1. Há quem consiga olhar o mundo desta maneira (e conseguir criar uma maneira singular de olhar o mundo não é, nem nunca foi, feito menor, seja esta asserção tomada no seu sentido mais literal ou mais vasto): ver em cada indivíduo que se oferece à câmara ou que esta procura, na superfície reconhecida dos factos, num incerto momento não marcado pela absoluta contingência nem por uma exactidão necessária, a revelação das imperceptíveis e ínfimas mutações do familiar em incomum. Ou seja, desvelar o mundo.
Eugene Richards é um desses fotógrafos comprometidos (que não em sentido estritamente político) com o mundo que o rodeia, com as suas emanações de crueldade e solicitações de amparo. No seu olhar fotográfico parece alojar-se um modo de perscrutar e inquirir o estado das coisas e das pessoas que agarra na humanidade para a colocar em confronto permanente com a sua própria condição e consciência. Richards olha a vida e a sociedade (e o que daquela se manifesta ou oculta nesta) como se cada gesto, cada objecto, cada pequeno movimento ou silêncio pudesse ser, na brevidade de um disparo, decomposto e reconstruído com benefício de insuspeitos e renovados sentidos e sentimentos.
Os tempos da intimidade, os tempos do rito, os espaços da vida e da morte, o espaço de armazenamento ou deposição dos corpos ou da sua terapia, os rostos da carência e do despojamento são sujeitos a um escrutínio exaustivo, como se na sua recuperação para o olhar comum, na exposição da sua materialidade se procurasse ainda a sua metafísica, se procurasse recobrir às vezes o vazio com uma luminância urgente.
2. As pessoas existem no mundo de várias formas, pluralmente distintas nas suas funções, nas suas expectativas, nas lutas quotidianas, nos temperamentos, nas transições. Estar em presença no mundo significa, não apenas, mas como se de um chamamento mais pungente se tratasse — de uma prioridade na ordem das comoções —, viver em dor, esmorecer em rotinas, perpassar privações. Doenças, depauperações, fragilidades. E também, mais intermitentes, lazeres, deleites, desprendimentos. À presença do fotógrafo compete discernir a algébrica dos homens entregues entre si, elaborar equações visuais e éticas poéticas: como olhar, o que olhar, o que subtrair, o que revelar, que saliências, que contornos? Aproximar-se ou não, cindir ou abranger, excluir ou acrescentar? São estas questões que nunca parecem resolvidas no trabalho de Eugene Richards. Porque se lhe vislumbramos um modo de fazer, uma voz, um estilo, uma qualidade inimitável, sabemos que essa singularidade é complexa, não contabilizável, inefável. Sabemos que as suas imagens são conceptuais (faces ausentes, corpos escandidos, volumes e obstáculos) mas não sabemos (nem devemos) atribuir-lhe um conceito, uma definição. As suas imagens são feitas de fenómenos, acontecimentos (que se podem prolongar no tempo ou escapar-se nele), captações, sumários.
Se Richards faz um levantamento do mundo onde está ou se desloca, é antes de tudo porque toma uma posição (no sentido mais literal, põe-se em cena), avança sobre os factos ciente da precaridade ou da insistência das metamorfoses na ordem das coisas. O seu inventário é pessoal. Nele há sem dúvida algo de arte, de estético e técnico — em poucos outros repórteres fotográficos vemos de modo tão explícito a essência do trabalho fotográfico: processo de enquadramento, rasura do espaço, selecção e hierarquização de elementos, fusão imediata no decurso do tempo. É a experiência na sua minúcia e na sua explosão: geometrias, entropias, violências, paragens, actos, significações, mistérios. Matéria humana em testemunho e desvanecimento.
Na sua forma de enquadrar (ou de desenquadrar, pois nenhum certificado garante as leis do enquadramento e, se elas existem, o trabalho de Richards serve sobretudo para as problematizar) há algo de imediato e contudo calculado. Juízo e facto enleiam-se num procedimento analítico onde o sujeito fotografado e o fotógrafo se identificam sem coincidirem, onde as coisas são no olhar (e só através dele se desvelam) e permanecem em si quase na sua integridade. Os objectos e as ocorrências inscrevem-se nas camadas do tempo para dele o fotógrafo os resgatar, do tempo dos múltiplos pontos do mundo percorrido, onde cada local, cada ser é exposto de maneiras diferentes e sempre da mesma maneira. É essa a qualidade de um estilo, aquilo que o distingue.
3. Existências atravessadas por dilacerações, como se antes de mais o mundo se manifestasse em tristeza, em abandonos, como se fosse o mal quem nos comanda e ocupa. Mas não esquecendo uma visita a cada partícula do espectro amplo dos humores: macerações, crueldades, compaixões, indiferenças. Se há algo que não falta em cada fotograma de Richards é vida — mesmo na presença da morte, figura em negativo que a reforça. Cada elemento das suas imagens é um signo, uma fala, um valor, uma relação ou várias, um mensagem ou uma cifra.
Porque dizem, as suas imagens são sobretudo discursos, manifestações de uma intimidade com a experiência poucas vezes igualada em qualquer forma de expressão visual. São axiomas que nos falam da realidade como se, na visão, afastamento e aproximação, semelhança e diferença, luz e sombra, não fossem mais que procedimentos ou conceitos desmultiplicáveis, inquietantes.
Há na vida emanações que se torna imprescindível recensear. Ocorrências que somos obrigados a convocar pois remetem-nos de dentro de nós para os pacientes que nos intimidam de longe a partilhar destinos já cumpridos ou interrogados e nesse percurso a avaliarmo-nos e a comovermo-nos. Figuras que, nem com o máximo dos esforços, podemos arredar da memória, tragédias e desrazões que o correr do tempo e a convivência instaura. Fatalidades: o fim, a destruição, a criação, o princípio, como se a humanidade e a natureza se nos mostrassem enquanto formas perfeitas nutridas de acaso e mutação, de finitudes e recomeços.
4. Em Richards há um olhar absolutamente singular, se quisermos falar da forma (e também do tema): um olhar distópico, anárquico, ingerente, crítico (no sentido em que atende sobretudo às crises). E há um olhar profundamente marcado pelas formas de ver, pelas configurações que se deparam, pelos ângulos em que nos colocamos, uma inquietação que abala as estruturas comuns da representação, da centralidade e da hierarquia das figuras. Claro que nos podemos referir à arquitectura das suas pequenas narrativas em função das posições que os objectos e as pessoas neles ocupam — tal processo podemos adoptá-lo para analisar o trabalho de qualquer outro fotógrafo. Mas o que aqui se apresenta de diferente são as imprevidências, as efabulações, as elipses, as ausências, os vazios que se imiscuem nos dramas mostrados, que nos arrebatam nos seus ritmos e particularizam o trabalho de Richards. Podem ser justaposições, sobreposições, interposições, aposições, deposições, oposições — para que servem elas? Para dramatizarem, para inquietarem, para nos delapidar o óbvio que trazemos no olhar. Na obra deste fotógrafo o espaço é, fundamentalmente, obstáculos e teias, exorbitâncias e destaques, pódios e valas comuns, linhas, frisos e pormenores. Os objectos inscrevem-se no plano contra horizontes, próximos ou indefiníveis, quase sempre deslocados. Como se retraçassem (ou relevassem) o abstraccionismo que se esconde no quotidiano, os murmúrios (por vezes ruídos violentos) de um volume ou um contorno.
Esta decomposição e reapropriação visual do espaço, que parece tornar eminentemente plástico aquilo que supúnhamos estritamente jornalístico torna difícil ver o que no seu trabalho há de temático (de mensagem, de denúncia, de engagement) e o que há de pesquisa formal. Tanto melhor assim. Nada obriga um manifesto político a olvidar (ou renunciar) a estilização figurativa que procura ao exibir-se. A inteligibilidade do momento e do enquadramento torna-se esguia porque se efectua no tempo e contra o tempo, no espaço e ao arrepio do espaço, como toda a boa fotografia: no tempo dos gestos, das memórias, dos ritos, dos rostos, dos habitáculos.
5. Quando dizemos artista, o que pretendemos nomear? Um talento e uma técnica. Inspiração e uso marcados pela singularidade — voluptuosa, ascética, estruturalista, pouco importa. Interessa sim a vidência. Num repórter fotográfico, sobretudo a capacidade de entretecer as estrias do tempo e as quadrículas e irregularidades do espaço. Aquilo que faz o invisível desvelar-se no visível. É isso a edificação de um estilo, a construção de uma inteligência, a canonização pessoal de cada um dos sentimentos, as suas variações e mimeses.
Um sentimento, no caso de Richards, invadido ou determinado pelos percursos, pelos espaços, pelas presenças, pelas práticas, pelas texturas: leitos e habitáculos maternos, domésticos, necróticos, presidiários, ecuménicos, urbanos. Todo um mundo onde intimidade e recuo são desenhados por contrastes e perspectivas dinamitadas de preto e branco. Onde as composições visuais, os ângulos distorcidos e gritantes, as exclusões e inclusões na moldura se nos oferecem como metáforas, metonímias, elipses, alegorias, pequenos textos em abertura hermenêutica ampla, fragmentos novelísticos que tornam mais evidentes as instabilidades ocultas dos locais e dos actos. O movimento e a estática do mundo das pessoas, os trânsitos, contactos e pertenças, as alegrias, as dores, os vácuos são objecto de uma grafia óptica simultaneamente filosófica e intuitiva.
A fome e a demência, a cegueira e as adicções, os ferimentos e as evocações, o sangue e as lágrimas, tudo parece encontrar no olhar do fotógrafo um procedimento cirúrgico e demiúrgico: a intervenção precisa e a criação de ordem. Os elementos são destituídos, minimalizados, saturados ou cindidos: concentrações, assombrações e outras categorias da poesia e da engenharia. Como se a pesquisa estética e a pulsão narrativa encontrassem o equilíbrio pleno na manufactura e no intelecto, união de mão e espírito. E em cada mutação corpórea, em cada iluminação da tristeza e da esperança, se arregimentasse uma pequena história de vida.
6. No interior de cada plano recolocam-se e deslocam-se os actores — não uma encenação, mas a captação do teatro da vida, dos seus dramas e tragédias, das suas espectacularidades, senilidades, grandiosidades —, refazem-se as distâncias, os retratos inscritos no acaso são domados permanecendo em liberdade. Nunca o campo de visão se fecha numa fatalidade porque os tempos do mundo, a cada nano-segundo, reforçam a sua disjunção ou pertinência: o que está, o que falta, o que importa, o que invoca. As entropias momentâneas dos corpos-ruína e das matérias-caos são ajuntadas e ajustadas. Ou indefinidas, crispadas. Nas fotografias de Richards é um pouco dessa travessia nómada da verdade do mundo que se percorre. Como se as pessoas e os ritos, os esgares e as calmarias pertencessem ao tempo-todo e qualquer mundo — sem diferição semântica, sem cronologia, apenas espanto.
Temos em frente de nós, ao contemplarmos as suas fotografias, os lazeres e as derivas, as confluências e as dispersões, adivinhamos falas e ruídos, sabemos que o acaso é a neurose poética da vida comum e que esta não é mais, nos seus momentos mais evidentes, que a possibilidade de nomear ou monitorizar a familiaridade e a estranheza. Ou seja, a maior parte do tempo está escondida, muda, encapsulada. Os momentos em que essa trepidação rasga o silêncio das coisas é o que o fotógrafo visa, enfoca e sublima em instantâneos, construindo com a luminária dos visionários (que é o seu bem mais incalculável) os conteúdos da existência.
O peso dos corpos, as suas trajectórias, os desfechos e suspensões das actividades humanas, as comunidades e os órgãos enfermos revelam-se, alquimicamente, em tomadas de vista irrequietas. Talvez para a objectiva lançar sobre a vida alguma questão teológica, e nos brilhos, nas penumbras e nos volumes, dar a ver, em extremismo ou concisão, alguns esboços de uma arquitectura divina ou de um construtivismo fenoménico: o mundo como transcendência ou imanência — sempre retórica.