Algumas reflexões sobre o cinema a partir de Adorno
Luís Carlos Nogueira
Março 98

"O cinema e a rádio não necessitam já oferecer-se como arte. A verdade de que não são senão negócio serve-lhes como ideologia que deve legitimar a porcaria que produzem deliberadamente. Auto-definem-se como indústrias".

Excluindo deste juízo, formulado por Theodor Adorno no texto "A Indústria da Cultura", a questão da rádio, meio de importância social substancial na época, mas que na actualidade já não detém tamanha influência no devir dos valores éticos ou do ideário popular, parece-nos ser esta uma posição que, pelo seu laconismo e pela sua frontalidade, merece uma avaliação e uma problematização atentas.

A ideia de que o cinema ( e em especial o cinema proveniente dos grandes estúdios) não seria mais do que um negócio (espécie de essência irrefutável que desde logo o subtrairia ao contexto primordial da arte para o colocar no domínio do nefasto capitalismo e das suas manifestações culturais próprias e empobrecidas) não enferma de total desapropriação, ainda que não possa ser assumida como um julgamento terminantemente preciso. Como todas as sentenças pretensamente definitivas, existe também aqui algo de prepotência e exagero — mas, e esse valor é incomparavelmente mais relevante, sobretudo um esforço de denúncia e aviso.

Ao contrário das artes instituídas antes do seu surgimento, o cinema comporta desde logo uma série de condições técnicas de produção que o obrigam a uma pragmática específica e incontornável: aos elevados custos de realização, quer em termos de equipamentos técnicos quer no que toca ao capital humano, será necessário responder com estratégias económicas de investimento avultadas que não abdicam de um sequente espírito de rendibilidade. Determinar em que medida essa ideologia e essa engenharia financeira condiciona a sua negação ou afirmação como expressão artística é o que se afigura como mais relevante, mas também mais difícil e se calhar sempre indecidido — isto porque, inevitavelmente, é o próprio conceito e características da arte que tem de ser questionado: impulso criador autónomo e interior, desejosamente inconstrangido e ilimitado, cumprimento definitivo da sua independência de qualquer valor material no fechamento sobre a sua própria mensagem, fim e processo em coincidência e auto-suficiência; ou, pelo contrário, programa de entretenimento massificadamente dirigido, objecto de cálculo e procedimento estatístico, previsível nos efeitos e nos propósitos. Dois pólos que tornam a estabilização do conceito de uma improbabilidade enorme.

A sua natureza assumidamente industrial e comercial e a sua propensão essencial (talvez devida a essa natureza) para o espectáculo de multidões são inegáveis. Mas a existência deste condicionalismo não exclui implicitamente a possibilidade do talento e da criatividade, e nem todos os objectos fílmicos obedecem estritamente a essas exigências de rendibilidade industrial — são múltiplos os títulos provenientes dos grandes estúdios que se incluem legitimamente entre as grandes obras de arte de todos os tempos e nas quais o objectivo de produção primário (o lucro) se torna, ao fim e ao cabo, uma questão subsidiária, embora nunca menosprezada. Neste aspecto, são também relevantes os contributos que na actualidade as produções europeias (estrategicamente, escrupulosamente ou necessariamente artísticas) e as produções provenientes do cinema independente americano têm dado para contrariar o qualificativo de "porcaria" com o qual Adorno descreveu a produção cinematográfica no texto atrás indicado. Mesmo que acabem por ser, enquanto antítese, a melhor forma de aclarar uma ideia de indústria, modelo que recusam em nome da diferença, mas que a ditadura do mercado faz cada vez mais perigar.

Ainda assim, a auto-legitimação que a indústria cinematográfica encontra para si é indesmentível e, talvez, tão poderosa (porque constituída enquanto sistema) como necessária (lógica e condição da sua própria existência e perpetuação) — devido à forma como a própria ideologia capitalista (tornada praxis sem abdicação) que regula quase todas as actividades humanas das sociedades contemporâneas se lhe impõe (e na qual ela actua).

O estereotipo

Desse funcionamento enquanto sistema, dessa obrigatoriedade de cumprir critérios económicos surgem inevitavelmente modelos narrativos estereotipados, uniformizações éticas das mensagens e estéticas das formas capazes de satisfazer os desejos criados no e pelo público consumidor. Segundo Adorno, "a cultura marca hoje tudo com um traço de semelhança. Cinema, rádio e revistas constituem um sistema". Essa presumível similaridade e medianização dos produtos culturais (se bem que se possa também falar de obras de arte, o uso desta definição parece cada vez menos apropriado) e das suas formas de concepção, apresentação e circulação, apesar de parecer mostrar-se como evidência total, terá de ser restringida à sua verdadeira amplitude: não absoluta mas maioritária. Se é certo que os objectos são pensados pela indústria cultural primeiramente em função do seu carácter de substituibilidade, em que as alterações são uma necessidade provocada pelo esgotamento do poder feiticista dos modelos instituídos e não um objectivo comandado por um propósito de experimentação, não é raro que o sentido da mutação das formas artísticas seja um imperativo criativo e que uma espécie de subversão se manifeste contra o conformismo generalizado. Pode por isso advogar-se que a possibilidade da criatividade e da autonomia artística (categorias mais míticas do que propriamente operacionais) não está inteiramente vedada no interior das indústrias da cultura. Ou seja, não é liminarmente justo afirmar-se que "tudo muda para que tudo fique na mesma" e que a homogeneização seja mandamento sem excepção.

O regime de produção cinematográfica é aliás elucidativo nesse aspecto: a recusa e a margem são valores senão encorajados pelo menos apreciados, e a experimentação não é um valor de todo ignorado ou subestimado (bem pelo contrário) mesmo por aqueles (os executivos) atormentados por uma fobia exasperada a qualquer vestígio de hermetismo ou heresia. É certo que se trata de uma estratégia dissimulada e que esses valores são apenas estimulados ou tolerados na medida em que trazem já inscrito em si um destino: a sua integração posterior no sistema de produção economicista e generalista, a sua performance no mercado. Mas (podemos, por outro lado, questinar-nos) haverá procedimento socialmente mais adequado (ou melhor, poder-se-á conceber serviço mais útil a uma democratização da cultuta) que esse de trazer, para o interior dos grandes estúdios de produção de abrangência planetária, o talento e a competência daqueles que procuram precisamente a ultrapassagem e a desconstrução das fórmulas estabelecidas, para depois fazer chegar ao grande público as suas visões, ainda que esta integração seja, naturalmente, objecto de cedências ou tréguas por parte dos dissidentes? A oposição ao establishment não é frontal (por vezes é-o, obviamente) mas é o próprio establishment que assume a mudança como uma necessidade natural. Adorno serve-se do exemplo de Orson Welles para ilustrar esta situação: "Todas as violações dos hábitos do ofício cometidas por Orson Welles são-lhe perdoadas, porque elas (como incorrecções calculadas) não fazem mais que reforçar e confirmar a validade do sistema". Por paradoxal que se afigure, apesar do tom de acusação com que Adorno profere este juízo, trata-se de um exemplo cuja análise é complicada (o que ilustra bem a ambivalência do processo) uma vez que, se tivermos em conta os resultados estritamente cinematográficos, é por todos conhecido o lugar ocupado por Welles na História do Cinema e a contribuição dada para a invenção, consolidação ou maturidade da linguagem cinematográfica e dos seus conteúdos.

Mas se é certo que na história do cinema é vasto o conjunto de nomes de realizadores com lugar obrigatório em qualquer listagem de personalidades marcantes da arte do século XX, não deixa de ser verdade que foi um interminável role dos chamados "tarefeiros" quem alimentou a indústria no que ela tem de criativamente menos autónomo, as chamadas encomendas. A esta face negativa — ou, contra a nostalgia de um puritanismo divinatório da arte, essência primeira — da indústria, que não é possível ignorar, não há discurso benevolente que lhe retire a opacidade de objectos sem pretensões artísticas ou disfarce as suas características de pura mercadoria (onde não há procura de elevação, mas finalidade unívoca), óbvio objecto de marketing, fraude meticulosamente dissimulada porque é oferecida ao arrepio de qualquer requisito crítico por parte do destinatário.

É aquela dinâmica de integração das visões marginais que tem, em muitos casos, contribuído para a mais ou menos permanente revitalização e depuração da qualidade das formas e dos códigos dos trabalhos cinematográficos estrategicamente mais universalistas. A novidade e a ousadia (em parâmetros devidamente quantificados, uma vez que os critérios de inteligibilidade generalista são fundamentais, e o público de massa possui um grau desapontador de impreparação cultural e uma capacidade interpretativa que pouco oscila em relação ao escalão da mediania) não são categorias de todo rejeitadas. A junção daquelas características com a disponibilidade financeira e de meios técnicos das chamadas majors abre, muitas vezes, perspectivas de uma reciprocidade positiva: o autor obriga-se a concessões em benefício de um alargamento de público. Mecanismo obsceno? Talvez, mas também processo adaptativo.

Não deixará, por outro lado, de ser verdadeiro que a diversidade temática e de géneros alimentados pela indústria (e, obviamente, e em maior escala, pelos circuitos underground) é, em si, um estímulo à diferenciação: o culto de um ou outro género incita a criação de segmentos de consumidores específicos que, em função desse apego a um determinado género, se furtam ao puro consumismo, a uma passividade conformista, para se assumirem como conhecedores e juizes habilitados a discutir os códigos particulares dos produtos usufruídos e, através da crítica ou da abstinência, a contribuir para a sua reformulação. Por isso, e apesar de ser obrigatório o reconhecimento de que os géneros só se constituem enquanto tal em função da sua popularidade (categoria que não deve ser vista como um valor decididamente negativo), talvez não seja completamente aceitável a tonalidade negativa e a má-fé colocada por Adorno na proposição segundo a qual "as distinções entre películas de tipo A e B, por exemplo, mais do que procederem do objecto em si, servem para classificar, organizar e manipular os consumidores. Para todos há algo previsto". É inegável que essa previsibilidade dos desejos dos consumidores/espectadores é uma garantia que as companhias produtoras assumem para seu próprio benefício. O que é mais discutível é o carácter de totalitarismo e má-fé com que Adorno a define e que parece ignorar o facto de as formas narrativas serem muitas vezes influenciadas por arquétipos cuja reconversão só ocasionalmente é conseguida. Ou seja, independentemente das rotinas conformistas, há hábitos narrativos dificilmente negligenciáveis.

Dar ao público o que ele quer ver é um dos axiomas essenciais e historicamente consolidados pela indústria de Hollywood. É todo um programa de acção e uma arregimentação de esforços que desse modo se cauciona. O sentido da produção é comercialmente delineado e, pretensamente, com uma legitimidade que só arduamente se pode atacar. Produz-se com a perspectiva de, sempre em função de limiares de rendibilidade. "A constituição do público, que em teoria e de facto favorece o sistema da indústria cultural, é uma parte do sistema, não a sua desculpa", afirma Adorno. Mais uma vez este pensador consegue enunciar, com a pertinência e a profundidade devidas, o "problema". Pertinência porque, todas as evidências o atestam, é realmente esse o modo de operar das indústrias da cultura, sem o qual, aliás, elas nunca se constituiriam como tal. E profundidade porque, na medida em que se ajuíza essa realidade como um problema, a sua solução terá de ser necessariamente procurada no exterior da própria indústria, através da superação do seu modelo, já que propor alterações súbitas no seu funcionamento vai contra os preceitos mais radicais que a regulam, ou seja, questionam a sua fundamentação ideológica.

Ficção vs. realidade

"Quanto mais completa e integralmente as técnicas cinematográficas duplicam os objectos empíricos, tanto mais fácil se torna hoje a ilusão de que o mundo exterior é o simples prolongamento do que se conhece no cinema". Esta ideia de (con)fusão entre a realidade quotidiana e aquilo que é mostrado nos meios de comunicação, e sobretudo no cinema, continua a verificar-se na actualidade, embora em moldes diferentes daqueles (mais empíricos e de carácter mais psicológico, estamos em crer) definidos por Adorno. Um dos aspectos em que se pode atestar a existência desse limiar e a proximidade dessas duas instâncias é a sempre recorrente questão da influência da violência representada nos comportamentos dos espectadores e as atitudes de emulação e imitação supostamente existentes.

Essa eventual identificação ou transferência entre os níveis da ficção e da realidade tem uma amplitude variável, mas é certo que a maneira como construímos a nossa visão do mundo, encetamos as nossas relações e delineamos objectivos são em grande medida enformados pelos valores estéticos, éticos e políticos que averiguamos no ecrã — nisso haverá certamente que enunciar o papel das vedetas e dos heróis, padrões morais que, na sua natureza duplamente ordinária e extraordinária, e modelos de identificação e projecção do espectador, se configuram como ícones de um limbo onde o realismo e a idealização se indiferenciam.

"Na medida em que o cinema não deixa à fantasia nem ao pensamento dos espectadores nenhuma dimensão em que possam mover-se por sua própria conta, eles são adestrados para que identifiquem cinema com realidade". Este reducionismo da participação do espectador no processo de interpretação de uma obra supõe a existência de uma total passividade do espectador perante o objecto fílmico, a qual seria, por norma, disposição inescapável. Na sala de cinema, a alienação seria a modalidade primeira da recepção e à reflexão não estaria reservado qualquer espaço.

"O cinema paralisa a imaginação e a espontaneidade", refere Adorno. A visão negativa do cinema que Adorno deixa transparecer em todo o texto sobre "A Indústria Cultural" levou-o a proferir declarações tão contundentes como esta. Essa possível redução das faculdades imaginativas defendida por Adorno poderá ser compreendida se tivermos em conta as exigências que na sua opinião os filmes congregam: rapidez de intuição, capacidade de observação e competência específica, mas ao mesmo tempo proibição da actividade pensante do espectador. Como se ao cinéfilo, sobretudo ao menos informado, convenhamos, estivesse vedada a esperança de qualquer faculdade hermenêutica ou, sejamos um pouco optimistas, só muito tenuemente o discernimento fosse possível. O cinema é também narcose, não o neguemos, mas é também estímulo, mesmo que nefasto, manipulado.

Deste modo, os valores estruturais da arte cinematográfica estariam mais dirigidos para a narração do que para a reflexão, realidade desde sempre assumida pelos chefes das companhia produtoras de Hollywood e, possivelmente, a causa fulcral do seu sucesso massivo. Isso não nos deve levar, contudo, a vislumbrar uma tenebrosa incompatibilidade entre ambas as categorias. Como consequência desse facto, e tendo em vista a satisfação e diversão dos espectadores, a indústria cinematográfica vê-se obrigada a proceder à modelização das suas narrativas, à canonização dos valores éticos e estéticos. Nisso não difere muito da sua antítese, a arte de vanguarda (que o cinema também conheceu) que, também ela, embora assentando em valores simetricamente inversos, fixa positivamente, mediante as suas proibições anti-burguesas, a sua própria linguagem (iconoclasta por necessidade), a sua sintaxe e o seu vocabulário, por inerência e, muitas vezes, por vaidade, esotéricos. Ao que a indústria cultural enaltece (o entretenimento, a massificação, a simplicidade interpretativa, a mensagem popular, a procura da uniformidade) a vanguarda responde com o seu contrário (a reflexão, o elitismo, a complexidade de sentidos e raciocínios, o fechamento iniciático, a transgressão). No entanto, assumir que as faculdades perceptivas ou reflexivas do espectador são estioladas pelas formas de expressão cinematográfica é erróneo: em primeiro lugar, porque essas formas são múltiplas, podendo ir do melodrama ou do documentário ao thriller e à ficção científica e, em segundo, porque as variáveis narrativas desmultiplicam-se quer conforme a tradição em que se inscreve um autor quer mediante as exigências de um género específico. As faculdades transformam-se, os modelos aperfeiçoam-se. O paradigma de uma monotonia e de uma linearidade que ameaçadoramente frustram a possibilidade de diversificação da vozes é verificável, mas não hegemónico. Talvez dialecticamente indispensável, mas não irresistível.

"Ao sancionar astutamente os pedidos de género em pacote, (a indústria cinematográfica) instaura a harmonia total. Perícia e competência específica são proscritas como presunção de quem se crê superior aos demais, quando a cultura distribuiu tão democraticamente os seus privilégios entre todos. O conformismo dos consumidores, como a insolência da produção que estes alimentam, adquire uma boa consciência. Esse conformismo contenta-se com a eterna repetição do mesmo". Divertir-se significa estar de acordo. Esta premissa representa uma apologia da noção de sociedade e da sua coesão — deste modo, pode falar-se de um ganho duplo (que para Adorno seria um prejuízo): o indivíduo ganha em satisfação pessoal, ao mesmo tempo que a sociedade reforça o seu sentido de integração; as grandes narrativas servem antes de tudo esse esforço de partilha. A indústria cultural é pois, parece outorgar Adorno, um modo de filtragem dos valores éticos e estéticos com que a sociedade se sustenta, encaminhada desse modo para uma harmonia paralisante. Sob a aparência de participação premente do indivíduo, a indústria retirar-lhe-ia, através da veiculação de valores aceites ou moldes configuradores, as possibilidade de transgressão que ele poderia experienciar e, em parte, procederia a uma restrição dos instintos, sendo cada um manipulado e dirigido pelas instâncias produtoras de bens e mensagens culturais. Um mero joguete pavloviano. Não devemos escamotear, no entanto, que estar integrado é não só uma estratégia dos meios de expressão de massas, mas um desejo do próprio indivíduo a quem o ostracismo causa mágoa — daí a recusa da solidão e a constante sublimação da sua existência, substituindo a dor da exterioridade orbital por um sentimento de adesão e pertença a uma ordem que a todos beneficia. "Quem perante a potência da monotonia ainda duvida é louco", defende, ironicamente, Adorno. Mas de que outro modo se poderia associar a humanidade senão na promessa de uma monotonia afectiva que, naturalmente, encontra e assinala os seus dissidentes, os vírus que a instabilizam para a vivificarem?

O Comércio e a arte

Como acontece em todas as artes, mas de uma forma muito especial, pela sua dimensão, no caso do cinema, não é concebível a sua existência sem público. Como refere Erwin Panofsky, "os filmes são originariamente um produto de arte folclórica genuína". É para o público que os filmes são realizados, com investimentos de larga escala para os quais será necessária uma compensação do risco corrido. As produtoras querem a sua própria satisfação tal como o público deseja diversão (ou comoção). Nesse sentido, os filmes restabeleceram aquele contacto dinâmico e uterino entre a produção artística e o consumo da arte que as manifestações artísticas por mais que uma vez se esforçaram por declinar, como se a laude popular fosse um índice de prostituição.

Esse sucesso comercial do cinema vem desde os seus primórdios — os primeiros filmes satisfaziam uma série de anseios de uma dimensão eminentemente popular, arquétipos narrativos e valores imperecíveis: um sentido primitivo da justiça, espécie de súmula moral projectada no ecrã; um instinto primordial de derramamento de sangue que se mantém exorbitado na actualidade, com a violência a ser um dos elementos narrativos mais privilegiados no cinema do fim de milénio; gosto pela pornografia leve e grosseiro sentido de humor. É desse modo que se podem entender os estereótipos que se foram consolidando ao longo da história do cinema como resposta à exigência dos espectadores, aos requisitos de uma sociedade que se vê reflectida no ecrã, juntamente com os seus medos mais profundos e as suas alegrias mais efusivas. Nada que cem anos depois se tenha alterado substancialmente. É o circuito do cinema-émulo-da-sociedade-émulo-do-cinema em influência recíproca. Como diz Panofsky, trata-se de uma exigência de comunicabilidade (democrática) que torna a arte comercial "mais vital, e portanto muito mais efectiva, para melhor ou pior, que a arte séria".

"Embora seja verdadeiro que a arte comercial esteja sempre em perigo de terminar como uma prostituta, é igualmente verdade que a arte não comercial corre sempre o risco de terminar como uma solteirona". O que se perde então num e noutro caso? Um sentimento erótico da arte ou a sua dignidade virtuosa? Professar a fé numa ética puritana contra a sordidez do negócio e do povo ou celebrar o prazer comum como benção ou orgia despreocupada? É daquela forma crua mas extremamente transparente que Panofsky sintetiza a dualidade entre uma arte escondida no seu elitismo, ciente dos seus valores e princípios dos quais não abre mão, eminentemente iniciática ou, pelo menos, selectiva, e uma arte que ao ignorar as acusações de massificação se contenta com o facto de se poder assumir como uma manifestação objectiva de partilha. Os custos da assumpção de uma ou outra perspectiva são inegáveis: de um lado uma medianização, do outro o elitismo. Também neste aspecto o cinema se mantém, mais que tudo, oscilante entre uma e outra consubstanciação, sendo na vida moderna "o que a maioria das outras artes deixaram de ser, não um enfeite e sim uma necessidade", como sustenta Panofsky.

No fundo, trata-se de uma divisão de certa forma artificial e que surgiu e sobrevive como resposta à crescente massificação das formas artísticas — a realidade inaugurada pela possibilidade da sua reprodutibilidade técnica. "Com o advento do primeiro meio de reprodução verdadeiramente revolucionário, a fotografia, e com o surgimento do socialismo, a arte sentiu o aproximar da crise que se tornaria evidente um século depois. Na altura, a reacção foi através da doutrina da arte pela arte, ou seja, uma teologia da arte — uma arte pura sem qualquer função social". É deste modo que Walter Benjamin descreve o advento da concepção anti-comercial da arte, uma concepção que se assumia como resistência ao desaparecimento de um certo conceito aristocrático de manifestação e fruição artística, e que, no que toca ao cinema, tem certa similaridade com o movimento da nouvelle vague que em França a meio deste século procurou encontrar para o cinema uma riqueza intelectual e uma experimentação formal contra os modelos narrativos vigentes, cansado que estava dos cânones (e usos) demasiado evidentes e petrificantes que urgia devassar para rejuvenescer.

"A arte sempre foi comercial, serve um público, não o impulso criativo de um autor", refere Panofsky — e podia-se acrescentar: não exclusivamente. É de crer que esta afirmação não pretende significar uma anulação do papel do autor, mas antes que as suas capacidades e talento desde sempre estiveram ao serviço de entidades social ou politicamente determinadas. É no grau de autonomia conseguida no interior dessas relações que se jogam os níveis de autoridade e se estabelece a tipologia da obra produzida. Um realizador não será unicamente um serviçal, mas alguém que no trabalho corporativo que tem que desenvolver pode ou não tomar determinadas opções: soberano ou súbdito, como em todas as relações de poder, também aqui a negociação (ou a intransigência) se joga entre estes dois extremos.

Esta dimensão de trabalho conjunto, em equipa, própria da produção cinematográfica é um dos aspectos que interessa analisar, e que coloca em questão a noção clássica de autor. O cinema é uma arte de múltiplas competências e contributos: do operador de câmara, do responsável pela montagem, do director de fotografia, do argumentista, dos actores, do criador da banda sonora, do cenógrafo e, importantíssimo, do produtor. É por isso que, no conjunto destas diversas contribuições, a figura do cineasta adquire um estatuto específico e a questão da autoridade se encontra mais ou menos diluída — se no caso da generalidade do cinema europeu, a noção de autor é apropriada, já que a sua autonomia é bastante ampla e a sua visão por norma prevalecente, no que respeita aos estúdios americanos, a noção de directorial personality parece mais exacta, uma vez que a sua tarefa é concertar a acção dos diversos participantes na realização do filme, que só um autoritarismo por vezes muito forte é garantia de autonomia e de fidelidade aos anseios que o movem. Frequentemente os melhores resultados (são a análise e o empirismo que no-lo asseguram) advêm do trabalho desse tipo de criadores, quase tirânicos.

"Todos os grandes filmes americanos — inscritos numa complexa tradição de géneros e alimentada pelas aspirações e medos de toda uma cultura — transcendem o trabalho do próprio realizador e, simultaneamente, seriam inconcebíveis sem ele", refere Robin Wood. A essa dicotomia criador individual/obra de estúdio corresponderia uma outra assente nos termos arte/entretenimento. Nesta problemática inscrever-se-ia, transversal mas apropriadamente, uma outra: a dos efeitos maléficos (diabolizantes, poderia mesmo afirmar-se) provocados pelo surgimento e instauração das chamadas indústrias culturais e que acarretaria um presumível empobrecimento estilístico das manifestações artísticas. Ao endeusamento (efectuado pela teoria conservadora da cultura) do estilo autêntico sucederia um estilo artificial, de onde estaria arredada a necessidade interior do artista, em função da obediência estrita às normas de produção capitalista. É toda a autonomia da arte como edifício de princípios sólidos, como espaço de onde toda a possibilidade do pacto ou da negociação estaria ausente, que assim se vê ameaçada e mesmo recusada.

Desse modo, "o estilo da indústria cultural seria em si mesmo a negação do estilo" — o que não deixa também de ser uma afirmação ao mesmo tempo perturbadora e excessiva: o conceito de estilo não deixou de ser aplicado no contexto das indústrias culturais contemporâneas e, sobretudo, com grande propriedade. A singularidade das visões estéticas e o estatuto de autor permanecem suficientemente vivas (mas não sagradas), continuando a ser possível identificar uma série de nomes e obras notáveis absolutamente demarcados do conjunto indiferenciado das produções culturais — e, curiosamente, muitos deles surgidos e instituídos no interior (o que não significa de uma forma pacífica) da própria indústria.

A ideia de crise não é pois completamente apropriada para definir o trabalho e o estatuto da arte no âmbito das indústrias da cultura. Mais que depauperação, houve sobretudo mutação dos seus valores e categorias de identificação. E, talvez, uma ressurreição da sua etimologia mais profunda: a arte como uma técnica, um saber-fazer, uma perspectiva instrumental que não pode nunca escapar dos modelos sociais e políticos em que se insere e a condicionam. Nesse aspecto a imediaticidade da relação do cinema com o enquadramento político e económico exibe, de forma cristalina, a impossibilidade de recusar uma moral subjacente à sua produção.