Ética e sua avaliação nas Universidades[1]

(e sua autocrítica em notas de rodapé)

 

Oscar Mascarenhas[2]

 

 

Há alguns anos, numa visita à Alemanha com outros jornalistas portu­gue­ses, tivemos a oportunidade de conhecer o funcionamento e os currículos de es­tudo de três escolas profissionais de jornalismo. Invariavelmente, no fim da expo­sição do director da escola, um de nós perguntava: «E ética - ensinam?»

Invariável foi também a resposta nas três escolas: que não, não ensina­vam ética. Pelo contrário, advertiam desde o início os estudantes que, ali, do que se tratava era de algo «strictly business». Não é que as escolas defendessem que os jornalistas não deveriam ter ética profissional. A questão é que a reme­tiam ou para a consciência de cada um ou, eventualmente, para as normas das empresas que os contratassem. Curiosamente, apontavam mais para estas - as normas das empresas - do que para aquela - a consciência individual: os nossos interlocuto­res sublinhavam muito o facto de não saberem de todo onde é que os seus for­mandos iriam empregar-se e, sendo os órgãos de informação tão dife­rentes uns dos outros...

Isto soou, para nós, como uma declaração formal de elasticidade do es­crú­pulo e do carácter dos jornalistas, albardando a burra da consciência à von­tade do dono da empresa.

Passado este tempo, ainda tenho, no fundamental, a mesma reacção de de­sagrado perante a filosofia com que a escolas alemãs de jornalismo enfrentam a questão da ética. No entanto, esse essencial da minha reacção desaprovadora centra-se na implícita concepção de moral elástica que ali colhemos nas conver­sas com os responsáveis. O que já não sei é se voltaria a trocar olhares cúmpli­ces com os meus camaradas de viagem, gratificando-nos por, pelo menos em Portu­gal, nenhum currículo de escola de jornalismo ou de comunicação social que se preze passar de largo pela disciplina de ética profissional.

As reflexões que vou enunciar, um tanto desordenadamente, não decor­rem de uma análise sistemática, de uma investigação profunda ou de documen­tação académica consultada: são, ainda em cru e verde, febrilhações da intuição, mesmo palpites - um pouco temperados com a experiência de formador profis­sional na área da Deontologia.

E qual é a tese para que se encaminham essas reflexões, para começar­mos pelo fim? Em síntese, é esta: tenho cada vez mais dúvidas sobre a utilidade de in­cluir, nos currículos universitários de comunicação social ou jornalismo, a disci­plina de ética profissional ou deontologia. Realcei a palavra «universitá-rios», porque o caso já tem outros contornos quando se trata de es­colas profis-sionais ou profissionalizantes, mas também aí sendo necessária al­guma adver-tência.

O primeiro argumento que me ocorre, para sustentar a dúvida, é indutivo e brota da metamorfose do preceito «Maria vai com as outras» em «Maria, está bem que não vás com as outras, mas não te importas de te interrogar porque é que as outras não vêm contigo?» E é assim: porque é que as seculares faculda­des de direito e de medicina não incluem, nos seus currículos, até à licenciatura, as dis­ciplinas de ética profissional, sendo certo que advogados, magistrados e médicos estão vinculados a códigos específicos de comportamento?

A minha resposta é: as seculares faculdades de medicina e direito já ti­ve­ram casco de carvalho suficiente para apurar o conceito de universidade e desli­gá-lo, deliberada e intencionalmente, de qualquer conexão profissional. É obri­gatório que advogados, magistrados e médicos passem pelas faculdades para po­derem ser profissionais. Mas não é obrigatório que quem passe por essas escolas tenha de ser advogado, médico ou magistrado. Parafraseando uma re­cente e notá­vel reflexão de Clara Pinto Correia sobre o papel da universidade, pode dar-se o caso de quem a frequenta apenas queira de lá sair mais inteli­gente, queira poten­ciar as suas capacidades pensantes: e é para prestar esse ser­viço que a universida­de se constituiu!

Por contarem menos séculos de abeberação, as novas faculdades de jor­na­lismo e comunicação social têm dificuldade em contrariar o impulso profis­siona­lizante que, a um tempo, lhes concede alguma identidade no concerto da univer­sidade tradicional mas, por outro, perversamente as politecnizam.

Está aqui a primeira incompatibilidade estrutural entre a universidade e a ética: a universidade é, por definição, teoria, razão, abstracção, pode e deve viver sem ter de se referir ao mundo exterior concreto, pode e deve conceptuali­zá-lo, cifrá-lo em códigos herméticos, dissecá-lo em lamelas invisíveis, reinven­tá-lo, se quiser - se isso for considerado útil para o tempo de ginástica mental que se esti­pulou para o curso; a ética, pelo contrário, é uma prática, um escrú­pulo, uma emoção, um modo concreto de ser e estar, uma referência permanente a nós e aos outros; e a ética profissional é uma compilação dos escrúpulos, um denominador comum traçado pela associação de vontades, um compromisso público ditado por um orgulho profissional mutuamente partilhado. Tirando as escolas sacerdotais, tenho dificuldade em ver como é que um estudo universitá­rio pode enlaçar-se com a ética, sem perda de identidade de um ou de outra.

(Atente-se que não está aqui em causa o estudo académico da ética como ramo da filosofia, onde se avaliam as escolas, as correntes e os pressupostos teó­ricos dos diferentes pontos de vista. É de uma ética prática, interiorizada, as­sumi­da e partilhada que estamos a falar.)

A universidade, por outro lado, traz consigo um defeito congénito (não podiam ser só as excelsas virtudes incensadas dois parágrafos antes): estratifica, rigidifica e cristaliza o mundo que estuda no seu laboratório teórico. Mesmo mentalmente, não se pode dissecar uma realidade anguilídia, escorregadia, que não pára quieta e está em constante transformação. Por isso, as universidades tendem, nessas ocasiões, a fazer como manda a fenomenologia de Husserl: põem a realidade entre parênteses, desligam-se as conexões com o exterior. Fa­zem, em resumo, uma simulação de autópsia da realidade e, acabada a investi­gação, rea­nimam-na e deixam-na, partir, ladina e lampeira, para o meio dos ou­tros concre­tos do quotidiano.

Esse é, como se calcula, o pior método encarar a ética profissional. No exacto momento em que descontextualizamos uma situação, ela morre. E, quando a reanimamos, nunca mais reencontra o seu lugar no universo concreto em muta­ção. A ética profissional é coisa para se estudar em andamento, é preci­so correr ao lado dela, viver com ela e discutir no tropel do pelotão o modo de acertar o passo naquilo em que seja conveniente acertar o passo, sem que cada um perca a noção dos seus próprios ritmos e pulsões. A ética profissional não se obedece, exercita-se, fazendo-a brotar de nós, constrói-se, modifica-se, refor­mula-se, transgride-se até, em certos casos, para a fazer progredir e melhorar.

Outro dos inconvenientes da ética estudada na universidade tem a ver com a desagradável mas imutável realidade dominante da vida estudantil: o que se estuda para nota é para esquecer depois de obter a nota. (Eu, por mim, sou li­cen­ciado em Química desde o meu velho 5.º ano do liceu - e faço questão de que não me voltem a testar em tão corrosivos ácidos, bases e sais!...)

Estudada a ética na universidade, queimadas as pestanas nos alçapões da teoria, é mais do que provável que o jovem jornalista licenciado confronte a ética profissional com uma convicção de que «isso já demos» e faça o melhor dos es­forços para transgredir, nem que seja para pirraçar retroactivamente o prof que «tinha a mania»... Especialmente porque a ética profissional dos jornalistas con­tém um ingrediente - ou falta-lhe um ingrediente - que pode ser desmorali­zador no estudo académico: a ausência de sanção obrigatória e directa por cada trans­gressão.

No mundo académico de causas e efeitos, é natural que o estudante re­cla­me conhecer os resultados do que não viu adequar-se aos princípios. Como dizer-lhe que o maior castigo fica a moer por dentro do profissional, vem a bai­lar nos olhos reprovadores dos camaradas que o encaram, enfrentam e criticam, cristali­za-se numa pena perpétua de perda ou diminuição de credibilidade? Qual! Se não há castigo, o raciocínio abstracto do estudante encaminha-o a con­ceber todas as formas de transgressão impune - porque foi para pensar em todas as fugas possí­veis às regras que ele ingressou na  universidade!

Não vejo que seja vantajoso criar no jovem estudante um sentimento entre o decepcionado e o ansioso de que essa coisa da ética profissional é, afi­nal, tão etérea que vale mesmo só como exercício teórico para contentar o prof, como uma certificação antecipada de que «quando for grande vou portar-me bem - e agora, passas-me ou quê?». É preciso ser-se profissional, é preciso ex­perimentar a gigantesca vergonha pelo erro ínfimo que nos é apontado para in­teriorizar o ju­ramento de rectidão. É indispensável ser-se profissional para per­ceber que dói muito mais a informação incorrecta não desmentida do que a carta furibunda e cheia de vulnerabilidades para o «trinta-e-um de boca».

Acrescento ainda uma outra razão que leva a pôr em causa a utilidade da ética profissional como disciplina curricular nos cursos universitários de jorna­lismo e comunicação social. Estando a ética profissional codificada num texto, a tendência académica é para juridificar o seu estudo, isto é, aplicar métodos de análise próprios dos cursos jurídicos. Ora acontece que a ética, ao invés, por exemplo, do direito penal, não define um território do proibido para deixar claro que tudo o resto é permitido: na ética, nem tudo o que não é proibido pode con­side­rar-se permitido. A ética não se cristalizou em código para definir o máximo de delitos que a imaginação conseguiu prever e prevenir: pelo contrário, a ética pro­fissional codificou-se entre os profissionais para estabelecer o limite mínimo de deveres que aceitamos ver cumpridos por todos, ficando muitos outros ao critério, à consciência, ao escrúpulo e a própria maneira de ser de cada qual. A ética não nos manda fazer tudo a que temos direito, mas tão-somente tudo o que conside­ramos dever.

Dou um exemplo: no actual Código Deontológico do Jornalista portu­guês, estabelece-se a obrigatoriedade de manter o sigilo de fonte confidencial, excepto se esta tiver tentado usar o jornalista para veicular uma informação falsa. Lido académica ou juridicamente, quer dizer que sempre que uma fonte anónima dá uma informação falsa, o jornalista pode identificá-la. É o podes! - grita-nos a ética de cá de dentro. Mesmo depois de passar pela prova do dolo, ou seja, estar­mos convictos de que, além de nos ter sido prestada uma informa­ção falsa, houve intenção suja de prestar essa informação falsa, abre-se um longo e muito doloroso período de reflexão, consulta aos amigos e ao travessei­ro, para saber se iremos usar, pela primeira vez, da prerrogativa que o Código Deontológico nos conce­deu! E o mais certo é que o jornalista se silencie e as­suma as consequências desse seu heroísmo: se mais ninguém sabe que o jorna­lista é um herói, pelo menos sabe-o ele - e é quanto basta![3]

O heroísmo, como é sabido, não se ensina nas universidades, muito me­nos para nota. Quando muito, prega-se nas escolas sacerdotais e militares, em esti­mulantes sermões perante a congregação ou a tropa formada...

Então, devem os estudantes universitários passar de largo por estas ques­tões da ética jornalística? Não é o que defendo. Há, pelo menos, duas coi­sas que podem ser feitas neste âmbito:

- seminários de contacto com profissionais para debate e familiarização com os problemas da ética profissional, vistos à luz das experiências particula­res e como recolha de testemunhos de vivências pessoais e não transmissíveis (o facto de as universidades não serem profissionalizantes não as deve, natural­men­te, impedir de proporcionar o contacto com profissionais, como um acres­cento de saber); e,

- estudos comparativos de códigos de ética em vários países, eventual­mente já numa fase de pós-graduação.

Acima de tudo - e neste ponto faço mesmo questão - é preciso retirar a possibilidade de avaliação académica em matéria de ética. A experiência várias vezes colocou-me diante de situações como esta: certo aluno ou formando, quando avaliado, revela uma notável aquisição de conhecimentos e uma espan­tosa capacidade de elaborar os adquiridos. Em pura lógica académica, ele tem o direito a esperar boa nota. A verdade é que olhamos para ele, desconstruimos o seu discurso e fica-nos uma certeza: está aqui um prodígio de inteligência, mas está também aqui um formidável delinquente ético em potência. Mas isto não é uma escola confessional, um seminário ou uma academia militar. Por isso, não podemos julgar o lado de dentro do candidato. Resultado: se avaliamos positi­vamente, escancaramos uma contradição entre a teoria e a prática; se avaliamos negativamente, abusamos de um poder de julgar.

Ética profissional, como disciplina para nota, livrem os estudantes disso! As notas quantificam a valoração das competências adquiridas. E desde quando é que a ética é uma competência? [4] [5]



[1] Texto apresentado no 3º Encontro de Jornalistas.

[2] Jornalista do Diário de Notícias.

[3] Foi exactamente neste ponto que sofri a maior desilusão e, na prática, a mais forte contestação aos pressupostos deste texto: três jornalistas do «Diário de Notícias» ganharam uma desagradável celebridade ao terem revelado uma  suposta fonte confidencial de informação («caso Universidade Moderna», denúncia do director da Polícia Judiciária, Fernando Negrão, como autor de uma quebra de segredo de justiça, motivo pelo qual, por decisão po­lítica e sem processo, foi demitido do cargo). Acontece que aqueles jornalistas fizeram exactamente o que eu jul­gava improvável em profissionais não oriundos de escolas de Jornalismo ou de Comunicação Social, antes feitos no exercício do quotidiano, após uma formação de base universitária: raciocinaram com a formalidade jurídica, assumindo-se como titulares de um direito de denúncia outorgado pelo Código Deontológico dos Jornalistas ou - muito pior do que isso - como se o Código impusesse o dever de denúncia de fonte confidencial desacreditada!

Se vai assim a confusão de conceitos entre raciocínio ético e raciocínio jurídico, urge meter o bote no rio, remar até à nascente e logo ali purificar as águas. Significa isto apostar num ensino universitário da ética onde o alvo fundamental seja treinar o raciocínio dos estudantes para nunca confundirem estes dois planos: o jurídico e o ético. Já é uma muito boa razão para reconsiderar o que eu escrevi sobre os outros inconvenientes  do ensino da ética nas universidades.

[4] A ética não é, de facto, uma competência. Mas a capacidade de raciocinar dentro dos quadros éticos, sem permi­tir qualquer osmose com o raciocínio jurídico que vive paredes-meias, já o é - e bastante. A nota não será para classificar o que o estudante sabe de ética mas apenas a sua capacidade de desconstruir uma dada situação à luz de princípios éticos.

[5] A Escola Superior de Comunicação Social proporcionou-me a hipótese de ministrar, por um semestre, a discipli­na de Ética e Deontologia. Não me foram impostos limites nem objectivos, pelo que deduzo que posso ensaiar a aposta na metodologia do raciocínio ético. Vou ver como é para depois contar como foi, com a angústia de quem hesita e o ante-remorso de utilizar pessoas concretas como laboratório. Eles que me perdoem. Só pro­meto ater-me ao essencial princípio da ética, que também o é da liberdade: não fazer aos outros (a eles) o que não gostaria que me fizessem…