Analítica da Actualidade
(livro publicado pela Vega, Lisboa, em 1994)

José Bragança de Miranda, Universidade Nova de Lisboa

  1. Índice / Introdução / Conclusão

INDICE

PREFÁCIO
INTRODUÇÃO

PARTE I

CAPÍTULO I - TEORIA DA EXPERIÊNCIA 1.1. - O Absolutismo da Palavra 1.2. - Experiência e Exterioridade 1.3. - Experiência e Perigo 1.4. - Experiência e Saber 1.5. - A estratificaçäo da experiência

CAPÍTULO II - EXPERIÊNCIA E CRISE 2.1. - Introduçäo 2.2. - Crise de Fundamentos 2.3. - A Efectividade da Crise 2.4. - Hermenêutica da Crise 2.5. - Crise e Negatividade 2.6. - Crise e Positivização 2.7. - CONCLUSÃO: O agenciamento da experiência

CAPÍTULO III - A CONSTITUIÇÃO DA EXPERIÊNCIA 3.1. - Introdução 3.2. - O Quadro da Constituição 3.3. - A lógica do Quadro 3.4. - A Constituição do Quadro 3.5. - O Agenciamento do Quadro: ligaçäo vs. desligaçäo 3.6. - A Experiência enquanto Síntese 3.6.1. - A síntese de subjectivaçäo 3.6.2. - A síntese de institucionalizaçäo 3.6.3. - A síntese de retoricizaçäo 3.7. - Conclusäo: Constituição e Metapolítica

II PARTE

CAPÍTULO IV - DISCURSO E MODERNIDADE 4.1. - Introdução 4.2. - A «modernidade» como operador discursivo 4.3. - O topos Antigo e Moderno 4.4. - A dialéctica do moderno 4.5. - A tradição da Modernidade 4.6. - O Iluminismo, como estilização maior do moderno 4.7. - O Romantismo, como estilização menor do moderno 4.8. - Conclusão

CAPÍTULO V - MODERNIDADE E EPOCOLOGIA 5.1. - Introduçäo 5.2. - Tempo e Época 5.3. - O Esquematismo Epocológico 5.4. - Epocologia e Apocaplítico 5.5. - Experiência e Ilegitimidade 5.6. - Conclusão

CAPÍTULO VI - CRÍTICA DO EPOCOLÓGICO 6.1. - Introdução 6.2. - Limites do Absolutismo 6.3. - A Suspensão do Epocológico 6.4. - Reinflectir o Discurso 6.5. - Conclusão

VII - CONCLUSÃO

Bibliografia


INTRODUÇÃO

"The worse is not, so long as we can say `This is the worse'" SHAKESPEARE (King Lear)

As investigações que agora chegam em livro ao leitor só muito superficialmente se inscrevem nalguma especialidade académica, nem mesmo naquela bastante indefinida dos «estudos da modernidade», que têm vindo a pulular um pouco por todo o lado, sob muitos nomes, de que o «pós-modernismo» nem é dos mais felizes. Embora originaramente estivessem ligadas à necessidade académica de apresentar uma tese de doutoramento, o que as orienta é o seu comprometimento com a urgência de pensar o nosso presente, numa situação em que optimismo do século passado parece sem sentido, em que todo o optimismo dá a sensação de postiço, em que mesmo o pessimismo não tem sentido. Há um certo risco em orienta-se pelo presente, fazendo do actual um problema, algo a conquistar, fundamentalmente pela lucidez com que se responde a questões sobre o que que fazer, como agir, em suma «o que podemos esperar» neste ponto agora em estamos. Mas tal risco é pessoal antes de mais, pelo desassossego que provoca o desejo de querer pensar aquém ou além das visões do mundo em voga, que funcionam como analgésicos da "dor do tempo", em que se assinala toda a finitude do humano e a fragilidade de todo o saber. Este saber da dor faz, como se entrevê sonhadoramente com Emilio Gadda, com que todo o conhecimento seja "conhecimento da dor". Reconhecer isso não pode deixar de ter efeitos, mesmo no saber, sofrendo por sua vez as visões do mundo, mas também as disciplinas com que se corrigem mutuamente, no seu polemos perpétuo. Neste sentido há um pathos destrutivo neste livro, mas apenas enquanto se alimenta da solidão diante da experiência, fora e longe da imensidade de palavras que lhe desabaram em cima, e aqui os hermenêutas gostam de falar de «sentido». Palavras mais o menos elaboradas, na nossa situação todas elas parecem remeter para um dado discurso da modernidade, cujas funções são bastante obscuras. Se falar de «modernidade» é ainda um modo de falar do tempo, é-o enquanto negação do "presente vivo" (Husserl) da actualidade. Mas mesmo o que nega afirma o negado, mas para podermos compreender isso é preciso que não nos iludamos sobre o que está em jogo nas "teorias da modernidade" e, de certo modo, em todo o discurso. O risco a que acima aludimos, sendo também pessoal, é mais do que isso, plasmando uma exigência que nos vem da própria actualidade, cuja Krisis é mais radical que todo o polemos que a manifesta, em falha. Nenhuma teoria ou discurso parece estar à altura desta crise, bem patente nas controvérsias mais ou menos teóricas que tudo disputam, mas também na guerra permanente que assola a Cidade hodierna, guerra com a natureza, com os objectos, com as nações. Se isso é conhecido, já o são menos as suas causas e efeitos. Estar à altura do nosso tempo obriga a que se funde a virtualidade do nosso agir colectivo nessa própria Krisis. Tarefa bem delicada, no momento em que a controvérsia instabiliza a própria possibilidade de proferir um juízo, de promover uma decisão, e em que falta critério e fundamento que não seja ilusão ou vontade de poder1. A estratégia que seguimos neste livro passa pela crítica de um dado funcionamento da linguagem, um tipo específico de discursos que são como uma espécie de florescência do estado de coisas que é o nosso,e cujo modelo geral será o dos discursos (ou teorias) da «modernidade». Tema na aparência anacrónico, mas que sobrevive bem às modas teóricas, e que pode perfeitamente travestir-se em «pós-modernidade», mas em que está em jogo a própria possibilidade de falar da totalidade da nossa experiência. Como se verá, não temos intenção de propor mais uma «teoria da modernidade», que não nos faltam, mas de partir deste tipo de discurso para interrogar os seus efeitos, a necessidade que o estrutura, com a convicção que na sua razão de ser está em jogo o destino que podemos no próprio instante do agir. A recusa explicitamente, assumida por nós, de nos colocarmos além das teorias, leva a dificuldades de monta, cuja raiz se encontra nas próprias «teorias da modernidade». Não somente porque se trata de um nome altamente ambíguo2, mas também porque, queiramo-lo ou não, nos encontramos irremediavelmente implicados na sua lógica discursiva; somos arrastados pela sua maneira de visar a experiência, pelos seus procedimentos e dispositivos. Isto não significa que as inúmeras "teorias da modernidade" que temos ao dispôr na «cultra» sejam simples enganos ou ilusões. Têm de ser lidas a partir da função que desempenham na experiência. Mas é certo que a multiplicidade que as caracterizam tende a ocultar essa função e os seus efeitos, relançando os seus procedimentos de maneira inquietante. Do nosso ponto de vista, o principal efeito de dissimulação acaba por ser o recalcamento da actualidade da experiência e a obliteração das tarefas que, em cada momento ainda por decidir, têm de ser as nossas. Deduz-se daqui que uma outra teoria da modernidade, integrando a «parcialidade de todas as outras», não passaria de uma ficção, de algo puramente utópico. Mas é esse trabalho ficcional que todas as teorias compartem, o que na nossa situação não deixa de ter os seus perigos. Quando a ficção encontra meios para se realizar (quer política, quer tecnicamente, etc.), como ocorre desde o que se convencionou chamar modernidade, logo há lugar para a violência, potencializada pela cristalização do mundo da experiência numa série de instruções, de regras técnicas e de normas jurídicas que lesa a autonomia do agir. Quando a realidade se torna ficção e a ficção devém real é atingido o próprio acontecer e, com isso, a actualidade3. A escolha para título de Analítica da Actualidade procura uma outra maneira de aceder ao que é visado, e lesado, pelas teorias da modernidade e, de um modo geral, por todas as imagens do mundo. Dissemos já que boa parte do trabalho a fazer é crítico, esperando-se que a «outra maneira» que por aí advenha seja menos violenta, menos desastrosa e menos ilusória que a que roi praticada até aqui. Pelo menos para nós. A escolha de nos centrarmos sobre o que está em acto em cada instante - o actual - não pode ser garantido por um método, enquanto via recta, antes desloca a multiplicidade de vias que os discursos da modernidade , o que não impede que cada um queira ser a totalidade de sentido, dando a ver tudo o que há. A vontade de totalidade dentro da multiplicidade dos discursos indicia que a natureza heteróclita da experiência, a sua inevitável fragmentação. A vontade de totalidade não é um efeito de fragmentação? Cada discurso moderno é a corporização dessa vontade de totalidade por onde se visa a experiência. Todo o problema reside em saber se a «unificação» da experiência é ilusória ou efectiva, e quais os seus efeitos. A perspectiva em que nos colocamos não permite que consideremos tal questão respondida, desde o início. Ao invés disso, qualquer discurso público é uma resposta previamente dada, antes de qualquer questionamento. Para aceder à «experiência da experiência» (Nancy), ao mistério do seu fazer-se e desfazer-se, será preciso seguir vias indirectas, desvios que nos afastem dos discursos para nos aproximar das «próprias coisas». Ao mudarmos de perspectiva muitas vias se nos abrem, mas sem outras garantias que não sejam a interrogação daquilo a que Walter Benjamin denominava as obras do tempo (Werke der Zeit). A discursividade moderna traz si todas as marcas do tempo, é obra do tempo, que a sua transformação em teoria apenas recalca, mas em fracasso. O que também afecta o nosso projecto de uma analítica da actualidade, que embora já não pretenda ser uma "nova" teoria da modernidade, não pode negar o facto de ser ainda uma interpretação, uma ficção de «teoria». Negar este facto tem profundos efeitos «políticos», como é bem exemplificado pela afirmação do jovem Marx, segundo o qual a "época das interpretações" teria chegado ao fim, para entrarmos na "época das transformações".4 Ora, na situação actual em que, como procuraremos elucidá-lo, entre discurso e real tende a não haver qualquer distância, em que, dada a infinidade de perspectiva e de ficções, o que é interpelante é o jogo dos possíveis - e nem tudo o que é possível é aceitável -, que emerge do "quiasma" em que se cruzam as interpretações (nomeadamente, os "discursos da modernidade") e a experiência. Neste primeiro posicionamento está já posta em causa a condição actual do pensamento, nomeadamente aquele que se pretende guiar pelas ciências humanas. Perguntar se é possível, e como é possível, pensar uma situação em crise, marcada pela "fragmentaridade" e a "luta das interpretações", pela indistinção entre real e discurso, para além de apontar uma dificuldade essencial, acarreta de imediato uma mudança de perspectiva. Mas como encontrar um critério que permita ajuizar acerca daquilo que deve guiar um projecto deste tipo? Está aqui in nuce todo o problema das reflexões que se seguem, pois se não há uma resposta dada à partida, é porque a própria pergunta deve ser construída, tem de ser conquistada, adquirida. Mas este imperativo é ele próprio um sinal da condição que é a nossa. Daí que, às dificuldades já referidas, se deva acrescentar outra, a que de certo modo todas remontam, isto é, a natureza profundamente «política» da questão da actualidade. As razões caberá ir elucidando ao longo deste trabalho, mas o interpretar e questionar instabiliza a ordenação da experiência, mostrando ao mesmo tempo que só numa situação ela própria profundamente instável é que se produz esse efeito. Facto que se pressente na pulsão nominalista que está presente em todos os fenómenos modernos. Se é plausível que as diversas nomeações da temporalidade que é a nossa, procuram «capturar» a actualidade, referindo-se-lhe desmultuplicadamente como "Tempos Modernos", como "época presente", e enfim como "modernidade",5 por si mesmas trazem à consciência pública o problema da precaridade da nossa situação, a fragilidade de todo agir, obrigado a arriscar-se a partir mas também contra, dentro mas também num impossível de fora, a própria situação da experiência, em toda sua urgências. Nas categorias, e acima de tudo as epocais, construídas pelos discursos da modernidade, embora procurando dominar aquilo que os funda - a crise - está presente a necessidade de problematizar as condições reais da experiência. O que é o melhor inal da historicidade dos problemas que colocam e que se podem colocar, em geral. Sendo todo o discurso marcado por uma dada concepção do tempo, a que dão figura precisa pela sua própria lógica narrativa, pragmática, etc., será indispensável desconstruir a sua forma perversa de negarem a historicidade, dissolvendo-a num historicismo que faz da "modernidade" o fim dos tempos (e portanto, o "fim da história").6 O historicismo é uma narrativa total do passado e presente da experiência, que desconhece a sua narratividade, de modo a antecipar (e produzir) o futuro, distinguindo-se da historicidade, que é o reconhecimento da nossa passividade perante o acontecimento. A crítica do historicismo é conhecida, mas insuficientemente explorada no seu funcionamento profundo. Para isso é preciso criticar o que "estrutura epocológica" dos discursos da modernidade, e que constitui a matriz basilar das categorizações do tempo. Na falta de tal crítica toda a superação do historicismo e, com maioria de razão, da «história» é puramente ilusória, como se comprova com o pós-modernismo, dominante nos anos 80, que teve apenas por efeito relançar o interesse pela questão da modernidade e, de algum modo, mesmo o historicismo7. Este retorno do historicismo, que parece indiferente às críticas tremendas que, nos anos sessenta, o estruturalismo na sua ânsia de sistematicidade dirigiu à "história", deve-se a esse fundo epocológico da discursividade moderna, que não é apenas teórico, e cuja lógica profunda tem ficado largamente inexplicada8. A elucidação de tal lógica tem claramente lugar no quadro do programa mais lato que denominamos por analítica da actualidade, embora pareça aí ocupar um lugar apenas preliminar, mas que é imperativo. Não sendo fácil, e se calhar revelando-se impossível, no final, apresentar as categorias de semelhante analítica, tudo se joga nas mediações. A este nível não há distinção entre meio e fim ou começo, tudo sendo determinado pela urgência do presente. Neste sentido, algo de essencial está em jogo, em cada instante, não tanto ao nível dos diversos "desafios" que as novas tecnologias da informação, as biotecnologias, o nuclear, a inteligência artificial, o desastre ecológico, etc., etc., colocam, mas relativamente ao destino inquietante que tais fenómenos deixam entrever. A urgência do presente surge como um imperativo do pensar. Não se dispondo de categorias nem critérios dados universalmente, pelo menos sem explícita ou dissimulada aceitação de uma dada interpretação do mundo, é da própria crítica do existente, essa mescla de desejos, palavras e instituições. A pragmática do termo modernidade tem neste assunto um papel decisivo9, pois os discursos induzidos na sua esteira estão em correspondência, ambígua mas fundamental, com a da constituição do horizonte hermenêutico que dá sentido ao agir, que determina a «lei» dos possíveis que estão em expectância na actualidade. E onde se joga mesmo a exterioridade da experiência relativamente à palavra. Cada discurso repropõe uma totalidade de interpretação do mundo, fazendo da experiência um efeito de palavra. Situação difícil, portanto, a de uma aproximação que, pelo contrário, exige uma certa distância, uma desimplicação perante o que é "observado", massivamente positivo, mas que corresponde apenas à magnificação da palavra, à transformação do mundo em efeito da palavra. A nossa estratégia consistiu em visar a instanciação do actual através dos discursos da modernidade, mas apenas enquanto modo de acesso indirecto à experiência «tal como é». Não poderíamos recorrer às diversas disciplinas - essas respostas ready made - , porque nenhuma delas pode visar a totalidade do existente, sendo surdas para a narratividade que as interliga. Por outro lado, as interpretações, na sua vontade de totalidade, são mais o problema que a «solução ». Temos de trabalhar a ausência da experiência, enquanto efeito do discurso, a partir dos próprios efeitos. O que significa trabalhar sobre o discurso, no campo onde impera e com suas limitações. O espaço analítico que assim se procura abrir, arriscado como é, nada tem de arbitrário. Se aceita a impossibilidade de se poder "dizer o Todo"10, nem por isso se compraz com o romantismo dos "fragmentos", dos "sinais" ou dos "indícios" que derivam de um esteticismo, tingido pelo pathos do nihilismo. Aqui poderíamos parafrasear Karl Kraus, dizendo que há abordagens que fazem mais parte da crise do que uma solução para ela.11 Os acautelamentos que se acabam de ler mostram, no mínimo, a consciência de que todo o ponto de partida é problemático,12 e o nosso não o é menos. A nossa aproximação da actualidade é o resultado de uma interpretação sobre o que é decisivo, ou urgente ou instante, ao mais mínimo gesto pensado. Mais do que uma teoria, trata-se de uma posição. E digamo-lo desde já, a nossa não é uma posição optimista, embora possamos econhecer que a alternativa entre pessimism e optimismo pouco significa, em si mesma. Para nós, o que justifica a responsabilidade do pensar é a vigilância perante os perigos do presente, onde a «técnica» está omnipresente. Sobre isto não poderíamos estar mais de acordo com Michel Foucault quando na sua polémica com Rorty sustenta que o "optimismo" é um erro. Como ele afirma: "o meu problema é: `Cuidado, tudo é perigoso, mas não igualmente nem ao mesmo tempo'" (Foucault: 1983).13 Estamos cônscios de que para os "especialistas" este género de reflexões têm algo de paralisante, pois vêm no disciplinar um critério de rigor, e na técnica e na ciência uma garantia de "vida melhor". Mas aqui podemos recorrer muito bem à famosa aposta de Pascal (Pensées), com que refutava - embora com um certo desespero -, um cientificismo bem menos virulento que o do nosso século. Assim, poderíamos responder-lhes que perante as duas possibilidades extremas de que "tudo vai mal" ou "tudo vai bem", a responsabilidade do pensar exige que nos deixemos interpelar pela primeira. Com efeito, se a segunda fosse verdadeira ninguém teria perdido nada, embora também pouco ou nada se ganhasse, a não ser o desiludir do "espelhismo" individual de quem errou porque é livre. Mas se a segunda não for verdadeira, no limite o «optimismo» teria sido criminoso, o que se perderia seria inaceitável e a "teoria" já viria demasiado tarde14. Retorquir-se-à que nada é "bom" ou "mau" na totalidade, ou pelo menos que não temos critérios para o ajuizar, e que talvez a verdade se situe entre estes dois extremos. Ora, o comprovar-se de tal asserção obrigaria a «demonstrar» previamente, ou a ter já demonstrado, que os perigos (e os sucessos) são apenas parciais, casuísticos, que escapam à teleologia de conjunto de um qualquer dispositivo. mais ainda, que a sua unificação numa "figura" universal é pura ilusão ou erro. Ao invés de tanta confiança teórica, a analítica da actualidade dirige-se eminentemente à discussão de tal possibilidade, para a qual nenhuma disciplina tem meios para responder, e onde toda a arte responde em excesso. A estadia junto a este problema permitirá aceder à experiência, além e não aquém dos discursos modernos. É preciso passar por aí para apreender a sua lógica de funcionamento, a forma como contribuem para configurar a experiência a fazer-se, no seio da experiência já feita. Ora, a centralidade do discurso remete para o facto de que transacção entre o que ainda-não-é o que já-está-sempre-aí se joga na linguagem. Se isto for verdadeiro é então fundamental apreender as axiomáticas que organizam a discursividade. Semelhante investigação só se tornou possível com a descoberta do papel constitutivo que cabe à linguagem, enquanto mediadora dos processos de actualização do estabilizado, e de reinstauração do instituído.15 A nova situação da linguagem, entretecida em toda a relação à experiência, confere-lhe um carácter «político», afectando o pensar e o agir, fazendo de qualquer acção algo potencialmente perigoso. Fenómeno a que não escapam as banais distinções entre teoria e prática, nem as defesas da "neutralidade axiológica" (Weber, o que não significa que baste para compreender a nova situação insistir num "assumir de partido" teórico (Althusser). Todas as posições inscrevem-se na dissonância geral da experiência que é a nossa, pondo em crise toda a relação ao «real», fazendo do «real» um efeito de crise. A analítica da actualidade, enquanto exercício que se reconhece como crítico, procura intervir sobre os processos de mediação, de constituição, assumindo abertamente o fundo metapolítico de todas as esferas da acção, sejam estéticas, epistémicas ou éticas, mas também «políticas» Deste ponto de vista, muito depende da possibilidade de analisar as formas gerais do visar da experiência pela discursividade (programas, teorias, ficções, etc.)16. O que há de interessante nas actuais controvérsias do pensamento europeu mais recente, nomeadamente as suas diversas versões "pós-modernistas", «neo-barrocas» ou «cínicas» prende-se sobretudo a este significado metapolítico, que se revela, prática e teoricamente, na procura de um novo posicionamento sobre o estatuto do saber e das instituições onde transcorre a praxis humana neste final de século. Que tudo seja «político» nesta perspectiva comprova-no as afecções de todo o género, politizando as próprias formas de sensibilidade, de que tanto se fala, mas que permanecem incompreendidos17. O projecto de uma analítica da actualidade é político neste sentido, começando por intervir negativamente, isto é, distanciando-se dos modos maiores que orientam a discursividade moderna no seu visar do mundo da vida. Existem perigos nesta atitude, mas talvez só assim se possa realizar o desideratum nietzscheano de um pensamento efectivo (Wircklich), não tanto pelos efeitos procuados, como pela lucidez com que integra (e se integra) a problematicidade da nossa condição. Trata-se de uma necessidade sentida por muitos, e em dar-lhe visibilidade comparticipa o melhor do actual pensamento europeu. Se ela tem sentido, e acreditamos que sim, é porque está em correspondência com o apelo que o nosso destino nos dirige, no momento em que a palavra "destino", e com ela toda a transcendência, parecem ter emudecido. Responder significa aqui estar à altura de participar num diálogo já começado, que se trata de prosseguir da melhor maneira, e não de "vencer" ou "terminar". Neste diálogo sem condições, poderia finalmente escutar-se o grande ausente, o que está-de-fora relativamente ao humano, chame-se-lhe natureza ou outro nome qualquer, e que quando «fala» fora de tal diálogo é absolutamente inumano. Digamos, em conclusão, que todas as investigações aqui expostas procuram, em conjunto e solidariamente, contribuir para uma outra axiomática da "teoria social" que, tao recente embora, se cristalizou talvez irremediavelmente no curto período de um século. Temos a esperança que do cojunto deste trabalho se delineie uma outra via, que não a do caminhar insensato entre Cilas e Caribdes, entre a especialização e a generalidade. Seja como for, o estilo de pensamento que aqui se acolhe, procura que seja a própria coisa a ditar as suas regras. A investigação tem de responde-lhe, e isso não é fácil. Só agora, no fim deste trabalho estamos prontos para aceitar com Goethe, que "a compreensão do particular" é "o ponto mais alto e difícil".18 Não há nada de original no projecto de uma analítica da actualidade, que se prende ao que é comum a todos, a experiência na sua mais absoluta materialidade. Mas o simples é aqui o mais difícil, exigindo que cada um se arrisque, que avance com tudo o que puder levar consigo. Não basta aqui a paixão individual, nem o rigor intelectual, é precisa também a docta ignorantia que nos mergulha no mundo, sem remissão, como o estão todos sem pensar. A diferença é que é preciso fazer o mesmo, pensando.

1- O que se acaba de ler não é invalidado pela crescente oferta e procura de teorias da decisão, de critérios para o juízo, etc. Antes pelo contrário, procura-se o que se não tem ou não se pode ter. 2- Essa ambiguidade não se resolve pelo contexto, antes se desdobra numa infinidade de questões, como sejam: a modernidade é um "época"? É a condição de qualquer contemporaneidade? É um certo tipo de prática, seja estética, seja política, ou técnica, etc.? 3- As opiniões hoje correntes de que a actualidade é produzida pelos media, tese de McLuhan entre nós desenvolvida por Adriano Duarte Rodrigues, têm o seu teor de possibilidade em tal controlo do acontecer, ao arrepio daquilo que tem de inopinado, de instantâneo e de inintencional. CF. de Duarte Rodrigues: «O Acontecimento» in RCL 8. 4- É esta a famosa tese XI sobre Feurbach, um texto de 1845, apenas publicado em 1888 por Engels. Diz aí Marx: "Os filósofos mais näo têm feito do que interpretar o mundo de diversos modos, mas do que se trata é de transformá-lo" (Marx, 1845: 10). A aparente evidência desta tese apoia-se na ideia de que a "vida social é, na essência, prática (ib, 9) opondo ao materialismo da "sociedade civil" (sic) o da "sociedade humana"(ib, 9). Os perigos desta política da "humanidade", sempre negadora das virtualidades do político na actualidade, säo já o resultado de um dado tipo de discurso da modernidade cujo projectualismo teremos de criticar. Com efeito, sem o fundamento sublimista da "humanidade" näo seria possível fazer com que a interpretaçäo de Marx estivesse além da interpretaçäo. É o próprio "desvanecimento do que é sólido", postulado por Marx no Manifesto que obstaculiza esta tese. Isto näo significa que tudo é interpretaçäo, como optimisticamente aceitam os pós-modernistas. O que se trata de invalidar é que exista alguma interpretaçäo final, que acabe com todas as outras. É do diferendo entre elas que algo resiste, e que provém da experiência. Por nosso lado, näo poderíamos estar mais de acordo com a defesa da necessidade de libertar a experiência do "místicismo teórico", mas isso exige previamente uma desconstruçäo dos pressupostos dos discursos da modernidade. Sobre as Teses sobre Feuerbach, cf. "Feuerbach e Marx" (Mondolfo, 1960: 15-21) e, de um ponto de vista mais crítico (Tucker, 1961: 103-115).

5- A multiplicidade dos nomes, e mesmo a sua confusäo, näo se deve a uma ausência de rigor conceptual ou a uma falta às regras da lógica, mas sim à própria situaçäo aporética da "teoria da modernidade" quando pretende abarcar a "totalidade" da experiência no espaço e no tempo. Ora, isso só pode ser feito a partir de problematizaçöes particulares, facto que a axiologia cientificista tende a recalcar. De certo modo, esta multiplicidade de nomeaçöes deixa entrever a impossibilidade de esgotar a experiência através de estratégias de nomeaçäo, mostrando simultaneamente que a nomeaçäo é uma condiçäo de controlo da actualidade, remetendo portanto para uma certa relaçäo à política. Trata-se de um assunto que já abordei num outro texto, de que me permito citar uma passagem: "A nomeaçäo, quando é explicitada socialmente como problema, torna-se factor de crise. O facto de se pensar que serie possível dizer diferentemente o que se diz politiza o problema da representaçäo" (Bragança de Miranda, 1985: 16).

6- Trata-se de um fenómeno recorrente o do anúncio do fim, encontrando-se tanto no discurso profético e apocalíptico, como nas teorias da modernidade, sob uma forma aparentemente secularizada. mas a lógica é distinta, como mostraremos mais à frente. 7- Trata-se de um paradoxo, mas apenas na aparência. Do ponto de vista dos efeitos, estes escapam sempre ao discurso historicista dos «fins», o que sucede mesmo com aqueles que os utilizam pela «última vez», como é o caso de Lyotard na Condição Pós-Moderna e, mais recentemente, por Fukkuiama. ... 8- Fazê-la remontar ao totalitarismo, como sucede vulgarmente, é confundir efeitos com causas. Na verdade, se não existe totalitarismo sem uma dada epocologia - mesmo que seja para durar «apenas» mil anos -, há epocologias que não são necessariamente «totalitárias». Trata-se de explicar esta questão. 9- Isso não implica, pelo contrário, que há um corte entre as interpretações, o discurso teórico e o discurso quotidiano. Todos estão ligados na mesma cadeia que atravessa toda a experiência. A vantagem dos discursos mais elaborados é que suportam melhor a crítica. 10- Na sua base está mesmo a critica das tentativas de realizá-lo através de uma tecnologia infinitamente extensionável ou através dos seus desdobramentos utópicos e discursivos. 11- Na verdade Kraus, um dos mais importantes modernistas deste século, visava satiricamente a psicanálise, afirmando com graça: "A psicanálise é a doença espiritual daqueles que a consideram como sendo cura" (cit. in Janik e Toulmin, 1973: 93). Deixando de lado a carga jocosa deste aforisma, a sua ponta de verdade funda-se numa crítica do projectualismo iluminista que faz Kraus dizer que "o progresso celebra uma vitória de Pirro sobre a natureza" (Kraus, 1955: 132) No fundo, o cientificismo é uma vitória de Pirro que perde ao ganhar, ou melhor, que no seu ganhar traz os sinais de uma perda. A consciência de que essa perda é essencial está na origem de boa parte dos estudos de Foucault contra a tendência a epistemologizar a experiência, posiçäo que está lançada desde a Histoire de la Folie (e que é o resultado da interpretaçäo das teses de Heidegger sobre a técnica). Neste sentido Foucault esforça-se por criticar o longo processo de racionalizaçäo que se manifesta em toda a sua pureza na "modernidade". A este processo ele chama "uma espécie de ortogénese que vai da experiência social ao conhecimento científico e progride surdamente da consciência de grupo até à ciência positiva" (Foucault, 1961: 93). Isso pressupöe que a experiência seria já idêntica a uma espécie de conhecimento: "a experiência social, semelhante ao conhecimento, teria a mesma natureza que a do próprio conhecimento, estando já a caminho para a sua perfeiçäo. Por isso mesmo o objecto do saber pré-existe-lhe, pois era ela que já era apreendido, antes de ser abordado por uma ciência positiva: pela sua solidez intemporal permanece ao abrigo da história, retirado numa verdade que permanece meio adormecida até ao despertar total da positividade".(ib, 93).

12- Näo dizia Platäo que o "começo é um Deus", ou Freud que a sociedade começa com um "crime primitivo"? O começar do instituinte humano (pensado fora de uma metafísica das "origens"), tal como se arrisca no tempo da liberdade, é a matriz da própria problematicidade. Veremos mais tarde a importância que ela assume, mas manifestemos desde já o nosso acordo com Jan Patocka, o malogrado filósofo checo, para quem a problematicidade é o que distingue o homem histórico emcontraposiçäo com a "certeza ingénua" do homem do mundo natural. Como ele afirma: "o questionamento pressupöe a experiência do enigmático, do problemático, e esta experiência a que a humanidade ante-histórica se subtrai, diante da qual se refugia no mito (fosse este o mais profundo, o mais carregado de verdade), é apenas na filosofia que ela se manifesta pela primeira vez em toda a sua intensidade.[...] Na época histórica a humanidade näo procura, portanto, escapar à problematicidade mas, pelo contrário, lança-lhe um desafio aberto, esperando receber daí o acesso à profundidade de uma vida com sentido" (Patocka, 1975: 74-75).

13- No orginal: "My problem is: "Take care, everything is dangerous, but not equally and at the same time". Esta máxima foucauldiana surge num debate de Foucault com Rabinow e Dreyffus em Berkley (19 de Abril de 1983), servindo-lhe para responder às acusaçöes de nihilismo que Richard Rorty lhe endereçara. O assunto tem importância por evidenciar a importância da posiçäo como condiçäo metapolítica do discurso teórico. Quanto a nós, sentimo-nos mais próximo de Foucault do que das teses de Rorty de que "tudo é bom, tudo vale". Como afirma Foucault: "do meu ponto de vista tudo é mau, ou diria antes, tudo é perigoso, e entäo temos sempre algo para fazer. Deste modo, penso que a posiçäo ou a hipótse de Rorty leva a uma apatia. E a minha posiçäo leva a um hiperactivismo, a um activismo pessimista" (ib, 22). O que há de excessivo nesta posiçäo é que Foucault näo pode apresentar critérios para definir o "perigo", nem para discriminar o menor do maior perigo, pressupondo o perigo independente das suas formas concretas (o que é contraditório com o seu distanciamente relativamente às teses heideggerianas do "perigo" como determinaçäo ontológica). Seja como for, esta posiçäo é bem interessante do que o afirmativismo pramático de Rorty, e com maioria de razäo do que as defesas da "neutralidade" científica. [O texto que citámos ainda se encontra inédito. Recorremos à cópia existente no Centre Michel Foucault, referência D250(5)].

14- E näo se diga que essa é a situaçäo irremediável da teoria, encontrando justificaçäo no dito irónico de Hegel, segundo o qual "quando as sombras da noite começam a cair é que levanta voo o passáro de Minerva" (Hegel, 1820: 16). No fundo é esta a forma mais subtil de salvar a filosofia do seu "atraso" relativamente à experiência do tempo, mas sabe-se o que isso implica: que a filosofia é o "pensamento do mundo" (Hegel, ib, 16), cujo decurso se identifica totalmente com o curso da História. Essa identidade apoiada no desdobramento da dialéctica na história, que realiza um único enunciado especulativo: "O que é racional é real e o que é racional é real" (ib, 1.3) Nesta perspectiva o que vem em último é o decisivo, e a teoria justifica-se absolutamente precisamente por ser a última. Ora, depois das críticas decisivas à dialéctica (base das categorizaçöes epocológicas da experiência) feitas desde Marx e Nietzsche, a confiança hegeliana na realizaçäo da "ideia absoluta" falta-nos inteiramente, e com ela destrói-se a própria identidade entre a experiência e a "filosofia". O que torna mais decisiva a questäo da posiçäo que se deve tomar, com o que se reduz o optimismo teórico, mas também se aumenta a responsabilidade do pensar.

15- A descoberta do papel da linguagem constituiu um dos fenómenos mais decisivos da auto-reflexäo ocidental, chegando-se a caracterizar o nosso século como o do linguistic turn (Cf. o volume The Linguistic Turn organizado e prefaciado por Richard Rorty, 1967: part. pp.1-39). Se é verdade que ela é inseparável do surgimento do nihilismo, i.e., da descoberta de que os valores säo apenas palavras, de um modo mais positivo é através dela, mas também contra ela, que será preciso responder ao nihilismo e à crise generalizada que perpassa por toda a experiência moderna. Adriano Duarte Rodrigues tem vindo a desenvolver entre nós as consequências desta tese. Como ele afirma num artigo recente: "é na e pela linguagem que a experiência se constitui ou se desvenda o sentido que a enforma. Mas a linguagem é a literariedade, a forma icónica da sua manifestaçäo, que revela a experiência e a converte em sentido da vida. [...] A linguagem assegura assim a transformaçäo do meio ambiente que partilhamos com os outros seres, do Umwelt, em mundo, em Welt, partilhado intersubjectivamente".(Rodrigues, 1990: 13)

16- Num outro trabalho procurámos explicitar as condições de uma reflexão sobre a «metapolítica». Cf. «Discurso e Metapolítica» (Bragança de Miranda: 1992). 17- Estamos a pensar nos fenómenos do "intimismo", da "indiferença" generalizada que caracteriza a massmediatização da cultura, nos saudosismos nacionalistas, nos diversos discursos apocalípticos do "fim", dos messianismos, etc., que remontam a uma esteticização da experiência moderna. 18- Cf. As conversaçöes com Goethe de Aeckermann (1836, 30).


CONCLUSÃO

"Ever tried. Ever failed. No matter. Try again. Fail again. Fail better". Samuel BECKETT

Chegados ao final deste livro fica-nos a sensação desagradável de que tudo poderia ser dito diferentemente, e melhor. Visto da perspectiva que só se pode ter no final, quando as cartas estão viradas, são mais claras as limitações deste livro. Os sabedores dirão que essa essa limitação é a do autor, mas se assim é pouco resta que fazer. Consolemo-nos com a resposta que dava Michelet à pergunta: «Então porque é que publica? Tem portanto um grande interesse em fazê-lo?». Ao que ele retorquia: «Eu falo, porque ninguém o pode fazer por mim. Não é que não exista uma multidão de homens mais capazes para o fazer, mas todos são amargos, todos odeiam. Eu amo ainda» (Michelet, 1846: 38). Seja como for, é este que submeto ao leitor, convicto de que, mal ou bem, atingimos os principais objectivos que nos propusemos. Ao longo deste livro, muitas dúvidas nos assaltaram, novas questöes fizeram-nos inflectir o seu curso, uma e outra vez reordenámos o argumento, mas não dos desviámos do objectivo essencial: delinear as condições que tornam pensável uma analítica da actualidade. Isso exigiu um percurso talvez excessivamente intrincado, mas a própria dificuldade do objecto que procurámos tratar acabou por ditar as suas regras. As dificuldades crescem quando se trata de concluir, acima de tudo porque não há conclusão. Quando se aceita a prioridade da experiência, tudo vai continuandoaté ser interrompido pela catástrofe. Esta última não sucedeu, nenhum livro por si só pode ser tão catastrófico, e então tudo continua. Um pouco diferente. Isso é verdade, depois deste trabalho o autor mudou. A analítica da actualidade é inevitável efeito da prioridade da experiência. Se é uma forma de saber, antes de mais é um saber de experiência. Não, como pretendia Camões, da experiência sofrida pelo autor, enriquecendo-o, mas da experiência que é o teor de verdade de qualquer obra, de todo o acto. É ela que funda o saber, resistindo à sua vontade de poderio, à transformação do saber em absoluto. A prioridade da experiência, sendo uma forma de saber, distingue-se por não excluir nenhum saber nem nenhum acto. Ao contrário da ciência que desqualifica todo o outro saber, essa é a herança iluminista, ou da arte e da política que menospreza toda acção que não seja heróica, essa é a herança romântica, na maneira como encaramos a experiência temos de incluir a da criança que acaba de nascer, a do estrangeiro que chega à cidade, a do camponês que se agarra à terra. Todos estes saberes e actos têm de ser salvos. E com eles, a própria experiência no seu estado nascente. Não se trata de escolher entre a experiência feita e a experiência a fazer-se, mas de aceitar as duas. Tanto essa escolha, como afirmação da tensão entre as duas são determinadas pelo fenómeno histórico da cosntituição1. Nenhum dsicurso ou teoria, por fortes que sejam conseguem dominar a cosntituição, principlamente proque aquilo que parece ser a sua força, a vontade, o humanismo, a decisão, se mostra a sua debilidade. Se a cosntituição for dominada, será inadvertidamente, quando isso suceder já tudo terá mudado, e a palavra humana já terá sido silenciada. talvez já só sobreviva a «técnica da natureza». A catástrofe é acima de tudo a catástrofe do humano. Do ponto de vista do Universo é indiferente que a Terra seja azul ou negra, que haja homens ou não. A debilidade do humanismo, revela-se então como a sua força. Por mais que se enganam, pervertam, dominem, fazem-no em relação à palavra humana, são uma forma dela continuar. Na tecnologia que tudo avassala, ainda entreluz o logos. Pela nossa parte procurámos mostrar que essa forma é perigosa, reforçando o caminho para o pior quando procura garantir um único caminho, o do saber. O perigo desse caminho, a que a modernidade chama «método», é a sua ilusão de dominar o existente, de reconstrui-lo e aperfeiçoá-lo por uma teoria qualquer ou pelo conjunto delas. O que implicaria uma constituição única e realizada para todo o sempre. A resistência do que existe, mas não faz do que reforçar essa vontade de domínio. Enquanto houver resistência esse vontade tem que fazer. Mas enquanto faz, e porque ainda não está feito, e tudo continua lá. A analítica da actualidade é uma outra maneira de fazer o mesmo, deixando-se abrir ao enigma do nascimento, ao sentido em estado nascente. Estamos aqui a referir uma formulação de Giorgio Agamben, que vê na in-fância (no que ainda näo fala, mas falará) a imagem do que vai nascendo. Como ele sustenta num livro belíssimo2: "Uma experiência originária, longe de ser algo de subjectivo, näo poderia ser senäo aquilo que, no homem, está antes do sujeito, ou seja, antes da linguagem: uma experiência "muda" no sentido literal do termo, uma in-fância do homem, de que a linguagem deveria, precisamente, indicar o limite" (Agamben, 1978: 45). Mas essa mudez näo significa nada de místico, como mostra Agamben no seu comentário de Wittgenstein:"O inefável é na realidade a infância. A experiência é o mysterion que todo o homem institui pelo facto de ter uma infância. Este mistério näo é um juramento de silêncio e de uma inefabilidade mística; pelo contrário, é o voto que empenha o homem à palavra e à verdade. Assim como a infância destina a linguagem à verdade, também a linguagem constitui a verdade como destino da experiência" (ib, 49-50). É evidente que a «experiência» também é uma palavra tão ideal como qualquer outra. Tal como a vida não vive, falar da experiência não é a experiência. Este livro, as cautelas com que foi rodeado, os desvios que seguiu, dá testemunho, providencia por isso. Se não pretende ser verdadeiro, quer dar lugar à verdade, deixa-se orientar por ela. Mas a verdade que que fala Aamben, é aquela que escapa à sua redução à verdade epistémica, que faz da verdade um operador para conquistar o mundo. É a verdade da experiência, que nenhuma teoria ou método pode dominar. Cada um, por si, tem de fazer a experiência da verdade. A experiencia que é a nossa é regida precisamente pela finitude. Se bem que seja amplamente aceite a interpretaçäo que faz do sujeito o fundamento da «modernidade», a finitude escapa ao império da subjectividade, era algo que já trabalhava pelo interior a divisão kantiana entre sujeito transcendeta, definido pela raxionalidade, e o sujeito empírico. Fazendo eco da intrepretação heideggeriana, também Taminaux tende a criticar a «modernidade» por "obliterar" a finitude. Para Taminaux "é finita a condiçäo de um ser que näo pode compreender o que quer que seja senäo a partir de uma situaçäo" (Taminaux, 1982: 74). Ora, essa é a condição «moderna», que é regida pelo desaparecimento dos fundamentos, afectando portanto todas as posições possíveis, mesmo aqueles que as negam, como é o caso do iluminismo. Todos os absolutismos acabam por ser uma resposta abismada pela finitude. Considerar que o iluminismo, confundindo-o tipicamente com a modernidade, como faz Tamianux e, antes dele, Heidegger, nega a finitude implicaria que a finitude pode ser escolhida, recusada ou aceite. Ora, primeiramente, ela é o inevitável. O caminho para a emergência histórica da finitude é longo, todas as religiões o iniciaram pela primeira vez. No fundo, é um problema que atravessa todo o ocidente, desde o "herói" grego passando pela miséria do homem diante da omnipotência divina, sendo mesmo um dos temas mais recorrentes do barroco. Mas é a partir de Kant, pelo menos na interpretaçäo de Heidegger, que se a finitude surge como possibilidade de ser pensada na sua essência: «Näo basta, para descobrir a finitude do homem, de citar ao acaso, algumas das imperfeiçöes humanas? Mas essa via leva-nos, quanto muito, a constatar que o homem é um ser finito. Näo nos faz apreender em que consiste a essência dessa finitude, nem ainda como é que essa finitude faz do homem o ente que ele é no seu fundo e na sua inteireza" (Heidegger, 1965:276). A analítica da finitude de que depende a autonomia humana implica a oposiçäo entre o homem e o mundo, como se as suas possibilidades fossem infinitas, mas é o resultado de uma posição na experiência, que constitui todo o horizonte de sentido, historicamente determinado. Desde Sein und Zeit que o "homem" é interpretado como a abertura dos possíveis tendo como horizonte esse seu estar-no-mundo3. Não existe diferença absoluta entre o posicionar-se na experiência, que rege as possibilidades reais de qualquer acto, e a abertura dos possíveis. O essencial é não confundir o «tudo é possível», que exige mesmo que seja possível o «impossível», e é isso o acontecimento, com o arbitráriomda reazão humana, a sua vontade de realizar seja o que fro. Isso implica o nihilismo, e com ele a necessária desqualificação do presente. Já vimos, que só se a consituição fosse absolutamente dominada é que desapareceriam as limitações das formas de experiência que são as nossas, mas aí já não heveria limites, nem experienciação. O que resiste é a experiência, daí que, diante do anúncio moderno de que, "depois da morte de Deus tudo é possível" (Dostoievski), os modernistas mais radicais rapidamente descobrem, com um certo desespero (bem patente em Baudelaire, Kafka, Beckett, etc.), que as possibilidades säo limitadas. Como afirmou algures Weber: que se vive numa "prisäo de aço"4. Mas fundamente, essa revolta volta-se contra as «promessas» iluminista de um novo começo absoluto, em que tudo dependeria «de nós». Promessa essa ue afecta, como vimos, o romantismo. Daí a necessidade de se desconstruir as axiomáticas mais gerais da disursividade moderna, assunto a que dedicámos a segunda parte deste livro. Mas esse esforço de descosntrução, aceitando a prioridade da experiência, ocorre do lado do que aparece, é uma fenomenologia radical. Trata-se de propiciar vias de acesso para uma fenomeno-logia da experiência que suspenda as fenomeno-logias próprias dos discursos da modernidade. Evidentemente, nunca se chegará ao que aparece, sem mediações. O limite insuperável da fenomenologia é esse passar pela linguagem, pelo logos. Ambas, a fenomeno-logia e a fenomeno-logia - só são pensáveis na relação à linguagem, que é inafastável, pois a possibilidade da verdade tem de passar por ela. A linguagem distancia em relaçäo àquilo que näo nos podemos apropriar, sem desencadear a violência. Mas na própria distância a violência já está presente. Klossovski mostra-o num belo livro - Le Bain de Diane -, refazendo o processo das relaçöes entre verdade e violência em que se funda a "vontade de saber" ocidental. A sua análise do mito de Actéon, e de Diana, permite-lhe reelaborar o questionamento heideggeriano da verdade como Aletheia, mas liberto das categorias filosóficas, salvas apenas na justa medida em que se recobrem também elas de véus (de metáforas, de figuras). Pois se a "verdade" é o jogo do desvelamento, sempre velado, sem nunca atingir a revelaçäo, também a filosofia näo deve ser excessiva em lucidez (decaindo na pura translucidez teórica), e em violência, portanto5. Todo o excesso fundamenta-se na ideia de que é possível dominar a verdade, e em geral, toda a experiência. Com isso anula-se no imaginário, e enquanto acto singular, vai-se anulando, acto a acto, o existente. Daí que a cosntituição varia entre dois extremos, ambos inaceitáveis: a de que é possível realizá-la a partir de zero, começando absolutamente, e ideia de que ela já ocorreu, que todo o existente é a repetição dessa constituição originária. Ou seja, enre esses dois extremos joga-se a cumplicidade entre o positivismo e o nihilismo. A linguagem serve, no primeir caso, como instrumento para «descrever» o mundo, no segundo, como forma de o criar. Em ambos casos se anula a tensão entre o poder cosntituinte e o cosntituído, tensão essa que é mediada pela linguagem. A linguagem enquanto mediadora faz oscilar todo o existente na sua crise de constituiçäo, que acima de tudo é não intencional, não programada. O querer programá-la no seu conjunto é já sinal de uma exorbitação, de um absolutismo que expressando-se na linguagem, arregimenta as afecções, os actos e as instituições. É a essa situação que faz da cosntituição um projecto que denominámos metapolítica. Não apenas porque afecta a linguaem, mas porque determina a relação entre experiência e linguagem. Como afirma Hannah Arendt, «desde que o papel da linguagem está em jogo, o problema torna-se político por definiçäo, pois é a linguagem que faz do homem um `animal político'» (Arendt, 1958: 11)6. Mas esta «política» não se confunde com a política realmente existente, a Realpolitik7, nem implica uma culminação histórica da tese aristotélica do carácter «natural» da política. É o próprio fenómeno do entrevisar de experiência e discurso que é inextrincavelmente "político", pondo-a ao alcance da acção, mas também do desejo e da vontade humanas. Muito do perigo actual assenta na natureza metapolítica da nossa relação à experiência. Se esta não fosse determinada pela metapolítica, enquanto fenómeno público, não seriam problemáticas as totalizações discursivas, nem a lógica projectual en geral8. No fundo foi esta questäo que orientou este livro. O intuito da analítica da actualidade é assim mais do que teórico, na medida em que está em causa a afinidade entre a violência e a liberdade, no horizonte aberto pela crise generalizada que caracteriza a era da constituição. Contrariamente às figurações anteriores que encadeavam a violência a certas instituições e rituais, temos de pressupor uma ligação implícita entre linguagem e violência, que altera toda a tradição. Assim, enquanto nos Gregos, pelo menos em Aristóteles, é o uso da linguagem que garante a política, suspendendo a violência, o absolutismo discursivo moderno tende a fazer da linguagem uma forma de violência. A actual convergência da tecnologia e da linguagem, a que Lyotard chama logotécnica, parece constituir um limiar último deste processo. O absolutismo discursivo é um efeito da crise geral já estudada, mas na sua negatividade a crise é a verdadeira condição da liberdade humana. Daí a sua afinidade com a violência. As respostas à crise mais não têm feito do que potenciar essa violência, que assume as formas mais inesperadas, indo desde a morte em massa dos homens, até à sua disseminação como acidente, desastre, etc. O interesse da análise metapolítica é justamente o de permetir intervir nos procedimentos de inflexão da experiência pelo discurso. Fundamentalmente, minimizando o absolutismo, suspendendo a violência. Mas sem ilusões de poder anulá-la, pois as novas formas da violência têm raiz do aparecer da liberdade como finalmente possível. Neste sentido, a analítica da actualidade joga-se inteiramente no acto mínimo que contém a violência.9 E falamos de conter num duplo sentido: o de "enquadrá-la", eufemizá-la, suspendendo os seus efeitos na constituição da experiência, mas também no sentido de que as formas que contêm a violência, a conservam no seu interior, podendo alimentá-la e potenciá-la. O absolutismo é uma resposta total negatividade, é essa a condição da transformação do negativo em positivo. Ora, esta resposta total é impossível sem violência que, quando à solta na cidade humana, revela sem subterfúgios o papel menor dos discursos. Da série de análises desenvolvidas neste livro deduz-se que por ser «menor» näo impede que os discursos da modernidade funcionem como suplemento de violência, mesmo os mais pacifistas. O fracasso da contençäo da violência é uma das possibilidades mais efectivas da nossa experiência moderna. Daí a necessidade de minimizar as axiomatizações que a potenciam, que a exigem. Sem ser o principal, o pluralismo é um modo de minimizar o absolutismo. Não diríamos como Holderlin que «onde está o perigo máximo, está o que salva», apenas porque quando a violência surge, já tudo ocorre post festum. Isso, se ainda houver qualquer posterioridade. Mas principalmente, poque não há possibilidade de abolir a violência sem abolir também a «liberdade livre» (Ramos Rosa) que caracteriza a maneira moderna. Se se pode falar de salvação, de um ponto de vista público10, é no sentido platónico de «salvar as aparências», tal como são dadas no existente, relativamente às possibilidades que o idealizam ou tornam efectivo. Com efeito, a "modernidade", essa metáfora para a nossa situação, parece ser marcada pela transformação do estatuto dos "possíveis" relativamente aos «existentes». De categroia filosófica as possibilidades assumem um carácter público, o que já é pressuposto pela natureza "metapolítica" da nossa condição. Exemplificando, parante o estado de coisas que é o nosso aqui e agora, como sabemos se é um ponto de passagem para a «salvação» ou a «perdição», para o «comunismo» ou a «barbárie», para o «quinto império» ou a «decadência»? Perante estas possibilidades e a infinidades de outras que seriam pensáveis, trata-se de salvar a fenomenicidade do existente sem abolir a tensão dos possíveis11. Essa salvação é necessária, pois a nova forma dos possíveis é um efeito da crise que cinde em duas a experiência Ocidental. A questão essencial já não é a ontológica que se interroga sobre as "questões últimas" como a de saber "porque há o Ser e não o Nada". Enquanto para o positivismo o existente é a única possibilidade, para o nihilismo o existente é uma possibilidade entre outras, e mesmo a negação de todas as outras possibilidade12. Em ambos casos o existente é idealizado. Esta é um consequência inexorável do que denominámos como desontologização da experiência, com a consequente separação entre o nome a coisa,cuja separação tende a ser recomposta pelo absolutismo discursivo ou pelo trabalho de projecção tecnológico. A idealização do existente lança a suspeição sobre tudo13, desembocando sempre na recusa do actual, interpretando-o como obstáculo à actualização de outras possibilidades. É uma estrutura falaciosa pois para se realizarem outras possibilidades tem de se mostrar que são «melhores», «mais belas», «necessárias», o que só pode ser feito a partir da prioridade do existente, que determina essas respostas e todas as respostas. É a falácia da "actualização" que funda a dialéctica do moderno, que é inseparavel da idealização do existente. O absolutismo teórico está abismado pela infinidade dos possíveis, que faz do existente uma tabula rasa onde tudo pode ser escrito ou feito. Mas isso implica uma prioridade da interpretação, do desejo ou da vontade, que tem de ser suspendida. Nos delineamentos da analítica da actualidade procurámos contribuir para isso, e é isso que lhe confere a sua natureza crítica. O dettectar a metapolítica que está em acto na relação existente e possível coloca um limite prático à discursividade moderna. Enqaunto a idealização do existente implica a infinitude dos possíveis, a crítica, sendo uma forma de negação determinada, um exercício de relação à experiência, regido pela finitude. Que portanto «salva as aparências» do existente, a sua lei dos possíveis e está á altura do «impossível»14. A tecnologização do pensamento tem de pressupor a possibilidade de dominar os possíveis, mas o qeu os cria é justamente o «impossível». É que os possíveis são deduções do existente, enquanto o «impossível» - o acontecimento -, é o que altera o existente, como existente (e não como obstáculo, ou época transitória, etc., criando os possíveis. Tudo isto é bem sintetizado por Derrida: "As instituições são invenções, e as invenções a que se dá um estatuto são por sua vez instituições.[...] A invenção é sempre possível, é invenção do possível, techné de um sujeito humano num horizonte onto-teológico, invenção daquele sujeito e daquele horizonte, invenção das leis, invenções a lei que confere os estatutos, invenção das instituições e segundo as instituições que socializam, reconhecem, garantem, legitimam, invenções programadas de programas. [...] Seria preciso sustentar que a única invenção possível é a do impossível. Mas uma invenção do impossível é impossível, diria o outro. Com certeza, mas é a única possível: uma invenção deve anunciar-se como algo que não parecia possível, de outro modo limita-se a explicitar um programa de possíveis, dentro da economia do mesmo" (Derrida, 1984: 19). Portanto, é aporético criticar o existente a partir do impossível, mas sim à luz do possível, porque hisporicamente este aparece como cosntituído e não como dado. Ora, o possível é uma outra figura do existente. É o existente mais a sua ficcção. Tanto o nihilismo como o positivismo tendem desvirtuar as relações entre o «real» do «ficcional», para melhor dominarem os possíveis e através disso estabilizarem a constituição. Para o primeiro tudo é ficção, mas a ficção é um superreal (mais ético, mais belo, mais forte). Para o segundo só há real, e o ficcional é sub-real (um erro provisório a superar por mais saber). As duas posições desvirtuam as virtualidades do possível, da ficção, pesando maciçamente sobre o existente. À luz desta questão o positivismo é banal, mas não menos perigoso que o nihilismo, mais «maravilhoso», pois como dizia Kafka a "ficção liberta-nos do cansaço". É que ambos estão em correspondência com a crise dos fundamentos, recusando-a, positivizando-a, pelo real ou pela ficção. O seu modo de fazer é o absolutismo, da teoria, da estética, de certas figuras. Na possibilidade de uma analítica da actualidade procuramos mostrar, positivamente, como sustentar a prioridade da experiência, estudo a que dedicámos a Primeira Parte. Mas esse estudo é inseparável, negativamente, da descosntruçao do absolutismo da discursividade moderna. Ambas comunicam entre si, pois são determinadas historicamente pelo menos fenóemeno, o da crise. o da cesuraçaão da experiência. Perdida a densidade ontológica da tradição, trata-se de fazer com que a leveza da imaginação, da ficção, da escrita possam "levantar" voo, sem perder o sentido da Terra. Esta é fundamento da experiência, mas apenas porque a suaporta, a contem15. Essa analítica é um pensar sobre os limites do existente, sempre posto em crise pela cosntituição. Mas é a única forma de estar à altura do estado nascente da "experiência da experiência", onde se fundem a experiência feita e aquela a fazer-se. O nosso destino joga-se na constante luta em torno da figuratividade do agir. A responsabilidade do pensar é também uma responsabilidade pelas suas figuras. A indecidibilidade deste processo faz da luta pela figuratividade uma permanente experimentaçäo. Tudo se joga em propiciar as ocasiões mais livres e em conter as mais violentas. Mas para libertar as melhores possibilidades do agir, mas para isso é preciso salvar todas as possibilidades16. Ora, näo é possível pensar o agir à maneira como o anatomista se aproxima do cadáver. Nem ao modo nihilista do Fiat ars, pereat mundus. É preciso escapar ao universalismo da teoria e ao particularismo da vivência. Cada um tem de ser isso e tudo o mais, à sua maneira. Tem aqui razäo de ser o dito de Stirner, faz mais de um século: "Defendo as minhas palavras como defendo a minha pele". A teoria só pode interessar-nos se for vital, quando temos consciência de que, mesmo neste domínio aparentemente etéreo, temos a "pele" em jogo. E temo-la sempre em jogo, como dissemos na introduçäo, porque o perigo assola a Cidade actual.

De certo modo, este livro é o desenvolvimento de uma única frase que todas as outras repetiram diferentemente. É ela: como se pode agir livremente, sem violência. O desafio é que o pensamento mais do que terem uma palavra a dizer sobre a "liberdade", tem de ser uma palavra livre. Mesmo que para isso tenha de se colocar a si mesmo em crise, talvez irremediável. Os perigos do nosso tempo manifestam-se na dificuldade em usar esta palavra. Numa conferência em Paris, Derrida recordou a frase de Lacan: "Je ne parle jamais de la liberté", consentindo nela, mas para logo acrescentar: "il y a beaucoup de façons de ne pas parler de la liberté" (sic). A necessidade deste deslocamento, mesmo a sua ironia, é o melhor sinal desse perigo. Näo poder falar de "liberdade" (mas também de "verdade", de "belo", etc.)é uma consequência do nihilismo, da «morte de Deus», de cuja putrefacçäo hoje já näo pode haver dúvidas, tendo chegado a notícia da "morte de Deus" ao público, fenómeno desejado mas também temido por Nietzsche. Econtramos algo semelhante em Foucault. Porque é que ele também näo pode utilizar estas palavras, quando este é o seu único problema? Talvez pese aqui um "hiper-iluminismo" pois o quedar-se por uma "grande palavra", seja ela "razäo", "progresso" ou "crítica" implica parar a crítica a meio, ancorando-nos a idola, o que é precisamente a falta suprema para o Iluminismo. Será pela desilusão porovocada pela história desssas palavras, que com a «igualdade» produziram a indignidade, com a «liberdade» a morte? Também não é menos recusável a facilidade da soluçäo de Rorty que opöe ao uso das "Thick words" (como Good, True, Beautiful) as "thin words" (como good catholic, patriotic american, etc.). Além de näo serem menos "ideais" que as "grandes palavras" já nada ecoa nelas (nem no seu autor) da grandeza da poiesis da imaginaçäo que, como nos diz Pessoa "é o nada que é tudo". O problema decisivo é que não é possível ir além da palava, quando ela nos está a destruir. No fundo, é preciso passar sempre pelas palavras, mais não seja porque enquanto falamos estamos vivos, a violência fica de fora. Mas isso é insuficiente, por importante que seja. É isso que nos diz Kafka que, no Relatório a uma Academia, deixa o relator, e antigo-macaco, dizer: "De propósito evitei a palavra "liberdade". O que eu queria era uma saída" (Kafka, 1917: 150). A palavra liberdade é recusada, ou melhor, "evitada" porque o que está em causa é o corpo (a "pele", relembra Stirner), e quando a corporeidade impera, a palavra é sempre segunda. E se esse segundo é, para homem enquanto "animal político", sempre o primeiro, é-o de duas maneiras: enquanto figuração do sonho de liberdade, da possibilidade de uma comunidade política; e enquanto desfiguração do corpo pela técnica, pelo discursos e pelas instituições. A maneira que escolhemos de näo falar de grandes palavras está concretizada na série de estudos desenvolvidos neste livro. As dificuldades com que nos debatemos é a dos limites da nossa linguagem. Esclareçamo-la, concluindo à sombra tutelar do poeta cívico que foi Ossip Mandelstam, que nos diz: "Eu näo desejo falar de mim, mas espiar o século, o ruído e a germinaçäo do tempo. A minha memória é hostil a tudo o que é pessoal. Nós näo aprendemos a falar, mas a balbuciar e é apenas quando damos ouvidos ao ruído crescente do século e depois de lavados pela espuma da sua crista que por fim adquirimos uma língua" (Mandelstam, 1925: 77)17. Nos nossos dias esta sensaçäo de que näo possuímos uma linguagem para as coisas, tornou-se num outro balbuciar, que desconhece as suas próprias limitaçöes, o de uma linguagem crescentemente ameaçada pela técnica, e com a linguagem as próprias coisas. A analítica da actualidade, também só pode encontrar a sua linguagem na "escuta dos ruídos do tempo", fazendo deles os signos de uma língua ainda não existente, e que cada um deve aprender à sua maneira. É disso que depende a capacidade de proferirr um juízo, sem cair no nihilismo com o sue desespero perante a falta de fundamentos, nem nas metafísicas "universalistas" de fundamentação, que é a face "humanista" do mesmo desespero. Que cada um tenho de o fazer, conquistando a sua própria linguagem, que essa linguagem já não fale da vontade ou de desejo de cada um, mas que nela luzam as próprias coisas e nelas a ideia de liberdade, é o dever de todos os humanos. Verifico agora que mais do que com uma conclusäo, termino com uma promessa de acçäo. Mas näo será que a verdade de qualquer "conclusäo" humana é o próprio acto de prometer?

1- A análise do problema da constituiçäo é uma exigência de qualquer teoria crítica, apesar das dificuldades com que inevitavelmente se confronta. Mas que é uma tarefa essencial exemplifica-o o influente livro de Anthony Giddens: The Constitution of Society (1984) que corresponde a uma interessante tentativa de pensar este problema. Porém, a pouca atençäo dada ao papel da discursividade (que näo se reduz ao simbólico), a quase inexistência de reflexöes sobre os procedimentos de constituiçäo (em cerca de 500 páginas apenas refere uma vez, e de passagem, o problema da constituiçäo) e, acima de tudo, a aceitaçäo de categorias näo-submetidas a desconstruçäo como é o caso de "sociedade", säo debilidades de um livro a muitos títulos admirável e inovador. 2- Infanzia e Storia: Distruzione dell'Esperienza e Origine della Storia. 3- Sobre as relaçöes entre modernidade e finitude na interpretaçäo de Heidegger, Cf. Kolb, 1986: 166-169. 4- Ora, é interessante verificar que esse "desespero" nos permitiria fazer uma outra arqueologia do sujeito moderno, näo menos cindido que o filosófico e que resulta das condiçöes de existência do experienciável. É o caso da posiçäo heróica perante o mundo cujo modelo säo os heróis homéricos (e pode falar-se de modelo pois a aristocracia helénica assim os tomava). Werner Jaegger diz mesmo que "o coraçäo da concepçäo helénica da vida [nota-se] num gosto pelo heroismo que faz com que a sintamos muito vizinha da nossa".(Jaegger, 1935: 40) Se podemos concordar que é bem o caso da Grécia, já quanto à modernidade as coisas säo diferentes. Assim, se é aceitável defender que o herói é a primeira figura concreta da finitude, pelo gesto de afrontar o perigo num ideal de "graça", o trabalho exercido com base neste modelo levou à sua dissoluçäo e banalizaçäo. Como exemplo de banalizaçäo temos a transformaçäo da imagem do artista que pintava heróis até se ter transformado ele próprio em herói (como mostram as análises foucauldianas da Vida dos Pintores de Vasari. Cf. Foucault, 1966: 72ss). Aliás, esta banalizaçäo está hoje bem patente no starsystem e nos "heróis desportivos". Como elemento de dissoluçäo, que ao mesmo tempo leva ao "herói do quotidiano" e ao sujeito racional e prudente, podemos referir para o segundo aspecto Baltasar Gración e o seu livro El Heróe (1637) que sintomaticamente anuncia uma mudança essencial, a do cristäo contra o mundo: "ser héroe del mundo, poco o nada ès; serlo del cielo es mucho" (Gracián, 1637: 58). Quanto ao primeiro caso, onde a heroicidade é a capacidade de suportar o desespero moderno e o carácter prosaico e mercantil da vida, Baudelaire é o autor essencial, mas como mostra Benjamin, o Uebermensch de Nietzsche näo escapa a esta matriz: "A característica do heroismo de Baudelaire: viver no centro da irrealidade (da ilusäo). [...] Em Baudelaire o acento incide sobre o novo que um esforço heróico arranca ao eterno retorno do mesmo; em Nietzsche incide sobre o eterno retorno do mesmo ao qual o homem faz face com uma calma heróica".(Benjamin, 1938: 230) 5- A verdade não se dá a ver sem véus. Como mostra o mito bíblico da Salomé, não há um véu, por trás de um véu está outro. E ao cair o último, o sétimo, surge não a «verdade», mas a violência. Muitas cabeças se perderam procurando a verdade. 6- Para uma interpretaçäo rigorosa do pensamento de Arendt, Cf. André Enegrén: La Pensée Politique de Hannah Arendt (1984)] 7- Antes pelo contrário, boa parte do discurso "político" é impolítico, como defende Bernard Cric em In Defense of Politics (1975: part. pp. 17-32). Teixeira Fernandes mostra que o discurso político é "um instrumento de dissimulaçäo do processo histórico de concentraçäo de poder" (Teixeira Fernandes, 1988: 264). Enquanto forma de aumento do poderio, "o discurso político näo é expressäo da verdade, mas de ilusäo, näo é dialogal, mas prestidigitador. O seu objectivo consiste em transpor os indivíduos para ordens de realidade que seduzam as pessoas" (ib, 262). 8- Já o dissemos, mas convém insistir neste contexto que esse perigo é potenciado pelo papel do tecnológico, que permite realizar os projectos impensáveis há poucos decénios. Por exemplo, criar uma raça geneticamente perfeito é um possibilidade ao alcance de qualquer política sem limites. O erro aqui é considerar que, na nossa situação, há ainda garantias de uma diferença nítida entre ciência e técnica, ou que o pensamento pode escapar à tecnologização. A deslocação de milhões dehomens pelo nazismo ou o estalinismo seriam impensáveis sem as tecnologias de gestão ou, num caso aparentemente mais simples, que as relações públicas são uma forma de comunicação em vez de uma tecnologia da persuação, etc. De um modo geral, e sem o podermos argumentar aqui, a distinção entre tecnológico e não tecnológia dependia da inscrição da técnica na experiência. Ora, na «modernidade» a técnica manifesta-se como absolutamente autónoma e «neutra». 9- Isso näo significa que näo existia "metapolítica" nas situaçöes ante-modernas. A diferença essencial é que os mecanismos de contençäo da violência näo tinham atingido a sua lógica extrema e imanente que é a nossa. 10- De um ponto de vista individual a «salvação» pode passar por algo como a anunciada pela revelação, mas na condição actual isso parece inviável publicamente, sem «fundamentalismo» e violência. Quais as implicações desse facto, que faz com que a religião se singularize, estamso longe de as poder compreender plenamente. 11- Sobre a interpretação do «salvar as aparências platónico», cf. Giorgio Agamben: Idea della prosa (1985: 89-91). Este problema acaba por afectar toda a fenomenologia, sendo uma procupação clara do último Husserl, que o desenvolve sob o tema «a arqui-originária Terra não se move». 12- A questão nihilista por excelência é a seguinte: "como é que o existente impede outras possibilidades"? Em todas as respostas este é desqualificado. Quer voltando-se quer para o futuro: "Há outras possibilidades que foram "reprimidas" (ou que devem ser "criadas") e que não foram experimentadas ainda" ou para o passado "houve outras possibilidades que foram destruidas pelo presente, pelo que o existente não é inquestionável". A afecção apocalíptica encontra aqui um dos seus fundamentos. 13- Enquanto que o século passado era o do pathos da "decadência", a temática da suspeiçäo caracteriza boa parte do nosso século, investindo mesmo o domínio da literatura, como o ilustra o conhecido livro de Nathalie Sarraute - A Era da Suspeita (a autora faz da suspeita o motor da "novidade" moderna: "a suspeita [...] é uma destas reacçöes mórbidas pelas quais um organismo se defende e encontra um novo equilíbrio. Força o romancista a cumprir aquilo que é, diz Toynbee, recordando a liçäo de Flaubert, a sua "obrigaçäo mais profunda: descobrir a novidade" e o impede de cometer o "seu crime mais grave: repetir as descobertas dos seus predecessores". (Sarraute, 1952: 70) Seja como for, trata-sede um fenómeno mais amplo, afectando a própria estrutura do pensamento. Paul Ricoeur foi o primeiro a mostrar a existência de uma "escola da suspeita", formada por Marx, Nietzsche e Freud (Cf. "A interpretaçäo como exercício da suspeita" [Ricoeur, 1965: 32-35]), que recorre a métodos extremamente sofisticados para desmascarar a opacidade dopresente (e as formas de "consciência falsa"). Hoje, quando o pós-moderno já se disseminou quase inconscientemente, parece ser possível falar de um "envelhecimento das escolas da suspeiçäo", como é o caso de Maurizio Ferraris (Cf. "Invecchiamento della "scuola del sospetto", [Ferraris, 1984: pp.34-46]), provocada pela nova hermenêutica que subjaz ao "pensiero debole" (ib, 39) e que se basearia na pura "diferença" sem vontade de verdade (ib, 45). Tudo isso estaria muito bem näo fosse a suspeiçäo uma necessidade da época, que näo permite que nenhum termo seja usado inocentemente. Näo dizia Adorno que, "depois de Auschwitz já näo é possível escrever poemas"? Ou seja, toda a inocência é criminosa, num século onde a memória do monstruoso näo se pode apagar, por uma qualquer evoluçäo "positiva".

14- No caso do estruturalismo, pela sua natureza combinatória isso era evidente, assentando o nihilismo num puro artifício lógico das possibilidades. Por exemplo, parte-se de um conjunto finito C={a, b, c}, cujas possibilidades säo oito casos (se näo tomarmos em atençäo a ordem dos elementos). Como cada caso, por exemplo {a} ou {b, c}, etc., implicam ao realizarem-se que os outros fiquem barrados, alguns encontram aí a justificaçäo para a crítica radical do efectivo (actualizado),como é o caso do famoso dito de Barthes de que "a língua como performance de toda a linguagem näo é nem reaccionária nem progressista; ela é pura e simplesmente fascista" (Barthes, Liçäo, 1977: 16). Num trabalho anterior, procurámos mostrar que o pathos denunciador desta frase, näo se deve à vontade de escândalo, mas a uma estrutura lógica e política do estruturalismo francês. Cf. Elementos Para um Teoria da Censura: Censurância, Argumentaçäo e Conflito (Bragança de Miranda, 1985).

15- Cada vez com mais dificldade, como o mostra a catástrofe ecológica. 16- É a este fenómeno que Benjamin em Das Passagen-Werk, chamava uma "apocatastase", um procedimento para que "a totalidade do passado seja introduzida no presente" (Benjamin, 1940: 476) Trata-se de um imperativo de näo-selectividade já que as figuras dominantes no presente equivalem a uma rarificaçäo do passado, destruindo outras possibilidades, as que näo venceram. Retrazendo-as todas, mesmo como simples possibilidade enunciável, a experiência enriquece-se e dá-se uma nova ocasiäo ao que, sendo frágil, foi "vencido". Boa parte do esforço analítico de Benjamin é, assim, dedicado a encontrar sinais daquilo que ficou vencido, mas que sobrevive nas formas vencedoras. Trata-se de encontrar "passagens", "fendas" no que parece absolutamente positivo, encontrando sob o liso o labirinto. O que é uma forma de romper a continuidade da história. É preciso estar atento às "cesuras" (ib, 494) procurar dinamitar a "continuidade" coisificada da "história".(ib, 492) Somente assim se pode "salvar os fenómenos" da catástrofe que "representa uma certa forma de transmiti-los, "celebrando-os" como "património". Eles säo salvos desde o momento em que se pöe em evidência a fenda que neles existe" (ib, 491). A isto apenas acresentaríamos o seguinte, também eriam de ser salvas todos os sonhos do futuro, todas as imagens que o tornam presente, e se desvanecem no presente.

17- A inanidade da linguagem na "modernidade" está amplamente documentada na consciência europeia do nosso século. Um exemplo entre muitos outros possíveis, é o da Brief des Lords Chandos (A Carta de Lord Chandos) de Hugo von Hoffmannstahl, onde se pode ler: "Eu sentia um mal-estar inexplicável apenas por pronunciar as palavras "espírito", "alma", ou "corpo". [...] Sucedeu-me querer repreender a minha filha Katharina Pompilia, com a idade de quatro anos, por ter dito uma mentira infantil; pretendia mostrar-lhe a necessidade de dizer sempre a verdade, mas ao fazê-lo as noçöes que me vieram à boca tomaram subitamente uma coloraçäo täo mutável, encavalitaram-se a tal ponto umas sobre as outras, que se esvaziaram completamente a minha frase. Como que num acesso de doença, tendo efectivamente o rosto pálido e sentindo uma violenta pressäo sobre as frontes, deixei a criança sozinha, bati a porta atrás de mim e só recobrei algo do meu espírito sobre uma sela, ao fim de um pedaço de tempo a galopar através da terra deserta".(Hoffmannstahl, 1902: 11-12) A semelhança com Mandelstam é clara, mas com uma diferença essencial: enquanto Hofmannstahl recobra a linguagem em contacto com a mudez da Terra, o poeta russo ganha a sua língua fazendo do "ruído do tempo" os sinais de uma outra linguagem, que näo a existente.