José Bragança de Miranda, Universidade Nova de Lisboa
Com o suicídio terminou a luta de Guy Debord com a «sociedade
do espectáculo». Se fosse verdadeira a tese de que o espectáculo
impera, e impera absolutamente, com este gesto consumar-se-ia a sua entrada
no espectáculo, agora na cena e não já no público.
Algo de indefinido faz com que Debord escape a este destino, no momento
mesmo em que parece que a sua aceitação é geral. É
certo que Debord gozara sempre de uma fama subterrânea, a que sempre
se pretendeu furtar. Mas o eclipse voluntário, antecipando uma espécie
de suicídio, desperta atenções. Aliás, depois
de durante anos ter editado em editoras marginais e pequenas revistas,
já em 1990 começou a ser publicada pela Gallimard, essa editora
dos Grandes nomes da cultura. Para alguns, inseridos na tradição
da Internacional Situacionista, de que fora um dos membros mais influentes,
esse é um resultado longamente preparado, e esperado. É o
caso do grupo que se oculta sob o «nome colectivo» de Luther
Blissett, que fala na consumação da «deboredom»
(reino da chatice) como um gesto preparado por «Guy The Bore»
(Guy o chato).
Também Régis Debray, que se prepara para lhe ocupar o
lugar com a sua inefável mediologia, insiste no paradoxo: «Não
existe actualmente um publicitário, um responsável pela programa
televisiva, um conselheiro de comunicação, um arrivista da
cultura que não se passei com A Sociedade do espectáculo
debaixo do braço». Debord está noutro sítio,
escapando-lhes a estes que o atacam e aos outros que o defendem, com o
seu humor muito especial. Sabe-se que nos seus filmes recorre abundantemente
à voz off, e a sua voz contínua fora destas pequenas paixões.
Num desses filmes, talvez o mais importante, Hurlements à faveur
de Sade, uma voz dizia: «A ambiguidade é a perfeição
do suicídio». Debord é essa ambiguidade feita pessoa.
Ocultando-se infinitamente, quando aparece fá-lo com frases que
não ficam nada a dever à megalomania de Nietzsche. No roteiro
de Im Girum imus nocte mostra-se convencido de que a sua obra terá
«acabado por sacudir a ordem do mundo». Mas aqui o mais grave
não é a pseudo-temática da recuperação
que alimentava o ressentimento dos anos 60, nem mesmo que os media o usem
por aquele abuso característico que é o de aquecer as máquinas
com algumas paixões postiças, como sejam as provocadas pela
morte dos outros.
O mais preocupante é que, pelo menos desde há 20 anos
se tem vindo a fazer com Debord o que já tinha sido feito a McLhuan.
A sua redução a uma fórmula: a sociedade do espectáculo,
metonímia de Debord, como o TIDE é a metonímia dos
detergentes. Por mim estou convencido que por trás desta fórmula
havia algo de novo, que ainda está bem vivo e actuante. Escolho
por isso a via de analisar este conceito de espectáculo, de modo
a determinar da sua utilidade para a vida. Ou da sua inutilidade. Mas também
de desinseri-lo das cadeias com que foi amarrado pelo saber, pelos media.
Para evitar, em suma, o seu anestesiamento pela cultura contemporânea.
Não por Debord, mas por nós. Antes de mais seria preciso
distinguir entre a fórmula do «espectáculo» e
as potencialidades da obra de Debord. Aparentando confundir-se, há
entre ambos aspectos uma tensão apreciável. Algumas das críticas
a Debord provêm desta confusão. É o caso de Regis Débray
que reduz Debord a um pequeno acontecimento de reciclagem do marxismo e
das análises do fetichismo da mercadoria. As frase famosas sobre
a mundo como uma «imensa acumulação de espectáculos»,
ou então que «o espectáculo não é conjunto
de imagens, mas uma relação social entre pessoas mediadas
por imagens... » , traz a marca dessa ambiguidade.
O oposição entre espectáculo e vida é inquietante,
pois pressupõe que deverá existir uma apresentação
directa da vida, e que toda a representação ou imagem implica
uma negação dessa mesma vida. Nós, herdeiros do barroco
mediterrânico, temos razões para suspeitar de uma crítica
que recusa a mediação, como momento de divisão, de
separação. Como disse um dia Beckett, arrancadas todas as
máscaras, por trás estaria o vazio ou a morte. Aparentando
Debord estar a prosseguir a crítica marxista ao valor abstracto,
à ideologia, etc., elemento que está nitidamente presente
na sua obra magna, faz mais do que isso. Pretendendo recorrer à
mediação para a recusar, ao mesmo tempo ele revela que a
mediação e a imagem são o novo do nosso tempo. Mais
ainda, que não se trata de algo abstracto, antes palpável,
existencialmente pertinente. O que faz dele um autor essencial, junto a
Walter Benjamin e a McLhuan. Isso sobreleva o facto de continuar a funcionar
dentro do esquema da dialéctica hegeliana, corrigida pela teoria
da alienação do neo-marxismo de Lefèvbre, Marcuse,
Gabel. A maior debilidade provém, contudo, daí: o espectáculo
é visto uma imagem invertida da «realidade social»,
que se separou da sociedade para se voltar contra os homens. Daí
a sensação de que Debord se deixa apanhar pela patologia
apocalíptica, denunciando incansavelmente tudo e todos, levando-o
a recusar a negatividade, a divisão, a separação,
em suma, a finitude do homem moderno.
Se virmos a sua prática política na Internacional situacionista,
baseada na permanente divisão do movimento, por uma necessidade
que parece advir de uma necessidade absoluta do seu pensamento, se reflectirmos
no tipo de cinema que praticava, verificamos que existe um outro Debord,
que nos pode interessar bem mais que o Debord basic da fórmula da
«sociedade do espectáculo». A ambiguidade é então
a seguinte: ele que recorria a procedimentos de negação que
foram dos mais radicais deste século, e ao mesmo tempo recusa-os
na teoria, sacrificando-os a uma história de reconciliação
final, da comunidade humana realizada e «sem história».
Tudo indica que Debord é verdadeiramente radical no momento da criação,
que a própria criação revela uma política nova,
capaz de aceitar gestos únicos e irrepetíveis que mais do
que se legitimarem pela «humanidade do homem» são toda
a humanidade em si. Mas, por outro lado, a sua teoria do espectáculo,
e mais ainda, a sua concepção nostálgica da história
em busca de uma unicidade perdida, é antitética de tudo isso.
É preciso reactivar este diferendo interno da gesta de Debord. No
fundo esta necessidade estava implícita na tese de que o espectáculo
se disseminara absolutamente, estendendo-se a toda a experiência.
A ser assim, então já não haveria um não-espectáculo,
a própria divisão entre o actor activo, e o espectador passivo,
desapareceria.
Não fora este resultado já previsto por Nietzsche quando,
no Crepúsculo dos Ídolos, mostra que a revelação
de que tudo é aparência, leva a abolir a própria distinção
entre aparência e verdade (ou não-aparência)? Não
nos faz isso mais responsáveis pelas imagens que inventamos, sem
a ilusão de que alguns são os proprietários da imagem
da verdade? Quando o espectáculo emerge como espectáculo
no estado puro, o que surge é a experiência como meio absoluto.
Contrariamente ao que pressupunha Debord o problema não é
a divisão nem a separação, mas a fusão, a indiferenciação.
Tanto mais grave quanto o nosso meio dá ao virtual um suporte tecnologicamente
estável. A actual discussão em torno de Debord é bem
sintomática. A sua superação por Regis Débray
(nos Manifestes Médiologiques) em busca de uma nova ciência,
pesadamente inútil; a sua radicalização por Giorgio
Agamben (na Comunidade que Vem) que identifica o espectáculo com
a perda da linguagem e, portanto, da política humana; a sua dulcificação
pelo filósofo americano Mark Taylor (em Imagologies) que nele um
dos antecipadores do «pós-moderno», em que «o
poder se tornou imaginário» e em que «ninguém
está no controle», revela que há algo de excessivo
em Debord, que escapa à apreensão. É esse «algo»
que deve ser voltado contra o próprio Debord. Por mim suspeito que
é na luta contra o controlo que tudo se joga .
Hoje está em causa não apenas o controlo dos homens,
mas o controlo do controlo, que alimenta a ilusão de dominar a tecnologia,
apenas a potenciando. O novo espaço cibernético tende a inscrever
na sua estrutura virtual o espaço da vida, todos os locais, como
o espaço da visão e das paixões. A tendência
à fusão das máquinas com as paixões, a todos
amarrando pela imagem mostra que é a resposta passa pela divisão,
pela desagregação, pelos pequenos vincos que possamos fazer
nessa superfície extensa e ligada que é a da mediação.
A categoria de espectáculo pressupunha ainda uma distancia, uma
separação, entre o que era espectáculo e o que não
o era. A sua aplicação é mínima, pouco se podendo
esperar dela. É interessante verificar que Debord tem afinidades
secretas com um dos grandes génios do nosso século, William
Burroughs, que teve a vantagem de extrair dos seus procedimentos artísticos
toda a filosofia e política de que precisava. Num pequeno texto,
Quick Fix, Burroughs está já a anos-luz da pesada dialéctica
do espectáculo. Numa frase aparentemente enigmática diz-se:
«The theater is closed» («o teatro fechou»). E,
sem qualquer argumento, somos arrastados por outras frases que refulgem
uma sobre outras, acentuando que já não há lugar fora
do teatro, tudo ocorre no mundo, que estamos divididos nesse mundo, que
não há lugar para onde escapar, que tudo se resume a cortar
as «linhas» das palavras e dos sentimentos com as máquinas.
E a injunção que, no fundo, estou convencido, fazia mexer
Debord: «Smash the control machine» ("Destrói a máquina
de controlo"). Esse é o desafio estético e político
do nosso tempo. A famosa noção de espectáculo revela-se
como aquilo que é: um efeito da máquina de controlo. Neste
sentido é preciso lutar contra ela. E podemos contar com Debord,
que nos fala em voz off, como no seu cinema, para essa luta. Apesar de
todas as ambiguidades...