A censura e a música popular no Brasil
Roberto M. Moura*
(Julho de 2001)
A se considerar
as perseguições e preconceitos que marcaram – e ainda marcam – a trajetória
de gêneros populares como o lundu, o maxixe, o choro e, em especial, o samba,
pode-se admitir que sempre houve censura musical no Brasil. Quando não institucionalizada,
pelo menos de uma forma velada, mascarada pelas relações sociais e encoberta
por uma democracia racial que sabe exatamente qual é o seu lugar.
Mas, não
é exatamente dessa forma de censura que se trata aqui. Não para falar dos obstáculos
quase intransponíveis que os criadores negros tiveram que enfrentar ao longo
de todo o século vinte para nos legar o maior tesouro de que a cultura brasileira
dispõe. Batuque na cozinha, sinhá não quer – mas o que interessa nesse momento
são relações institucionais para além da casa grande e da senzala.
Na forma
da velha DCDP (Divisão de Censura e Diversões Públicas), a República sempre
teve um instrumento policial para liberar (ou não) as músicas passíveis de execução
ao vivo (em teatros, espetáculos ao ar livre ou no rádio, que era praticamente
ao vivo até a década de cinqüenta). Mas, a não ser em exemplos isolados, como
se vê na própria paródia do samba inaugural Pelo Telefone (“o chefe da
folia” etc), a ação da censura não aparece de modo determinantemente castrador
junto à produção musical daquela geração fundadora dos modelos musicais brasileiros.
Quando surge a segunda geração do samba, no Estácio, ocorre quase simultaneamente
a Revolução de 30, com a ascensão de Getúlio Vargas. E a primeira, digamos,
“interferência” ocorre em 1935, quando a Prefeitura carioca concorda em oficializar
o desfile das escolas de samba – desde que os sambistas entendam que não é possível
cantar, em plena Capital Federal (o Rio de Janeiro foi sede do governo até l960,
quando o Distrito Federal foi transferido para Brasília), algo como o sucesso
portelense de 1932 [1] ,
Dinheiro não há, de Ernani Alvarenga: “lá vem ela, chorando/o que é que
ela quer?/Pancada não é, já dei./Mulher da orgia quando começa a chorar/quer
dinheiro, dinheiro não há.”
Governo
e sambistas, aproximados pela índole diplomática de Paulo da Portela, que queria
a legitimação do trabalho desenvolvido na agremiação que ajudara a fundar, apararam
as arestas mais pontiagudas. Foi assim que o carnaval brasileiro começou a redesenhar-se,
adquirindo e aprimorando as características que o transformariam numa das maiores
festas populares do mundo. O governo assumiria a organização dos desfiles das
escolas de samba. Em troca, os sambas narrariam em versos os enredos históricos
obrigatoriamente levados à pista. Louve-se o fato de que essa imposição foi
absorvida com tamanha naturalidade pelos sambistas que gerou um sub-gênero dentro
do samba, o samba-enredo, formato de dezenas de obras-primas.
Mas, de 1937 a 1945, o
Brasil viveu sob o Estado Novo, também comandado por Getúlio Vargas. Houve,
então, uma ampliação dos poderes do chefe do Executivo Federal,
garantida pela constituição de 1937, com normas que restringiam a autonomia
dos executivos estaduais, além de instrumentos de intervenção na economia e
de controle da vida política. Nesse período, segundo a Biblioteca on line
da Folha, do jornal Folha de São Paulo, havia “a existência do culto
da personalidade ao ditador, com o funcionamento do DIP (Departamento de Imprensa
e Propaganda), que além de fazer o marketing do ditador, possuía poder
de censura em cada publicação de jornais, revistas, livros e radiodifusão. Músicas
eram censuradas e até mesmo sambas-enredo.”
O período da história do Brasil chamado de segunda República, que vai da deposição
de Getúlio, em 1945, até o golpe militar, em 1964, transcorre em clima de relativa
tranqüilidade institucional, quebrada apenas por fatos episódicos como a proibição
de algumas composições de Juca Chaves (Presidente bossa nova, de 1961,
referência explícita ao presidente JK; e O Brasil já vai à guerra, de
1962, que ironizava a compra do porta-aviões Minas Gerais) e uma de Carlos Lyra
e Chico de Assis (Canção do subdesenvolvido, também de 1962).
Assim, a música brasileira, além de relativamente livre da pressão oficial (aquel´outra,
do primeiro parágrafo, jamais desaparece completamente), é beneficiada naqueles
anos pelas novidades da indústria fonográfica (o elepê, o stereo, etc), pela
fase áurea da Rádio Nacional num sistema de telecomunicações que levava o seu
sinal a praticamente o país inteiro e, a partir de 1950, pelo surgimento da
televisão. Reconheça-se: pelo menos até meados dos anos setenta, a televisão
no Brasil fez da música popular uma das suas principais alavancas de sustentação.
Mas, eis que surge o funesto 31 de março de 1964, que caiu num 1º de
abril. João Goulart foi deposto e, nove dias depois, o AI-1 transferiu o poder
político aos militares. Em 11 de abril daquele ano, assumiu a presidência o
Marechal Castello Branco. O Brasil só voltaria à normalidade democrática 21
anos depois, ao fim do governo do general João Baptista Figueiredo, em 15 de
março de 1985. Entre um e outro, os presidentes foram os também generais Costa
e Silva (que assinou o AI-5, em 13 de dezembro de 1968, fechando o Congresso
e extinguindo praticamente todas as garantias pessoais e constitucionais, incluindo
o habeas corpus), Garrastazu Médici (o mais à direita entre todos, em
cujo governo, de 30/10/69 a 15/03/74, houve mais violações aos direitos humanos,
perseguições políticas e censura às artes e à imprensa do que em qualquer outro)
e Ernesto Geisel, que propôs a abertura política “lenta, segura e gradual”.
Mas também governou com mão de ferro, como mostra a Lei Falcão, de 24 de junho
de 1976, que proibia o debate político nos meios de comunicação.
O historiador Ricardo Cravo Albin, que tem no prelo o livro Driblando
a Censura, considera que este período de endurecimento começa exatamente
no dia dois de abril de 1964 e só se encerra em 1979, quando o presidente Geisel,
através das gestões do ministro da Justiça, Petrônio Portella, cria o Conselho
Superior de Censura, do qual faziam parte juristas como Daniel Rocha e o próprio
Ricardo. O que sempre tivera um caráter estritamente policial (havia “cursos”
para censor, destinado a policiais, dentro da própria Polícia, lembra o pesquisador),
adquiria, então, um viés intelectual. A censura às artes só veio a ocorrer definitivamente
em 1988, com a promulgação da Constituição em vigor, a “Constituição cidadã”,
como a chamou o então presidente do Congresso Nacional, deputado Ulisses Guimarães.
Essa contextualização coincide com a minha experiência profissional e alguns
dos anos mais importantes da minha formação. Em 70, eu estava simultaneamente
estudando Comunicação na ECO/UFRJ e fazendo Licenciatura Musical no Instituto
Villa-Lobos, hoje pertencente a UNIRIO.
Em 72, essas duas carreiras acabaram se encontrando: o editor da Tribuna
da Imprensa, José Costa, irmão de Odylo Costa, filho, convidou-me a assinar
uma coluna sobre música. No fim daquele mesmo ano, enquanto esperávamos o início
do programa do Chacrinha, na Tv Tupi, o cartunista Jaguar me convidou para fazer
a mesma coisa no semanário que ajudou a mudar a linguagem e o comportamento
do brasileiro – o Pasquim. Lá permaneci por onze anos, até 1982. Na Tribuna,
convivi com o censor sentado na primeira mesa que se avistava ao chegar à redação.
Como criador e editor do Suplemento Literário do jornal, em 1974,
fui preso na oficina, de madrugada, por causa de uma edição dedicada à vanguarda
das artes plásticas, incluindo Helio Oiticica, Antonio Dias e outros. Nos textos
e artes, havia alguns palavrões – mas coisa que soaria pueril hoje em qualquer
baile funk.
No Pasquim, depois que Ivan Lessa foi morar em Londres, em 1977,
passei a ser o editor das quatro páginas de dicas. A essa altura, a Censura
era feita diretamente em Brasília – o que nos obrigava a enviar semanalmente
um material que desse pelo menos para fazer três edições, sob pena de a gula
insaciável do censor do dia não nos devolver o que desse para uma que fosse.
Outros veículos, como os semanários Opinião e Movimento, foram
implacavelmente perseguidos – até a derrocada final. A revista Veja –
sucessora da Realidade, asfixiada por uma censura econômica orquestrada
a partir de Brasília - e O Estado de São Paulo criaram subterfúgios
para driblar a censura, publicando poemas de Camões ou receitas culinárias em
lugar dos textos censurados.
É de se imaginar, portanto, que num quadro assim as artes
tenham sofrido muito – e, dentre elas, a que mais atingia a consciência do público
e a massa estudantil naquele momento, estimulada pela repercussão dos festivais
e alavancada pela presença de uma nova gerações de compositores/universitários
na indústria fonográfica, era exatamente a música popular. Sem a alternativa
de usar Camões ou receitas, nossos poetas se especializaram na metáfora. Há
uma enorme produção dos anos 70 e 80 metaforizada por inteiro. Autores como
Chico Buarque e Paulo César Pinheiro, para citar apenas dois, tornaram-se exímios
cultores da metáfora. O que o verso dizia não era exatamente o que o verso dizia.
Quando o carnaval chegar, Cálice, Tô voltando – esses são
os exemplos mais flagrantes.
Perseguido a tal ponto que bastava a sua assinatura para
que a música fosse censurada, Chico Buarque optou por usar, em 1974, um pseudônimo,
Julinho da Adelaide. São de Julinho as músicas Jorge Maravilha, Milagre
brasileiro e Acorda, amor, esta a única de Chico no álbum Sinal
fechado – outra metáfora – com músicas de outros compositores. Reza a
lenda que o verso “você não gosta de mim, mas sua filha gosta” era dedicado
ao presidente Geisel – Amália Lucy, filha do general, gostava de Chico.
Há, naturalmente, o trabalho de Capinan, Cacaso, Gonzaguinha,
Aldir Blanc, Fernando Brant, Nei Lopes, vários outros Eram compositores e poetas
dispostos ao exercício quixotesco de contrapor versos às baionetas. Repare-se
que, para alguns desses nomes, esse esforço para driblar a Censura era a tentativa
de preservação não apenas do direito de expressão mas da própria garantia de
sobrevivência no mercado musical. Perseguindo ferozmente determinados nomes,
era como se a Censura tentasse inviabilizar-lhes a carreira – infelizmente,
pelo menos num caso, pode-se dizer que a Censura foi vitoriosa.
O mineiro Sirlan, inexplicavelmente ausente da Enciclopédia da Música Brasileira
(Folha de São Paulo/Art Editora, 1998), tinha se destacado com a canção Viva
Zapátria, no VII Festival Internacional da Canção, de 1972, emocionando
30 mil pessoas no Maracanãzinho, além de milhões de outras, via tevê, Brasil
afora. Contratado pela Som Livre, Sirlan teve sistematicamente todas as suas
músicas rejeitadas pela Censura, até que o contrato foi rescindido e ele acabou
retornando a Belo Horizonte. Já no final daquela década, ele conseguiu ser recontratado,
agora pela Continental, lançando o elepê Profissão de fé. No Pasquim
nº 526, escrevi um artigo que se chamou Castração, teu nome é Sirlan,
rememorando o seu infortúnio e é dele os trechos que se seguem:
“Era ministro da Justiça o professor Alfredo Buzaid, o mesmo que hoje advoga causas de multinacionais.
“Pessoalmente, é certo que o compositor amadureceu, mas este amadurecimento esteve proibido de se sintonizar com o desenvolvimento de sua carreira e soa deslocado o seu som ingenuamente panfletário junto ao rosto envelhecido do encarte. (...) O destaque ainda é Viva Zapátria, verdadeiro horizonte aberto a ser compreendido nesta América-mãe em que estamos”.
Outro compositor que teve enorme dificuldade de lidar
com as dificuldades da época foi Sidney Miller. Sidney suicidou-se aos 35 anos,
em 1980. Começou a compor em 62 e, em dezoito anos de carreira, fez maravilhas
como A estrada e o violeiro (melhor letra do III Festival da Tv Record),
Pois é, pra quê e o samba Pede passagem, além de ter sido parceiro
de Zé Kéti em Queixa. Introspectivo, intimista – mas muito firme nas
suas atitudes e nas inúmeras trilhas que fez para o nosso melhor teatro e o
nosso melhor cinema – Sidney parecia mesmo não dispor de estômago para atravessar
aqueles tempos sombrios.
Mais diretos, contundentes na obra e na presença pública,
Geraldo Vandré e Taiguara comeram o pão que o diabo amassou. Taiguara nasceu
em 45 e morreu em 96. Começou criança na música e também brilhou em diversos
festivais. Perseguido, acabou deixando o Brasil. Viveu em Londres um ano e meio
e depois percorreu a América Latina. Quando retornou, lançou em 1983 o álbum
Canções de amor e liberdade, recheado de loas aos movimentos revolucionários.
Mas jamais conseguiu para a sua música a repercussão e o prestígio dos tempos
em que cantava Universo do teu corpo e Modinha.
O
paraibano Geraldo Vandré tem hoje 65 anos. Sua carreira começou num concurso
de calouros, em 1951. Dez anos depois, veio o primeiro sucesso: Quem quiser
encontrar o amor, com Carlos Lyra. Algumas de suas canções (Disparada,
Caminhando, etc) tornaram-se sucessos nacionais e ícones da resistência
à ditadura. Obrigado a exilar-se, viveu na Argélia, no Chile, na Grécia, na
Itália, na Alemanha, na Áustria e na Bulgária. Em 1982, um show em Presidente
Stroessner, no Paraguai, “quebrou um silêncio de 14 anos”, como nos recorda
a Enciclopédia que ignora o Sirlan. Mas Geraldo Vandré já não era o mesmo. Tirou
do armário o amarelecido diploma de advogado e é disso que vive atualmente,
ao mesmo tempo em que compõe inexplicáveis homenagens à FAB e às Forças Armadas.
Há,
naturalmente, Caetano e Gil. O sucesso televisivo do tropicalismo, através do
programa Divino Maravilhoso, que era exibido pela TV Record, incomodou
demais o regime. Em dezembro de 1968, como conseqüência do AI-5, os dois baianos
foram presos em São Paulo. Soltos na quarta-feira de Cinzas de 69, seguiram
para Salvador e foram obrigados a um regime de confinamento (época em que Gil
compôs Aquele abraço). Em julho do mesmo ano, Caetano e Gil foram para
Londres, aonde chegaram a gravar peças importantes na discografia de ambos,
só retornando ao Brasil em janeiro de 1972. Aliás, é possível que seja exatamente
esta fase de questionamentos e inquietações estéticas e políticas que leve alguns
dos seus mais antigos admiradores a se mostrarem tão decepcionados com os rumos
que as carreiras de ambos tomaram em dias mais recentes. Ao contrário, por exemplo,
de Chico Buarque, obrigado a exilar-se na Itália na mesma época, mas cuja carreira
ainda parece consentânea com a época em que lhe proibiram todas as músicas da
peça Calabar.
* Crítico musical e doutorando em Música pela UNIRIO
Texto apresentado no 36º ICTM (International Council for
Tradicional
Music), realizado de 4 a 11 de julho de 2001
no Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ
[1] A escola ainda se chamava Vai Como Pode. A denominação Portela também é resultado das negociações que institucionalizaram o desfile.