Notas sobre crimes, signos, arqueologia e arte
Luís Carlos Nogueira

O trabalho do detective policial é, antes de mais, um trabalho de decifração de sinais, uma busca de um significado mais amplo para os indícios que se lhe apresentam como promessas de um texto que é necessário compor para ser reescrito. Procura-se, através de um processo lógico, uma conexão entre o universo dos signos e o da realidade imediata (pós-crime), mas também a reconstituição de um estado da realidade anterior, o diagnóstico de uma forma de organização dos factos e dos elementos que é necessário reconstruir, fazendo a adequação dos índices aos referentes.

Trata-se sempre de um percurso de encontro ao mistério, de colmatação de uma lacuna, de decifração de uma verdade das coisas que a ocorrência (o atentado) fez perigar e transformou em caos. É o desvelamento daquele mistério, a prospecção para lá do nível opaco da normalidade (há que resgatar os objectos estatutariamente silenciosos à sua presumível invisibilidade, faze-los falar) de um discurso arqueológico que se efectua. Daí que a anomalia, o incidente ou o acidente, seja o registo que importa ao investigador. Como observava Sherlock Holmes, "o extraordinário é, normalmente, mais uma pista que um inconveniente". Trata-se de identificar as metamorfoses do mundo e os seus agentes.

Para melhor se entender a lógica do indício será necessário perceber que, na sua natureza, está inscrita, como valor fundamental que é preciso fazer emergir, a potencialidade da indicação: o indício é aquilo que sugere um horizonte de significado, uma mensagem cifrada que é preciso interpretar e reescrever, uma informação oculta que é pertinente averiguar. É da sua natureza também a categoria da relevância: o trabalho de decifração é sempre um trabalho de subtracção da informação determinante ao seu estado de mudez, à aparente monotonia que a funde camaleonicamente nos dados envolventes, proceder à sua instrumentalização — uma informação qualificada como útil ou pertinente para um detective é aquela que se encontra assinalada, que está marcada por uma singularidade que a faz participar de um acontecimento e denunciá-lo, que avisa e alarma, se insinua (como uma palavra sublinhada num texto, isto é, investida de um suplemento distintivo de valor). Intuir essa marca é determinante para desencadear o processo de leitura semiótica, a ligação entre significante e significado e a construção de um sentido, de uma narrativa. O valor decisivo dessa informação particular (cuja perda inviabiliza toda a investigação) é comprovado pela restrição de acesso à mesma: a área de um crime é necessariamente selada, preservando-a de qualquer interferência externa que a possa adulterar ou sonegar.

É a partir da articulação das anomalias, dos elementos que escapam ao óbvio, e que na interligação com outros elementos se assumem como materiais de construção de sentidos, que se procede ao trabalho de arqueologia do texto do crime: partindo do estado terminal (actual, porque posto em acto de determinada forma) da realidade, do resultado do crime como fenómeno, e procedendo por recuos sucessivos (dos efeitos para as causas, através de um método analítico e inferente), é a reconstituição de toda uma acção que se procura determinar. Como aconteceu (descrição), quem agiu (identificação), qual a motivação (causalidade). A realidade passa, desse modo, a assumir-se como um texto destruído, como um enunciado para o qual é necessário encontrar o seu verdadeiro sentido a partir de fragmentos indexicais, efectuar a sua hermenêutica. Trata-se, portanto, de um trabalho não só de inventariação de sinais, mas também de recriação novelística (a intriga que deve ser reencenada imaginariamente), feito por regressão até ao momento em que se está apto para atribuir novamente à realidade a forma que assumia antes da ocorrência, antes do lapso de tempo que é o crime, que irrompe na realidade para a distorcer, para a reconfigurar.

A explicação de qualquer fenómeno tem o seu ponto de partida, por norma, na formulação de hipóteses ou conjecturas (ou seja, mediante o recurso à abdução), assentando estas na confiança intuitiva que permite formular e seleccionar, de entre as inúmeras hipóteses possíveis, um conjunto restrito no qual deverá estar contida a exacta — método que a teoria dos fractais, dilatando a cadeia de relações causais entre fenómenos, exponencia e, ao mesmo tempo, porque multiplica as variáveis, inviabiliza.

Aborda-se uma singularidade inesperada utilizando um grupo de premissas, uma parte das quais é a priori aceite com um alto grau de probabilidade de conter a correcta. Do conjunto de todas as hipóteses, a lógica encarrega-se de seleccionar as mais pertinentes e rejeitar as outras. Para Charles Pierce, o papel da abdução é fulcral no processo de compreensão: ela é o "argumento original" uma vez que, das três formas de raciocínio (há que acrescentar a dedução e a indução), é a única com a qual surge uma ideia nova — "se alguma vez quisermos entender as coisas, deve ser a partir dela". Ou seja, só ela permite o acréscimo de informação e saber que é a invenção. E, não nos esqueçamos, investigar é inventar sentidos que em potência se anicham nos factos, essa verdade secreta que é preciso perscrutar para fazer falar.

À polícia está sempre reservado o papel da recolha dos dados, do arquivamento das provas, da inventariação das evidências que só o chegam a ser se integrarem uma explicação, se o encaixe e a propriedade das diversas peças for não contraditória, cumprir os requisitos necessários da inteligibilidade, constituírem uma lógica. Lógica que deve estar contida, em imperfeição, na hipótese. Ao detective está reservada a tarefa de controlador da entropia, de recuperar a plausibilidade da ordem a partir do caos, de alguém que se vê obrigado a seleccionar a informação e convertê-la em sentido. O detective é simultaneamente um semiólogo e um narrador. Observação/catalogação/articulação/quadro explicativo é a sua estrutura de acção. Há que discernir e refazer as conexões entre os múltiplos agentes e estados do mundo.

Na investigação policial estamos sempre perante uma estrutura binária de circulação da informação: ou ela passa, se revela, se presta a ser interpretada; ou se mantém na obscuridade, inatingível e inintelígivel. É disso que depende o sucesso da tarefa. A atenção ao detalhe é um exercício fundamental. "Não há nada mais enganoso que um facto óbvio" é um dos preceitos de Sherlock Holmes. Daí que haja signos que significam mais do que outros, que discursam, que falam e que, precisamente nesse sentido, podem também mentir; ou seja, o óbvio pode ser um disfarce de uma outra verdade que só a suspeição pode dar à luz.

Por isso, a percepção da informação relevante num processo de investigação toma frequentemente uma forma de certo modo semelhante com a revelação: de um estado inicialmente neutro, a realidade dá-nos a perceber a sua mutabilidade, os índices de desordem, os rumores que é preciso saber intuir e discernir, a leitura dos sintomas que é necessário fazer, a ordem que carece de ser restituída. Esta referência aos sintomas é de uma importância decisiva para se compreender o processo de detecção e leitura, uma vez que as raízes da semiótica entroncam nos antigos tratados de medicina. Desta forma, torna-se extremamente fácil compreender a recorrência constante dos investigadores policiais aos conhecimentos médicos e as pistas decisivas que estes constantemente lançam, facto retratado em inúmeros filmes policiais (como em "Seven", por exemplo).

Em "Seven - Sete Pecados Mortais", o filme escrito por Andrew Kevin Walker, realizado por David Fincher e fotografado por Darius Khondji, a acção do criminoso é toda ela enformada por uma lógica de comunicação, o crime é uma declaração, uma mensagem, por um sentido que, não sendo perceptível desde o início (porque não se esgota na lógica dos sete pecados mortais como a seguir se explana), submerge todo o ritual dando-lhe uma estrutura e um significado. Deslindar a trama do crime obriga por isso à articulação das aparências e dos factos num código de leitura estrito fora do qual se mantém ininteligível.

A actuação de John Doe, o criminoso, desenvolve-se como um work-in-progress, uma obra que vai refazendo a própria realidade e, desse modo, dando a perceber parte do seu significado, como se de uma parábola à espera de exegese se tratasse. Tudo obedece a uma organização, a um calculismo finalista — qualquer incidência casual na prevista prossecução desse projecto implica o seu reajustamento: o acaso é uma possibilidade recusada.

A escolha das vítimas e o encadeamento dos crimes estão sujeitos a critérios de concepção e concretização: o cálculo é um elemento fulcral, há um plano escrupulosamente delineado que é necessário cumprir, uma esfera de significação que não se esgota a cada passo mas recobre todo o trabalho de julgamento simbólico dos vícios da sociedade — o significado da punição de cada pecado (embora adquirindo uma possibilidade de leitura completa em si, uma mensagem suficiente à qual pode ser reduzida) prolonga-se numa sequência que ditará um desfecho específico, onde as leis da probabilidade são reduzidas ao mínimo, a uma bipolaridade: a punição/morte do criminoso, culminando de forma triunfante a execução de todo o projecto ou a piedade e perdão do mesmo, defraudando desse modo a completude de todo o empreendimento.

John Doe age segundo um propósito e é esse propósito que à polícia cabe descobrir. A sua acção assume o estatuto de uma obra de arte: um significado transcendente, uma lógica interna e uma metodologia que a aproximam da abstracção, uma estetização carnal e exibicionista (implicação dos corpos que torna o crime voluptuoso) que a traz de novo para o campo das sensações, das fruições emotivas, das empatias, como se cada corpo mutilado ou penitenciado fosse o suplemento de pathos que falta ao esquema conceptualista que estrutura o sermão.

Da sua significação intrínseca não restam dúvidas: ela deve ser recordada pelos vindouros, deve consubstanciar-se como uma espécie de testamento alegórico, um sermão. Mas, mais ainda, Doe enquanto seu agente deve consumir-se nela, tomar aí a sua própria morte, numa espécie de fusão absoluta do executor e do executado, do artista e da obra, do ser e do mundo. Só assim se cumpre na totalidade o seu acto enquanto discurso e enquanto anulação do sujeito, que pode ser imitado mas não retomado. Essa inscrição da própria morte do autor na obra rouba-lhe qualquer vestígio de incongruência, remorso ou auto-crítica — porque é pecador, o justiceiro deve também perecer, cumprir num mesmo lance o desígnio ético e estético do seu empreendimento e fechar a possibilidade de qualquer castigo exterior. É essa ponderação meticulosa dos efeitos de cada acção que dá ao criminoso um avanço sobre os detectives, a qual lhes retira a possibilidade de vislumbrar e antecipar o seguimento da acção. Para eles o entendimento do crime é sempre parcial porque carecem de informação, sendo obrigados a aguardar o devir dos factos — o texto é lido ao mesmo tempo que é escrito, até à consumação do epílogo não há interpretação possível. E depois do epílogo não há alternativa. Neste filme a inventariação dos indícios, a lógica das articulações vive-se sob a forma da angústia: sabe-se que o crime ocorrerá, mas não será evitado porque não pode ser adivinhado. A leitura que os detectives fazem da obra sofre sempre de atraso e insuficiência. A informação é manipulada, revelada ou ocultada sem contingência. Os detectives são os espectadores (e intervenientes) de uma performance cujo clímax aguardam e, contra a sua vontade, não podem evitar.

Para a lógica da detecção e da interpretação são sempre requeridas chaves de leitura: uma pragmática que elucide a utilidade de algo, a efectividade do seu uso ou a fundamentação ideológica de uma acção. Neste caso, a assumpção de um quadro de acção e significação religiosas, consumado no castigo dos sete pecados mortais é a base de todo o julgamento e é ela que vai fornecer um fio condutor. À sua luz devem ser interpretados todos os actos — mandatário divino, John Doe age tendo em conta o quadro global que estabelece: "the all picture" é como se lhe refere. Os actos remetem para outros actos até ao seu fechamento, articulando cada crime como o capítulo de um livro, cada ferida ou tortura como a frase de um romance.

O facto de John Doe elidir todo o testemunho da sua identidade até se apresentar em carne e osso perante quem o procura avidamente é um dos aspectos que complexifica ainda mais a narrativa deste filme: não pode haver impressões digitais, a manutenção do seu anonimato (salvaguarda última de todo o criminoso ou foragido, ou seja, preservação da invisibilidade: um criminoso desconhecido é um criminoso inexistente) assume aqui um relevo ainda mais vincado: ele coloca-se de fora do projecto (imaterializa-se quase magicamente, tornando-se, semioticamente falando, uma ausência silenciosa, uma voz sem boca, uma imagem sem referente) e, no entanto, faz parte dele até ao limite da morte; é ao mesmo tempo sujeito e objecto da acção, predador e vítima, demiurgo que deve expiar quando a criação finalmente se cumpre na sua plenitude.

Quando se entrega perante os seus caçadores, trata-se de uma prostração sacrificial — está pronto para assumir a sua expiação, para cumprir o papel que a si próprio reservara, viver soberanamente a morte que se predestinou a si mesmo, e ao cumprir o seu papel tornar-se signo, significado e significante, actor e público, juiz e réu, índice total que se subsume na mensagem.

Finalmente os investigadores estão aptos a redescrever o mundo e a articular os sinais inventariados — a compreender a mensagem.