Nos «imedia» a esperança de rompimento do cerco

 

Oscar Mascarenhas *

 

Março de 2000

 

Só após quinze dias de bombas sobre Belgrado é que alguém mais atento alertou: «Anexo B!»

Já era tarde. O rumo dos acontecimentos estava decidido: o bombardeamento iria prosseguir. Se nos primeiros quinze dias fora desencadeado com base numa suposta força da razão, a partir daí despejar-se-iam as bombas com a razão da força.

E o que era isso do Anexo B? Um texto complementar ao Acordo de Rambouillet onde se pretendia que Sérvia firmasse um compromisso de aceitação futura da secessão do Kosovo e da sua independência. A Sérvia não quis assinar. O Mundo despejou-lhe bombas em cima, a pretexto de que a Sérvia malvada não queria reconhecer aos kosovares os mínimos de cidadania que o Acordo de Rambouillet propunha.

Só quinze dias depois é que alguém independente e atento disse que a Sérvia recusara o Acordo de Rambouillet, não pelo documento principal, mas por causa do tal Anexo B. Não se discute se os kosovares têm ou não direito ao que lhes proporcionaria o Anexo B. Mas já podem compreender-se melhor as dúvidas da Sérvia, temente do reverso da medalha, ou seja, que viesse a acontecer aos sérvios do Kosovo o que os kosovares albaneses diziam estar a acontecer-lhes.

Independentemente de apoiar ou não a reivindicação kosovar, se tivesse sabido do Anexo B, a opinião pública mundial reclamaria dos poderes nacionais e internacionais a continuação da exploração do diálogo, já que a Sérvia não ficaria tão inequivocamente definida como A Má.

Mas o que aconteceu foi que os grandes media mundiais se «esqueceram» de divulgar a tempo a existência do tal Anexo B. Distracção geral? Incompetência colectiva? Conjura perversa? Subserviência unânime? Cada um terá a sua resposta, mas do que quero falar é de uma realidade formidável e preocupante: nesta sociedade mundial de comunicação, ainda é possível silenciar informações, pelo menos durante o tempo útil para quem a deseja silenciada.

A progressiva concentração dos media não promete, pois, nada de bom para a liberdade de informação, isto é, para que os eleitorados democráticos possuam o fluxo de informações indispensáveis para tomar decisões responsáveis. A concentração dos media é assim uma espécie de cerco de dentro para fora: encerrados no seu reduto, os media concentracionários podem debilitar as opiniões públicas que as rodeiam, privando-as de informação essencial. O caso do Anexo B é apenas um de muitos exemplos.

Estamos perdidos? Nunca estivemos perdidos: nas piores opressões e ditaduras, sempre houve folhas volantes, jornais clandestinos, samizdats e, mais recentemente, os interfax. Haverá, pois, resposta a esta ameaça. Ela já existe, aliás, estando a ser posta em prática aos poucos - e o mais notório caso de rompimento do cerco foi o do Comandante Marcos, que conseguiu colocar Chiapas na agenda universal e o governo mexicano na defensiva graças à Internet.

Por aí vamos, em defesa da liberdade. Pela Internet.

As possibilidades abertas são espantosas, a mais gloriosa das quais pode ser esta: a partir de agora, qualquer pessoa, sozinha, pode pôr a circular um jornal seu com a mesma dimensão física e difusão - que o New York Times! É o retorno ao tempo do intelectual orgânico que, no século XIX, assegurava o proselitismo das suas ideias e as dos seus amigos, realizando praticamente todas as tarefas de um jornal.

E não me admiraria nada se, no futuro, a necessidade de interromper o fluxo de intoxicação - voluntária ou involuntária - dos grandes media levasse ao aparecimento de uma outra categoria de hackers: a dos invasores de sites dos grandes media, ali colocando um botão de link do género «Leia outra versão dos acontecimentos». Estes novos cavaleiros da liberdade só não se chamarão hookers (de hook, gancho, anzol, o tal botão fisgado em página alheia) porque o termo já está pejorativamente tomado pela mais antiga profissão do mundo…

O aparecimento destes jornais alternativos na Internet não resolve, de imediato um problema como o do Anexo B, porque os grandes grupos, dispondo de canais mais imediatos e muito mais vocacionados para a propaganda e relações públicas, como as televisões, chegarão sempre primeiro. Mas nada impede que a solidariedade internacionalista dos informadores alternativos os leve a organizar uma rede mundial de alerta acelerado através de um motor de busca e acolhimento das vozes discordantes.

Claro que os grandes meios têm um antídoto para isso, baseado no princípio entrista de que «se não podes com eles, junta-te a eles». Há, aliás, sinais detectados pelos cibernautas de um número suspeitosamente crescente de páginas «alternativas» e «inconformistas» que mais não fazem do que asfixiar a circulação de informação pelo excesso de operadores presentes. Por outras palavras: podem sempre afogar, por excesso, a rede alternativa. Noutros tempos. chamar-se-iam agentes infiltrados ou provocadores; agora serão isso mesmo com o prefixo ciber-.

A defesa dos meios alternativos vai residir na sua capacidade para aproximar as pessoas da própria fonte de informação - e é aí que farão a diferença. No futuro, os jornais alternativos terão de apostar no confronto das pessoas com os factos e os documentos e não apenas com o seu relato ou resumo. Assim, no futuro - que já vai sendo presente - esses ciberjornais trarão a notícia-resumo de uma conferência de imprensa ou de um discurso ou de um qualquer debate, mas darão, em link, a possibilidade de aceder à gravação integral, em vídeo ou em áudio, ou ao documento original digitalizado.

É a grande revolução: os jornais deixarão de ser mediadores ou intermediários do real para serem imediatizadores, isto é, proporcionarão o acesso directo aos factos ou aos documentos.

Está na forja, portanto, a alternativa aos media. São os imedia!

E, contra estes, os supostos alternativos intoxicadores pouco poderão, porque não estarão em condições de comprovar o que difundem. Os imedia podem defender - e muito! - o consumidor de informação. Pode, pelo menos, romper muito melhor o cerco actual.

Para que tudo isto não seja só optimismo, alerto para o facto de que, sentindo-se acossados, os grandes media responderão. E fá-lo-ão como sempre souberam fazer: esmagando, a mal, se não dominarem a bem. E se nenhum outro processo resultar, preparem-se para súbitos controlos e monopólios mundiais da electricidade e das telecomunicações: em muitos países - e o Japão não é decerto o menor exemplo - as comunicações telefónicas usadas pela Internet ainda são ao preço das outras, o que, só por si, é uma terrível condicionante ao acesso. E nada garante que estes obstáculos, em vez de se abaterem, não se ergam onde já estavam derrubados. É tudo uma questão de oportunidade estratégica dos mega-grupos e dos estados que lhes prestam vassalagem.

Não se diga que esses tempos não virão porque não podem vir. Ninguém que se esqueça de que em outras eras os países se foram revezando na apropriação do mar que era de todos, chamando-lhe mare nostrum  



* Oscar Mascarenhas é redactor principal do «Diário de Notícias» e presidente do Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas