Televisão no Brasil - Retrato de Outubro de 2001

VAI DE RATINHO A BÓRIS CASOY


ROBERTO M. MOURA

(Novembro de 2001)

            Durante três dias do último outubro, por um dos salões do 2º andar do Hotel Glória passaram jornalistas, artistas, analistas e estudantes – gente que vê, faz e estuda a tevê, em suas múltiplas possibilidades e implicações. Era o I Encontro Internacional de Televisão, compreensivelmente muito menos internacionalizado do que se pretendia em função da tragédia de 11 de setembro em Nova York. Seu mentor e realizador foi o jornalista e diretor de tevê Nelson Hoineff, autor de pelo menos dois livros importantes sobre o futuro da telinha  As linhas que seguem são uma espécie de síntese comentada do que ali se deu.

            Caberia ao ministro da Cultura, Francisco Weffort, abrir os trabalhos. Mas Weffort, além de não ir, mandou como representante o ex-presidente da Associação de Comunicação Roquette-Pinto (leia TV-E), Mauro Garcia, que está longe de ser um intelectual. Mauro ateve-se à sua área, questões objetivas sobre a produção audiovisual. Sorte de ambos não terem sido alvejados por perguntas mais profundas sobre suas pífias gestões (Weffort no MinC, Mauro na Rede Brasil). Do que disse o representante do ministro, ficou um axioma: há os que fazem televisão e os que pensam televisão. Será?

Duvido que Hoineff possa concordar com ele. Logo depois do Mauro, o presidente do SESC, Orlando Santos Diniz, co-patrocinador do evento, lembrou que estudar o meio televisivo é inevitável, na medida em que ele “atinge mais de 87% dos lares brasileiros”. Com uma agravante: quem mais vê tevê é a criança – submetida à sua influência quatro horas por dia, em média. Na tevê a cabo, a audiência não ultrapassa os três milhões de assinantes, pouco mais de 2% da população nacional – “sendo que a imensa maioria liga a tevê a cabo para ver programas da tevê aberta.”

            Para não se dizer que não tivesse feito o dever de casa ou fosse um estranho no ninho, o presidente do SESC arriscou três citações: lembrou Walter Clark (“a tevê serviu ao regime; depois que o regime acabou, ela assumiu o papel de ser poder”), Joel Rufino dos Santos (“a tevê tem o monopólio do discurso, o discurso do poder”) e Eugenio Bucci (“a tevê tem códigos mas não alfabetiza”).

            No debate que se seguiu, a mesa (que incluía também Nelson Hoineff e a Secretária de Cultura/RJ, Helena Severo, que não conseguiu ir além dos chavões) pareceu concordar em um ponto: a produção independente tem pouca relação com as grandes redes. De qualquer forma, Mauro Garcia ressaltou o fato de que a TV Cultura e Arte, veiculada a cabo, opera exclusivamente com produtores independentes.

            Logo depois, no mesmo dia, começou a mesa cujo tema era “Cultura, televisão e movimentos regulatórios”. O primeiro a falar foi o vice-presidente da Rede Record, Roberto Franco, que perguntou: a dicotomia analógico x digital pode ser decifrada como evolução ou revolução? Franco citou um estudo da RCA Victor, nos primórdios do novo eletro-doméstico, em meados do século passado: “esse invento parece não ter futuro porque a família americana não vai querer ficar sentada diante de uma caixa.”

            Franco desdobrou a dicotomia inicial: conectividade x distância; velocidade x tempo; intangibilidade x massa. Inferiu que a competição já não é circunscrita, tevê com tevê, etc: “o jogo das parcerias mudou completamente, a tal ponto que se pode perguntar quem é o cliente? Quem é o fornecedor?”

            É a tecnologia, segundo ele, que alavanca o processo. Tecnologia que cria aplicativos, que cria aplicações, que geram negócios, que obriga a se estabelecer mecanismos regulatórios. Regular implica em desviar o foco da tecnologia para o consumidor. Uma nova tecnologia, ao surgir, passa por cima de todas as regulamentações – é quando o seu alcance mexe com as estruturas sociais que nasce a necessidade de regular.

            Não se pode, afirma o vice da Record, é desprezar “essa gigantesca ferramenta de inclusão, uma vez que 76% dos assinantes de tevê a cabo vêem tevê aberta”. Contestando o representante do ministro Weffort, Mauro Garcia, Franco salientou que a tevê pública é o lugar da inovação: “é utópico exigir de quem trabalha com audiência e mercado que se dedique aos experimentalismos.”

            Ao final, Roberto Franco disse que “por não estar pronto, o Brasil perdeu a primeira Revolução Industrial, por não estar pronto, perdeu a segunda Revolução Industrial. E agora? Que modelo seguir? A alternativa é criar um modelo próprio.”

            Bom que terminasse assim, pois na seqüência a vez era do chefe de gabinete do Ministério das Comunicações, Marcus Pestana, que foi rápido e rasteiro. Preconizou que, em dez anos, todo mundo terá tevê digital no Brasil. E que a responsabilidade social do veículo é imensa: “não se pode deixar o jogo livre onde se afirma a nossa identidade cultural.”

            Bola com Leonardo Dourado, presidente da Associação dos Produtores Independentes, que pareceu nervoso e caótico, apesar dos tempos em que atuava no Fantástico. O estilo “o Brasil não tem jeito” do seu discurso soou apenas despreparado. Acentuou que os produtores independentes correm 90% de todos os riscos (ora, é assim com quem lança um CD, mais ainda com quem escreve um livro sem ter um editor), não se entusiasmou com a MP 2219 (que cria a Ancine, Condecine, Producine e o Conselho Superior de Cinema) e acabou sua fala lamurienta como o menino a quem negaram um pirulito.

            Estava mesmo na hora de um showman – e Flávio Cavalcanti Jr., diretor regional do SBT no Distrito Federal, não fez por menos. Ocupou a tribuna com gestos e retórica que traziam de volta a imagem do seu velho pai nos tempos de Um instante, maestro. E soube dosar com humor o seu recado altamente patronal. No início, disse que há 188 projetos em Brasília que visam mudar as leis que regem a tevê no Brasil, confessando sem constrangimento o seu papel de lobista:

            - A tevê no Brasil é uma história de fracassos. Excelsior, Continental, Manchete, Tupi e a própria Record são emissoras que quebraram. Não se pode contar essa história vendo só os sucessos. Quando a vaca vai pro brejo, a responsabilidade é da concessionária. Não há tradição de produção independente na tevê brasileira. Nos EUA, quando a tevê começou, já encontrou Hollywood como um grande fornecedor. Aqui, não. O empresário se habituou a ter que produzir. No caso da nossa empresa, não tenho dúvida: Sílvio Santos prefere fazer um programa a comprar pronto.

            Logo em seguida, Flávio lançou o que considera a fórmula infalível da boa televisão: audiência + faturamento + prestígio. Comparando com a tevê americana, sugeriu que “lá há mais baixaria que aqui” (sim, mas sem hegemonia de nenhuma rede e com centenas de opções a dez dólares por mês). “A regulamentação – aposta – não garante o problema do controle de qualidade. Nossa tevê tem que resolver um dilema shakespeareano: ela se pretende espelho ou farol da sociedade?”

            Vice-presidente da ABERT e representante da Rede Globo, Evandro Guimarães abriu sua locução dizendo-se um entusiasta do “melhor programa da tevê brasileira, o intervalo comercial”. Depois de homenagear Walter Avancini e Guimarães Rosa, concordou com Flávio ao mencionar o absurdo de alguns projetos tramitando em Brasília: “vejam vocês, há um que propõe tirar do ar a propaganda da Embratel porque o slogan ‘faz um 21’ pode ser aproveitado eleitoralmente nas próximas eleições.”

            Nos sonhos de Evandro há uma tevê mais local (coisa que dá urticária em seus patrões). Ele entende que a globalização impôs um movimento exógeno ao desenvolvimento da televisão e, no Brasil, hoje, dependemos até do que vai acontecer com a ALCA. “Produção é a soma – diz – de capital, tecnologia e conteúdo”. Se a legislação optar por uma programação regional compulsória, só restará, sendo otimista, um pé desse tripé: o conteúdo. Repetidoras e afiliadas, país afora, estão na era da tevê a vapor. E vapor barato.

            O fato de não limitar as importações confere ao Brasil uma tendência livre, atenuada pelos instrumentos de fomento à produção nacional. É pouco, reconhece o dirigente da ABERT. “A Índia produz 850 filmes por ano, entre outras coisas porque reserva grande parte do seu mercado interno para a exibição desses filmes” – exemplifica.

            Evandro livra discretamente a barra da Globo: “reparem que, no horário nobre, só temos produções nacionais, novelas, telejornais, programas de humor”. A música brasileira está fora desse pacote – mas ele é o primeiro a se referir a ela no encontro. Ponto para a consciência crítica do executivo.

            Há um consenso no ar que Evandro sintetiza bem: a indústria audiovisual é a maior fonte de empregos que se descortina nesse limiar de século. “Os políticos estão mais sensíveis a isso”, acrescenta. “Em compensação, o movimento para a desnacionalização do produto brasileiro é muito maior do que se imagina. Sei do que estou falando” – afirma com a segurança de quem conhece os atalhos do poder.

            Ao concluir, o representante global faz uma distinção entre programação e empacotamento, ao mesmo tempo em que observa as opções da mídia publicitária: “pelo menos 50% destina-se exclusivamente a promover marcas – não ocupa a telinha para vender nenhum produto específico.”

            É fato. A propaganda institucional banca as grandes transmissões, os eventos internacionais transmitidos ao vivo. O varejo vai na programação regional, de veiculação muito mais barata e resposta imediata. O chamado anunciante majoritário, cujos produtos estão disponíveis do Oiapoque ao Chuí (Itaú, Bradesco, Brahma, Nike e etc), na verdade não pode abrir mão dessa participação massiva. É preciso estar atento e forte, disse alguém.

            Eugenio Bucci, mais que um jornalista, é um scholar. Usa modos recatados para proclamar seu orgulho de ser professor de jornalismo e enaltece a qualidade dos cursos de Comunicação Social no país, isso já nos debates da mesa “Telejornalismo e formação de opinião”. Alguém, antes dele, em outra mesa, talvez o Flávio com seu incorrigível e simpático direitismo patronal, tinha detonado com a formação acadêmica obrigatória dos jornalistas (ato falho, passei por cima disso; Eugenio, não).

            Admitindo a priori o poder de formação da opinião pública que a tevê tem, o crítico/professor observa o modelo estrutural da Rede Globo, “apoiada no dueto telejornal x novela”. Durante os anos da ditadura, acentua, “quando o jornalismo era sensivelmente chapa branca, coube à novela tratar como ficção alguns aspectos mais interessantes da realidade brasileira. De alguma forma a gente está vendo isso agora, em O clone.”

            O fim da ditadura, et pour cause, acabou representando “um desafio para o telejornalismo brasileiro, inclusive na Globo”. De alguma forma, esse telejornalismo acabou sendo alçado a um grau maior de responsabilidade, de isenção informativa – que parece ameaçada pelos acontecimentos trágicos do 11 de setembro:

            - Quem viu as provas contra Bin Laden? – Eugenio pergunta, claro, bem antes do líder talibã ter assumido a responsabilidade pelas mortes das torres gêmeas.

            Há uma precariedade de informações com relação a esse novo momento mundial, “causada por razões até institucionais”. Mas Eugenio refuta a idéia de que o problema seja exclusivo do jornalismo: “estudamos pouco, sim. A questão é muito mais ampla. Não se restringe ao jornalismo. Médicos, engenheiros, advogados – está todo mundo lendo muito pouco.”

            Editor-chefe do Jornal da Record, Boris Casoy pega uma carona na discussão. Assume ter medo de ser entrevistado por alguns repórteres de revistas de variedades, tipo Caras. “Às vezes, publicam o contrário daquilo que eu disse.”

            Eugenio não perdoa: “imaginem vocês o médico com medo de se operar no próprio hospital em que trabalha.”

            Mas, nem Boris nem Eugenio vão ao que me parece o nó da questão. O jornalismo é uma profissão de jovens. Uma profissão em que os patrões exploram cinicamente o idealismo da juventude que sonha mudar a face do mundo (“eu sou você amanhã”, poderíamos argumentar, nós, os com mais de vinte anos de praia). Redações como as de O Globo e Jornal do Brasil têm raríssimas pessoas com mais de quarenta anos – e nenhuma delas na reportagem. Por quê? Ora, por causa dos salários e da equação disposição/disponibilidade. O recém-formado está sempre pronto a despejar-se para a Baixada Fluminense onde foi descoberto um montinho de pó que pode ser antraz, cocaína ou mármore moído. Fá-lo a preço vil, de manhã, de tarde, de noite ou de madrugada.

            Em suma: acaba-se para o jornalismo numa idade, por volta dos quarenta, em que se está efetivamente chegando à maturidade nas outras profissões. Responda rápido: você confiaria o próprio olho, se precisasse de uma cirurgia delicada, a um oftalmologista de 24 anos, diploma cheirando a tinta? Essa é a questão – e não é uma pequena questão.

            Palmas à Globo que, depois de décadas de mauricinhos e patricinhas no vídeo, vem tendo a coragem de exibir em horário nobre as anatomias nem tão privilegiadas assim de profissionais competentes como Zileide Silva, Domingos Meirelles, Luiz Fernando Silva Pinto e outros, como a correspondente de guerra .... Mesquita, de tanta inexperiência na telinha que sequer arrisca-se numa passagem – mas é capaz de reportagens estarrecedoras, praticamente de dentro do front. Mas, esses são  profissionais com carreira consolidada e longe do padrão estético que recomendou, circa 1987, a substituição de Leda Nagle por Cláudia Cruz no jornal Hoje.

            A esta altura, um estudante quer saber de Amaury Soares, diretor-executivo da Central Globo de Jornalismo, o que aconteceu “nas internas” no famoso episódio da cobertura, pela TV Bahia, do processo de cassação do mandato de Antonio Carlos Magalhães, dono daquela afiliada da Rede Globo. Tive a curiosidade, na época, de tentar acessar a site da tevê baiana. Esteve por semanas fora do ar com a informação de que “estamos refazendo nossa homepage e breve estaremos de novo disponíveis na Internet”. Conversa pra boi dormir, à sombra do Mar Grande, em Itaparica. Amaury não pipocou:

            - Aquela história da TV Bahia obrigou a Globo a refazer o contrato com todas as afiliadas. Agora, somos gestores do jornalismo de todas elas. Antes, não era assim. Não podíamos, da cabeça de rede, pautar a cobertura das afiliadas. Isso acabou.

            Gol da TV Globo. Mas, logo contrabalançado por um gol contra da tevê como um todo. Amaury, Boris e Eugenio concordam em que a história do telejornalismo no Brasil está recheada de erros éticos e, em muitos casos, desserve a opinião pública. Caberia um ombudsman na tevê?

            - Claro – apressa-se Eugenio em responder – a tevê tem que ter um “erramos” como os maiores jornais têm.

            A que horas, em que espaço da grade? Basta um desmentido num horário de muito menor audiência para dissipar os malefícios de uma informação (ou uma campanha) equivocada como ocorreu, em horário nobre, com a escola...? Pelo jeito, o telejornalismo ainda precisa amadurecer bastante para equacionar equilibradamente a força do veículo e os inalienáveis direitos de quem é atingido por ele em sua honra ou nos lucros do seu negócio.

Gabriel Priolli, diretor da TV Puc e crítico de TV, é o primeiro a se manifestar na mesa que discute Audiência, grade e responsabilidade. E começa pelo óbvio: “a tevê é um aparelho social que

·        reproduz a ordem vigente, política e social;

·        recalca e libera tensões, instintos e pulsações, operando como um relê;

·        erotiza ou reprime a sexualidade;

·        incorpora ou sublima a violência;

·        alterna qualidade e baixaria.”

A seguir, Priolli radiografa a situação atual da tevê brasileira: o que há é “apelo ao sexo e à violência, desrespeito à lei, ao homem e à família”. Há solução à vista? Ele diz que “a responsabilidade da tevê está atrás da grade e só a pressão da sociedade pode libertá-la.”

Nem tanto – voltemos às questões fundamentais das relações do Estado com a cultura e as telecomunicações. A tevê é assim porque o Estado é permissivo, omisso e covarde. Como Pilatos no Credo, as autoridades lavam cinicamente as mãos e deixam que os telespectadores se defendam sozinhos, sejam ele o metropolitano alfabetizado de classe média ou o operário sub-empregado a preço vil no hinterland.

Na sequência, a vez de Regina de Assis, presidente da MultiRio e ex-secretária de Educação do Rio de Janeiro (primeiro governo César Maia). Primeira observação: “a criança assiste, desassistida, a cerca de cinco horas de tevê por dia”. Cá entre nós: essa frase, só ela, vale um congresso inteiro. Dá para discutir, cobrar, fazer catarse e fazer política.

No fim, os aplausos para mais uma intervenção preciosa e diretamente ligada ao real da televisão:

“Sacha não usa as roupas que a mãe anuncia para os filhos dos outros. O que demonstra claramente o quanto o conhecimento e o comportamento podem ser perversos.”

Ombudsman. Ouvidoria na tevê. Gabriel Priolli defende essa interatividade responsável como providência capaz de devolver a televisão a níveis razoáveis de saúde:

“Para que se tenha idéia da gravidade da situação, observe-se que os vinte programas prediletos das crianças são adultos. Em décimo lugar, está o Casseta e Planeta. O programa infantil melhor colocado vem em 21º lugar, conforme certifica uma pesquisa realizada em São Paulo. A realidade é simples: isso acontece porque a tevê é o maior poder do país. O Estado teme a tevê e só por isso evita regulamentá-la.

O dramaturgo e roteirista Lauro César Muniz, autor de novelas como Escalada, O casarão, e O salvador da pátria e minisséries como Chiquinha Gonzaga, abriu a mesa Ficção e espetáculo. A necessidade de uma cota de tela para as produções nacionais foi a preocupação central de sua exposição, tendo como anteparo a atuação da Associação Nacional de Roteiristas, nova entidade corporativa disposta a lutar contra os empresários de comunicação e as instituições federais no sentido de garantir ao roteirista patrício o direito de ocupar um espaço na tevê do seu próprio país.

- Estivemos – diz ele – com o ministro Pimenta da Veiga e ele parece sensível à idéia de uma reserva de mercado qualquer na telinha brasileira.

Os temores da classe referem-se em especial à possibilidade de ser aberto o capital das emissoras de teledifusão:

- Na reuniões internas, o empresariado está todo a favor da abertura. Só quem ficou contra foi a Globocabo, que representa 1,5 milhão de assinantes. – conclui.

Diretor artístico da TV Record, Del Rangel advogou uma utopia: “o que eu prego é uma tevê inteligente, capaz de levar o belo às classes C. D e E. Mas sem perder de vista a realidade de que anunciantes tipo Casas Bahia só anunciam em dramaturgia.”

De alguma maneira, tanto Del Rangel quanto Lauro César Muniz mostraram-se prioritariamente preocupados com o futuro da tevê brasileira, no caso de ser aberto o capital das emissoras. Na verdade, se o Brasil fosse um país onde as leis fossem cumpridas com rigor, o zelo seria desnecessário. Com capital de qualquer latitude ou longitude, a legislação brasileira é o bastante para nos garantir uma tevê menos indigente, dos pontos de vista ético e qualitativo. Não fosse aquele medo a que o Priolli se referiu acima.

Professora e historiadora argentina, Silvia Oroz participou do Encontro como representante da Televisa, a maior rede do México – da qual o SBT é o grande exportador brasileiro. Segunda pessoa a falar em música no Encontro, Silvia usou como argumento para defender os dramalhões astecas as composições do grande Agustín Lara, que segundo ela seriam vítimas de preconceito similar:

- Ele é tão rejeitado pelas elites quanto as telenovelas.

Não creio. Sempre ouvi de bons músicos da bossa nova as mais gentis referências ao piano e à música do autor de Farolito, Maria Bonita e Noche de ronda (em 86, já que não ganhamos a Copa, um dos meus troféus pessoais foi sair do México com um álbum triplo  de Agustín Lara ao piano).

- A rejeição do gênero popular – enfatizou Silvia – é um pecado original das elites. Os melodramas são fundamentais. Reparem que as tragédias gregas também são melodramáticas e se movem na bipolaridade tragédia x amor. A telenovela constitui e nutre o imaginário popular. Como não é novidade, ela oscila entre a narrativa e a retórica, que é a reiteração, aquilo a que nós, argentinos, costumamos nos referir como dimelo otra vez.

A esta altura, a questão do capital estrangeiro tinha se tornado tão obsessiva para a mesa que o moderador, radialista Sidney Resende, não resistiu a um pitaco:

- Não é uma contradição que a tevê brasileira defenda a abertura de capitais em todos os setores menos nela?

Del Rangel respondeu pela tangente: que a Record mantém um compromisso com a família brasileira. Que ninguém verá em sua tela uma cena constrangedora. Nada que um pai não possa assistir ao lado da filha adolescente.

A mesa seguinte teria tudo para ser, como foi, a mais polêmica. Reunia os apresentadores Carlos Massa, o Ratinho, (ex-Record, atual SBT), Cazé Peçanha (ex-MTV, atual Globo) e Soninha, ex-MTV, ex-Cultura, demitida por causa de uma entrevista à revista Época, em que assumia fumar maconha), escalada à última hora em lugar de Max Fivelinha (MTV). Tema: Roupa suja se lava na tevê.

De início, Soninha tentou separar o popular do popularesco. Usou Jô Soares como exemplo: “Jô teria audiência num horário mais cedo. Do mesmo modo, lá na Cultura, há um programa – Viola, minha viola – popular e com uma grande audiência.”

No outro extremo, para a apresentadora, estariam Sergio Mallandro e Simony:

- A pior coisa que eu conheço na tevê é o programa do Sergio Mallandro. Nas poucas vezes em que o vi, nunca tinha nada que pudesse ser considerado num nível sequer razoável. Todos os outros programas populares têm alguma coisa que escapa. O dele, não. Quanto à Simony, costumo dizer que ela é o exemplo da liberdade que eu tenho na TV Cultura: jamais serei obrigada a entrevistar a Simony ou convidá-la para o meu programa.

Se a idéia da produção do evento, convidando Ratinho, era sacudir um pouco a platéia, pode-se dizer que o objetivo foi alcançado. Se era produzir qualquer reflexão, foi um logro. Ratinho começou pelo óbvio mais superficial e simplista da análise televisiva:

- Cada um assiste o que quer (quem dera, meu caro; de que país estamos falando?). Eu não sei porque estou aqui. Não sou nada, falo tudo errado. Eu tô aqui porque sou amigo do Nelson (Hoineff). A tevê é só um espelho da sociedade. Faz 500 anos que a elite desembarcou com Cabral e continua mandando aqui.  Pra mim, aquele navio devia ter afundado. Se querem melhorar a qualidade da tevê, por que o governo não põe o Telecurso no ar às oito horas da noite? Eu era feirante. Me laçaram e me botaram lá. Não fui preparado, não fui formado para fazer televisão. Para melhorar a tevê, só melhorando o nível educacional. Quando isso acontecer, eu fico desempregado, volto a vender churrasquinho na feira, só que com um pouco mais de experiência.

O salário, dizem, é de 300 mil reais mensais. Para entrar e sair do Hotel Glória, segurança, carro e motorista na porta. Se o país mudar tanto que não der mais chance a um Ratinho na tevê, o mais provável é que isso demore o bastante para que ele possa construir um patrimônio milhares de vezes superior a uma barraca na feira. Mas, quem sabe da vida dele é o Cazé. David contra Golias.

Cazé é a metade do Ratinho mas, como se diz hoje em dia, tem atitude. Começou batendo de frente:

- Ser espelho é como ser Pilatos. É lavar as mãos. Nossa obrigação é tentar mais, ir além.

Soninha gostou da deixa e acrescentou:

- Criança gosta de bala. Vamos dar bala à criança o tempo todo?

A tendência do ser humano é evoluir? Bem, ninguém nasce gostando de Chivas Regal – e se a gente continuasse a mesma coisa o produto mais vendido nos supermercados do mundo era leite materno. Pano rápido. Voltemos à Soninha:

- A tevê ensina até a quem não quer. Se você vê um jogo de futebol e os caras baixam o sarrafo sem levar sequer um cartão amarelo, isso forma uma idéia. O sujeito acaba achando que a impunidade é o certo. Do mesmo modo, as pessoas aprendem com os mitos da tevê que não saber uma coisa não tem nada demais. Em alguns circuitos, fica até charmoso o sujeito mandar que “pô, não manjo nada desse lance aí”. Um exemplo: o ministro José Serra, da Saúde, encara as câmaras e diz que “até hoje não sei o que é o exame Papanicolau”.

É só o preventivo que as mulheres fazem contra o câncer, ministro – mas a situação continua tensa. Sidney Resende argumenta: “Ratinho tem responsabilidades, sociais inclusive, queira ou não queira”. Soninha aproveita e desanca também a mídia televisiva: “é medíocre, divulga IBOPE, quem comeu quem” (vejam vocês: no dia em que rememoro este debate, Joaquim Ferreira dos Santos deplora, na página 2 do Caderno B, do JB, este tipo de jornalismo; no mesmo dia, na página 4 do mesmo caderno, era uma festa – mídia mais medíocre é impossível).

A esta altura, Ratinho perde a linha:

- Tem gente que lê um livro do Che Guevara e acha que é intelectual. Mas a verdade é que 70% do pessoal que vê o meu programa riem. Só 30% choram (e eu, pasmo na platéia, pergunto-me onde ele descobriu que ler Che pode fazer alguém intelectual?)

Uma luz no fim do túnel – Soninha toca numa questão inadiável:

- Se a Globo descentralizasse a produção, seria um ganho enorme. Vira e mexe, ela faz uma novela nordestina, só que com atores de sotaque carioca e paulista. Se tivesse coragem para ousar mais, isso representaria muito em termos de emprego, de cultura regional.

Surpresa: sabe aquele exemplo do leite materno versus Chivas? Não é que Ratinho pede a palavra e cai nele, por outras vias? Em evidente contradição com tudo o que havia dito antes, ele proclama: “o sujeito começa lendo ‘Notícias Populares’ até chegar à ‘Carta Capital”.

Finalmente, o debate se torna essencialmente musical. Soninha não se constrange de afirmar que “o território brasileiro é o espaço de barganha da MTV com as gravadoras, que numa época não queriam investir em clipes (a cultura original das gravadoras é de que a mídia devia ser uma coisa de graça – isso mudou). Na verdade, o interesse era investir no clipe do grupo tal e a emissora queria fazer o clipe de outro grupo. Aí, a MTV assumiu o axé, o pagode e ficou refém dessa imagem.”

E, numa conclusão que só surpreende os desavisados, Soninha fecha a sua delicada mas incisiva participação no encontro:

- Dizer que a MTV foi alternativa e hoje é sistema não é verdade. Ela nunca foi só alternativa. Cazé, por exemplo, era subversivo, mas outras coisas não.

A mesa seguinte era como a MTV segundo Soninha: uma grande contradição. Reunia Renato Janine Ribeiro, professor de Ética e Filosofia Política da USP e um dos nomes mais respeitados da inteligentsia nacional. Um scholar. Do outro lado do ringue, Antonio Abujamra, passional, arrebatado, ator mas intelectualmente dezenas de furos acima de seus pares, um fingidor que finge completamente (longe, portanto, da imagem preconceituosa que tinha com a categoria um dos maiores amigos de Nelson, o irreverente Paulo Francis: “o ator se cair, não levanta mais; fica de quatro”). Tema: A tevê é coisa séria?

Renato buscou ser eficiente e foi austero – como um mestre rigoroso. Disse do papel do Estado (“a tevê é um bem público; as ondas são propriedade nossa”) e puxou o papo para a questão da responsabilidade social (“se o Estado controlar vai dar errado; é preciso pensar na liberdade de expressão versus a responsabilidade social; e tem mais: Note que o comício Diretas-Já começou como atração de uma festa de aniversário da cidade de São Paulo”).

Mais ou menos: o primeiro comício foi em Belém, Pará, coincidindo com o Círio de Nazaré, a maior festa religiosa e folclórica da cidade. Reza a lenda que foi lá que Tancredo sussurrou para Ulisses Guimarães: “um povo que faz uma festa assim jamais poderá ser comunista.”

Voltemos ao professor: a verdade é que, com mais ou menos empatia, Renato foi fundo. Disse ele: “como fazer da relação doméstica com a tevê uma presença associativa capaz de fazer a sociedade participar?”

Logo depois, o tema era outra vez a necessidade de um ombudsman na tevê: “a BBC tem um programa de reclamações. Um programa, vejam vocês, que questiona até falhas na previsão da meteorologia.”

Renato admite avanços no papel da mulher, segundo a ótica das novelas. Os personagens são mais iguais hoje do que eram há duas décadas. Em compensação, “no jornalismo, o discurso dos Direitos Humanos dificilmente vai além dos já persuadidos; na narrativa, obtém-se uma repercussão muito maior. Mesmo assim, sabe-se que o telespectador ainda encara com pouca aceitação o lesbianismo, que na televisão é um comportamento de alto risco.

No Você Decide, diz o professor, “é fascinante ver a irritação do apresentador diante das escolhas do público”. A tevê, repete, faz questão de exercer “um poder tirânico e déspota, como é visível no programa do Ratinho”:

- Isso também é resultado – prossegue - do fato de a sociedade brasileira ter com a política uma relação muito diferente, por exemplo, da relação francesa. Ou, para ficar no nosso continente, das relações argentina e chilena, sociedades muito mais politizadas que a nossa . É simples checar isso. Se a gente perguntar ao cidadão comum como se dá a cadeia histórica de Rosas a Perón, daí a de la Rua, ele é capaz de explicar. Mas se a gente quiser saber, por exemplo, o que liga Caxias ao Regente Feijó e daí para cá, poucas pessoas serão capazes de unir essas biografias. Não há um continuum político. Aqui, a ditadura tolerou ou liberou a revolução de costumes, drogas, etc. Em troca, camuflou ou obscureceu os dados da nossa história. O sopro de renovação que existe hoje no nosso panorama político vem da ecologia. O grande desafio brasileiro é como aprimorar a energia difusa que resiste à organização dos partidos e privilegia as relações pessoais.

Quase perfeito. Eu só acrescentaria: “e as ambições individuais”. Farinha pouca, meu pirão primeiro. Essa parece ser a máxima filosófica e pragmática determinada pelos padrões das nossas tevê e publicidade. Ou, como diria Raul Seixas: eu sou eu e Nicuri é o diabo.

O encontro está chegando perto do fim. Com a palavra, Antonio Abujamra, um dos mais preparados dos atores brasileiros e, et pour cause, amargo, cético e muitas vezes mais arrogante do que seria recomendável a qualquer tentativa de aproximação. Ele começa repetindo o Ratinho: também só está ali por causa do Nelson, que o indicou para ser júri no Festival de Montecarlo, coisa assim. Em seguida, Abu pede que as luzes se apaguem para que a platéia assista a um monólogo filmado. O rosto do ator aparece em big close up, sangrando a tela, num discurso belíssimo mas de acachapante pessimismo. Diante do texto, os Versos íntimos, de Augusto dos Anjos, são quase um conto de fadas. Algumas das falas do Abu:

- A imagem escraviza. O homem de tevê não pode ter uma sala só. É preciso ter medo dessas pessoas só de tevê.

- A tevê é virgem. Ainda precisa ser descoberta. O artista precisa idolatrar a dúvida.

- Ser diretor é como ser pai, é dominar a arte de ser desnecessário.

- TV é fashion. Não pode ser só tecnologia. Tenho medo disso. John Woo e o dragão. Não pode ser só isso. Não é possível que seja só isso.

Terminada a lamúria, a vez da participação da platéia. Diante de uma pergunta, Renato resvala na questão do controle de programação (e eu assino em baixo): “tevê é empresa; muito do que se defende no Brasil como liberdade de imprensa é meramente liberdade de empresa.”

Falou e disse.