Para uma compreensão sociológica das identidades na CMC

Susana Nascimento [*] , ISCTE

(Outubro 2001)

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“imaginam-se todos agora/
dentro da uterina banheira/ a consultar a Web no screenphone/
e ao mesmo tempo a imprimir online/ na sala ao lado/
visceral claro/ ainda não seguram bem/ o próprio corpo”

Alberto Pimenta, Ode Pós-moderna, 2000

Os actuais discursos sobre identidades tendem a centrar-se em imagens do indivíduo embrenhado em conflitos permanentes, acidentados, incompletos e necessários, tendo em conta condições próprias a sociedades globalizadas e interconectadas. Delinea-se então um dos dilemas mais significativos do ‘self, inscrito por um lado, no paradoxo relativo à percepção por parte dos actores de uma realidade complexa e de grande escala que, por vezes, os restringe aos níveis da autonomia e dos espaços de decisão, e por outro, da crescente auto-responsabilização das acções individuais, em contextos plurais e dispersos, veiculadores de configurações de individualidade contraditórias, e em constante reformulação.

            É nos entrecruzamentos destes processos problemáticos de construção e apresentação de identidades, com as transformações das práticas comunicativas no campo da Comunicação Mediada por Computador (CMC) - especificamente no Internet Relay Chat (IRC) [1] como sistema de comunicação sincrónica de multi-utilizadores – que emerge um campo analítico dotado de fortes singularidades. A possibilidade de comunicação textual simultânea e imediata com vários ‘outros’ longínquos proporciona então, no mínimo, novos espaços de interacção e relacionamento interpessoal, que se definem enquanto descentrados, bidireccionais, múltiplos e simultâneos.

Partindo-se de uma clarificação e desconstrução do conceito de identidade, questionam-se pressupostos ‘modernistas’, baseados nos movimentos humanista e iluminista, de constituição do indivíduo como uno, racional, estável, previsível e autónomo, através de mecanismos internos inatos e independentes da realidade exterior, algo que se espelha na própria origem latina de ‘individûu’, o «indivisível». Em contraposição, privilegia-se uma conceptualização dinâmica, processual e relacional das identidades - informada por formulações interaccionistas e constructivistas - que se formam nos processos sociais, historica e culturalmente localizados, e nas capacidades reflexivas e estratégicas dos actores em manter, modificar e manipular essas mesmas condições de formação.

Assim, a identidade individual ou pessoal, entendida como um conjunto de valores, representações e conhecimentos particulares de cada actor, não pré-existe aos processos de interacção como uma essência primordial e independente, mas constrói-se em referência a categorizações específicas de grupos de pertença, definidoras de determinadas identidades sociais, que se jogam dialecticamente em tensão com as auto-imagens e os papéis desempenhados pelos actores.

A compreensão relativa a toda uma conceptualização das identidades pretende, porém, neste estudo apontar para uma reflexão mais aprofundada sobre as suas dimensões constituintes, que se estruturam sempre num continuum entre dois pólos – fragmentação/centramento, multiplicidade/unidade, descontinuidade/continuidade temporal e virtualidade/realidade, sendo esta última referenciada especificamente ao contexto da CMC.

No que respeita à primeira dimensão, o debate processa-se entre perspectivas que remetem para um sujeito que se caracteriza por vivências fragmentadas, dispersas e constituídas por uma diversidade ao nível dos discursos, uma soma não-linear e contraditória de partes, que se traduz metaforicamente numa anunciada ‘morte do autor’, expressão muitas vezes, deficientemente compreendida, e outras que privilegiam a ‘integridade’ de uma identidade com um centro definido e único (destacam-se as formulações de Anthony Giddens, 1997).

Advindo de perspectivas apelidadas de pós-modernistas de autores como Jacques Derrida (1967a e b), Jean-François Lyotard (1989), Gilles Deleuze e Felix Guattari (1995) e Michel Foucault (1980), a ideia de fragmentação extremada, que se mostra e se potencia na diversificação dos contextos de interacção, por vezes com lógicas de funcionamento díspares, encontra alguma relutância tanto empiricamente, como conceptualmente. Contrariando em parte os resultados dos estudos de Elizabeth Reid (1991, 1996) e Sherry Turkle (1995), nos quais os sujeitos privilegiavam a representação de novas ‘personagens’ no IRC e nos Mud’s, respectivamente, sob o anonimato das suas máscaras textuais, a apropriação de ‘nicknames’ ou ‘nicks’ (nomes até 15 caracteres, escolhidos pelos sujeitos) revela-se como limitada e restringida no caso dos sujeitos deste estudo. Efectivamente, estes preferem a manutenção dos mesmos nomes durante períodos de tempo alargados, em detrimento de experimentações mais variáveis e fantasistas, algo confirmado pela recusa em percepcionar diferenças comportamentais aquando da representação de outros ‘nicks’. Por vezes, de forma incisiva, a variedade de ‘nicks’ é conotada com estratégias de encobrimento e falsidade, aliada a uma preocupação em manter a coerência das suas condutas online:

“Eu, a mim, uma coisa que me irrita, é as pessoas que usam vários ‘nicks’, digo sinceramente. Porque eu acho que...se fosse hoje em dia, eu nem sequer tinha ‘nick’, era o meu nome. Não...eu estou ali sem nada a esconder (...) pronto, eu sou eu, não é? Se sou só uma entidade, porque hei-de de ter mais do que um ‘nick’?” (Modigliani [2] )

“Porque tal como o nome no BI o nick deve ser um outro «nome « qdevemos que devemos usar nestas circunstâncias. penso q quem muda de nick muda acima de tudo de reponsabilidades respeitantes ao seu passado. E isso, para mim, é mau.” (Puer)

A existirem nalguns casos, as diferenças comportamentais explicam-se, segundo os sujeitos, pela desmultiplicação de facetas da sua identidade ou pelo seu estado de espírito em momentos temporais diferentes, enquadrando porém essa utilização de ‘nicks’ num conjunto ordenado e coerente. Por um lado, esta divergência com Reid e Turkle reenvia a lógicas distintas de apropriação do meio por parte dos sujeitos; enquanto que, nessas análises, as motivações de utilização se prendiam sobretudo com casos extremos de experimentação e de ‘role-play’, nestes casos verificam-se mais estratégias de alargamento e/ou manutenção de redes de sociabilidade relativamente bem definidas.

Por outro lado, como hipótese de interpretação, que padece de melhor explicitação nos seus pressupostos psicologicistas, Turkle remete tais auto-percepções para pressões exercidas socialmente, visto que “(...) em anos recentes, muitos psicólogos, teóricos das ciências sociais, psicanalistas e filósofos têm vindo a defender que o eu deve ser encarado como essencialmente descentrado, [mas] as exigências normais da vida quotidiana exercem uma grande pressão sobre as pessoas para que assumam a responsabilidade pelos seus actos e se vejam a si próprias como actores intencionais e unitários.” (id ibid: 20)

Conceptualmente, denota-se assim um sentido de ‘integridade’ na linha de Giddens, segundo o qual os actores actualizam uma preocupação em manter uma coerência e equilíbrio das suas condutas perante as exigências e contextos divergentes de acção, conotando negativamente a ideia de fragmentação. De facto, recusa-se a concepção radical da identidade como conjunto desordenado de várias ‘personae’, mediante as situações de interacção em que o actor se depara na sua vida quotidiana; esta fragmentação tão acentuada colocaria, por um lado, problemas de integração no ambiente envolvente, e por outro, tensões entre as diversas identidades, algumas certamente em conflito constante. A proclamada ‘morte do autor’ não deve ser entendida então como a desintegração total do sujeito numa infinitude de dispersões, entregue às suas próprias vontades e desejos, mas sim como uma ideia para repensar a importância dos diversos contextos de interacção na construção das identidades.

Por outra parte, critica-se também as concepções de Giddens sobre a existência de uma identidade central ou de um ‘self autêntico’, que parecem algo próximas de posições essencialistas anteriores. Com efeito, o ênfase deste autor numa auto-identidade que procura inerentemente a integração de elementos divergentes, sobrestima a capacidade racional dos indivíduos na gestão de condições que, frequentemente, se encontram fora do controlo dos mesmos.

Sintetizando as críticas aos dois pólos, o sentido de ‘integridade’ pode então conjugar-se com a ‘dispersão’ dos interaccionistas e pós-modernistas, na perspectiva avançada neste estudo que a fragmentação dos actores nos contextos de interacção se desenrola segundo lógicas específicas delineadas pelos mesmos, num processo constante e precário de equilíbrios de tensões, e sempre condicionadas de forma significativa por elementos externos.

No seguimento desta ideia, o conceito de centro fixo e absoluto da identidade torna-se inadequado face às dispersões características da acção humana, contrapondo-se a anti-fenomenologia de Jacques Derrida, inspirada de Marx, Nietzche e Freud, e a sua imagem do centro resituado. Assim sendo, rejeitam-se as críticas negativas à ausência de um centro definido, em face da coexistência de múltiplos centros, continuamente relocalizados, nos quais a diferença e o jogo tomam lugares de destaque. Tal formulação exprime-se na manutenção de um ‘nick’ por um período de tempo frequentemente alargado que centraliza a experiência do indivíduo, mas não a imobiliza devido à criação cíclica de novos ‘nicks’, numa lógica de constante sucessão e sobreposição.

Consequentemente, as tendências de ‘integridade’ e ‘dispersão’ não se entendem como contraditórias, mas como interdependentes, avançando-se assim a interpretação de que, não obstante a reprodução das auto-imagens se conceptualizar ainda em torno da integridade e centramento, as práticas desenvolvidas num contexto disperso e descentrado como o IRC já evidenciam algumas tendências fragmentadoras idiossincráticas passíveis de influenciar mudanças nessas auto-representações.

Tal se indicia logo no desdobramento da experiência dos sujeitos, num ambiente digital, em diversas ‘janelas’ que compreendem actividades simultâneas com o IRC, potenciando as capacidades ‘multitasks’ – consulta de e-mail, páginas WWW, downloads de ficheiros (mais frequentemente de MP3), realização de trabalhos em programas de processamento de texto, e outros programas de troca de mensagens, como o ICQ ou o MSN. Esta capacidade de fraccionamento em múltiplas actividades, por vezes bastante distintas entre si, organizadas em aplicações no ecrã do computador, marca uma possibilidade real de administração simultânea de contextos divergentes de acção, sob o controlo do utilizador que escolhe a sua sucessão ou sobreposição temporal.

Por outro lado, a diversidade de janelas criadas pelos sujeitos pode operar-se segundo uma lógica interna ao IRC que, devido ao seu próprio modo de funcionamento, disponibiliza um contacto com os outros em duas ligações distintas mas simultâneas: conversas em canais públicos, onde estão presentes inúmeros utilizadores, e/ou em privado (pvt). Assim, os relacionamentos desenvolvidos pelos sujeitos desenrolam-se por canais de comunicação diferentes e estanques entre si, possibilitando a iniciação e o decorrer de inúmeras conversações ao mesmo tempo, das quais apenas o indivíduo tem conhecimento, algo inédito num meio de comunicação. Efectivamente, as situações de interacção sobrepõem-se e entrecruzam-se de formas inéditas às verificadas na interacção face-a-face ou em outros media – os actores podem criar, desmultiplicar, modificar, maximizar, minimizar e fechar, numa sucessão não contínua de actos sincrónicos e assincrónicos de comunicação.

            Ao reflectir sobre fragmentação e centramento, ‘dispersão’ e ‘integridade’ das experiências dos actores nos diversos actos de comunicação, surge inerentemente a problematização em torno da segunda dimensão, multiplicidade/unidade – o ‘desdobrar’ dos sujeitos em contextos sociais distintos implicará uma desmultiplicação da sua identidade?

Embora se verifique, em ambos os pólos da questão, certas lacunas em explicitar inequivocamente os desenvolvimentos dos seus pressupostos-base, contrasta-se as perspectivas interaccionistas e pós-modernistas de defesa de uma multiplicidade da experiência simbólica dos indivíduos, com outras que salientam sobretudo a prevalência de uma auto-identidade (Giddens), ou de uma ‘identidade primária’ (Castells, 1997) que agrega as características pessoais no sentido de assegurar um sentimento de segurança e estabilidade.

            Relembrando considerações anteriores, os sujeitos levantam objecções ao conceito de multiplicidade da sua identidade ao recusarem a apropriação de outros ‘nicks’ e ao percepcionarem essa variedade de ‘personagens’ com intenções de dissimulação e fraude. Assoma assim uma descoincidência entre as auto-concepções dos actores e as perspectivas de multiplicidade, que reenvia para as próprias ‘teorias da identidade’ veiculadas pelos diferentes agrupamentos sociais, como anteriormente referido, segundo os quais a fragmentação e a pluralidade são conotadas negativamente como manifestações patológicas de identidades desconexas; ou como resume Turkle, “[e]sta disparidade entre a teoria (o eu unitário é uma ilusão) e a experiência vivida (o eu unitário é a mais básica das realidades) é uma das principais razões pelas quais as teses do eu múltiplo ou descentrado só muito lentamente têm vindo a impôr-se (...)” (id ibid: 20)

Contudo, os ambientes criados pelo IRC, nos quais os actores se desdobram em espaços de interacção distintos e múltiplos, mas não completamente desconexos, potenciam as ideias das concepções mais dinâmicas sem cair no extremo patológico de esquizofrenia da desmultiplicação de personalidades, dependendo da interpretação construída em torno das características de tais espaços.

Desde logo, a possibilidade de encetar e desenvolver contactos com vários ‘outros’ em situações distintas mas simultâneas, em canais ou em pvt, que muitos interpretam como prova de multiplicidade, deve ser contrabalançada com outras tendências indiciadas pelos resultados deste estudo. Ressalvando um período inicial de experimentação de novos canais, numa procura de adequar as suas motivações de utilização com as lógicas de funcionamento e temáticas dos canais disponíveis, a profusão de contactos e conversas cruzadas encontra-se, até certo ponto, consolidada no conjunto dos entrevistados, ao optarem pela continuidade nos canais frequentados actualmente, e não pela procura de novos canais. Tal continuidade advém assim de um certo enraizamento e fidelização nas amizades já estabelecidas ao longo de uma frequência de utilização de três anos, em média, algo que vem contrariar visões mais críticas dos relacionamentos através da CMC, caracterizando-as como instáveis e não duradouros.

O alargamento das redes de sociabilidade através do IRC, possibilitando o encontro com ‘outros’ separados geograficamente, em torno de interesses comuns, conjuga-se então com o centramento em contactos com utilizadores já conhecidos, integrados nos grupos relativamente fixos de amizades desenvolvidos ao longo do tempo de utilização. Curiosamente, os sujeitos chegam a expressar uma certa desconfiança e apreensão relativamente às abordagens de desconhecidos, articulada com representações negativas sobre as suas intenções, que conotam com possíveis situações de dissimulação, fraude, ou mais frequentemente, de procura de relacionamentos amorosos.

Para além da participação e diversificação dos contactos, os sujeitos na sua maioria também desempenham papéis mais activos de intervenção nos canais, enquanto fundadores (‘founder’) ou operadores (op), exercendo os seus direitos e deveres de manutenção de determinadas regras dentro desses espaços – a atribuição de estatutos de operador a outros utilizadores, a intervenção em conflitos, expulsando quando necessário, e a dinamização do canal -  poderes que vão assim estruturar minimamente a ‘situação conjunta’ de interacção entre os participantes presentes. Surgem assim, por vezes, curiosas articulações entre as diferentes ‘janelas’ de contacto com ‘outros’, variando desde a simples presença num canal, sem participação (na gíria, um ‘lurker’), até à intervenção constante em canais dinamizados pelos sujeitos, entrecortadas com conversas em privado.

            Tendo em consideração os condicionalismos enunciados, a ‘multiplicidade’ formulada por interaccionistas e pós-modernistas é substituída por uma concepção de identidades que, simultaneamente, podem apresentar crenças, valores e práticas distintas entre si, em função dos diversos papéis desempenhados pelos actores em várias situações de interacção, mas também coordenadas por núcleos (ou centros), enquanto conjuntos permanentemente em mutação de ideias, lembranças e representações. As possíveis tensões entre estas identidades encontram-se sempre presentes, originando certas idiossincracias e contradições que se reflectem nos comportamentos dos actores; por sua vez, a possível negatividade destes conflitos integra-se num equilíbrio precário e frágil entre as diversas identidades, através das próprias capacidades dos indivíduos em fazerem sentido das suas acções e pensamentos, impedindo assim a sua desconexão caótica.

Como se aplicam essas capacidades dos actores na apropriação, organização e restruturação das suas narrativas pessoais? O eixo temporal relativo à terceira dimensão analisada - descontinuidade/continuidade – centra-se na contraposição entre perspectivas que conceptualizam os trajectos pessoais como acidentados, flexíveis, sem linha condutora progressiva e última, e formulações que enfatizam a continuidade desses trajectos, orientados por determinados planos de vida, salientando assim as capacidades reflexivas dos sujeitos (Giddens), e as formas de manipulação estratégica (George Herbert Mead e Erving Goffman).

No primeiro pólo, Zygmunt Bauman (2000, 2001) conceptualiza as acções dos agentes numa realidade indeterminada, caótica, mutável, sem uma autoridade central, o que significa que as suas identidades não são dadas nem confirmadas autoritariamente, mas, pelo contrário, têm de ser construídas através de um processo de tentativa-erro, sem nenhum plano geral ou referência de controlo de progresso. Este conceito de ‘auto-constituição’ dos indivíduos, caracterizado como incessante e não-linear, contrapõe-se assim ao conceito de ‘projecto de vida’ de Giddens, e à consequente concepção de identidade estável a longo prazo.

Para este autor, o sentido de auto-identidade pressupõe a consciência de uma continuidade biográfica, isto é, de uma linha temporal contínua entre o passado, presente e futuro, com a incorporação de acontecimentos reais e exteriores. Este sentido de auto-identidade apresenta-se, simultaneamente, como frágil pela possibilidade de escolha entre múltiplas narrativas potenciais, e robusto devido à necessidade de manutenção de um sentimento de segurança e estabilidade, resistente a tensões ou transições. O objectivo intrínseco será sempre a construção/reconstrução de um sentido de auto-identidade coerente e recompensador, ou a procura de um ‘self autêntico’ ou ‘verdadeiro’ internamente referencial, que reenvia para a própria trajectória de vida.

Considera-se, no entanto, que o conceito de ‘projecto’ sobrestima a capacidade reflexiva dos actores e as suas possibilidades reais de apropriação estratégica de elementos em contextos tão mutáveis, divergentes e sem entidades centrais como fontes de significados; por outra parte, pressupõe uma ideia de progresso para um ‘self autêntico’, enquadrada numa visão linear da condução da história que se rejeita à partida, salientando-se sim as rupturas históricas em linhas de acção descontínuas.

A reflexividade defendida por Giddens torna-se então problemática em face da constante fragilidade e mutação dos modelos e valores de referência constituintes de possíveis ‘projectos de vida’. Não obstante, os indivíduos podem possuir uma representação temporal das suas trajectórias e elaborar planos tendo em conta as condições ao seu dispôr, mas sempre condicionados pelas constantes mudanças em curso, levando assim também a constantes adaptações e reformulações dessas estratégias e objectivos.

            No contexto específico do IRC, os actores sentem estas rupturas de acção em simultâneo com as continuidades. Desde logo, destaca-se a referida apropriação e utilização de ‘nicks’ durante períodos alargados, complementada com a manutenção das suas redes de sociabilidade, na medida em que tendem a conversar actualmente com outros utilizadores já conhecidos, constituindo, à semelhança da vida quotidiana, grupos de socialização relativamente estáveis com estórias comuns, associados a um sentimento de fidelização e de partilha de conhecimentos com esses ‘outros’.

Contudo, mesmo a permanência e a frequência aparentemente contínuas desses grupos encontram descontinuidades e rupturas por fases distintas de utilização do IRC, que variam entre um período inicial com contornos ‘virciantes’ (“Nos primeiros meses, acho que somos todos virciados.”, Piramide), até abandonos e regressos espaçados, resultado de inúmeras circunstâncias pessoais, de alterações nas representações e motivações relativas a este espaço, e até de experiências desagradáveis. As intermitências na apropriação destes contextos espelham-se igualmente na inconstância na marcação de encontros individuais ou colectivos com relacionamentos iniciados e desenvolvidos no IRC, paralelamente com a regularidade na participação de jantares e encontros de canais por parte de alguns sujeitos, que não obedecem porém a lógicas de interacção claramente delimitadas e enquadradas temporalmente.

Adicionalmente, a par destas ligações afectivas duradouras, o IRC permite também a procura de novos laços sociais, muitas vezes inusitados e inesperados, em pontos de encontro que se caracterizam pela sua volatilidade, numa movimentação incontrolável de milhares de utilizadores que aparecem e desaparecem. Qualquer participante interage com outros desconhecidos, em contactos por vezes desconexos e sem linha condutora, que se podem restringir a alguns minutos de conversa, ou períodos intercalares, ou mesmo convivências diárias, na maioria dos sujeitos deste estudo, em grupos delimitados.

Este entrecruzamento constante entre as diferentes linhas temporais das auto-narrativas resulta numa reflexão limitada sobre os pólos desta dimensão, apelando-se aqui a futuras análises específicas sobre a construção temporal das biografias pessoais no contexto da CMC. Embora pesem estes condicionalismos analíticos, privilegia-se uma interpretação dos espaços no IRC como intrinsecamente voláteis nas suas configurações e utilizações, o que dificulta consideravelmente o delinear de trajectórias estáveis e coerentes, não obstante a existência de relacionamentos consolidados. Consequentemente, critica-se um entendimento das identidades como linhas contínuas de progresso, integradoras de experiências e narrativas unitárias, construídas plenamente através das capacidades reflexivas dos actores, em favor de uma concepção dinâmica de processos identitários incompletos, variáveis, contraditórios por vezes, e com restrições significativas.

A par da sua fluidez e volatilidade, os espaços de conversação no IRC, enquanto meios que proporcionam uma separação física entre os utilizadores e um consequente jogo complexo de impressões e de negociação de contextos de interacção textual, levantam a questão do afastamento e/ou interdependência entre o ‘virtual’ e o ‘real’, que compreende a última dimensão – virtualidade/realidade. Usufruindo do anonimato inerente ao meio, que apenas se descodifica em indícios subtis na linguagem, nas preferências de canais ou na própria morada de e-mail, os actores vêem-se perante ‘palcos’ nos quais podem adoptar e representar papéis distintos entre si, simultâneos e sem algumas das restrições da vida quotidiana.

Estas novas possibilidades indiciam, na opinião de Turkle, uma “cultura de simulação” que opera uma separação entre os dois campos, o ‘virtual’ e o ‘real’, algo que se espelha nas próprias representações dos sujeitos sobre uma independência dos dois espaços, ao salientarem a especificidade do IRC como meio de comunicação textual no qual a ausência da presença física do outro opera alterações nos relacionamentos sociais e nas formas de expressão.

Desde logo, enquanto nas outras dimensões se verificou uma certa indistinção entre as condutas dos diversos ‘nicks’ utilizados, os resultados relativos às diferenciações percepcionadas do próprio comportamento no IRC, apresentam-se como mais expressivos. O anonimato característico do IRC influencia as suas acções, que se caracterizam por uma menor timidez, e uma maior facilidade e abertura em iniciar e aprofundar relacionamentos, principalmente em contactos com desconhecidos:

“(...) obviamente acabo por ser aqui uma pessoa algo diferente da que sou ao vivo, mas isso n é derivado a uma qualquer vontade minha consciente mas à circunstancia de não estar a ser visto e de por ventura nem sequer conhecer a pessoa que está do outro lado” (Lapis_de_cor)

Por outra parte, os ‘outros’ também se mostram de forma diferente devido à distância física combinada com a ausência de dicas visuais, mas segundo uma oposição entre a ‘autenticidade’ – mais abertos, afectuosos e disponíveis - e ‘simulação’ – ocultação e manipulação de características pessoais segundo intenções diversas, num campo livre onde mostram o que ‘realmente são’. Assim, ao mesmo que conotam positivamente as suas diferenças comportamentais, os sujeitos indiciam representações negativas sobre a adopção de ‘personagens’ por parte de terceiros, que realizam uma forte discrepância entre as ‘identidades sociais virtuais’ (atributos pessoais apresentados a terceiros) e as ‘identidades sociais reais’ (atributos autênticos possuídos pelos actores), e as consequentes formas deliberadas de dissimulação e/ou fraude, conforme referido anteriormente.

“(...) as pessoas têm menos pudor. Têm menos timidez. Acho que no fundo, mesmo no fundo, traduz muito melhor, o interior de cada um. Isto é se soubermos...decifrar por vezes as máscaras que as pessoas põem por cima das máscaras para conseguirem algo. (...) As pessoas são mais...reais. E se são egoístas, vão ser egoístas com o que têm, se são mentirosas, vão-te mentir, é um bocado assim (...)” (Piramide)

Este constante jogo e contradição entre o que parece e o que é reflecte-se na forma como os sujeitos enfatizam a ‘passagem’ dos relacionamentos iniciados online para o ‘real’, através de encontros pessoais que irão marcar a autenticidade desses laços, ‘descobrindo’ o outro e provando as suas verdadeiras características e intenções. Não obstante as vantagens salientadas pelos indivíduos da facilidade, rapidez, extensividade e intensidade da comunicação por CMC, também o conotam negativamente como um espaço ilusório, cujas capacidades comunicativas não possuem o mesmo grau de intensidade e autenticidade das interacções face-a-face.

Ao constatar-se esta insistência na veracidade do mundo ‘real’, tal não invalida a intensidade e a manutenção das relações afectivas por IRC, como forma de contacto entre pessoas à partida desconhecidas, que se agrupam em torno de interesses comuns, numa lógica de ‘selecção voluntária’ e de criação de ‘comunidades pessoais’. Sem aprofundar esta temática complexa, indicia-se apenas a existência das denominadas ‘comunidades virtuais’, cujos laços de afectividade entre os seus membros se aliam a fortes sentimentos de pertença e fidelização, entrecruzando-se com o ‘espaço dos lugares’ na realização de vários encontros individuais e colectivos, quando possível, que contribuem para o estreitamento dessas relações iniciadas online. Estas interligações entre o campo ‘virtual’ e ‘real’ também se processam pelo prolongamento das redes de sociabilidade pré-existentes ao IRC nas várias ‘janelas’ de contacto, misturando e reorganizando inúmeros tipos de relacionamentos dentro do mesmo espaço de conversação.

Aliás, os sujeitos percepcionam vários pontos em comum entre esse espaço online e a “vida cá fora”, ao enfatizarem as formas como constroem os seus próprios espaços de interacção, atribuindo-lhes sentidos e intenções que não advêm das características tecnológicas do meio, mas das relações com os outros - “o IRC, o que é o IRC? O IRC são as pessoas que o frequentam.” (Piramide) – remetendo assim para perspectivas de interligação e similitude entre os dois campos sociais. Os espaços de interacção proporcionados pelo IRC devem ser apreendidos como complementares que, embora apresentem mecanismos e características próprias, se interligam com lógicas dos domínios onde se movimentam os actores sociais.

Consequentemente, as formulações que concebem a tecnologia como asocial e acultural, criando mundos de total autonomia e liberdade para os utilizadores, perdem fundamentação perante a perspectiva defendida da importância quer da dimensão interpretativa dos actores e a negociação constante na interacção física entre indivíduos e sistemas tecnológicos, quer das relações sociais materiais ‘pré-virtuais’ na representação e negociação do corpo e da identidade.

As reflexões desenvolvidas no presente texto procuraram então, em síntese, a desconstrução de concepções identitárias pessoais e sociais no campo específico da CMC, enquadrada por entrecruzamentos e tensões entre tendências extensivas globais e processos de personalização/individualização, segundo os quais o grande desafio com que os actores se confrontam actualmente “(...) is not so much how to obtain the identities of their choice and how to have them recognized by people around – but which identity to choose and how to keep alert and vigilant so that another choice can be made in case the previously chosen identity is withdrawn from the market or stripped of its seductive powers.” (Bauman, 2001: 147).

Ao partir de um estudo qualitativo aos utilizadores do IRC, assumem-se as limitações analíticas deste, ao mesmo tempo que se avança interpretações sobre estes paradoxos existenciais, fluidos e desintegrados. Os pressupostos correntes sobre a estabilidade, unidade, continuidade e coerência das identidades encontram-se em tensão com a multiplicidade de contextos de interacção, porventura mais visíveis no meio textual do IRC, que constitui assim um campo de experimentação inédito que reflecte ao mesmo tempo que é incorporado pelas próprias tendências da ‘sociedade em rede’ – volatilidade, dinamismo, multiplicidade, descentramento e interdependência – influenciando as formas como os indivíduos integram as suas vivências.

            Assim sendo, propõe-se uma reformulação de determinados conceitos identitários discutidos anteriormente. Embora se valorize a concepção mais dinâmica inerente à ideia de fragmentação, esta indicia uma desintegração e dispersão das inúmeras identidades, negando a existência de núcleos ou centros, agregadores de determinadas lembranças, valores e representações, que vários estudos indicam como estáveis durante períodos de tempo relativamente alargados. Porém, a existência destes núcleos não invalida o constante desdobramento e mutação dos seus diversos elementos identitários, que se reestruturam mediante novos contextos e experiências, constituindo assim um conceito de ‘identidades resituadas’, segundo o qual coexistem múltiplos centros em permanente relocalização (Derrida).

O fraccionamento das identidades em vários campos pressupõe um conceito de multiplicidade que se toma como constituinte essencial das mesmas; mas que, por sua vez, reenvia para a constatação de uma coesão entre as diversas partes, operada pelos actores, no sentido etimológico (do latim cohaesione) de uma força em virtude da qual as partículas (ou partes) dos corpos se ligam entre si, numa associação íntima, mas nem sempre harmoniosa.

Efectivamente, as ‘identidades volúveis’ caracterizam-se pela sua flexibilidade num processo de formação não-linear, feito de obstáculos, desvios e sem linha condutora claramente definida, no qual a diferença e a mutação se tornam elementos permanentemente presentes. Esta transmutação quotidiana releva-se como, provavelmente, o elemento mais distintivo das concepções identitárias, o que leva à formulação proposta de ‘identidades metamorfas’ – do grego metamórphosis, mudança de forma – que se moldam e transformam incessantemente, entre mundos ‘reais’ e ‘virtuais’ em interdependência. Como articular então a diferença, moldar a fluidez, apreender as contradições, inseparáveis dos processos de construção e apresentação das identidades? São estas as questões que desafiam, quotidianamente, os actores nos vários caminhos entrecruzados de acção, e de formas cada vez mais prementes e imediatas.


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[*] Mestranda em Comunicação, Cultura e Tecnologias da Informação no ISCTE

[1] As bases empíricas desta comunicação derivam de um estudo efectuado no âmbito da Dissertação de Licenciatura em Sociologia no Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE) no ano 2000/2001, intitulada: “eu sou eu, não é? – Construção e Apresentação de identidades na CMC”. Este estudo qualitativo não-representativo recaiu sobre a análise de 18 entrevistas pessoais e 9 entrevistas online (via IRC) com utilizadores destes espaços de conversação.

[2] A confidencialidade dos entrevistados foi garantida através da ocultação do seu nome ou ‘nick’, e da sua consequente substituição por um pseudónimo ou ‘nick’ escolhido pelo próprio sujeito, à semelhança de alguns estudos etnográficos. A escolha deste ‘nick’ alternativo não atendeu à sua prévia existência, podendo assim ocorrer algumas coincidências com ‘nicks’ já registados, mas que não correspondem aos entrevistados.