O ciberespaço: utopia ou prótese?

Luís Carlos Nogueira, Universidade da Beira Interior

(2001)

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De um lado a prótese, do outro a utopia. Será aparente a existência aqui de uma oposição. Podemos articular estes dois conceitos com estreiteza lógica: a utopia seria a última prótese da sociedade, como a prótese seria o instrumento da utopia. Se há um fabrico do destino humano, ele passa tanto pelos fins, como pelos meios. Se há uma utopia escondida algures à espera da sua revelação (mesmo que nos recusemos a nomeá-la, por agora), podemos bem ver nas múltiplas formas da maquinaria alguns dos utensílios da sua invenção. O fazer político e o desenho do social são atravessados, eventualmente mais do que se suspeita, pelo discurso discreto mas efectivo da tecnologia. Nas décadas mais recentes, a tecnologia abriu espaço para uma outra utopia possível: o ciberespaço, de forma ainda indefinida: mais totalista ou mais prosaico, mais imersivo ou mais fragmentário. Temos em seu redor todo o poder dos visionários (sejam eles eminentes cientistas ou escritores de ficção científica) e as suas crenças e temos os experimentos com que ele tem sido até agora fragmentariamente materializado: a internet e a realidade virtual.

Se desejarmos, podemos ver um duplo processo naquilo que desde há poucas décadas se tem configurado como um novo paradigma, o paradigma do ciberespaço, sendo este a extensão comunicacional do paradigma cibernético. Por um lado, a ideia da construção de um ambiente artificialmente criado capaz de possibilitar a imersão imediata tem tanto a forma de um conto de ficção científica quanto de um dogma possibilitado pelas tecnologias da informação. Por outro, há nas próprias tecnologias da informação, na sua base material (os bits) e nas suas formas concretas (sobretudo a internet) algo que reivindica essa ideia e que advém do facto de a informação na era da cibernética parecer escapar de uma natureza física e dispensar o requisito de um suporte.

Ao constatar estes factos apercebemo-nos então que não é estritamente da ordem do delírio e do desejo esse sentimento de que um dia poderá (ou mesmo, quererá) a humanidade realmente repartir a sua existência entre um espaço físico, urbano, natural, aquilo que à falta de melhor se poderá ilustrar como realidade, e um espaço-outro, passível de ser navegado deixando o corpo para trás, um espaço de paisagens, nódulos e sítios apenas feito de data, puro objecto de design e projecto. No limite, poder-se-á mesmo especular que existirá em aberto a possibilidade de mergulhar para sempre nesse espaço, diluir a  consciência individual numa rede inteligente colectiva e permanecer eternamente nesse limbo.

Que, para os mais cépticos, não seja fácil intuir esse espaço como mais que uma possibilidade utópica não possui nada de anormal. Em primeiro lugar, porque parece estar bem longe do ponto de vista tecnológico a sua exequibilidade. Em segundo, porque nem capazes de imaginar a sua configuração e as formas da sua sociabilidade somos capazes. Mas, se de uma promessa se trata, ela entronca em preceitos bem mensuráveis: a medida desta utopia intersecta com particular acuidade o percurso que a comunicação humana desde sempre prosseguiu: a ideia de uma forma (um código e um canal) de comunicação imediata, eficiente e ubíqua. As redes viárias poderão ser a sua pré-história, como os sinais de fumo ou a oralidade; depois a escrita a inaugurar uma nova realidade, que prosseguiu com o livro, a televisão, a internet. Tudo dispositivos capazes de fazer comunicar cada vez mais depressa, mais longe. Não estaremos longe do óbvio se aceitarmos que a necessidade e a vontade de comunicar é aquilo que de mais imanente existe na natureza humana. O mito, o conhecimento, a paixão, a viagem, o que são senão modos vários de ir de encontro aos pares de uma comunidade?

Socorramo-nos de uma ideia de Jaron Lanier, um dos pioneiros da área da realidade virtual para irmos de encontro ao pulsar contemporâneo. Fala ele de um totalismo cibernético. Consiste no seguinte: algo como um modelo que enquadraria quer o actual programa da investigação científica quer o regime genérico de organização social no mundo ocidental. Uma ideia que, como refere aquele investigador, “tem o potencial para transformar a experiência humana mais poderosamente do que qualquer ideologia, religião ou sistema político anteriores alguma vez fizeram”. É sempre possível perguntar: será mesmo a cibernética o melhor meio, ou mesmo o último, para adequadamente compreender ou construir a realidade? Não existiu já na religião, no mito, no racionalismo a mesma promessa? Será que a existência humana, a subjectividade, a consciência, a inteligência, as emoções e todas as suas manifestações se podem reduzir a padrões cibernéticos, à pesquisa e recolha de informação e à construção das melhores máquinas, modelos e programas para o seu tratamento, armazenamento e uso? Nada garante que assim seja, mas a realidade é iniludível: é no centro deste paradigma que nos encontramos, e sejam quais forem as suas evoluções futuras, as metamorfoses dos instrumentos e das ideias que agora nos ocupam, o futuro será evidentemente condicionado por eles.

Poderemos não estar condenados a assistir àquilo que matematicamente se denomina uma singularidade, um ponto na curva de aceleração do progresso científico e tecnológico a partir do qual a ordem de mudança se torna infinita e deixa de ser possível construir modelos razoáveis para entender o futuro, uma vez que este se torna absolutamente imprevisível (ideia partilhada, por exemplo, pelo cientista Ray Kurzweil ou pelo escritor Vernor Vinge). Mas, de uma forma mais modesta, não é isso que já agora se passa, não é cada vez mais partilhado o sentimento de que os inventos, os quadros teóricos e conceptuais, os modelos de socialidade, os produtos da investigação, parecem pôr-nos numa busca incessante, e por vezes aparentemente infrutífera, de ideias, lógicas, equações e nomes que moldem o seu entendimento? Procuramos entender o funcionamento do cérebro, recriar artificialmente os processos da inteligência, construir nano-máquinas, criar super-computadores, cartografar o genoma humano, manipular a determinação genética, dar inteligência aos edifícios, ligar todos os computadores do mundo numa network global. São tarefas cujas implicações num futuro mais ou menos imediato não vislumbramos... ainda. É nesta amálgama de projectos que se resolve diariamente o nosso futuro. E contudo, o pensamento como a política parecem sempre estar demasiado fora ou algures atrás destas ocorrências sem que as possam compreender ou enquadrar. Se não é líquido que haja um determinismo tecnológico que garantiria à técnica a autonomia da sua lógica e a autocracia do seu poder, é pelo menos evidente que a nossa relação com ela é se não cega, pelo menos míope.

Não é difícil perceber que a meia dúzia de décadas que leva o surgimento da cibernética metamorfoseou a natureza das relações subjectivas e enformou eormemente as novas visões do mundo. Aquilo que nos pode surpreender mais neste processo é apenas a rapidez das mutações, pois não é de todo descabido advogar que o próprio conhecimento humano tenha sido desde sempre exponencial, ou seja, que a criatividade humana terá beneficiado, de alguma forma e em algum momento, de uma espécie de algoritmo que lhe permitiu surgir, ou seja, começar a pensar: no fundo, a possibilidade de fixar, articular e transferir signos - nada mais que... comunicar. Podemos talvez situar esse momento como aquele em que surgiu a linguagem. Com as suas possibilidades de significação e combinatórias, poder descritivo, de evocação, de nomeação, de raciocínio, o seu uso e a sua depuração terão permitido a primeira manifestação do virtual: um modo de representação que abandona o referente para entrar no domínio do jogo, dos jogos de linguagem, das metáforas, das hipérboles, das elipses, de todas essas formas gramaticais, estilísticas e campos semânticos que desembocariam na realidade virtual das palavras, das frases, das proposições - no fim, da lógica e do cálculo. Serão a matemática e a arte, a mitologia e a economia produtos ou processos assentes na linguagem, em cujas vantagens algorítmicas assenta a inteligência humana, ou, de forma inversa, fases e territórios onde, de certa forma, os mecanismos psicológicos e cognitivos encontraram os materiais necessários para a evolução do pensamento e da ciência? Ao certo sabemos o mesmo desde há muito: que sem linguagem não há pensamento e sem pensamento não há linguagem. E que um e outro são processos sobretudo metamórficos mais do que miméticos. Que força inovadora, inaugural, terá então a cibernética trazido para o conhecimento humano? Tão só tornado evidente que tudo é informação. Ideia que as tecnologias da informação servem e de que se serviram para dar mais um salto no processo de entendimento da(s) realidade(s): exponenciando a capacidade de recolha e processamento de informação, tarefa na qual os computadores são prestimosos auxiliares, a humanidade parece finalmente capaz de desafiar qualquer obstáculo ou questão: a vida, a consciência, a morte, no fim, para voltarmos onde tudo parece sempre ter começado, Deus mesmo, nada parece alheio a esse desejo de omnisciência e a essa intuição de omnipotência.

É nesse contexto de presumida omnisciência e omniopotência que nos colocamos ao assumir que, eventualmente, estaremos a aproximar-nos de um momento-limiar em que se afigura possível a ligação entre o nosso mais básico interface, o corpo humano, e aquilo que poderá ser uma realidade-outra, cibernética, artificial, de pura informação, ou seja, essa ligação directa entre o cérebro e o ciberespaço não será mais que uma das modalidades sugeridas no dealbar de um tempo em que o espírito e a matéria parecem estar a descobrir os seus veios de ligação, através das tecnologias cibernéticas naturalmente, naquilo que são ininterruptos e universais fluxos de informação.

Porque terá a imagem de um interface neuronal tão forte sedução junto de algumas mentes? E mesmo alguma pertinência conceptual que vai para lá do delírio ficcional que tantas vezes lhe atribuímos? Poderão algum dia existir computadores (redes, sítios, dados) usados e explorados através do pensamento? Quantos de nós não desejaram já possuir um utensílio que lhe permitisse aceder a algo tão prosaico como, por exemplo, uma determinada obra num dado momento de uma forma imediata, ou armazenar algo mais que uma simples memória fragmentada e ténue, ou registar automaticamente uma ideia sem precisar de se socorrer dos triviais papel e caneta ou adquirir toda a sabedoria de um livro ou de um filme sem precisar de demorar horas a lê-lo ou a vê-lo? E porque não conseguimos nós ordenar as ideias e os pensamentos de uma forma perfeita? Haverá no anseio de um tal instrumento apenas um sintoma de preguiça, de facilitismo, de conveniência? Será que, por exemplo, antes da invenção da escrita, estes problemas não se colocavam já, ainda que com nuances diferentes? Não se inscrevem essas vontades naquele processo mais vasto que constitui no fundo o regime de aperfeiçoamento das formas de comunicação, de tratamento, armazenamento e difusão de informação, o regime da máxima proximidade, urgência e precisão entre emissor e receptor?

Não será por isso mesmo que a linguagem, nas suas diversas formas (visual, escrita, oral) tem tendência a abreviar-se, a simplificar-se, a ser selectiva e as formas artísticas a serem mais e mais depuradas, e as narrativas a serem mais e mais ricas e condensadas? Não será um desejo perene de eliminação do ruído aquilo que constitui o fundo desse processo? Se um dia algo como uma rede de informação global for possível, acessível que esteja de uma forma imediata e ubíqua, como nos lhe referiremos então: uma fantasia tornada real, um desejo concretizado, uma necessidade respondida? É a força dos desejos e das necessidades que lança o engenho e o empreendimento humanos em tarefas quantas vezes quiméricas na sua aparência e tão efectivas no seu desenlace.

Claro que todas as questões que são colocadas por essa possibilidade estão longe de ser entendidas no seu alcance, mesmo parcialmente, e as intuições com que tentamos definir-lhes os contornos são extremamente débeis (talvez por isso a ficção científica esteja sempre tão longe da materialização final das suas fantasias e seja ao mesmo tempo tão exacta na acuidade das suas inquietações). Se quisermos, e para não entrarmos desde já no domínio das emoções, das sensações e dos afectos, das metamorfoses e reinvenções que um ciberespaço desse género acarretaria para todas estas categorias, podemos questionar por agora o lugar, por exemplo, das imagens, dos sons, das palavras, das texturas (no fundo, dos materiais elementares da comunicação e da arte) nessa rede. E é bom então colocar desde já uma questão: não serão todas as linguagens organismos vivos, mutantes, algorítmicos? Suponho que é essa a evidência que a sua evolução ao longo de séculos nos mostra. Se assim for, da mesma forma que a escrita ou a pintura ou o cinema surgiram não poderão também estar condenados a perecer, ou, pelo menos, a metamorfosear-se, seja nos seus significantes, nas suas semânticas ou nas suas gramáticas? E se todos esses dispositivos que ao longo da história nos foram permitindo comunicar, estudar, projectar, no fundo, fazer circular e transformar informação com diversas funcionalidades e propósitos não forem mais do que utensílios passíveis de aperfeiçoamento, porque não podemos inscrever no futuro outros que se lhes substituam com mais vantajosa operatividade? O que nos pode fazer crer que a escrita é a melhor maneira de armazenar e trocar palavras ou que o cinema e a pintura são as mais nobres artes da imagem? Poderemos um dia ter uma estética quântica, seja isso o que for, e quaisquer que sejam as formas que as obras de arte nesse regime assumam? Prosaicamente é natural perguntar: porque seremos obrigados a ter as imagens num ecrã ou numa tela ou as palavras num livro? Se estes formatos foram em determinada altura considerados optimizações na apresentação de informação, quando, por exemplo, a perspectiva linear constituiu uma nova forma de ver, ou a escrita uma nova forma de grafar, ou o codex uma nova forma de fazer livros, se na sua origem estão constrangimentos formais que excluíram as representações do corpo do mundo para as autonomizar em formatos estandardizados, porque não lhes haveremos de reconhecer a sua contingência histórica e aceitar a possibilidade da sua obsolescência a prazo? E porque serão aquelas que agora consideramos as melhores imagens para representar o mundo (aquelas que se aproximam das capacidades do olho humano) realmente as mais fiéis da realidade? Porque não poderemos um dia admitir próteses que nos facultem outras visões do mundo, outras formas de o ouvir ou tocar? E porque não desejar uma máquina capaz de nos permitir algo de verdadeiramente angélico, algo como a sinestesia que todos procuramos?

Que tudo isto faz parte, por ora, do reino da ficção científica e da especulação, o bom senso está constantemente a relembrá-lo, mas recusar liminarmente a possibilidade de algo semelhante só pode ser, pelo seu lado, um embate contra a evidência de que a relação do homem com o mundo não tem sido mais que um desejo de ir mais e mais fundo na descoberta dos seus mecanismos e um esforço da consciência para melhor interpretar os estímulos com que ele nos interpela. Nessa tarefa a utensilagem de mediação vai de metamorfose em metamorfose como o fazem as formas da socialidade ou os regimes da polis.

Remeter desde logo o ciberespaço, mesmo na sua forma mais cabal e hipotética, à incredulidade, ao devaneio ou mesmo ao escárnio, configura desde logo uma presunção: a da existência de um obstáculo ao qual o engenho humano seria incapaz de dar uma resposta vitoriosa. Ou então um medo, o tão propalado medo da técnica, essa técnica diabólica que parece ao mesmo tempo guardar no seu seio a benesse e a violência, um milagre beato e uma magia negra. Parece a humanidade estar sempre condenada a duas formas de distância em relação ao futuro: de um lado, aqueles que acreditam nas suas possibilidades e na sua proximidade, os progressistas poderíamos chamar-lhes, que tão facilmente ignoram a imprevisibilidade das mutações nas tecnologias e nas sociedades, o papel do acaso em todos os passos dados, e do outro, aqueles que colocam o tom discursivo no conservadorismo, como se todo o projecto, todo o imaginário, toda a ficção devesse ser abandonada precisamente porque a sua concretização escapa a qualquer certeza e os seus efeitos a qualquer controlo. Mais uma vez a via do meio parece a mais aconselhável e prudente: ver para crer, ou de uma forma mais activista, fazer para ver.

Que nesse vórtice em que se inscreve o desenvolvimento tecnológico se perfilam lado a lado os mais promissores ganhos e a mais distinta inquietação é o que não surpreende: nem de outra forma poderia ser, uma vez que a gravidade do que se põe em jogo na nossa relação com a tecnologia é toda a lógica da humanidade, os seus feitos gloriosos de libertação, emancipação, conquista e o medonho dano do extermínio, da perda das suas mais amadas singularidades, do seu domínio sobre a violência e a opacidade da natureza. Foi assim com todos os grandes passos que nos fizeram chegar onde estamos: com o surgimento da escrita, a crer pelas indicações de Platão, terá sido assim também com o surgimento do fogo (aliás, quem brinca com o fogo queima-se, e o fogo com que nos recreamos nos nossos dias é essa tão familiar e tão estranha tecnologia), ou com a revolução industrial (e Frankenstein bem serve de ícone), assim aconteceu com o cinema, e mesmo o computador, na sua infância social, não escapou a discursos de resistência, como se fosse o primeiro instrumento para nos fazer de humanos em máquinas - e, afinal, não parecemos ser muito mais que isso: mecanismos, mesmo naquilo que nos parece garantir a mais querida subjectividade: o cérebro. Diversos medos se podem inventariar nesses passos dados: a violência, a automatização, a perda da memória, a dominação das máquinas, no fim a substituição de Deus – para este, e para o seu papel de intocável, a biotecnologia e a manipulação genética bem se têm configurado como uma ameaça, bem espelhada nos discursos reaccionários e medrosos, que sempre colocam a possibilidade da aberração acima e antes da possibilidade do benefício.

Com a cibernética é a dúvida sobre a perda do corpo, esse pilar da subjectividade e ao mesmo esse objecto (político, médico, científico), que se vem inscrever no horizonte. De duas formas principais: a possibilidade do ciborgue e a imersão no ciberespaço, ou seja, a possibilidade de, no limite, o nosso corpo perder o seu élan natural ou mesmo de se replicarem corpos-máquinas parceiros de uma comunidade onde já não exclusivamente à natureza e ao homem é assegurado o poder da acção, e, por outro lado, de se encontrar uma forma qualquer de consciência disseminada, partilhada, colectiva, (i)mediata, onde o corpo seja, de certa maneira, um utensílio dispensável nas trocas e nas representações.

Com o corpo, e com a sua perda ou a sua metamorfose, é muito mais que é colocado em causa: o sujeito, a consciência individual, as sensações próprias, o eu, o inconsciente, tudo isso parece estar-nos a ser roubado ou, pelo menos (e este menos, para muitos é um assustador mais), adulterado. O receio que não é difícil adivinhar perante uma reconceptualização absoluta de todas essas categorias e instâncias é o receio do desconhecido, é se calhar para muitos uma nova forma de monstruosidade, um desespero mudo perante um devir-homem-mundo imperscrutável. Entes incorpóreos, nós, os humanos? Maquinaria inteligente? Conhecimento do cérebro e invasão da consciência? Que heresias!, poderá pensar-se. Este corpo, o veículo do prazer e da dor, não é mesmo aquilo que nos define na nossa individualidade, assinala a nossa presença no mundo? Como poderemos admitir a perda das singularidades, das vontades próprias, como aceitar esse atentado último às liberdades e direitos individuais, essa figura jurídica e essa matéria retórica onde se sustenta na actualidade a luta no campo político? Entretanto, num percurso inverso de inquirição do corpo, outra questão pode surgir: que nos liga, afinal, de um modo tão umbilical ao nosso corpo, que laço se estabelece entre a matéria, a mente, a consciência, que é isso afinal que nos dá uma imagem e, conceito não inocente neste contexto, algo como uma alma? O prazer voyeurista e narcísico, o egoísmo da auto-representação, a dor, a morte, o sentimento de perda, a memória? Que laço tão estreito a história, a antropologia, a política, a religião, a filosofia ou a arte conseguiram tecer de forma tão enigmática para dele nos custar tanto despegar-nos, como se, ainda que não ocorre-se a perda da consciência num mesmo lance, a perda do corpo fosse uma espécie de morte, amputação intolerável? Será a liberdade, esse valor que parece colocar-se antes de todos os outros, o último a resistir, a reivindicar um corpo?

Se, através do senso comum, entendemos as próteses como um artefacto que permite a melhoria das condições de existência dos inabilitados e incapacitados, não poderemos (e quero afastar daqui, cuidadosa e respeitosamente, qualquer crueldade que possa transparecer nestas palavras) nós todos, considerar-nos, de uma forma radical, mas não fatal, incapacitados, insuficientes, deficientes? Estou em crer que o que está aqui em questão são o padrão e a escala usados para medir as nossas apetências e faculdades de agir. No mundo físico, como na teia comunicacional ou no labor intelectual debatemo-nos com o nosso estado de imperfeição. Em todas essas dimensões agimos instrumentalmente. E no fundo a construção de qualquer ideia de humanidade significa utilizar o homem como instrumento de si próprio para poder entender a sua condição fenomenológica e a sua pressuposição teleológica. É fácil perceber o émulo entre as áreas principais de desenvolvimento de próteses e interfaces tecnológicos para inabilitados - a visão e a audição, a estimulação neuro-muscular - e os instrumentos que ao longo dos séculos fomos desenvolvendo: ver melhor, ouvir melhor, pensar melhor, agir melhor, foi sempre nestes objectivos que a técnica sustentou o seu desenvolvimento.

Se a existência humana é, no fundo e a todos os níveis, a procura de respostas complexas para questões cujas implicações não são facilmente destrinçáveis no emaranhado que é o devir político, social, estético ou científico, então é natural intuir que um centro (ou se quisermos, para fazer justiça à ideia de complexidade da acção humana, mais propriamente um nódulo) haverá onde se joga esse processo de inquirição dinâmica. Esse nódulo talvez seja o cérebro. Nódulo onde se articulam a percepção do mundo, a sua memória, as suas sensações. Se nos pusermos a adivinhar, e se excluirmos a sabedoria divina para concedermos à humanidade esse frágil privilégio de pensar os espaços, os tempos, os fenómenos, as proposições e as causas do que está (e não do que é) aí, ou seja, do mundo pluridimensional em que nos movemos, agimos e questionamos, será natural a tentação para acreditar que a última eliminatória (pelo menos neste estádio do conhecimento científico em que nos encontramos) que opõe a investigação humana à magnífica obra de engenharia que é o mundo e a natureza é o conhecimento do funcionamento do cérebro e a forma como se podem ligar os interfaces e os instrumentos que a cibernética, a biotecnologia e a ciência em geral possibilitam com esse órgão tão singular e complexo. Quando o mundo era um mistério, algo mudo e inapreeensível, o mito tratou de experimentar uma explicação. O cérebro foi aquela entidade que consecutivamente se foi arredando da inquirição, mesmo da científica. Precisamente porque era visto como uma entidade,  por vezes alma, por vezes espírito a que o selo de insondável dava um atributo de enigma. O próprio cérebro permaneceu um mito. É quando o cérebro, de certa forma, passa a ser visto como um mecanismo ou sistema, com as suas partes, fenómenos, articulações e funções que a aura de mistério se vai desvanecendo. No tempo presente, talvez seja a metáfora cibernética a dominante: a ideia do cérebro como uma espécie de computador parece prometer um mais exacto conhecimento da sua natureza. Que também esta metáfora possa estar sujeita à obsolescência e a sua validade seja transitória não nos deve espantar como não nos deve inibir. Sabemos pelo menos que o pensamento é tratamento de informação. Que as modalidades em que esse processamento ocorre para que tão plurais formas acabe por gerar e gerir sejam de certa forma desconhecidas é o que nos continua a interpelar.

Ora, se aceitamos que a informação que entra e sai da mente não é radicalmente distinta daquela que entra e sai de um computador (apenas mais complexa na sua qualidade), então podemos aceitar que a esperança para uns e o receio para outros de poder descarregar, utilizar, manusear e transmitir informação no e a partir do nosso cérebro, será pelo menos uma hipótese forte. Primeiro será necessário, obviamente, que o consigamos compreender. Para aceitarmos que essa tarefa seja possível, necessitamos naturalmente de um voluntarioso optimismo. Que nos questionemos sobre as consequência morais e políticas dessa façanha é algo tão legítimo quanto o é esperar a sua consecução. Mas não é isso mesmo que a história da humanidade nos ensina, que cada descoberta ou invenção, qualquer instrumento ou prótese, guarda em si o segredo do seu bem e do seu mal, que a sua inserção no agir humano nunca se fecha num mandamento mas permanece sempre num limbo crítico onde é preciso sempre decidir sobre as formas da sua operacionalidade e sobre as implicações do seu uso? A possibilidade desse interface comunicacional último que a ficção científica e a ciência nos têm sugerido e especulado poder existir um dia já foi mais remota e, para os mais entusiastas, parece inevitável. De certa forma para aqueles que sonham o futuro e que querem acelerar na sua direcção, essa invenção tem já um lugar no firmamento. Chegar a ele é apenas mais um caminho a percorrer. Um caminho difícil por certo. Se dificuldade é uma palavra recorrente no léxico científico e tecnológico, impossibilidade é-o bem menos. Se não recusarmos a esperança de poder entender com suficiente clareza o sistema neurológico humano, o seu modo de funcionamento e as suas aptidões, podemos intuir (e a intuição é sempre a chave do futuro) que os interfaces gráficos, tal como os conhecemos podem ter os dias contados. Aliás, porque não haveriam de tê-lo? Porque haveremos de crer que um ecrã, um rato e um teclado são a melhor maneira de receber, apresentar e manipular informação, o estádio final na cadeia evolutiva dos interfaces? Ou porque haveremos de acreditar que havemos de estar horas ou dias à espera que chegue o filme que encomendámos ou a música de que fizemos o download, ou porque haveremos de acreditar que o ecrã rectangular é realmente o melhor formato para os cineastas? Todos os utensílios utilizados nos processos de mediação descobriram algures a sua obsolescência funcional ou foram substituídos ou complementados por outros. Há como que um jogo de permutas ininterrupto no qual a optimização dos instrumentos para captação e transmissão de informação, em termos de tempo ou de espaço, se torna uma espécie de imperativo técnico-social. É mesmo possível traçar-lhe um percurso histórico. Aliás, se própria ideia de rede não é recente - bem pelo contrário, redes sempre existiram e, se não como modelo explicativo e formulação teórica, pelo menos como espaço e tempo da acção, é natural que mesmo em mundos ancestrais a intuição de que existiria uma rede onde os fenómenos tinham lugar e os seres se comunicavam seria incontornável - pode encontrar nesse percurso histórico a sua explicação. De certo modo, se existe uma ontologia da rede ela é constitutiva e intrínseca à acção humana. Uma rede procura responder apenas a um problema: ligação funcional. O ser humano é apenas um nó nessas múltiplas redes que constituem a paisagem e o ambiente que nos envolve: seja a paisagem natural, política, intelectual, artística, social ou económica. De certa forma, onde há comunicação há uma rede, e onde há uma rede há um agir, e onde há um agir há comunicação, e onde há comunicação há uma linguagem, e onde há uma linguagem há um processo, e onde há um processo há agentes e matéria, e onde há matéria há um fenómeno, e por trás do fenómeno está um sistema - e a partir desta espiral poderíamos descrever a interdisciplinaridade do conhecimento humano, da praxis social e política, as conexões da arte com a natureza, da natureza com a técnica, da técnica com a linguagem, da linguagem com a arte, como se um rizoma se estendesse no infinito e nele o pensamento e a investigação procurassem navegar de continente em continente com a possibilidade do naufrágio a incentivar o engenho. Aliás, não será pelo facto de estarmos inevitavelmente numa rede que somos assaltados por essa espécie de desespero epistemológico em que desconfiamos que por mais nós que sejam desfeitos, por mais verdade que produzamos, novos nós e novas conexões estamos também a inventar? Por mim, estou em crer que todo o conhecimento é feito mais de articulações do que de proposições. É claro que há um esforço de fechamento constante - e a teoria e as leis são labor com esse sentido -, mas porque o devir do mundo como o devir humano parecem não prometer uma clausura teleológica, a verdade parece não se vir inscrever nunca em definitivo nas nossas asserções.

Será possível reduzir todos os fenómenos a redes ou poderá a metáfora da rede tudo descrever? Eventualmente, pois não há, estou em crer, comunicação sem uma rede como seu espaço e tempo, sem polaridades, articulações e trânsitos. É assim na natureza, é assim nas linguagens, é assim no pensamento. Toda a ideia de ciberespaço não faz mais do que recuperar, alargar e materializar essa ideia. E ciberespaço aqui deve ser visto como a rede de comunicação interneuronal, ou seja, como a possibilidade de certo tipo de informação (não toda) poder ser colocada ou retirada do cérebro sem a mediação dos sentidos. Uma ideia que pode parecer aberrante e absolutamente utópica, mas que, estou em crer, não será mais que o culminar do processo comunicacional. De certa forma, não se trata de mais do que levar ao extremo o projecto de optimização do acesso à informação. Se aquilo que as telecomunicações têm procurado é precisamente dotar o ser humano da capacidade para com mais precisão e menos esforço aceder à informação e disponibilizá-la, e se tomarmos o ciberespaço como uma instância última desse desenvolvimento, facilmente podemos perceber que a sua origem não é estritamente utópica, antes deriva de um processo que procura colmatar insuficiências e suprir necessidades: ou seja, na sua natureza mais radical, no seu cerne, é uma prótese e não mais que isso, um instrumento.

Se olharmos a fantasia do ciberespaço e das ligações neuronais desta perspectiva percebemos então facilmente que os devaneios com que a ficção científica nos tem brindado estão bem enraizados naquilo que, no fundo, determina o desenvolvimento tecnológico: uma exigência. As tecnologias e os meios de comunicação procuram apenas servir aquilo que a praxis humana desde sempre, pelo menos desde a linguagem, talvez o primeiro espaço virtual conhecido, porque aquele que pela primeira vez conseguiu autonomizar num suporte (sígnico, é certo) a informação que o cérebro recebe dos sentidos, não dispensou: comunicar. Que se possa ver na linguagem o primeiro momento de uma genealogia do virtual, e talvez o momento inaugural de algo como um sistema algorítmico, não tem nada de estranho: uma ideia só tem valor se comunicada, partilhada. O que a linguagem traz de vantajoso é precisamente a possibilidade de organizar uma ideia de forma a que ela possa ser partilhada, trabalhada, modificada. De certa forma é com a instauração de um código (aquilo que, em última instância permite a emissão e recepção de informação), com as regras gramaticais, os dispositivos sintácticos e a fixação de uma identidade semântica que a utilização da informação pode ser aprimorada. Dentro desses constrangimentos é que se encontra a potencialidade de tudo poder descrever ou explicar. A criatividade é precisamente a filha desses constrangimentos: raciocinar, calcular, analisar, sintetizar, inventar são processos desse mecanismo de selectividade: às ideias é dado um valor, elas são conceptualizadas, partilhadas, discutidas, transformadas, abandonadas ou integradas. O que acontece então quando se cria? Refuta-se a redundância e as excrescências, um procedimento algorítmico. Na ciência, como na arte ou na comunicação, a evolução do conhecimento, das formas e das certezas só advém porque a estrutura da linguagem permite a dedução e a indução, a articulação do particular e do geral com economia de esforço e poder de síntese. Se isto... então aquilo... Que haverá de mais virtual que o espaço das ideias e mais algorítmico que a natureza dos mecanismos da linguagem? E não será essa natureza virtual das ideias que lhes permite transmutar-se de suporte para suporte e, nesse processo, entrar em regimes de comunicabilidade distintos sem perda de significação essencial, mantendo sempre a sua ligação ao referente? No fundo, o que a cibernética nos veio permitir é que se tenha chegado a uma definição (provisoriamente) essencial de informação. E o ciberespaço será o local a partir do qual as ideias podem ser acedidas de forma imediata, exactamente aquilo que a linguagem, com o seu código possibilita, mas as conotações e as polissemias impedem.

Há questões que podem ser colocadas antes de tempo. Uma é: se um interface directo homem-máquina for possível, porque haveria cada sujeito de querer estar ligado, de permitir a invasão do seu cérebro? É no fundo uma questão que revolve o âmago da subjectividade. Não deveria ser nada de muito estranho ou extraordinário estar ligado. No fundo, e se como dissemos acima, estamos e estivemos sempre em redes, sabemos que só somos sujeitos com presumida autonomia porque habitamos essas redes (de alteridade). Ora aqui importa talvez perceber que a renitência com que muitos podem olhar essa possibilidade de uma ligação directa ao cérebro tem sobretudo a ver com uma dimensão política: com o poder e com a violência, que sendo factores importantíssimos (se calhar fundamentais) para que estes dispositivos um dia possam vir a existir, não vão por agora ser abordados (aliás, esses medos são hiperbolizados no filme "Matrix", que a este respeito é extremamente ilustrador). Interessa-nos mais agora imaginar se um dia poderemos falar, como agora falamos de neurociências e cibernautas, de neuronautas, aqueles que se dedicam a explorar as características e funções do cérebro e das redes como se de um território se tratasse. Algo como uma espécie de nomadismo pelas paisagens e os lugares da rede geral de computadores e cérebros. Ou estaremos condenados a que o interface seja apenas uma possibilidade exterior ao corpo? Sabemos que a ideia de um mundo de imersão completa, com a sua promessa de paisagens e sensações tem muito de um desejo mítico, como se da possibilidade de um novo Paraíso aberta pela virtualidade da tecnologia se tratasse. E sabemos também que a tecnologia e o seu desenvolvimento são tão condicionados pela adequação às necessidades e determinações da sociedade como pelo objectivo visionário dos empreendedores que criam os dispositivos.

Porque não haverão realmente um dia o rato e o teclado deixar de ser necessários e ser apenas o pensamento a comandar as acções no interface? Afinal de contas não é dessa forma que o cérebro processa as instruções para todas as acções do nosso corpo? E se a capacidade da memória humana é realmente limitada, porque não imaginar dispositivos técnicos que permitam acrescentar capacidade mnemónica? Afinal de contas não é isso que procuramos com os livros, os computadores, as fotografias? E porque não imaginar que o futuro de parte das formas narrativas passará por uma hibridação das ideias e técnicas do filme e do jogo? Afinal, quando lemos um romance ou vemos um filme não nos imaginamos de certa forma a participar nele, não é isso mesmo a natureza da empatia e da catarse? Porque não havemos então de ir buscar ao jogo (e para quem joga com regularidade toda esta questão ganha contornos especiais) essa capacidade de agir sobre os acontecimentos e integrá-los nas ficções e narrativas que podemos viver no ciberespaço? E o que serve para as narrativas pode servir para o texto, esse interface que dominou e domina ainda a nossa relação com as ideias. Como disse David Warner, um neuro-hacker do Loma Linda University Medical Center, à revista Wired “a linguagem natural baseia-se num óptimo fisiológico. Não há nada de óptimo em pequenas letras. O paradigma de Gutenberg está morto”. E porque não haveremos de concordar com este investigador: serão mesmo as palavras impressas o melhor instrumento para transmitir pensamentos?

E se da metamorfose ou substituição de interfaces falamos, será tão incrível assim que possamos fazer máquinas - esses interfaces discretos com que convivemos e integram o nosso mundo - tão ou mais inteligentes que os próprios seres humanos? Com o desenvolvimento do software, das infomáquinas, estamos perante novos mecanismos, aqueles que se encontram no limiar: entre o autómato e o organismo, ou entre a máquina e o cérebro. No fundo, são máquinas feitas de linguagem, exactamente o que se poderia chamar ao cérebro ou, de uma outra forma, à sociedade. O software é uma máquina de raciocínio, onde são as regras da lógica, da matemática, no fundo as estruturas sintácticas e as estipulações semânticas as matérias utilizadas para conseguir que, entrando de um lado um input saia do outro lado um output. Por aqui se pode ver que é num novo regime da mecânica que entrámos. A técnica agora não é já exclusivamente um prolongamento da inteligência, é a própria inteligência que opera a técnica. Pensemos então em agentes suficientemente inteligentes para fazerem duas coisas: capazes de desenvolverem as suas próprias metáforas (o que seria um primeiro passo para o desenvolvimento de uma inteligência própria) e capazes de providenciarem a sua própria forma de apresentação, a sua imagem (no fundo, a nossa primeira metáfora). Não poderemos nós um dia ter de conviver com esses agentes enquanto entidades autónomas, capazes de nos prestarem serviços ou interagirem connosco: por exemplo, ampliar o território virtual, ser os empreiteiros e construtores desse novo habitat, serem os nossos motores de pesquisa e secretárias pessoais (uma espécie de séquito), serem nossos oponentes num jogo-filme?

Não estamos nós no quotidiano a dar conta frequentemente das nossas limitações, das nossas incapacidades, das nossas insuficiências? As máquinas e as próteses - para o que aqui nos interessa, estes termos confundem-se - são a nossa resposta. E não é nessas imperfeições, nesses obstáculos que reconhecemos a nossa peculiaridade de seres tecnológicos e se configura a aventura do conhecimento possível? Essa assumpção da imperfeição como algo natural tem, ainda não o percebemos bem, ou algo de júbilo ou algo de resignação. Aceitamos as nossas insuficiências mas aspiramos sempre a uma existência plena, completa, intensa. E fazemos isso porque estamos imbuídos de um desejo de ilimitado prazer, auto-consciência, felicidade. Mas a nossa presença no mundo e o funcionamento do nosso cérebro asseguram-nos que temos sempre provações, azares, vulnerabilidades a amputar esse desejo de felicidade, a ensinar-nos o estoicismo nas suas diversas modalidades, a entretecer o bom com o mau, a aceitar a existência no melhor dos mundos possíveis. Ora, só talvez a religião pôde prometer durante séculos aquilo que não pôde cumprir: o paraíso. E nessa tarefa de sugestão escatológica a tecnologia veio substituí-la: se há um paraíso a ser conquistado só a tecnologia o pode ainda facultar. Que esse espaço virtual alternativo, esse ciberespaço, seja um lugar projectado e construído pelo homem, com as suas medidas e o seu design, que seja um projecto de arquitectura, paisagismo e estética, que o controlo sobre as suas funções e disponibilidades seja bem óbvio e mesurável, que as suas leis sejam finalmente e intrinsecamente humanas é o que se oferece e o visionarismo não deixará nunca de reivindicar. Aumentar as capacidades emocionais e intelectuais não foi o que a evolução natural se encarregou de fazer? Então porque não pode a capacidade de inventar próteses reclamar o mesmo feito? Ainda que essa prótese seja algo como uma rede de computadores e cérebros.