O ponto de vista argumentativo da comunicação

Moisés de Lemos Martins, Universidade do Minho



1. Da antiga à nova retórica

Conta-se que no século V.º antes de Jesus Cristo, a Sicília foi governada por dois tiranos, que confiscaram as terras aos seus legítimos proprietários e as distribuíram pelos soldados. Quando em 467 (antes de J.-C.) a tirania foi derrubada, os proprietários espoliados reclamaram a reposição da legalidade, pelo que foram então instaurados intrincados e infindáveis processos. Teria sido nestas circunstâncias, para falar diante do tribunal, que Córax (aluno de Empédocles) e Tísias compuseram o primeiro tratado de argumentação.

A retórica estaria assim ligada a "um processo de propriedade" (Barthes, 1970: 173), como se a linguagem, enquanto projecto de uma transformação, conduta de uma prática, se tivesse determinado, não a partir de uma subtil mediação ideológica, mas a partir da sociabilidade mais transparente, afirmada na sua brutalidade fundamental, a da posse da terra: "começámos no ocidente a reflectir sobre a linguagem para defender o nosso quinhão"(Ibid.: 176).

Este mito fundador da argumentação é paralelo, curiosamente, ao mito que funda a geometria. Heródoto (V.º século antes de Cristo) atribui a sua invenção aos egípcios, que todos os anos se viam obrigados a reparar os prejuízos causados pelas cheias do Nilo. Tratar-se-ia, das duas vezes, de uma questão de limites desfeitos, num caso pelo rio, noutro pelo tirano. Como restabelecer os limites das propriedades? A geometria é dada como resposta para as catástrofes naturais; a argumentação como resposta para as catástrofes culturais. Christian Plantin (1996: 4-5), que estabelece este paralelismo, entende que esta oposição é de um carácter exemplar na distribuição das tarefas que realiza: aquilo que é feito pelas palavras, é por elas que pode ser desfeito.

Concebida, no entanto, como "fazedora de persuasão" (peithous demiourgos), fórmula de Córax que Platão e Aristóteles retomarão, a retórica vê-se inquinada pela suspeita de empiria e de vassalização à doxa, ou seja, vê-se ameaçada pela possibilidade de se esgotar na astúcia, de se esgotar em tornar forte o argumento mais fraco, através de uma sedução enganadora, que desvie, e encante, e calcule.

Platão fixou-a aí, numa presunção de verdade: "A retórica", diz Sócrates, "não precisa de conhecer a realidade das coisas; basta-lhe um certo procedimento de persuasão por si inventado para que pareça diante dos ignorantes mais sábia que os sábios (Gorgias, 459 b).

O carácter diabolizante da retórica, que Platão denunciou no Górgias e no Fedro, e que não deixou nunca de alimentar a reflexão a seu respeito, está presente logo no mito das suas origens. Como é assinalado em algumas narrativas, Córax terá aceite ensinar a sua técnica a Tísias e apenas ser pago em função dos resultados obtidos pelo seu aluno, o que prova aliás a absoluta confiança que nela depositava. Caso Tísias ganhe o primeiro processo, terá que pagar ao seu mestre; se perder, nada terá a pagar.

O carácter diabólico da técnica retórica aparece então em toda a sua força. Tísias, que entretanto acabou os estudos, resolve levantar um processo ao mestre, e sustenta que lhe não deve nada. Tratava-se do primeiro processo do aluno Tísias, e das duas uma, ou o ganhava, ou o perdia. Na primeira hipótese, ganhava-o, e segundo o veredicto dos juízes, nada devia. Na segunda hipótese, perdia-o, e dado o acordo estabelecido com o mestre, nada teria que lhe pagar. Em ambos os casos, Tísias tinha as contas saldadas com o mestre.

Mas Córax não se ficou. Constrói um contra-discurso, em que inverte o esquema da argumentação de Tísias, embora o retome ponto por ponto. Primeira hipótese: Tísias ganha o processo. Dado o acordo que fez com o mestre, Tísias tem que lhe pagar. Segunda hipótese: Tísias perde o processo. Segundo a lei, Tísias é obrigado a pagar o ensino que recebeu. Nos dois casos, Tísias não tem outra saída que não seja pagar.

A má reputação que a retórica tem, ainda hoje, deve-se particularmente a Platão, mas é injusto depreciar o formidável contributo que a sofística forneceu à teoria argumentativa. Foi, no entanto, Aristóteles quem deu o passo decisivo que fez da retórica uma disciplina nobre.

Do ponto de vista retórico, a argumentação é então entendida como o conjunto de estratégias que organizam o discurso persuasivo. Na Retórica, Aristóteles propôs o silogismo entimemático como suporte de tais estratégias. O "entimema" é um raciocínio de verdade provável e não provada, de verdade plausível e não certa, de verdade verosímil e não evidente (Carrilho, 1990: 70).

A retórica antiga distingue cinco etapas na produção de um discurso argumentado. Chama-se "invenção" à etapa argumentativa que usa o pensamento na procura de argumentos pertinentes para o exame de uma causa. Os manuais de retórica antiga propõem técnicas que permitem encontrar ("inventar") tais argumentos. Chama-se "disposição" à etapa textual. Uma vez "inventados", os argumentos são postos em ordem. Assim, por exemplo, começa-se pelo argumento mais fraco e guarda-se para o fim o argumento decisivo, um argumento que se imponha aos auditores mais recalcitrantes. Chama-se "ilocução" à etapa linguística. Depois de pensarmos numa argumentação, colocamo-la em palavras e em frases. A linguística materializa a argumentação. Um discurso argumentado compreende mais duas etapas: a "memorização" do discurso e a "acção" discursiva. Com efeito, um discurso destina-se sempre a um público e estas duas etapas , a da memorização e a da acção, aproximam o trabalho de um orador do de um actor.

Coloquemos agora a questão que nos interessa aqui. Em que é que consiste a análise retórica do discurso? A análise interessa-se pela estrutura do discurso que é proferido em público. Tomando como exemplo o discurso num tribunal (o género "judiciário"), podemos dizer que ele consta de uma introdução (o "exórdio"), continua com a narração dos factos, que é naturalmente a expressão do ponto de vista de uma das partes, desenvolve-se com a argumentação, que inside sobre os factos construídos pela narração e é completada pela refutação das posições adversas. O discurso acaba com a conclusão (a "peroração"), que consiste na recapitulação dos seus pontos essenciais. Acentuemos um aspecto: a narração e a argumentação são co-orientadas no sentido de uma única conclusão, que é a expressão da posição do narrador-argumentador.

A par do ponto de vista retórico da argumentação há também um ponto de vista lógico, que poderemos chamar "científico". Na perspectiva lógica, a argumentação é um tipo de raciocínio, o qual, fundado na prova e na demonstração, procura estabelecer o verdadeiro. Nos Tópicos e nos Analíticos, Aristóteles desenvolveu este ponto de vista ao expor a teoria do silogismo lógico. Não é, no entanto, a argumentação lógica que aqui nos ocupa.

Vinte e cinco séculos passados sobre as suas origens, a retórica e a argumentação voltam a estar na ordem do dia. A erosão contemporânea da fundação de normas universais e a tentativa de conciliar o universal e contextual, através do princípio argumentativo, tornaram possível hoje a reabilitação da retórica. Associada à(s) crise(s) contemporânea da razão, nomeadamente à crise da razão histórica, e juntamente com ela, à crise dos valores e do sujeito, a reabilitação da retórica não é, com efeito, dissociável da dúvida que marca hoje as iniciativas fundacionais, mesmo quando o fundamento é o transcendental secularizado da "objectividade" científica. Além de que uma legião de tiranias ameaça desfazer os limites da nossa cultura. A tirania da razão liberal, assente no mercado e na competitividade. A tirania tecno-instrumental, que traz no bojo a hecatombe ecológica. As tiranias da exclusão social, da criminalidade e da insegurança urbanas, da discriminação racial, da intolerância. A colonização do espírito pela tirania da informação-espectáculo.

É este o contexto em que irrompe a argumentação. À semelhança do que aconteceu outrora na Sicília com Córax e Tísias, a argumentação é brandida hoje como a resposta que é possível dar às catástrofes culturais: aquilo que é feito pelas palavras, só por elas pode ser desfeito (Plantin, 1996: 4-5).

Não podemos, no entanto, esquecer o ensinamento das origens: "começámos no ocidente a reflectir sobre a linguagem para defender o nosso quinhão" (Barthes, 1970: 176). A retórica apareceu associada a "um processo de propriedade" (Ibid.: 173), o que diz bem a natureza da linguagem: as representações sociais são factos sociais, e mesmo factores de guerra (polemos), na luta pela definição legítima do mundo social (Rabinow, 1985). Ao definirmos a realidade social, estamos não só a dar conta das divisões da realidade, como estamos também a contribuir para a realidade das divisões. 1

Neste processo de reabilitação académica da retórica, foram fundamentais o Traité de l'argumentation. La nouvelle rhétorique de Chaim Perelman e Olbrechts-Tyteca e The uses of argument de Stephen Toulmin, as duas obras de 1958. Embora vindas de horizontes teóricos diferentes e escritas em estilos diversos, aproxima-as uma comum referência à prática jurídica. Ambas procuram no pensamento argumentativo um meio de fundar uma racionalidade específica, que se exerce nas práticas humanas. A retórica "problematológica" de Michel Meyer (1982, 1991) insere-se nesta tradição, embora consista numa significativa revisão da "nova retórica " de Perelman.

Hoje em dia, no entanto, os estudos da argumentação exploram principalmente a teoria dos "actos de fala" de J. L. Austin (1962, How to do things with words), principalmente na versão de J. R. Searle (1969, Speech acts). Quer isto dizer que a pesquisa sobre a argumentação anda agora associada à pragmática, uma disciplina que analisa o uso dos enunciados, tendo em conta o contexto. Estas abordagens tornaram possível o estudo das argumentações da vida "quotidiana" ou "comum".

Das várias direcções ligadas à pragmática, salientamos a pragmática linguística "integrada" na língua de J.-C. Anscombre e Oswald Ducrot, e a pragmática filosófica do "agir comunicacional" de Jurgen Habermas (que alguns insistem em considerar sociológica 2), da semiótica transcendental de Karl-Otto Apel e do primado transcendental da relação interlocutiva de Francis Jacques. Por razões de economia de tempo, será questão neste estudo a "argumentação na língua", desenvolvida desde os anos 70 por Anscombre e Ducrot, e algumas objecções que lhe coloca a hermenêutica sociológica.
 
 

2. A argumentação na língua

A concepção clássica via na argumentação uma técnica consciente de programação dos actos discursivos. Não é assim para estes linguistas, cuja teoria se desenvolve no quadro da linguística da frase, quer pelos métodos que utiliza, quer pelos problemas e finalidades que persegue. Para Anscombre e Ducrot, argumentar é basicamente dar razões em favor de uma conclusão. Um locutor argumenta, dizem, "quando apresenta um enunciado (ou uma série de enunciados) E1 [argumentos], no sentido de fazer admitir outro enunciado (ou série de enunciados) E2 [conclusão]" (Anscombre e Ducrot, 1983: 8). Por outras palavras, a argumentação é um tipo de relação discursiva que liga um ou vários argumentos a uma conclusão. Não se trata, de modo nenhum, de demonstrar formalmente a validade de uma conclusão, nem a veracidade de uma asserção. Fazer admitir uma conclusão através de um ou mais argumentos, apresentar um argumento como uma boa razão para chegar a uma conclusão determinada, não são processos para dizer as coisas em verdade ou falsidade, nem se sujeitam às leis que regulam as relações lógicas.

A teoria da argumentação na língua desenvolveu-se a partir da análise das "palavras vazias" (mas, em razão de, porque, uma vez que, enfim, decididamente, precisamente, sempre, etc.), chamadas conectores (e que nós não desenvolveremos aqui), e aplica-se hoje às "palavras cheias", que são analisadas na base da orientação que conferem ao discurso (da conclusão que se quer fazer admitir).
 
 

2. 1. Os topoi

Consideremos a palavra porcaria. Nos termos de um entendimento representacionista da linguagem, um objecto é porcaria se possui características que o opõema objectos que são atractivos (limpos, com préstimo, bem feitos, etc.). Um entendimento representacionista da linguagem permite fazer estes juizos de realidade, em termos de verdade e falsidade, através da estrutura proposicional da frase.

Consideremos agora o enunciado "As telenovelas são uma porcaria" como um argumento que visa uma conclusão entre muitas: "muda de canal"; "apaga a televisão"; "vamos mas é ver o Benfica-Porto"; "não vejas telenovelas"; "anda daí beber um copo"; "vem dar um passeio"; "vamos mas é dormir". Do ponto de vista da teoria da argumentação "na língua", o predicado "são uma porcaria" não reenvia, de modo nenhum, a uma propriedade das telenovelas em geral, nem tão-pouco a uma propriedade de uma dada telenovela. Alude simplesmente a um "lugar comum" (topos: "a porcaria é uma coisa má", "a porcaria há que evitá-la"), que autoriza determinadas conclusões numa comunidade de discurso. Um topos é assim definido como um instrumento linguístico, que conecta umas tantas palavras, organiza os discursos possíveis e define numa comunidade os discursos "aceitáveis", ou por outra, coerentes. Com as palavras de Ducrot (1990: 164), podemos dizer que uma palavra, antes de remeter para um conceito, remete para um topos, ou para um conjunto de topoi, sendo a enumeração desses topoi, numa época determinada de uma sociedade, a única descrição exacta daquilo que essa palavra significa, nessa sociedade e nessa época.

A concepção argumentativa da linguagem opõe-se, assim, à sua concepção descritiva ou representacionista. Em termos argumentativos, a linguagem não é objectiva, não espelha o mundo, não aponta para um referente (sujeito ou objecto). A linguagem é intencional e é interpretativa, mas o seu sentido argumentativo não é psicológico. Consiste apenas em indicar um sentido, em colocar as coisas em certa perspectiva, em as orientar e em orientar a relação de um locutor com o destinatário.

Todo o enunciado contém, de facto, uma conclusão, fundada na invocação de um topos. E os topoi, sabemo-lo desde Aristóteles, são pontos de vista, lugares comuns, princípios argumentativos, pressupostos, fundamentos, que consistem já numa interpretação do mundo e têm uma força persuasiva. É ideia de Ducrot que a força "argumentativa" (persuasiva) de um topos é "interna à própria palavra" (Ducrot, 1990: 159). O meu entendimento é outro: a força persuasiva de um topos reside no facto de constituir uma sabedoria comum, admitida e aceite; e é pelo facto de circular, de ter a aceitação de muita gente, que retira uma presunção em seu favor e tem autoridade.

Retomemos o enunciado "As telenovelas são uma porcaria". Marido e mulher vêem na SIC um episódio de "O Rei do Gado", enquanto no Canal 1 começou a ser transmitido o Benfica-Porto, jogo das meias finais da Taça de Portugal. Aborrecido e impaciente, porque o jogo já começou, o marido desabafa: "As telenovelas são uma porcaria". No quadro de uma teoria argumentativa da linguagem, o predicado "são uma porcaria" não descreve as telenovelas, algumas das quais até podem ser realizações televisivas bem conseguidas, com muitos motivos de interesse.

Neste entendimento, não faz sentido dizer que é falsa ou que é verdadeira a frase "As telenovelas são uma porcaria". A teoria argumentativa não exige de uma frase a especificação das suas condições de verdade (Se existem mesmo telenovelas, um marido e uma mulher, se as telenovelas têm ou não préstimo, se o marido tem competência para formular o pedido ou a ordem, se a mulher está em condições de a poder receber, etc.), uma vez que não é possível dissociar o sentido da frase do seu valor enunciativo (isto é, da conclusão "Muda de canal", ou então, "Deixa-me ver futebol"). O sentido de "As telenovelas são uma porcaria" está todo contido na intenção que o marido tem de dar uma ordem à mulher (eventualmente, também, de fazer um pedido), o que quer dizer, na conclusão: "Muda de canal"; ou então, "Deixa-me ver futebol". 3

Ducrot é claro na defesa deste ponto de vista: "A nossa tese é que uma orientação argumentativa é inerente à maior parte (se não à totalidade) das frases: a sua significação contém uma instrução do tipo: 'ao enunciar esta frase apresentamo-nos a argumentar em favor de tal tipo de conclusão" (Ducrot, 1979: 27).

Uma primeira pequena consideração, a propósito.

Neste entendimento dos actos de linguagem (no exemplo dado, uma ordem ou um pedido, embora possamos dizer o mesmo de uma promessa, de uma bênção, de um conselho, etc.), é reconhecível a proposta griciana da ordem das intenções, para que remete a noção de "implicitação conversacional": a intenção do locutor deve incluir uma intenção de sentido de grau superior, na medida em que a sua intenção de significar deve encontrar no auditor a intenção de reconhecer que o locutor tem de facto a intenção que diz possuir. 4

Francis Jacques não se cansa de combater a proposta de Grice, que, retomada por Strawson, foi depois ajustada por Searle e desenvolvida por Ducrot. À ordem intencional contrapõe Jacques (1987: 196) o "primum relationis". E porque a noção de relação é em Jacques um transcendental, contrapomos nós, no seguimento de Bourdieu e de Giddens, as noções de relação de força simbólica e de contextualidade própria da acção social, que referem os constrangimentos concretos da acção histórica. 5

É destes constrngimentos específicos que passamos a falar, tendo sempre em ponto de mira a teoria argumentativa.
 
 

2. 2. Da noção de topos às obrigações decorrentes do facto de se "seguir uma regra". O primum relationis.

Falar é argumentar, e argumentar é obedecer a regras, seguir regras. Por exemplo, se no meu dia-a-dia discuto com um amigo a escolha de um restaurante onde ir almoçar, e me é dito "O restaurante é bom", sei que ele me está a aconselhar um certo restaurante. A frase "O restaurante é bom" é um argumento em favor da possível conclusão: "Vai aí". Um discurso coerente, bem formado, "aceitável", um discurso que obedece às regras linguísticas e pragmáticas da comunidade a que pertenço, pode formular-se deste maneira: "O restaurante é bom, vai aí". Se, pelo contrário, me é dito "O restaurante é caro", sei que o meu amigo me está a desaconselhar um determinado restaurante. A frase "O restaurante é caro" é um argumento para a possível conclusão: "Não vás aí". Um discurso coerente, que obedece às regras linguísticas e pragmáticas da comunidade a que pertenço, pode formular-se assim: "O restaurante é caro, não vás aí".

Outro exemplo. A frase "O Mário é deveras inteligente: fala inglês, chinês e mesmo francês" é um argumento que pode servir para muitas conclusões: "Contrata-o"; "Atribui-lhe o prémio"; "Dá-lhe a ele a bolsa de estudos"; "Esse é que era bom para meu namorado"; "Não o podes despedir"; "Podes ter orgulho nele"; "Deves permitir-lhe que siga os estudos até se formar"; etc. Tratando-se, no entanto, de uma frase coerente do ponto de vista linguístico, não o é necessariamente do ponto de vista pragmático. Pode dizer-se que o argumento em causa tem provavelmente força argumentativa em Hong-Kong, mas que a não tem em Portugal. É sem dúvida comum a ideia de que saber línguas é prova de inteligência (princípio "tópico"), mas o encadeamento enunciativo que dá à língua francesa um maior grau de dificuldade que à língua chinesa é incompreensível em contexto europeu (não é um enunciado tópico: geral, admitido e aceite).

Este exemplo é proposto por M. Victória Vidal (1993: 111-112). Invoco-o para contestar a análise que dele em parte é feita. Penso que o carácter argumentativo de um enunciado não está na forma linguística (no facto de encadear enunciados com coerência). A competência linguística não entra na estruturação da significação em situação de privilégio relativamente à "consciência pragmática" (expressão de Joly, equivalente das expressões de "consciência prática" em Giddens e de "sentido prático" em Bourdieu).

As noções de "consciência pragmática", "consciência prática" e "sentido prático" remetem todas para as Investigações filosóficas de Wittgenstein (1995). O ponto de vista aí sustentado é o de que a compreensão se faz sempre a partir de um conhecimento não explícito (e muitas vezes não explicitável), um conhecimento prático, que resulta da experiência e que reúne aquilo que damos por adquirido. O sujeito é aí encarado não tanto como o lugar das represenações do mundo, mas sobretudo como um agente empenhado em práticas, alguém que age no mundo e sobre o mundo. Ora, colocar na praxis o lugar primeiro da inteligência do sujeito, ou seja, situar na prática a nossa compreensão, é fazer da compreensão um conhecimento implícito, dado a todo o momento pela prática que é a sua origem. Em consequência, a compreensão ultrapassa de longe aquilo que somos capazes de representar. Isso mesmo nos é sugerido pela seguinte fórmula de Wittgenstein (1995: I 202): "'seguir uma regra' é uma praxis". 6

Argumentar é então obedecer a regras. Mas as regras da prática (presentes na "consciência prática" 7 ) não remetem para o código de uma conduta, mas para a contextualidade própria da prática social, isto é, para o tempo e o espaço específicos da sua realização. As regras da prática não remetem para um tempo reversível (sincrónico), como se as práticas fossem ditadas na certeza. As regras da prática projectam um futuro com algum grau de incerteza, uma vez que se cumprem em relações vividas na incerteza e na angústia. 8

Em nosso entender, um princípio tópico é, pois, uma regra de acção, e não um instrumento linguístico que conecta umas tantas palavras, organiza os discursos possíveis e define numa comunidade os discursos "aceitáveis", ou por outra, coerentes. O "princípio tópico" é assim concordante com a caracterização que Peirce (1993: 398) faz da "crença", também ela uma regra de acção, criadora de hábitos, de maneira que diferentes crenças se distinguem pelos diferentes modos de acção a que dão origem.

Aquilo que chamamos aqui de topoi (Ducrot) e de "regras de acção" (Peirce) aparece em Bragança de Miranda (1994: 287) sob o registo das axiomáticas, definidas como "eixos estruturantes e repetitivos de todos os discursos de uma mesma família", ou por outras palavras, como eixos que "regem a totalidade do discurso, e diferidamente cada discurso particular". Numa erudita glosa a Derrida, Bragança de Miranda caracteriza rigidamente as axiomáticas, através dos seguintes traços: 1) uma axiomática afecta as regras organizadoras a nível subjecente de um dado texto (ou "discurso"); 2) estas regras são decifráveis nos seus efeitos, sendo passíveis de uma leitura rigorosa; manifestam-se de modo diferido (retoricamente) em algumas figuras-chave do discurso; 4) a axiomática é uma palavra de ordem ("un commandement"); 5) finalmente, a axiomática impõe uma interpretação dos possíveis, rigidamente determinados pelas suas regras (Miranda, 1994: 287). Sem a maleabilidade dos topoi e das "regras de acção", as axiomáticas esgotam-se, deste modo, no código de uma conduta.

A teoria da argumentação "na língua" projecta, no entanto, um novo tipo de semântica. Trata-se de uma semântica fundamentalmente intencional, embora o conceito de intenção seja em Ducrot e Anscombre linguístico, e não psicológico. É possível dizer a alguém "Convido-te a vir a minha casa" com a intenção psicológica de lhe armar uma cilada. Em termos linguísticos, no entanto, o enunciado manifesta intenções amigáveis. O sentido do enunciado consiste numa descrição da enunciação, o que quer dizer que descreve o "locutor como tal", e não o "locutor como ser do mundo", comenta a enunciação mesma do enunciado, e não o objecto exterior a que esta enunciação pretenderia conformar-se (Ducrot, 1990: 157).

Entende Ducrot (1990: 163) que o seu conceito de polifonia lhe permite descrever em termos puramente argumentativos os conteúdos semânticos de um discurso. E por polifonia entende uma espécie de diálogo cristalizado, que descreveria o sentido do enunciado (Ibid.: 160). O sentido do enunciado consiste assim numa descrição da enunciação, o que quer dizer, numa confrontação de várias vozes que se sobrepõem ou se respondem umas às outras. É verdade que o responsável pelo enunciado (o locutor) é único, e que olhadas as coisas apenas a este nível, o enunciado é um monólogo. No entanto, a um nível mais profundo, o locutor do enunciado põe em cena, no seu monólogo, um diálogo entre vozes mais elementares, a que chama "enunciadores". Cada enunciador idenfifica-se com um ponto de vista. Por sua vez, o ponto de vista de um enunciador é a evocação, a convocação, a propósito de um estado de coisas, de um princípio argumentativo (um topos). O topos, que como já vimos é um princípio comum, partilhado pelo conjunto dos membros de uma dada comunidade, permite que o locutor o utilize como um argumento que justifique uma conclusão.

Não estando, pois, a teoria da argumentação "na língua" orientada para o pensamento, nem para a realidade, pode dizer-se que a sua orientação é para a continuação do discurso. E é essa a razão, aliás, pela qual não podemos fazer a análise semântica de um enunciado isolado.

Esta teoria partilha assim com o estruturalismo o mesmo pressuposto teórico de um sentido imanente. Uma vez desterritorializada, a linguagem só pode remeter para a linguagem. Deleuze e Guattari (1980: 97), que adoptam este ponto de vista, sintetizam-no bem, ao insistirem que não é possível fixar um ponto de partida não linguístico. A linguagem, dizem, "não se estabelece entre alguma coisa vista (ou sentida) e alguma coisa dita". Pelo contrário, a linguagem "anda sempre de dizer em dizer". Não se contentando em ir de um primeiro a um segundo, de alguém que viu a alguém que não viu, a linguagem "vai necessariamente de um segundo a um terceiro, nem um nem outro tendo visto".

E é então por isso que no quadro da teoria da argumentação "na língua" falamos de uma "semântica do discurso ideal". Um enunciado orienta o interlocutor numa certa direcção discursiva, tendo em vista um certo alvo. Compreender um locutor é ver o que ele quer dizer, aperceber-se das suas intenções, prever como é que ele vai continuar o discurso, antecipar as suas conclusões. Numa palavra, é dar-se conta do alvo que ele visa e que é a razão pela qual foi proferido.

Sintetizando, o sentido de um enunciado (de um argumento) é dado pelo enunciado que o segue, ou seja, é dado pela sua conclusão. Por sua vez, uma conclusão reenvia às intenções (linguísticas) do enunciador. Nesta teoria, a força do constrangimento argumentativo é por inteiro uma questão de linguagem. Assim, é argumentativo um discurso coerente, o que quer dizer que a actividade argumentativa (a força da linguagem) é coextensiva à actividade da fala e que falar é argumentar 9. O que nos coloca algumas dificuldades. Por exemplo, a da impossibilidade de nesta perspectiva dar sentido à ideia de avaliação dos argumentos. Lógica dos encadeamentos dos enunciados, a argumentação não se sujeita à lógica das condições ideais de comunicação (como seria o caso em Apel e em Habermas), nem à lógica referencial dos objectos, nem à lógica intencional do pensamento de um sujeito. É este entendimento da linguagem que, de algum modo, justifica a ideia de ela ser "palavra-de-ordem" (Deleuze e Guattari, 1980: 95).

É nossa ideia, no entanto, que o constrangimento argumentativo não entra na estruturação do sentido através da coerência de "um discurso ideal", expressa na coerência de uma sequência concreta de enunciados. Pelo contrário, o constrangimento argumentativo entra na estruturação do sentido através da contextualidade própria da acção social. São, com efeito, umas tantas propriedades sociais (locutores e receptores legítimos, língua e contexto legítimos) que fazem passar a linguagem. Eu falo para me distinguir, me fazer respeitar e ser obedecido (Bourdieu, 1980: 124), embora isso aconteça no interior de um campo de relações de força, relativo a posições assimétricas, que autoriza e censura o meu discurso.

Contra a racionalidade argumentativa, insistimos numa racionalidade sociológica. Contrapomos, assim, à prática intelectualista da argumentação "na língua" uma prática social (os fenómenos discursivos são factos sociais) 10.

É a desterritorialização da linguagem projectada por Saussure, presente em Austin e retomada por Ducrot, que permite a Deleuze e Guattari falar de "actos específicos imanentes, necessariamente implícitos". E é pela mesma razão que os autores de Mille Plateaux falam dos "agenciamentos de enunciação", como de uma "relação instantânea dos enunciados com as transformações incorporais ou atributos não corporais que eles exprimem" (Deleuze e Guattari, 1980: 103). Simpesmente, é uma ilusão transcendentalista fundar o sentido nas estruturas trans-históricas da linguagem. Quando se atribui ao acto de fala a virtude de uma transformação que "é um puro acto instantâneo ou um atributo incorporal" (Ibid.: 102) está-se a naturalizar o social, está-se a aceitar a separação radical entre a ciência da língua e a ciência dos usos sociais da língua, o que quer dizer, a omitir a referência às condições sociais específicas de possibilidade da língua (Bourdieu, 1982 b: 8-9).

Não é com efeito suficiente reconhecer na linguagem uma função palavra-de-ordem, uma função institucional. A linguagem não tem uma força intrínseca. A palavra-de-ordem não é "uma função coextensiva à linguagem". São apenas umas tantas propriedades sociais, no interior de um dado campo social, que determinam a legitimidade e a aceitabilidade de um discurso. Aliás, repisando uma ideia que podia também ser tomada de Ducrot, é isso o que os próprios Deleuze e Guattari (Ibid.: 106) chegam a sugerir, quando referem que "a política trabalha a língua por dentro, fazendo variar o léxico, a estrutura e todos os elementos de frases, ao mesmo tempo que as palavras-de-ordem mudam". A única reserva que gostaríamos de opor-lhes é que "a política" talvez constitua ainda um último reduto transcendental, uma vez que há a acentuar a contextualidade própria da acção social, ou seja, a especificação desta no espaço e no tempo. Só organizado e autorizado socialmente, de acordo com as linhas de força de um campo de posições sociais assimétricas, é que um discurso tem mais ou menos força, mais ou menos poder.

As questões da nova racionalidade (comunicativa ou argumentativa) com que hoje somos confrontados, não podem, com efeito, ser dissociadas de uma interrogação sobre o que funda a legitimidade ou a validade das acções comunicativas e intercompreensivas, o que quer dizer uma interrogação que remeta para uma teoria da significação. Mas a argumentação "na língua" é idealista, por não ter em conta as condições concretas, históricas, de existência dos homens e dos grupos humanos. Daí que invoquemos as condições sociais de possibilidade de um discurso e falemos, no seguimento de Bourdieu, das suas condições de legitimidade, entendida esta como um uso dominante que é denegado por quem exerce a dominação e não reconhecido como tal por quem lhe sofre os efeitos.

Contra a pragmática argumentativa de Ducrot, insistimos assim na pragmática sociológica e contrapomos que a magia (a força) da palavra é social. A autoridade vem de fora à linguagem (Bourdieu, 1992: 123). A linguagem tem a eficácia do porta-voz, um poder delegado pela instituição (Ibid.: 54). E é o conjunto das propriedades sociais referidas (propriedades legítimas) que, fazendo sistema, produzem a aceitabilidade social da linguagem, isto é, o estado que a faz passar e a torna escutada, acreditada, obedecida, compreendida. 11

Com efeito, a interrogação sobre a significação obriga a considerar a linguagem na sua dupla articulação complementar, proposicional e performativa, ou seja, lógico-semântica e pragmática. Mas não é tudo. O primado da relação na produção do sentido, vincado pelos conceitos de "interlocução" e de "comunicabilidade", não se esgota no interior do a priori transcendental, para onde o remete Jacques, e também Habermas, e ainda Apel. Comprende-se sim na base das interacções concretas dos sujeitos sociais. A performatividade e a pragmática acentuam uma teoria da significação onde o "dialogismo" e a argumentação são conceitos fundamentais. Acontece, porém, que a linguagem é também "palavra de ordem"; signo de autoridade, ela cumpre uma função institucional. Quer isto dizer que os agentes que interagem não o fazem à vontade; fazem-no como podem, no interior de um campo de posições sociais assimétricas.

Apenas mais umas pequenas notas a este propósito. A racionalidade sociológica, nos termos em que a entendemos, insiste em considerar os "factos condicionantes de língua" nos fenómenos comunicativos (André Joly, 1982: 110), a que a maior parte das análises discursivas (pragmáticas e argumentativas) são indiferentes, embora não seja esse o caso da teoria da argumentação na língua. E insiste também em considerar o "primado da relação" como dimensão identificadora das trocas comunicativas (F. Jacques, 1987: 196), relação essa que é inapropriável e irredutível à experiência pessoal e ao ponto de vista do eu (como querem fazer crer as análises fenomenológicas e as análises interaccionistas). Além disso, a racionalidade sociológica contraria a ideia de que o discurso possa e faça alguma coisa por virtude intrínseca; a magia do discurso, a sua força, é social; a autoridade vem de fora à linguagem; o discurso apenas a representa e a simboliza (Bourdieu, 1982 b: 8-9). E quanto àquilo que nós fazemos com o discurso, uma chamada de atenção: "Não é o ego nem a díade formada por mim e por ti que significam; um e outro são engendrados pela relação" (Jacques, 1985: 505).

Acrescentemos neste ponto, no entanto, que a relação não se confina à intersubjectividade. Além de interlocutiva, a relação é social. 12 Bourdieu (1982 a: 37-38) dirá até que há dois modos de existência do social em nós: o social feito coisa (feito relação institucional), e o social feito corpo (feito habitus, feito sistema de disposições duráveis).

Esta última chamada de atenção parece-nos importante, pois de contrário podemos ser levados a pensar que há uma verdade (relação intersubjectiva) sem o poder (relação institucional) 13.

Mau grado esta insistência no carácter institucional da relação social, a pedra angular da racionalidade sociológica são as práticas sociais. São as práticas sociais que permitem centrar a atenção nos utilizadores da linguagem no interior de um dado campo social. Apesar de a estrutura de um dado campo social impor relações assimétricas aos utilizadores da linguagem, é só através destes, entre estes e para estes que os signos significam alguma coisa.
 

Notas:

1 - Com efeito, a retórica satisfaz-se com a persuasão, apenas e na medida em que é discurso autorizado, legítimo, e que portanto faz autoridade. De modo nenhum a retórica é um discurso que dispense o conhecimento da realidade (social) das coisas. É falacioso o poder de dispor das palavras sem as coisas. Só a palavra autorizada é performativa. E então sim, palavra legítima, o discurso tem o poder, dispondo das palavras, de dispor dos homens.

2 -  Louis Quéré (1996: 106) diz a este respeito o seguinte: Habermas aparece "como o mais filosófico dos sociólogos contemporâneos, e também como o mais sociológico dos filósofos".

  3 - Refira-se que "marido" e "mulher" não têm o sentido de "seres no mundo". A enunciação não se conforma a uma exterioridade discursiva. Temos aqui apenas a descrição da enunciação, com um "locutor enquanto tal" e um "destinatário enquanto tal".

4 - Veja-se, a este propósito, a caracterização que Grice (1979: 64-65) faz da noção de "implicitação conversacional".

5 -  Sem dúvida que nos colocamos aqui, ao invocar Bourdieu nos termos em que o fazemos, no quadro de uma "racionalidade forte" (no sentido em que a entendem Popper e Chomsky, a saber, uma racionalidade dotada de hipóteses empiricamente corroboráveis sobre os universais). Não subscrevemos, é verdade, o sentimento de depreciação total (bem contemporâneo) que atinge a linguagem científica e a sua significação prática, em benefício das convenções do uso. Os pressupostos normativos da ciência não podem confinar-se ao seu papel e ao seu estatuto no contexto de uma "forma de vida" (Wittgenstein). Se porventura quisermos invocar estes pressupostos ("recursos") como pressupostos metodologicamente inultrapassáveis, só podemos concluir - com Gethmann e Hegselmann - que para um aristocrata as normas de uma moral aristocrática têm uma fundação última. (Confira-se, a propósito, K.-O. Apel, 1990: 41).

6 - Esta remissão para as Investigações filosóficas de Wittgenstein não indica a página; indica sim a parte da obra e o número do parágrafo.
Este entendimento da compreensão, feita conhecimento implícito nas nossas actividades práticas e conhecimento incorporado ("história feita corpo"), é aprofundado por Pierre Bourdieu (1972), Charles Taylor (1995) e Jacques Bouveresse (1995), entre outros.

7 -  A "consciência prática" é em Giddens (1990: 278 e 279) um conhecimento que se conserva e se evoca de forma tácita: dá conta das convenções relativas ao que 'ocorre' nos contextos quotidianos da acção social. A "consciência prática" dá conta de uma razão comunicativa, onde são pedra angular a "interpretação do agente" e a "agência", o que de modo nenhum significa uma razão centrada no sujeito e na subjectividade (Ibid.: 278). A "consciência prática" não se confunde, de facto, com a "consciência discursiva", que é uma evocação auto-reflexiva das experiências e dos acontecimentos passados, uma memória que se exprime de forma verbal (Cohen, 1990: 384). A "consciência prática" é uma capacidade prática que apenas existe no seu exercício, o que quer dizer em condições contextuais específicas, ou por outra, em condições de espaço e de tempo específicos.

8 - Merecem reflexão as considerações feitas, a este propósito, por Bragança de Miranda (1997: 133): "Entre a abertura do agir (na sua máxima indeterminação) e o fechamento das práticas (na sua determinação total) desdobra-se uma série de possibilidades de acção, sempre relativas e parciais, que têm o seu fundamento na necessidade de estabilizar a experiência moderna, enquanto resposta imperativa, e nunca realizada, à situação de crise geral que a caracteriza". Veja-se, no mesmo sentido, Miranda (1994, 304, n. 33). Uma reserva, no entanto: as regras da prática não a fecham. Pelo contrário, deflectem-na, de acordo com a sua contextualidade própria.

  9 - Este entendimento aproxima-se um tanto da pragmática transcendental da linguagem, proposta por Francis Jacques, por Karl-Otto Apel e por Jurgen Habermas. Há, em todos eles, uma determinação de sentido por força da linguagem. Simplesmente, em Ducrot, fala-se de enunciados concretos, cuja coerência os faz aceitáveis; em Jacques, Apel e Habermas há actos de comunicação implícita (sendo a comunicação um transcendental) que determinam o sentido.

10 - Veja-se, no mesmo sentido, P. Rabinow (1985) .

11 - Talvez haja neste ponto da discussão que atenuar, se não contrariar, o optimismo de Bourdieu relativamente aos poderes da instituição, com o cepticismo drástico de Roland Barthes. A instituição não dá forma à história; deforma-a, pois converte uma intenção histórica em natureza, transforma a contingência em eternidade. Cf. Barthes (1984: 198 e 209).
Em todo o caso, com ou sem visão optimista, pode dizer-se que "todos os discursos são actuantes". Dos mais etéreos e eufemizados, aos mais voltados para o passado, como a história, ou para o futuro, como as utopias, "todos são formas de inflectir o existente" (Miranda, 1994, 291-292).

12 - Esta observação só é tautológica, já o disse, se levarmos às últimas consequências a crítica da teoria subjectivista e mentalista da significação. Só é tautológica se considerarmos, como aliás o faz Wittgenstein, que a linguagem é constitutivamente pública. Falar é seguir regras; e seguir uma regra só é possível como actividade publicamente controlada; só é possível no exercício da comunicação.

  13 - Não é, com efeito, procedimento isolado a pragmática descurar a ordem do discurso e a ordem social, pretendendo uma verdade sem o poder. Richard Rorty, por exemplo, comete, em nosso entender, este deslize na obra Science et solidarité (1990). O sub-título, La verité sans le pouvoir , sugere que há uma relação intersubjectiva (a verdade) sem a relação institucional (o poder).
 

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