio que o mundo lança ao olhar apenas a alguns apareça como originário, radical, apocalíptico. É uma ideia talvez romântica, talvez sem louvor, talvez exígua para dizer a imaginação que nos falta, a nós comuns. Mas, humildes seremos ao reconhece-lo, não nos envergonhemos ao dizer que a experiência das nascentes e das soturas que o mundo oferece àqueles que o querem perscrutar são tesouros a poucos, muito poucos, acessíveis.

6. Violência e tragédia: assim esfacelamos a realidade, a incorporamos, a resguardamos para sermos tempo e presença no mundo. Assim Bacon decompõe os corpos, revira as entranhas, satura os cromatismos, reinventa os espaços: com bocas de sangue ancestral. Nada se insinua (e escapa) mais gravemente ao nosso entendimento que a carne, erotismo e barbárie, continente de todas as convulsões e delírios.

Bacon recria monstruosidades e fantasias; disforma, mutila: a completude é inerte, a perfeição estéril. As amputações, rasuras no tecido do mundo e acrescento de sentido (ou pelo menos, desordem), fabricam espectros e cadáveres, pedaços de seres invisíveis e urgentes, organismos esventrados pela ânsia visionária, obsessão de tocar a espessura da anti-matéria. O terror da carne e o vermelho interior assediam-nos. Amálgamas de vida, de biologia, de segredos, de cópulas, de quadraturas, de rotinas refazem-se em provas de contacto rugosas, em compressões físicas e dilacerações. A matéria dos corpos, tornada visível e, porém, ainda inefável, não é mais que uma incisão na alma — penosa, pesada, gloriosa. O conceito de representação em refazimento: não aquilo que ainda podemos ver, mas aquilo que incide, não só aquilo que perscrutamos mas um novo vocabulário ainda sem léxico. Impotentes para converter silêncios desesperados em signos, somos mais um mero adereço cenográfico, arqueólogos-figurantes que não compreenderemos nunca o tratamento do espaço como uma fusão da nudez do corpo com a planura fechada das superfícies, uma retracção e um soco no movimento da visão.

7. Na adulteração das perspectivas e na torção das coordenadas, como nas manchas onde se indefinem os contornos e os contrastes é a própria clarividência, porque coagida, que se aguça: figura e local, volumes e fundos exercitam-nos, viajam-nos, avariam-nos. Não há intelecto que se possa enfrentar com a pintura de Bacon e ainda assim permanecer fiél a qualquer crença hermenêutica. Pode embatê-lo, nunca vencê-lo. Mas abdiquemos também do silêncio, pois se a luminária uivante e viçosa desta estatuária da crueza nos submete, reivindica, por isso mesmo, uma resistência, uma voz.

O que temos diante de nós? Assimetrias, alongamentos, superposições dissolvidas, fusões, reenvios, visitações. Todo um universo — único — que, por linhas ínvias e difusas coloca em trânsito as comoções, a serenidade, os habitáculos confortáveis onde se resguardam as ideias para inquietar a mente assombrada do espectador que só renuncia ao silêncio porque a vaidade o obriga à revolta.

São arenas, palcos, quadrículas, espelhos onde a tragédia se oferece em toda a crueldade porque ela é a figura diagonal das emoções, um pouco de cisão e um pouco de deleite. O corpo a corpo só reconhece a violência: nas representações, nos fracticídos, nas fornicações, no trabalho artístico. É a celebração do seu atributo aristocrática último: dispêndio. Em Bacon não há só inspiração, degustação, cerebralidade. Há também ritual e orgia tensa, acrobacias da intimidade: com o real e com a verdade. Vectores de fustigação. Dinâmica metafísica e visceral dos tecidos, rebentamentos pictóricos, feridas e formas puras que agonizaram.