Universidade Federal da Paraíba – Brasil
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A realidade da globalização multiplicou as perspectivas da ação estratégica, potencializando o capital em escala mundial, reafirmando-o como imperativo sistêmico que sustenta o poder da dominação. O surgimento dos novos processos de gestão, a empresa imaterial, a descoberta do turismo como forma de investimento, lazer e aprendizagem; o desenvolvimento das tecnologias de informação e comunicação, as nano e biotecnologias responsáveis pela inteligência artificial, pelo genoma e pela clonagem, o terrorismo e a já real primeira guerra do século XXI têm mais em comum do que se imagina, pois estão tão intercruzados quanto os microfios de uma mesma rede.
O globalismo está presente na vila, na comunidade, na ilha, na vida. É a realidade do mundo moderno. E ao mesmo tempo em que integra, fragmenta. Essa modernidade-mundo, pois, é contraditória, desigual. A imagem, em meio a esse contexto, é cultuada com supremacia (Ianni, 1998).
E a partir da imagem da modernidade, as práticas cotidianas têm sido redimensionadas em virtude das conseqüentes mudanças histórico-sociais que, cada vez mais, são arrastadas pelo espaço das mercadorias sobre o qual teoriza Lévy (1999). De um lado, o sujeito social é convidado ou desafiado a enfrentar os novos modos de aprendizagens interativas usando o hipertexto como forma complementar que revigora as metodologias tradicionais de ensino. Do outro, as relações humanas atam as conexões planetárias, proporcionando a interatividade nas redes eletrônicas que, segundo Lévy (1999), são meios de organização em ampla escala que poderá fazer nascer uma nova forma de pensamento global, unindo quatro espaços: o dos saberes, das mercadorias, a terra e o território. Estes espaços deveriam ter uma mesma planificação de interesses, mas, em determinados contextos sociais, o espaço das mercadorias, como os demais, sobrepõe-se uns aos outros. Tais espaços, uma vez equilibrados, formatariam as bases de um pensar complexo em prol da formação da inteligência coletiva.
Desse modo, se num primeiro plano, o lastro da globalização e as políticas do neoliberalismo injetam as imposições do Capitalismo dito pós-moderno, numa outra face a participação social, a vez da palavra às massas historicamente silenciadas, o discurso polêmico das minorias desfavorecidas, a responsabilidade social cobrada às instituições, a solidariedade, o voluntariado, dentre outras conquistas e projetos de ação, exemplificam que a rede também pode ser usada como ação estratégica para a emersão do interesse popular.
É neste panorama que a cultura está ou travando sua luta de resistência ou aderindo às armas opressoras que formam a indústria cultural. As expressões populares, sobretudo, espremidas entre o global e o local, são assoladas por crises identitárias, metamorfoseando as ações populares a partir daquilo que é imposto pelos padrões estéticos, de consumo, de mercado. Assim, compreender a complexidade dos tempos atuais significa (re)dimensionar as nuanças da cultura local e sua interface ou até mesmo dualidade com a global; significa traçar os paralelos da modernidade e do que se convencionou denominar pós-modernidade.
Neste trabalho, objetivo discutir a expressividade cultural como marca de uma realidade contextual. É por isso que levo à discussão a expressividade da serenata do sertão paraibano, associando-a às dimensões conjunturais desta sociedade de realidade complexa e sem paz, destacando a cidade de São José do Sabugi como caso não distanciado do macro, mas, coeso com os parâmetros que formam a conjuntura mundial. Pois, partindo da concepção de que, nos dias atuais, a realidade econômica esforça-se para comandar os lastros das finanças globais, interligando bolsas de valores e idéias de mercado, podemos constatar que o viés econômico enfileira as esferas sócio-culturais, determinando o jogo dos envolvimentos, do consumo e do pensamento. Mais além, a pretensão que tomamos ao abordar o tema aludido é discuti-lo numa ótica que sintonize seu entendimento às dimensões de uma realidade que já se considera pós-capitalista, uma vez que a responsabilidade social está cobrando das instituições o retorno social, isto é, o escoamento da produção resulta no lucro e parte deste seria repassado para projetos sociais.
A guinada que a prática turística, por sua vez, tomou a partir dos ritmos da globalização diz respeito aos contornos de uma mentalidade de negócios, serviços, necessidades e direitos que transpõem o simples espaço das mercadorias, este configurado na supervalorização do capital mundial. Prefiro entender o turismo como uma volta ao estado da arte do sujeito ou, em outros termos, uma prática de (re)valorização e (re)encontro consigo e com o outro, onde os sujeitos visitantes e visitados podem adquirir consciência histórico-polítco-social e cultural de outras geografias territoriais, valorizando e desenvolvendo os espaços dos saberes e dos territórios, influenciando e sendo influenciado pelos vários “mundos da vida” que formam visões de mundo, reformulando concepções já cristalizadas pelas tradições do passado.
Partindo desta perspectiva, almejo convidar você, leitor, a fazer um tour por uma rota inusitada. Traçarei, pois, algumas considerações a partir da serenata, um acontecimento histórico-social que movimenta comunidades do Sertão paraibano, cuja expressividade transpõe as licenças poéticas, significando o entendimento do mundo da vida como um palco de conflitos harmônicos onde encenam paixões, recordações, conformismo e resistência.
2 SERENATA: MÚSICA, TEXTO E CONTEXTO
A serenata é um festejo ímpar que (ainda) acontece em algumas localidades sertanejas. É uma cantiga volante e lírica, de raiz no trovadorismo português1, trazendo à cena as práticas medievais do “amor cortês” e do relacionamento de vassalagem, isto é, relação de submissão e rebeldia às hierarquias do poder e do patriarcado.
A serenata do sertão recebeu forte influência da tradição oral, somando-se a este ponto a influência dos meios de comunicação, principalmente o rádio. A existência do tempo cronológico determina o significado do termo serenata como o fenômeno que ocorre aos serenos das madrugadas.
De início, parece um folguedo urbanizado possível de realizar-se somente em cidades interioranas, com menos de cinco mil habitantes. Isto porque o conhecimento e o relacionamento social são pontos cruciais para a realização da festa, caracterizada pelos aspectos bucólico, boêmio, saudosista, romântico.
Na cidade sertaneja de São José do Sabugi, há quatro horas de João Pessoa, a serenata está imbricamente ligada à história de seus habitantes. Tendo seus primeiros registros a partir de 1926, a cidade faz parte do Vale do Sabugi, este localizado na encosta da Cordilheira da Borborema. Formado por cinco municípios: Santa Luzia, São Mamede, São José do Sabugi, Junco do Seridó e Várzea, o Vale do Sabugi tem sido ambiente de serenatas que marcaram gerações. Entretanto, com o passar do tempo, o festejo foi desaparecendo ou tornando-se quase impraticável, uma vez que o êxodo rural inchou não somente as grandes cidades, mas tornou os pequenos lugarejos, como São José do Sabugi, comunidades urbanas de características ruralistas. A tradição rural e a dinamicidade urbana misturam-se nas formatações do cotidiano da cidade, tornando a cultura híbrida, reformulando o mundo da vida a partir de um novo relacionamento que coaduna o rural e o urbano, o local e o global.
São José do Sabugi, praticamente, é uma das últimas cidades do Vale que ainda alimentam a prática do folguedo. Nela, retratar a serenata como expressividade da cultura é entrar no desenvolvimento do município e na história de sua gente.
Após a emancipação do município, conquistada em 1962, a serenata foi surgindo e seduzindo homens e mulheres. Naquela época, a energia elétrica era alimentada por motores e contava com um período de funcionamento. Exatamente às vinte e duas horas, da prefeitura soavam os alarmes que sinalizavam o desligamento das luzes. O toque de recolher era imperioso e estridente. Simbolizava que, àquela altura, crianças já deviam estar na cama e moças recolhidas ao seio familiar. Os pais aproveitavam de tal mecanismo para demarcar a hora em que seus futuros genros deveriam ir embora.
A ida da luz causava uma ruptura já habitual nos afazeres da população, de forma que marcava, também, a transposição de uma nova etapa da noite. As pessoas não necessariamente se recolhiam ao sono, mas se preparavam para as sessões de história oral, bordados, costuras, leituras e orações à luz de velas, candeeiros e lamparinas. As balaustradas dos jardins, os terreiros de chão batido que antecediam o hall das casas, o conhecido “oitão” (arredores) da Igreja, dentre outras localidades como o mercado público e a praça, ganhavam novos contornos relacionais, principalmente nas noites de lua cheia.
Naquela época, depois que o “apagão” chegava, formavam-se nas ruas grupos de conversas desprendidas e despreocupadas que, na maioria das vezes, acabavam cantarolando para as noites melodias serenas, cujos verbos mais conjugados eram os verbos amar e, paradoxalmente, sofrer. Surgia aí uma das primeiras analogias explícitas entre o discurso da serenata e a poesia das cantigas do trovadorismo português.
A relação mística com a religiosidade (tempo-cosmológico do sujeito rural) e o sentimento conjuntural de aglomeração (tempo-cronológico do sujeito urbano) fundamentavam as conversas noturnas, principalmente entre os homens, inspiradores e criadores das primeiras serenatas. A relação de gênero enquanto motivação para a festa deu-se, primeiramente, pela necessidade de conquistar a mulher amada, geralmente impedida de conversar abertamente durante o namoro, tendo em vista que as horas de encontros em casa das namoradas eram horas de verdadeiras vigílias em que a família controlava as ações súbitas de transgressão do toque corporal (abraços, beijos). O ato do galanteio ou a verbalização do amor, portanto, era executado durante os períodos das cantigas, onde as moças eram despertadas pelas músicas que declaravam o discurso impedido das salas de família. A liberdade atribuída ao sujeito masculino e negada ao sujeito feminino encontrava-se nas músicas ouvidas por todos, como forma de burlar as bases do então conhecido como moral e pecaminoso.
A desenvoltura dos grupos ia, cada vez mais, se aperfeiçoando não com fins de transformar aqueles encontros, espontaneamente atraentes, em trabalho sistematizado, mas, vivenciar o ar das paixões, tendo como cenário os ambientes iluminados pelas auréolas prateadas que formam o luar do Sertão. A simetria da serenata com os elementos ambientais que a natureza oferecia (a noite escura, o céu estrelado, o sereno, o barulho e a exuberância dos bichos noturnos, como o vaga-lume, etc.) alinhava o rural e o urbano, cada vez mais.
Os grupos começaram, então, a andar pela cidade e perceberam que a madrugada era o período ideal para a prática do ato festivo. Cantavam em cada porta, em cada esquina. As pessoas despertavam com aquelas melodias serenas, entoadas pelo conhecido pai-corda, isto é, o violão afinado.
A história das músicas e sua sonoridade receberam forte influência do tempo de ouro do rádio, quando as Rádios Bandeirantes, Tamoio, Tupy e, principalmente a Rádio Nacional, do Rio de Janeiro, estreavam melodias e cantores para todo o Brasil. Do Nordeste, as Rádios Borborema e Cariri, de Campina Grande, Tamandaré e Rádio Clube, de Pernambuco e Poty, de Natal, dentre outras, emitiam uma programação que somente chegava no Sabugi graças às baterias que davam vida ao rádio, uma vez que só havia eletricidade das dezoito às vinte e duas horas. Músicas como “Secretária da beira do cais”, “Chuá-Chuá”, “Ronda”, “Última Inspiração”, “Casinha branca”, “Mariposa”, “Colcha de retalhos”, “Maria Helena”, “Perfídia”, dentre outras, formavam o quadro de atrações das madrugadas de serenatas. Isto confere com o pensamento de McLuhan (1969) que diz que o rádio restaura a sensibilidade tribal que trará às culturas mais auditivas do que imagéticas, como a São José das década passadas, um envolvimento exclusivamente correlacionado com o falar e o ouvir.
Com o passar do tempo, os grupos perceberam que seria necessário pedir licença aos lares para que a serenata pudesse passar, uma espécie de concessão ou auto-convite. A formalização do trabalho era entregue por escrito em cada lar, dentro de um envelope. A comunicação escrita era uma maneira elegante de se construírem justificavas para a passagem da serenata. A comemoração do dia do padroeiro da cidade era a ocasião de maior peso para explicar o festejo.
Em retribuição ao ato formal, as pessoas começaram a dar gorjetas quando a serenata passava, fato este que alterou a rotina épica da folia, mudando as estruturas essenciais da festa: de expressão cultural para cultura mercadológica.
O ato da oferta era simples e, até hoje, segue o mesmo rito. No envelope entregue à casa, deposita-se o dinheiro, colocando-o por baixo da porta ou pelas fendas das janelas. As pessoas, geralmente, não abrem suas portas nem para ver quem está cantando nem para entregar o envelope, resquício do tempo em que as moças não podiam ver seus namorados fora de hora ou quando as mulheres casadas escondiam-se do cortejo do amante, na época do trovadorismo. É preciso reconhecer que a cultura do oral, nestes momentos, emerge com grande força, deixando o acontecimento envolto por uma atmosfera de sentimentos subjetivos que não se alterou, formando um dos pontos cruciais da serenata: a nostalgia.
O caráter nostálgico que este festejo traz consigo marca uma ruptura no cotidiano coletivo de forma que quebra as bases do sentido “ordinário” do dia-a-dia. É um momento em que os sujeitos transcendem suas funções cotidianas, exteriorizando a individualidade a partir da sensação de envolvimento em conjunto, designando formas de uma comunicação social de ar participativo, onde as pessoas se sentem sujeitos de interação entre a sonoridade do texto, a escolha do discurso (mensagem) e a fuga do tempo, determinando o caráter “extraordinário” do mundo vivido da serenata.
Freitas (1998), fundamentada na “Dialética e Cultura” de Goldmann, analisa as folias e festas de reis no interior de São Paulo considerando a assertiva de que toda festa popular traz consigo um elemento pré-revolucionário, já que o arrebatamento na ordem habitual das coisas confere ao cotidiano uma realidade paralelamente “extra”, onde o povo lança-se na ação festiva manifestando, na maioria das vezes, um comportamento inconsciente, que se distancia do dia-a-dia convencional.
Sendo assim, a transgressão das normas do cotidiano se dá a partir da necessidade da diversão, do riso generalizado em que se incita a participação de todos através da música-sentimento. O discurso musicado engloba as diversas matizes da paixão, do amor e da dor. Os sentimentos de satisfação e sofrimento fundamentam os processos dialéticos presentes no mundo da vida e que, ao mesmo tempo, levando em consideração os fatores contextuais do ambiente cultural, são os responsáveis pela história do surgimento do acontecimento festivo, tornando-se a serenata um fator expressivo-popular contribuinte para a construção identitária do sujeito brincante.
Assim, a formação e reformulação da identidade são processos contínuos e ininterruptos do mundo da vida, onde o sujeito repensa, refaz, constrói e destrói seu modo de pensar, suas ações e perspectivas de vida. Isto confere ao processo identitário um fenômeno complexo, engrandecido a cada dia. Por identidade entende-se o processo social no qual o sujeito constrói significado com base em atributos culturais, podendo incorporar novas referências através de novos relacionamentos (Castells, 1999).
É certo que em São José do Sabugi, durante a festa das serenatas, nem todo brincante é personagem de ação, uma vez que a grande maioria está mais para ouvinte. Entretanto, a idéia de participação e integração transpõem as portas e janelas (fechadas) das casas e o reencontro identitário se dá pela força do senso de pertença com a expressividade cultural daquele lugar. O reencontro consigo mesmo fortalece o mundo da vida, engrandecendo a festa, trazendo à tona sentimentos de felicidade e sofrimento, assim como nos enredos clássicos encenados pelo histórico enredo do trovadorismo.
O “sofrer” também está ligado às recordações do passado histórico, quando o sujeito revive os mundos da vida de outrora, fazendo renascer pessoas e épocas marcantes.
As relações de poder que rechaçam o cotidiano também estão presentes na festa, mas, o gesto participativo diminui ou minimiza as divergências e as barreiras que envolvem opressores e oprimidos.
O mapeamento de uma discussão sobre o real, formado por relações de poder, instrumentalização e racionalização dos saberes e dos processos cotidianos acarretados pelas decisões políticas, fez Habermas (1990) repensar sobre uma “guinada pragmática”, cuja análise teórica pode contribuir para o olhar dos fenômenos empírico-culturais da sociedade.
3 SERENATA E TURISMO SERTANEJO: ROTAS CULTURAIS?
Segundo Habermas (1990), é no mundo da vida onde se formulam e reformam conceitos culturais que, a partir do próprio sujeito, alcançam as esferas sociais, cristalizando pretensões em comum acordo, respaldadas nos traços cultural-comunitários. O mundo da vida não tem fins, haja vista que os meios são decorrentes de formas espontâneas do cotidiano coletivo que não causam divergência, mas compreensão.
Para se chegar ao entendimento consensual entre a prática da serenata e sua aceitação comunitária como um discurso expressivamente contextual, o mundo da vida arma-se de um conjunto de sentidos pré-teóricos que formam a compreensão, a interpretação e a ação da realidade do indivíduo sobre os fenômenos que integram a vida.
Sendo formado a partir de três junções: o mundo objetivo, o social e o subjetivo, o mundo da vida da serenata integra estes três pontos de convergência. O discurso poético (subjetivo) e argumentativo (objetivo) denotam e conotam a intenção de penetrar a estrutura formal da comunidade (social), fazendo eclodir o mundo de cada um e surgindo um mundo da vida contextual onde os sujeitos saem de suas esferas individuais e projetam-se no coletivo, fortalecendo o entendimento e a pré-teoria que formulam e reformulam sobre sua identidade. O mundo da vida, pois, agrega, enaltece, articula o local, constrói aquilo que o lado obscuro do global desarticula e degrada.
O mundo vivido fortalecido na sociedade responsabiliza-se por aquilo que Freire (2000) chamou de integração. Esta idéia de integração associa-se à tomada de forças de entendimento para combater a massificação (não compromisso com a existência, acomodação), sendo esta o grande engodo que reforça o “antidiálogo” e mina as experiência democráticas.