O Exílio e a Morte Simbólica no cinema e na literatura popular dos
Homens que Viraram Suco
Hudson Moura1
Simon Fraser University, Vancouver
Índice
Somos muitos Severinos/ iguais em tudo e na sina:/ a de abrandar estas pedras/ suando-se muito em cima,/ a de tentar despertar/ terra sempre mais extinta,/ a de querer arrancar/ algum roçado da cinza./Mas, para que me conheçam/ melhor Vossas Senhorias/ e melhor possam seguir/ a história de minha vida,/ passo a ser o Severino/ que em vossa presença emigra.
Trecho do auto de natal, Morte e Vida Severina de João Cabral de Melo Neto.
1 Os retirantes
O filme, O Homem Que Virou Suco, narra a história de dois migrantes nordestinos em São
Paulo: Deraldo José da Silva, paraibano, poeta popular de cordel e
José Severino da Silva, cearense, torneiro mecânico. Ambos
idênticos na fisionomia e interpretados no filme pelo mesmo ator
(José Dumont).
Severino premiado como operário padrão, no dia da entrega do prêmio mata seu chefe com
várias facadas na barriga e foge. Confundido com o assassino Severino,
Deraldo é perseguido pela polícia. Sem casa e sem documentos
Deraldo abandona seu trabalho de vendedor de cordel na praça e trilha o
caminho de todo migrante em São Paulo: vai trabalhar na
construção civil, em casa de família e nas obras do metrô.
Humilhado e subjugado pela sociedade paulistana, Deraldo não se adapta a
exploração do serviço braçal e decide então resgatar a
história de Severino através da poesia de cordel, restabelecendo a
sua própria identidade nordestina.
Deraldo descobre que Severino faxineiro de uma indústria multinacional
consegue se tornar torneiro mecânico e operário padrão passando por cima de seus
companheiros. Ele fura a greve dos operários e causa um desacerto com os
companheiros que o boicotam no serviço. Com isso o seu chefe que antes o
elegeu o operário símbolo da fábrica o despede.
Se Deraldo consegue vencer o preconceito sem perder sua origem cultural, o
mesmo não acontece com Severino que mesmo depois de matar aquele que o
traiu, fica louco e é internado num hospício.
O Homem Que Virou Suco, dirigido por João Batista de Andrade em 1979, ganhou vários
prêmios internacionais e representou um marco no cinema brasileiro. A
análise feita sobre este filme mostra não só as questões
como o exílio e a morte simbólica, como também outras
questões a que esta discussão suscita como: a memória, o mito,
os valores culturais, a individualidade e identidade cultural, o espaço
estranho e o deslocamento.
2 O caminho duplo: o risco de morte
A migração e a imigração sempre estiveram presentes na
história humana. O homem parte para outras terras e cidades em busca de
conquistas pessoais e riquezas materiais, o que é na nossa sociedade uma
prova de poder e domínio sobre o outro, ou mesmo, simplesmente uma
questão de sobrevivência. A saída do sertanejo nordestino do
agreste para São Paulo é uma das muitas correntes migratórias no
Brasil. Expulso do campo pela seca, o sertanejo nordestino está sempre
em busca de melhores oportunidades de vida. É comum tratá-lo no
Brasil como retirante. O Nordeste está sempre mandando milhões de habitantes
para várias regiões do Brasil. É comum também no
imaginário brasileiro tratar o sertanejo nordestino como um forte. Forte
porque ele rompe as barreiras do medo e abandona o espaço de sua
cultura. Forte porque ele rompe com o seu vínculo com a terra natal.
Forte porque ele rompe a barreira do desconhecido, a morte. No arriscar da
vida ele corre o risco da sua própria morte cultural. ``Eu não
entendo porque minha gente vem pra aqui ser espremido como suco de laranja e
ser jogado na sarjeta'' diz Deraldo em certo momento do filme, ele não
entende a sua própria atração pela morte. Somente através da
participação que se conquista o direito de viver, onde são
colocados à prova a sua individualidade, a sua cultura e a sua moral.
Este risco o homem corre quando participa da sociedade (vida), e esta
participação é a sua própria atração pela morte. A
consciência deste risco de morte, ao contrário de horrorizá-lo
faz com que o potencialize. Ele descobre a sua capacidade de vencer o horror
da morte. A morte não só física quanto simbólica.
Esta morte simbólica para o indivíduo pode ser muito mais sofrida,
pois ela pressupõe a certeza de uma imortalidade no sentido corporal. No
entanto, gera menos horror se esta não for percebida. Mas com certeza
será vivenciada a cada minuto, sendo consciente ou não.
Em O Homem Que Virou Suco, os dois personagens Deraldo e Severino correm os riscos da uma morte
cultural quando saem do sertão nordestino para São Paulo. Deraldo, o
poeta popular, luta contra esta morte quando sente que sua identidade
cultural é massacrada pela cultura paulistana, onde não respeitam as
suas diferenças culturais enquanto estrangeiro. Ele teme esta morte tanto quanto
luta por um espaço de sobrevivência. Mas, ao mesmo tempo ele é
atraído por essa cultura tão rica e fascinante quanto a sua. É
a busca pelo saber, por riquezas, por novos espaços para difundir suas
poesias e pelo desconhecido.
Já Severino, o operário, não pressente a sua morte cultural,
fascinado pela Metrópole, a terra prometida do sertanejo, ele se
incorpora na sociedade paulistana como se dela fizesse parte. Ele desconhece
e não respeita as leis culturais da cidade grande e se lança a uma
morte inevitável. Renega seus valores culturais e a sua origem para se
tornar o Operário Padrão, o símbolo máximo de conquista para um trabalhador
braçal.
3 Identidade Cultural
Tem gente que vem do norte/ e só causa decepção./ Tu és
mestre de safadeza,/ lesma da Criação./Conheço tua gravura,/
puxa-saco de patrão.
Estes versos que Deraldo faz para o mestre de obras que explora os seus
conterrâneos na construção civil, podem se relacionar com
Severino. Ele representa a vergonha para o seu povo, enquanto que Deraldo
luta por sua dignidade. A luta entre o santo guerreiro e o dragão da
maldade, do herói e o renegado, do pai e o filho pródigo. Não
aceitando as condições de miséria e opressão da sociedade,
Deraldo luta pela preservação de seus valores e por uma ética
social. Valores como a palavra que para ele representa a verdade, esta não
encontra respaldo na cidade grande. Numa cena do filme Deraldo está vendendo o seu
folheto de cordel na praça e o fiscal lhe cobra a identidade. O que para
ele na sua cultura significa a sua palavra, para o outro isto nada tem valor
a não ser a carteira que o governo concede ao indivíduo. Para a prefeitura
Deraldo não existe enquanto cidadão. Ele é um expatriado em seu
próprio país. Ele é condenado então a vagar pelas ruas da
cidade sendo perseguido pela polícia, por um espaço com
símbolos e mitos que não os reconhece. Ele é um ninguém que
vaga pela multidão.
``Sua história é muito nordestina'' - diz um comerciante de
histórias de cordel - ``isto é para a gente de lá''. ``Mas aqui
não tem nordestino?'' - retruca Deraldo. O espaço que até
então lhe era familiar pela presença marcante de seu povo, agora se
torna completamente estranho. Ele percebe que aquela cidade não é a
dele, as imagens da cidade não reproduz a sua cultura, ele constata a
sua condição de estrangeiro. ``O olhar do estrangeiro [...] é
capaz de ver aquilo que os que lá estão não podem mais
perceber[...] Ele é capaz de olhar as coisas como se fosse pela primeira
vez e de viver histórias originais'' (Brissac, 1990, p.363). Se Deraldo
não percebeu que aquela não é sua terra, o homem da cidade
não acordou para aquilo que Deraldo conseguiu ver entre tantos
símbolos e imagens: seu povo está ali de uma forma ou de outra
mudando o cenário daquela cidade. A sociedade cumpre assim o seu papel
de mantenedora da ordem vigente, destruindo toda e qualquer tentativa de
invasão cultural, mesmo que esta ordem não seja tão eficiente, ela se
impõe ao estrangeiro. Mas, a interação e a troca de cultura
é inevitável.
Severino considerado pelos companheiros como o dragão da maldade é
muito mais uma vítima da cultura estrangeira. Ele sofre a pressão da
sociedade, e tenta se adaptar aos seus valores. Em permanente conflito,
Severino se corrompe por seus símbolos culturais e perde assim a
própria individualidade. Para Morin, ``a afirmação da
individualidade, se constrói por meio das participações'' (1970,
p.91), mas ela também é perdida quando o indivíduo sente o
horror da morte, ``quanto mais ele é afetado pela morte, tanto mais
descobre que ela é a perda irreparável da individualidade'' (1970,
p.33). A perda da individualidade através da morte simbólica é o
não existir enquanto homem perante aos outros homens. O patrão de
Severino quando lhe pede que delate seus companheiros de trabalho, está
se afirmando sobre a individualidade dele. E Severino afirmando sobre a
destruição de seus companheiros grevistas e conquistando o
patrão. Quando este lhe despede do emprego, ele mata Severino
simbolicamente, moralmente. ``Tal como o horror da morte, o homicídio
é regido pela afirmação da individualidade. Ao paroxismo do
horror provocado pela decomposição do cadáver corresponde o
paroxismo da volúpia provocado pela decomposição do torturado''
(Morin, 1970, p.66). Para vencer este horror da morte, Severino em seu
imaginário só conhece um caminho: assassinar o patrão com uma
peixeira (faca). Como se faz com um boi no sertão.
4 Morte Simbólica
Das asas do pensamento/ voarei por muitos ares,/ Cantarei como os
passarinhos/ sobrevoando os pomares./ Serei um ases das letras,/ cantando em
muitos lugares/ Bem só pode estar o sol,/ porque ninguém o
alcança/ Haja no mundo o que houver/ o sol lá nem se balança/
Enquanto a fortuna dorme,/ a desgraça não descansa.
Deraldo recita estes versos para um amigo no meio da rua após este lhe
propor ir trabalhar na construção do metrô, onde ele verá o
seu mito ser destruído como se espreme um suco de laranja. Morin
analisa que ``por intermédio do mito há um movimento de
apropriação do mundo, de redução do universo a dados
inteligíveis pelo homem'' (1970, p.91). Decompor este mito é
desapropriar o homem de seu mundo e seus valores. Assim, o empreiteiro
paulistano que constrói o metrô, desconstrói o mito do
nordestino, Lampião, e tira todas as suas referências para lhe impor
novos valores à revelia dos migrantes. Ele cria então novos
significados para os trabalhadores como forma de controle e
domesticação. Ele mata o mito nordestino e se afirma sobre os
operários. ``Para a consciência, o mito representa a imagem de uma
conduta para a qual ela se sente solicitada'' diz Callois ( Morin, 1970,
p.90).
Num audiovisual apresentado no canteiro de obras do metrô para os novos
operários, Virgulino, o Lampião, um dos maiores símbolos de
força e resistência do sertão, é chamado de palhaço,
pirracento, ignorante e é humilhado pelos próprios companheiros,
quando este vai trabalhar nas obras do metrô. Ele é expulso com
cuspes na cara e volta para o norte como um derrotado. Antes de apresentar o
audiovisual, o monitor de recrutamento enfatiza a pronúncia e explica o
que é um au-dio-vi-su-al, e deixa claro que é para evitar problemas
e que o mesmo será mostrado e discutido durante três dias.
Deraldo que assiste seu mito ser execrado e humilhado, se vê como o
próprio Lampião. Matar lampião para ele é matar a si
próprio enquanto indivíduo. A todo momento a sociedade tenta
destruir seus símbolos. ``A obra não é uma vaquejada'' diz o
mestre de obras. A entrada para o refeitório reproduz a entrada de um
curral. Ao migrante é sempre lembrado a sua origem e a sua
diferença, para que ele não tente reproduzir sua cultura e que
simplesmente a esqueça. Deraldo um poeta popular, revolta-se contra esta
situação e se torna uma consciência crítica deste
tratamento aos seus conterrâneos. O que fica claro quando Morin define
que a ``consciência que pretende realizar a sua plenitude cultural, e
portanto derrubar a tirania dos senhores, mas também a consciência
que, mais ou menos reconhecida no seio de uma civilização
evoluída deseja a libertação das consciências ainda
oprimidas e não tolera que haja homens que não sejam reconhecidos
como homem'' (1970, p.252) e ele completa ``a diferenciação social e
a luta de classes, exercem pressão sobre a consciência e o horror da
morte'' (1970, p.48). A sociedade quando se sobrepõe ao indivíduo
elimina a consciência e o horror da morte, colocando-se acima das suas
individualidades. Como o coronel do sertão que no filme é
representado por um fazendeiro nordestino, só a ele é permitido o
direito do horror da morte e a certeza da imortalidade. Em certo momento do
filme, quando Deraldo lhe tira as botas, ele ironiza a situação do
retirante: ``Na Paraíba só não é rico quem não quer, o
que falta no povo é cultura''.
5 Exílio
Eu sou poeta, violeiro e repentista/ e quem despreza estas canções/
não conhece os valores de Camões/ e não sabe dar valor a um
artista./ Ignora que a vitória é uma conquista/ e que na vida só
terá decepção./ Quem trata o povo com desdém,/ se atrasou
nesse mundo e não entende/ que é no peito, na força e na mente/
e na união que é uma semente/ a força que o povo tem.
Quando Deraldo declama esta poesia, ele responde as perguntas que o fiscal da
prefeitura lhe fez e as quais não soubera responder: ``Quem é
você?''. Neste momento ele já conheceu a realidade da sua gente e
soube ressignificar seus valores. Para Deraldo era preciso voltar ao passado
de Severino (memória) para restabelecer a sua própria história.
Ele resgata assim a sua identidade. Ele não é um e nem o Severino,
ele representa o contador/cantador da memória de seu povo. Ele assim
atualiza a sua história de cordel, O homem que virou suco, mas sem esquecer a sua cultura.
Enquanto a morte não chega, ele a busca com o mesmo temor e prazer da
vida. Seus símbolos e mitos que não são mais os que eram no
sertão e tão pouco os que queriam que fossem sua nova sociedade. ``A
inadaptação é relativa às participações do
indivíduo. As participações são, num sentido, a própria
adaptação: todos os homens estão `ligados ao mundo''' (Morin,
1970, p.72). Como exilado cultural Deraldo ressignificou sua cultura. A
ressignificação da sua vida severina é o seu renascimento no exílio.
O sol símbolo do medo e de castigo no sertão, em São Paulo
é de alegria e esperança.
Tarkovski considera o tempo como a moral do homem. No exílio esse tempo
é muito mais marcante, sua moral é confrontada a todo instante. A
memória e o passado são cobradas e recobradas para a
confirmação desta moral. A violência solitária do degredo
voluntário se torna presente quando este não encontra no novo espaço o lugar
da memória. A memória sem o tempo não existe. ``Privado da
memória, o homem torna-se prisioneiro de uma existência
ilusória'' (Tarkovski, 1990, p.65). E exatamente uma ilusão é
que ele não quer viver, o que seria um ser amoral e sem vínculos
com o espaço e o tempo. Um ser errante pelos escombros
(espaço/tempo) alheio.
Severino foi vivendo e deixando suas experiências (memórias) para
trás - quase sempre renegando-as. A sua morte e as mortes que vão
delineando o seu caminho, são as que mais faz questão de esquecer.
Mas o próprio esquecimento é a sua morte. Sem perceber ele vai se
mutilando - assim ele mata a sua personalidade, a sua cultura, os seus
valores,... e aos seus mortos. Deraldo, o contraponto a Severino, mostra que
a memória necessita de uma ressignificação a todo momento para
se fazer viva em sua cultura. Não que ela deva ser o real, como um
diário, mas viva e presente, fortificando e delineando o seu caminho. A
memória não é o que passou, mas o que ficou. Recoletar,
rememorar é tarefa do dia-a-dia. Memória é saber é cultura.
Com isto, ele reconstrói a sua história e a fortifica. A sua morte
vai representar assim esta recoleção de conhecimentos, de saberes e
não o vazio.
Ficha Técnica
O Homem Que Virou Suco (BRA, 1979).
Direção: João Batista de Andrade.
Elenco: José Dumont, Célia Maracajá, Ruthnéa de Morais, Ruth
Escobar e Denoy de Oliveira.
6 Bibliografia
- MORIN, Edgar O homem e a morte. Trad. port. de João Guerreiro e
Adelino dos Santos Rodrigues. Mem Martins, Europa-América, 1970.
- PEIXOTO, Nelson B. O olhar do estrangeiro. In: O olhar. Adauto
Novaes (org.). São Paulo, Companhia das Letras, 1990.
- PROSS, Harry Estructura del poder. Barcelona, Gustavo Gili, 1980.
- TARKOVSKI, Andrei Esculpir o tempo. Trad. bras. de Jefferson Luiz
Camargo e Luís Carlos Borges. São Paulo, Martins Fontes, 1990.
- 1
- Hudson
Moura, Ph.D em Cinema e Literatura pela
Universidade de Montreal e mestre em Comunicação e
Semiótica pela PUC-São Paulo. Atualmente realiza
pós-doutorado na School for the Contemporary Arts, Simon
Fraser University em Vancouver. Professor de cinema e
comunicação social suas pesquisas portam sobre cinema,
vídeo, exílio e literatura. Coordena a revista
eletrônica Intermídias.com [www.intermidias.com].
Recentemente concluiu o documentário ``Os arquivos secretos de
Amylton'' sobre o crítico de cinema e cineasta capixaba
Amylton de Almeida.