Sete meias-verdades e um lamentável engano

que prejudicam o entendimento da linguagem do radiojornalismo na era eletrônica

 

Eduardo Meditsch, Universidade Federal de Santa Catarina

meditsch@cce.ufsc.br

 

(Palestra à Licenciatura em Jornalismo da Universidade de Coimbra 9 de Novembro de 1995)

 

 

Introdução

 

O rádio é o meio de comunicação de massa menos estudado até a presente data. A bibliografia internacional sobre o objeto é pequena, dispersa e bastante precária em alguns aspectos. A questão da linguagem do rádio é um dos pontos em que essa literatura é ainda bastante insatisfatória. Cem anos depois da apresentação pública da invenção de Marconi, e três quartos de século desde que a primeira emissora regular de radiodifusão entrou em funcionamento, continuamos sem definir esta linguagem em sua especificidade. Ou, em outras palavras, continuamos sem compreendê-la.

No mundo de língua portuguesa a situação é ainda mais grave neste sentido. Não produzimos nenhum conhecimento a respeito da linguagem do rádio, e sequer traduzimos o que o resto do mundo produziu. Estamos fora do diálogo acadêmico internacional sobre este tema. O conhecimento técnico indispensável ao exercício profissional é socializado predominan-temente de uma forma pré-letrada, típica das sociedades primitivas: aprendemos na prática com os mais experientes, esses quando morrem levam para o túmulo os seus conhecimentos, os novos recomeçam do zero, nada se acumula, muito pouco evolui.

De tanto em tanto procuramos nos atualizar em relação ao que está sendo feito no que consideramos o "primeiro mundo". Vai lá alguém, vê como funciona e traz uma receita para ser aplicada em nossos países. Aplicamos a receita, muitas vezes sem a entender, em nome da modernidade, até que aquilo se torne o habitual e apague o que se fazia antes. Guiamo-nos pelos ecos de problemas e soluções distantes, não percebemos as frases todas, perdemos o fio dos enunciados e os seus contextos. Desta forma, temos nos contentado muitas vezes com meias-verdades a respeito da linguagem do rádio, e ocasionalmente cometemos um lamentável engano.

 

Primeira meia-verdade:

"A linguagem do rádio é uma forma de oralidade"

 

Dois fatos recentes protagonizados por indígenas brasileiros ajudam a compreender um pouco melhor os valores da nossa civilização. O primeiro é o gravador do Juruna: um cacique xavante chamado Juruna cansou de negociar acordos com o governo. O homem branco nunca cumpria o que prometia. Juruna passou a andar com um gravador a tira-colo, gravando tudo o que os políticos lhe diziam para depois poder cobrar. O gravador do Juruna teve um grande efeito mediático e virou um símbolo contra a malandragem dos políticos. O cacique entrou assim no mundo da política do homem branco, foi eleito deputado federal pelo Rio de Janeiro e se tornou uma celebridade internacional pelas mãos do cantor Sting. Mas não conseguiu, com suas gravações, fazer com que os brancos cumprissem o que diziam. Com base nesta experiência, uma outra tribo da amazônia sequestrou alguns funcionários do governo para que esse atendesse as suas reivindicações. Mas desta vez não houve conversa que os convecesse a libertar os reféns: só o fizeram quando suas exigências sairam publicadas no Diário Oficial da União. Os índios aprenderam que no mundo dos brancos só vale a escrita.

Neste mundo, o rádio, como a TV, é classificado no âmbito das formas de comunicação oral, em oposição às formas escritas. Isso serve para alimentar um certo desdém em relação às possibilidades destes meios, inclusive por parte dos próprios jornalistas, uma vez que em nossa cultura a oralidade é identificada com o atraso, com o analfabetismo, e não goza do prestígio intelectual que possui a escrita.

De fato o uso da escrita representou um salto tecnológico extraordinário na história da humanidade, e a partir dela aconteceriam todos os outros que moldaram e continuam moldando a forma atual da nossa civilização. Como propðe Jack Goody, a escrita representou a domesticação do pensamento selvagem: criando a forma de enunciação diferida, potencializou a análise crítica e a acumulação de conhecimentos. Liberou a memória de seus limites naturais - que eram o cérebro dos indivíduos – para torná-la objetiva e capaz de vencer as distâncias do tempo e do espaço. Sem estes distanciamentos, toda a ciência que conhecemos seria impossível e, sem ela, o rádio também seria impossível.

A dicotomia entre oralidade e escrita serve para explicar muita coisa na história da humanidade, mas já não explica mais tudo. Estes dois conceitos foram forjados antes do surgimento de um novo fenômeno, um novo salto tecnológico talvez tão grande quanto o que até então serviam para expressar: a chegada da eletrônica. É impossível prever agora até onde vai esta revolução, porque estamos vivendo apenas a sua proto-história. Mas autores como Pierre Lévy já arriscam definí-la como um "terceiro tempo" na história intelectual humana, que supera a escrita, embora sem extinguí-la, assim como essa superou (também sem extinguir) a oralidade.

Se a escrita representou a possibilidade do diferido, alterando os condicionamentos espaço-temporais da produção intelectual, a eletrônica inaugurou o direto, que modifica mais uma vez estas condições. A escrita possibilitou ao enunciado percorrer as distâncias, mas com isso perdia o contexto da enunciação. O direto anula agora essas distâncias, e leva junto enunciado e enunciação.

O tempo real da eletrônica acaba com o isolamento dos enunciados, coloca todos em relação. O hipertexto eletrônico expõe agora na prática o que Mikhail Bakhtin havia demonstrado na teoria: que nenhum enunciado pode ser entendido isolado, que todos fazem parte de uma cadeia infinita de conversação. Todos os enunciados são respostas a enunciados anteriores, e pressupõe novas respostas já no ato de sua enunciação.

O rádio, precursor do tempo direto com o telégrafo e o telefone, revela-se agora como uma manifestação precoce deste novo estágio intelectual eletrônico. Não representa um retorno à oralidade, mas um passo adiante em relação à escrita que engloba ambas e cria uma nova situação. A oralidade no rádio é apenas a sua manifestação aparente, há um mundo de escrita e um modo eletrônico por trás de sua produção.

 

Segunda meia-verdade:

"A linguagem do radiojornalismo é simples porque o som é material pobre"

 

No prefácio da edição francesa das Norme per la redazione de un testo radiofonico, que o escritor Carlo Emilio Gadda produziu para a RAI italiana, o filósofo Guillaume Monsaingeon manifesta-se inconformado com a sua postura. Gadda, que é conhecido por revolucionar a forma literária, defende para a rádio um texto absolutamente bem comportado, drasticamente limitado a uma simplicidade absoluta. Defende inclusive a autoridade da redação da RAI para vetar qualquer texto que fuja a este padrão.

O que Monsaingeon não percebe é que a simplicidade alcançada pela linguagem do rádio não é uma manifestação de penúria intelectual. Ao contrário, é uma forma superior de expressão. Quem se dedica a ensinar os outros a escrever para o rádio sabe o quanto a simplicidade é difícil de alcançar. Expressar pensamentos e situações complexas de uma forma simples é tarefa que exige um esforço extraordinário de abstração. Fazer isso bem feito é uma habilidade pouco comum. Charles Chaplin a identificava com as mais elevadas formas de arte.

O jornalista brasileiro Nilson Lage defendeu uma tese, na área de letras, em que identifica o que chama de "texto de alta comunicabilidade". O que caracteriza este texto é a capacidade de transmitir uma mensagem relativamente complexa a um máximo de receptores diversos com repertórios diferentes. Lage dá dois exemplos deste tipo de texto, que foram capazes de resistir ao tempo, às traduções e às variações culturais: o Gênesis da Bíblia e o Manifesto Comunista de 1848 de Marx e Engels. Os dois textos, que têm mantido uma eficiência quase universal na transmissão de suas mensagens através do tempo, possuem uma organização semelhante. A simplicidade adotada no rádio é uma forma de organização do texto que persegue a comunicabilidade.

A simplicidade do rádio também tem uma explicação econômica: ela atende às exigências de rapidez da informação na sociedade industrial. Por sua velocidade de funcionamento e também por sua complexidade, a sociedade industrial depende da informação rápida e abundante para monitorar seu funcionamento. O rádio é uma instituição chave na produção desta informação necessária. A imediaticidade, a versatilidade, a ubiquidade e a facilidade de recepção do rádio ainda não foram alcançados por nenhum outro meio, e isso se deve à simplicidade e praticidade de sua linguagem sonora.     

A simplicidade da linguagem do rádio, desta forma, é determinada mais por seus objetivos do que por seu material. O som, na verdade, é um material complexo e, em certo sentido, muito mais complexo do que a escrita. A palavra sonora agrega ao sistema digital da escrita um componente analógico que multiplica, quase ao infinito, a sua capacidade de produzir significados. O manual de Robert McLeish dá um exemplo prosaico, porém ilustrativo, deste potencial. Na leitura da frase escrita "o que você quer que eu faça com isso?" pode-se construir cinco significados diversos, enfatizando-se a entonação das palavras "você", "quer", "eu", "faça" ou "isso".

A complexidade do material sonoro também fica clara quando se observa, além da palavra, seus demais componentes na linguagem do rádio: combinando apenas alguns poucos sons isolados matematicamente, a música produz milhares de composições e centenas de estilos. E os ruídos captados na natureza e no mundo humano, quando não isolados matematicamente, elevam a possibilidade de combinações ao infinito. Neste ponto de vista, combinar palavra, música e ruídos num programa de rádio pode ser muito mais complexo do que compor uma sinfonia para orquestra. A limitação não é dada pelo material, é determinada mais por convenções desenvolvidas a partir de necessidades práticas, ou seja, pelo seu uso.

 

Terceira meia-verdade:

"O discurso do rádio deve ser natural porque é falado"

 

Essa meia-verdade tem sido incutida na formação profissional com tanta insistência que dificilmente é posta em questão. Como estratégia pedagógica até se justifica, e tem por objetivo salientar aos profissionais os vícios que desenvolveram na escrita, que são muito difíceis de superar no caso dos jornalistas, cuja formação enfatiza e valoriza esta forma de expressão. No entanto, a naturalidade na frente do microfone deve ter pouco de natural.

A naturalidade no rádio é análoga à naturalidade no cinema, que também foi enfatizada para romper com os modos teatrais desenvolvidos no aprendizado da profissão de ator. Como no cinema, será tão mais eficiente quanto mais for planejada, testada e calculada minuciosamente, ou seja, quanto mais for artificial. Um ator que aja naturalmente só será capaz de expressar a si próprio, não será capaz de encarnar a personalidade diferente de cada um de seus personagens. O jornalista de rádio também tem um papel a desempenhar na frente do público, que não vai representar bem se portar-se da mesma maneira como se porta em sua vida privada. De forma consciente ou não, vai sempre assumir esse personagem em frente ao microfone. Quanto mais conscientemente o fizer, mais será eficiente na sua função.

Assim, o jornalista de rádio não tem que agir com naturalidade, mas sim com eficiência no domínio de sua linguagem falada. O ideal é que desenvolva a tal ponto esta eficiência que ela se torne "como que natural". Para isso não deve representar uma expontaneidade, precisa tornar expontânea a sua representação. O caminho passa por um aprendizado do uso da linguagem falada - como vimos, mais complexa do que a escrita - e por um treinamento intensivo do uso da voz.

        

Quarta meia-verdade:

"O radiojornalismo é uma forma de jornalismo audiovisual"

 

Se Eva foi criada com a costela de Adão, a televisão foi criada com a medula do rádio. Os gêneros e a concepção dos programas, o pessoal que os produzia e os recursos que os sustentavam foram transferidos para o novo meio. O rádio ficou paralisado por um bom tempo, e até hoje tem dificuldade em recuperar seus movimentos: basta alguma idéia ou algum profissional se destacar em seu corpo para ser sugado pelo cordão umbilical insaciável da cria. A competição entre os dois organismos é desproporcional, e com ela o rádio acabou por perder até o direito a uma identidade própria.

Dizer que o rádio é audiovisual é uma meia verdade evidente. Falta-lhe o visual para ser uma verdade inteira. Mais apropriado seria reconhecer que não se lhe dá importância suficiente para merecer atenção individualizada por parte dos governos, das empresas, das instituições e das literaturas técnica e acadêmica. Essa importância é de fato discutível diante dos interesses que a definem, mas do ponto de vista da linguagem o aspecto não verdadeiro da proposição fica saliente.

A linguagem do rádio tem inúmeros pontos de contato com a linguagem audiovisual da TV, principalmente pelo fato de lhe ter dado origem e pela base eletrônica que é comum a ambas. Um dos pontos em comum é de que o texto, tanto no rádio como no audiovisual, não é um produto final, mas apenas uma etapa intermediária da sua produção. Nos dois casos o texto é apenas um esqueleto, que vai ganhar carne com o acréscimo de outros elementos de linguagem no momento da sua realização.

Outro ponto comum é o fato de ambas as linguagens se organizarem no tempo. Mas aí se encontra também uma diferença fundamental. O audiovisual se organiza no tempo mas tem também um componente espacial definido: o plano limitado pelas margens da tela. Este componente espacial representa um elemento estático, cuja modificação no tempo produz a linguagem audiovisual.

O som puro não possui nenhum elemento estático. Por definição, som é movimento, e quando pára o movimento pára o som. O som não acontece dentro de um espaço fixo como a imagem: os contornos do seu espaço são os contornos do próprio som. Quanto toca uma campainha o som enche todo o espaço alcançado por sua potência, quando ela silencia não ocupa espaço nenhum. No audiovisual, ao contrário, a tela é fixa e está sempre ali. Quando o apresentador de um telejornal nos fala, só dez por cento da imagem é que se move. Noventa por cento da tela permanece estática. A voz sem corpo do apresentador de rádio move-se completamente, e some no nada no momento seguinte. A ausência do elemento estático determina algumas características da linguagem do rádio: ela será muito mais ágil, muito mais rápida, mas ao mesmo tempo muito mais fugaz.

A teoria da relatividade de Einstein coloca uma questão interessante para a linguagem do rádio: segundo esta teoria, as três dimensões do espaço e a quarta do tempo não tem nenhuma diferença entre si, a não ser pelo fato de que a nossa consciência se move pela linha do tempo. A linguagem do rádio se move pela mesma linha que a nossa consciência, e ao contrário do que ocorre no audiovisual ela não possui os elementos espaciais fixos que servem como referência externa a este movimento. Assim, não nos permite o mesmo distanciamento (que pode ser ainda maior diante da linguagem escrita). Isso talvez explique porque a linguagem do rádio é tão persuasiva e tão envolvente. Em pesquisas de opinião realizadas em diversos países, o rádio aparece como o media que tem maior credibilidade junto ao público, embora provavelmente, por sua velocidade, seja também o que erre mais.

A colocação do rádio no âmbito do audiovisual é uma meia-verdade que também tem servido a fins pedagógicos, para diferenciar a sua linguagem da utilizada pelo jornalismo impresso. Mas, como a anterior, ela só é válida enquanto antítese. O material sonoro a que o rádio dá forma tem uma natureza diferente, e esta especificidade precisa ser alcançada para evitar equívocos. O principal desses equívocos é tentar entender a linguagem do rádio a partir dos parâmetros do cinema, o que conduz à quinta meia-verdade que vamos analisar.

 

Quinta meia-verdade:

"A linguagem do rádio é semelhante à cinematográfica"

 

Nos últimos trinta anos foram lançados dois livros na Europa com o mesmo título: "a linguagem radiofônica". O primeiro foi publicado na França por Etienne Fuzelier em 1965. O outro na Espanha, pelo catalão Armand Balsebre, em 1994. Ambos são livros interessantes, trazem inúmeras informações e observações originais sobre o rádio que vale a pena conhecer. Mas ambos cometem o mesmo erro metodológico, que é o de tentar enquadrar a linguagem do rádio na sintaxe plano-sequência do cinema.

O rádio de fato se apoiou na experiência do cinema no seu alvorecer: quando começaram a funcionar as primeiras emissoras regulares de radiodifusão, na década de 20, o cinema ainda era a preto e branco e mudo, mas já vivia a sua adolescência e havia superado a etapa em que foi um teatro filmado. Além disso, já havia conquistado o reconhecimento como "sétima arte". Para ser a oitava, o rádio viu logo que não bastaria transmitir o que as outras artes produziam - teatro, música, ópera, literatura - e que além de tudo essas transmissões não eram satisfatórias devido a sua cegueira. Muitos exemplos do cinema então foram úteis, e o radioteatro adotou o conceito de montagem, os fades, as fusões, e várias outras técnicas cinematográficas.

Mas a imitação do cinema também encontrou seus limites. Este caminhava em direção a um cada vez maior naturalismo, que a chegada do som e das cores só iria reforçar. O rádio, sem imagem, tem um limite muito concreto para reproduzir o real. No radiodrama só aparece em cena o que tem voz, o que soa e, se muitas coisas soarem ao mesmo tempo, uma mascara a outra e já não aparece coisa nenhuma. Cenários, costumes, ambientes e situações no rádio só podem ser sugeridos. E se forem sugeridos exageradamente sobrecarregam a cena, prejudicando o principal que é a ação dramática.

O som também não está contido num espaço fixo e não tem elementos estáticos, como já referimos. Daí que seja impossível isolar um plano como o cinematográfico na linguagem do rádio. Como admite Fuzelier, o plano no rádio confunde-se com a sequência. Assim, o uso da sintaxe plano-sequência já não explica a estrutura de sua linguagem.

Além disso, há um outro fator que afastou o rádio dos passos do cinema. Desde o seu surgimento, o cinema foi uma arte produzida em diferido. O rádio primitivo era todo ao vivo, pois não contava ainda com os recursos fonográficos com que conta hoje. Ainda agora, contando com esses recursos, o rádio continua funcionando muitas vezes em direto, e isso é mais um fator que o afasta da sintaxe do cinema. A TV, que veio depois, também não segue os passos do cinema quando funciona em direto: pelo contrário, ela segue os passos do rádio.

A analogia da linguagem do rádio com a do cinema, assim, se mostra bastante capenga, e só se sustenta em alguns autores, como Balsebre, validando as próximas meias-verdades que vamos analisar.

 

Sexta meia-verdade:

"O ouvinte complementa a mensagem do rádio com sua imaginação visual"

 

Esta, provavelmente, é a meia verdade mais fascinante. Logo que começou a funcionar a TV na Inglaterra, houve uma menina que disse: "prefiro ouvir as estórias no rádio, porque os seus cenários são mais bonitos". Esta frase está reproduzida em vários livros sobre rádio e é difícil resistir a sua lógica por causa do seu encanto. Em primeiro lugar é necessário dar um desconto: realmente os cenários da TV quando esta começou em preto e branco, com enormes câmaras trancafiadas no estúdio e realizada em direto, eram bastante precários.

Lembro de uma cena que assisti na infância na TV Piratini de Porto Alegre: o nosso Dom Pedro I, levantando a espada para proclamar a independência do Brasil. A espada tocou numa árvore, que caiu sobre o painel em que estava pintado o Riacho Ipiranga, e todo o cenário foi ao chão. Tiveram que suspender a emissão.

O rádio em direto também não está nunca livre dos vexames. Conta-se que numa peça de radionovela produzida no Brasil aconteceu de um personagem advertir o outro: "você está na mira do meu revólver, prepare-se para morrer". Neste momento, o responsável pela sonoplastia errou a faixa do disco de efeitos, e em vez do som dos tiros se ouviu o mugido de uma vaca. Depois de uns poucos segundos intermináveis de silêncio, o ator resolveu salvar a cena e disse: "e não adianta se esconder atrás da vaca que eu lhe mato do mesmo jeito". A cena se passava num apartamento, é verdade, mas o desastre foi menor que o de dom Pedro na TV.

A vaca no apartamento, comparada com a natureza no chão,  mostra o poder evocativo da palavra no rádio, que é tão extraordinário como na literatura e muito mais do que no audiovisual. A cegueira do rádio permite que a sua narrativa nos conduza de uma situação para outra diferente, de um diálogo para o pensamento de um personagem, de uma situação concreta para uma idéia abstrata. E nada disso parece absurdo, porque funciona da mesma forma que o nosso devaneio.

O rádio pode evocar imagens visuais no ouvinte, mas não só visuais. Nossa memória não é um arquivo de slides, guarda também olfatos, sabores, sensações táteis e melodias. Guarda principalmente nossa compreensão e nossas emoções a respeito dos fatos da vida. A linguagem do rádio evoca facilmente tudo isso.

Mas o que torna mais eficiente esta linguagem é que ela escolhe o que evocar. Ou seja, ela pode também não evocar coisa nenhuma. Num programa de notícias, por exemplo, dificilmente alguém imagina o aspecto do jornalista que fala sentado à frente da tela do computador, ou pensa como será o formato do estúdio em que isso ocorre. Esses dados são omitidos da comunicação porque não são importantes para ela.

Na "estética radiofônica" que escreveu em 1936, o alemão Rudolf Arnheim nota que o rádio pode operar admiravelmente a "lei da economia" que governa toda a obra de arte: só deve participar dela o que contribui para o seu significado. Com base nisso, sustenta que, no rádio, a imaginação visual do ouvinte só deve ser chamada quando tem algo a contribuir. Fora disso, é um ruído na comunicação, atrapalha e não tem sentido, como não teria pintar uma estátua com a cor da pele. Muitos autores, no entanto, desconsideram este aspecto e consideram a imaginação visual do ouvinte como um componente permanente e necessário na linguagem do rádio.

 

Sétima meia-verdade:

"A linguagem do rádio é composta pela combinação de músicas, ruídos, palavras e silêncios"

 

A sétima e última meia-verdade que vamos considerar é a que define assim a linguagem do rádio. Ela pode acrescentar que essa composição, como a da música, se dá tanto numa linha horizontal, paralela à do tempo, com a edição ou montagem de sons consecutivos, quanto numa linha vertical, perpendicular àquela, pela mixagem ou mistura de vários sons simultâneos.

As melhores análises vão ainda esmiuçar cada um dos sub-sistemas semióticos que compðem esta linguagem, como o da música ou o da palavra, e descrever as suas funções no todo. Quase todas, no entanto, vão parar por aí, sem notar que descreveram tanto a linguagem do rádio quanto a da fonografia, e que não distinguiram entre elas.

A confusão, por um lado, deve-se à própria estrutura ambígua das emissoras de rádio que, com exceção do que diz respeito à música, acumulam as funções de emissoras propriamente ditas com as de produtoras fonográficas - quando produzem programas diferidos. Por outro lado, devem-se também a uma limitação teórica da maior parte dos estudos de linguagem: para dissecar uma língua, como o corpo de um animal, é quase sempre preciso matá-la.

A linguagem do rádio, uma vez morta, uma vez considerada como "linguagem dada", não se distingue em nada da linguagem fonográfica. O que a distingue é que ela não existe na realidade enquanto dada, existe apenas dando-se como discurso. Seja transmitindo em direto, seja transmitindo em diferido um produto fonográfico que assim atualiza, ou ainda combinando estes dois elementos, como normalmente o faz, o rádio transmite sempre no presente individual do seu ouvinte e no presente social em que está inserido, ou seja, num contexto intersubjetivo compartilhado entre emissor e receptor: num tempo real. Ao contrário, na fonografia, como no cinema, emissor e receptor estão separados pelo tempo e o contexto não é compartilhado por eles. Objetos inanimados, agem como robôs programados para se repetirem.

Quando um enunciado diferido é incluído no contexto do discurso presente dos media eletrônicos (uma declaração, uma música, um filme), deixa de ser o mesmo: cumpre função diferente daquela para a qual foi concebido por seus autores originais. De enunciado autônomo, passa a fazer parte de um enunciado maior (uma notícia, um programa, uma programação) que tem outro autor, outra intenção, outra leitura, outra enunciação, outra relação com a realidade. O objeto inanimado funciona então como prótese de um corpo vivo.

 

O lamentável engano:

"Os dias do rádio pertencem ao passado"

 

Em meados dos anos 40, com a entrada triunfal da TV no mercado dos media dos Estados Unidos, a revista Time profetizou que, cedo ou tarde, a televisão tornaria o rádio tão obsoleto quanto o transporte a cavalo. Meio século depois, já não parece tão cedo para concluir que a previsão foi furada. Estima-se hoje que existam mil milhões de receptores de rádio em atividade no mundo. Nos Estados Unidos, no Brasil, e em todos os países que fizeram a comparação, a audiência de rádio é maior do que a de TV durante dezoito horas por dia. Ainda nos Estados Unidos, o rádio é a principal fonte de informação da população durante o período da manhã.

Apesar dessas evidências de que o rádio não se encaminha para a extinção, aquela previsão tem ainda um efeito desconcertante para os profissionais do rádio e para a maior parte dos seus teóricos. Tal como os monarquistas destronados, vivem o sonho de reabilitar o passado. Acreditam que o melhor do rádio é aquilo que ele não tem mais.

Esta nostalgia tem algo mais em comum com aquela que nos provocam as mais belas histórias da nobreza: oculta a imensa pobreza que circundava os salões das cartolas e casacas. No caso do rádio, o jornalismo sempre foi o primo pobre dos espetáculos que se faziam nos auditórios. Primeiro, por ser um diferente gênero de discurso, não podia adotar a maior parte das convenções desenvolvidas pelo rádio enquanto arte e espetáculo: seu compromisso era informar a realidade, não criar uma realidade própria. Depois, porque cumpria a sua finalidade através de condições técnicas absolutamente precárias se comparadas às atuais. Não havia computadores nem satélites, não havia gravadores magnéticos, a rádio-comunicação era sofrível e as linhas telefônicas eram excassas e poucos confiáveis.

É lamentável a perda do espaço do rádio enquanto expressão artística, que é quase total em Portugal e no Brasil. Felizmente, esta perda não é total: existem registros e bibliografia sobre essa forma de expressão que a tornam recuperável. Nos países que possuem uma rádio estatal que se valoriza, o radio-teatro ainda está bem vivo: a BBC de Londres, em plenos anos 90, produz mais de quinhentas obras originais por ano, selecionadas entre os mais de dez mil roteiros que recebe anualmente.

Quanto ao rádio informativo, os seus dias dourados são certamente os de hoje e, se algum tempo for melhor do que esse, este tempo está no futuro. Há mais a aprender sobre a sua linguagem no futuro do que no passado, embora lá também se possa aprender alguma coisa. A instauração de uma era intelectual eletrônica redefine a função do rádio informativo no caminho de sua verdadeira vocação: a partir de agora ele será para o público uma interface sonora com o hipertexto multimedia que vai expressar a aventura intelectual de nossa civilização. Uma aventura em que o jornalismo representa um dos papéis principais, contracenando com as ciências e com as artes.

 

 

Referências:

 

ARNHEIM, Rudolf

(1936) Rundfunk als Horkunst. trad. espanhola: Estética Radiofónica.

Barcelona, Gustavo Gili, 1980

 

BAKHTIN, Mikhail

(1979) Estetika Slovesnogo Tvortchestva. trad. brasileira: Estética da Criação Verbal. São Paulo, Martins Fontes, 1992 

 

BALSEBRE, Armand

(1994) El Lenguaje Radiofónico. Madrid, Cátedra.

 

FUZELIER, Etienne

(1965) Le Langage Radiophonique. Paris, Institut des Hautes Etudes Cinématographiques.

 

GADDA, Carlo Emilio

(1953) Norme per la redazione di un testo radiofonico. trad. francesa: L'art d'écrire pour la radio. Paris, Les Belles Lettres, 1993

 

GOODY, Jack

(1977) Domestication of the Savage Mind. trad. portuguesa: Domesticação do Pensamento Selvagem. Lisboa, Presença, 1988

 

LAGE, Nilson

(1979) Ideologia e Técnica da Notícia. Petrópolis, Editora Vozes.

 

LÉVY, Pierre

(1990) Les Technologies de l'intelligence: L'avenir de la pensée à l'ère informatique. trad. portuguesa: As Tecnologias da Inteligência: O Futuro do Pensamento na Era Informática. Lisboa, Instituto Piaget, 1994

 

McLEISH, Robert

(1978) Technique of radio production. trad. espanhola: Tecnicas de Creacion y Realizacion em Radio. Madrid, Instituto Oficial de Radio y Television, 1985