ÉTICA E DISCURSO JORNALÍSTICO

 

Francisca Ester de Sá Marques[1]

 

 

1-                         APRESENTAÇÃO:

 

A profusão de notícias jornalísticas divulgadas em ritmo cada vez mais acelerado nos últimos anos envolvendo, por um lado, denúncias de injustiças; corrupções; crimes e desvios sociais e, por outro, referências a erros; excessos; violações dos direitos humanos fundamentais; desrespeito ao bom nome e à privacidade dos cidadãos tem colocado a mídia, e mais precisamente o discurso jornalístico, no centro das discussões sobre os limites entre a liberdade de expressão e a liberdade de informação.

No primeiro caso, o jornalismo parte do princípio de que «todo cidadão tem direito à liberdade de opinião e expressão; um direito que inclui a liberdade de sem interferências, ter opiniões e de procurar receber informações e idéias por quaisquer meios, independentemente de fronteiras», (SANTOS apud KARAM,1993:4). O jornalismo reivindica para si o papel de instituição moral, responsável pela transparência não só dos preceitos éticos admitidos pelos cidadãos, mas pela legitimação dos valores culturalmente estabelecidos como bons ou maus na prática social.

No segundo caso, apela para a prática jornalística com critérios como concorrência mercadológica; aceleração do processo de produção e consumo da notícia; circulação da informação em escala planetária para justificar a divulgação de acontecimentos, cujos fatos não encontram o consenso imediato da opinião pública, mas, que aparecem como legítimos aos interesses jornalísticos. Mesmo nesses momentos, busca os preceitos morais ou deontológicos para justificar o discurso transgressor, reclamando para si o papel de ajuizador do comportamento social.

Essa natureza plural e multifacetada do discurso jornalístico em relação ao seu papel ético reflete um cinismo aparente que sombreia a natureza volúvel e movediça da sua própria auto-referencialidade, que promove as mediações internas e externas necessárias tanto com os demais campos de produção de conhecimento - de onde se alimenta de acontecimentos e referências culturais - quanto com os outros agentes sociais - de onde sofre mediações que modificam diariamente a sua natureza especular e ambígua.

Ora, a auto-referencialidade do discurso jornalístico tem a ver diretamente com a linguagem[2] e sua natureza tensional por representar a matriz de todas as crises de sentido, mas também todos os procedimentos de estabilidade. Uma tensão que se manifesta pelo fato da linguagem «fazer oscilar toda a experiência, multiplicando as identidades, criando fantasmas, reinstaurando a aura…» (MIRANDA, 1992,134). A linguagem é deste ponto de vista variante, arbitrária e volátil, apenas parcialmente objetiva, dado que só consegue apreender parte da totalidade que referencia a realidade.

Assim, é em função da adequação da linguagem a um contexto social determinado que este artigo pretende fazer uma análise das relações existentes entre a  Ética e o Discurso Jornalístico. Uma análise que parte do pressuposto de que a natureza ontológica da linguagem é incompleta e de que a sua sobrevivência depende da constituição do discurso no espaço social e da sua possibilidade de compreensão.

A idéia é trabalhar com a hipótese de que a grande maioria dos atuais conflitos midiáticos, atribuídos à esfera ética, não tem necessariamente a ver com uma reflexão sobre o mundo moral dos sujeitos; com os atos conscientes e voluntários de indivíduos para afetar outros indivíduos, grupos ou a sociedade, mas com as impossibilidades de objetivação do discurso no cotidiano, com a improbabilidade[3] da comunicação perfeitamente realizada, enquanto esfera da experiência humana.

Esta hipótese presume que o discurso midiático e, mais precisamente, o discurso jornalístico quando textualiza a realidade, parte do princípio genérico[4] de que o acontecimento ao ser transformado em notícia é pautado pela verdade, pelo compromisso social, pela exatidão e pela relevância pública, portanto, pela boa intenção de informar com isenção e de garantir a liberdade de opinião. Um processo resultante de sua racionalidade lógica e especular, ancorada em fragmentos de fala, que se adequa àquilo a que genericamente se refere, fundamentado pelas dimensões discursiva e pragmática, entre a ação que expressa e o efeito que produz.

Por outro lado, esse mesmo discurso constituído que é pelos textos dos outros discursos tornados públicos (por consenso ou por dissenso) e por seu próprio fazer específico, acaba produzindo efeitos éticos controversos como resultado da reelaboração dessacralizante desses textos que, dependendo dos quadros de significados apreendidos socialmente, são aceitos ou rejeitados pela opinião pública. É na reelaboração dessacralizante desses textos que o discurso jornalístico esbarra ora numa concepção liberal da ética quando diz que o cidadão tem direito à liberdade de expressão; ora numa concepção igualitária da ética quando tenta controlar os acontecimentos no espaço público à semelhança do Estado.

 

 

2 – ÉTICA E SOCIEDADE

 

Na sociedade contemporânea existem duas correntes teóricas predominantes que se confrontam continuamente no espaço público quando postulam questões em relação a ética. A primeira, a liberal, propõe a tese de que o público ou a sociedade tem ou deve ter autonomia suficiente para determinar suas próprias regras e normas, a partir de uma ordem natural, onde a liberdade individual aparece como o pressuposto fundamental, em detrimento do exercício coletivo. A segunda, a igualitária ou estatal, defende que o Estado, ao constatar a limitação da liberdade individual, e com base numa ordem gerada, fundamenta-se como o guardião das regras e normas sociais, portanto, responsável pela proteção da liberdade coletiva dos homens.

A liberal, leva em consideração a liberdade expressiva do cidadão no exercício da sua soberania democrática, baseada numa sociabilidade cujos processos de livre interlocução e de interação garantem o entendimento e a ação comum. Essa corrente busca meios para inventar e operacionalizar seu próprio quadro normativo, a partir da dimensão axiológica da experiência, na perspectiva de consumar sua autonomia em relação ao sistema de valores vigente. É o que Max Weber chama de pluralidade de valores e diversidade de regras, e o que Hegel e Gramsci denominam sociedade civil, a partir das quais as relações sociais são mediadas.

Segundo esta visão, centrada no objetivo da liberdade, a dignidade do homem consiste em ser ele o dirigente da sua própria existência social, decidir por si qual sistema de valores perpetuar como local ou universal. Nessa decisão, a sua autonomia  consiste em não se deixar levar por qualquer tipo de dominação, seja de ordem natural, seja de ordem social, seja de ordem política, cuja compreensão lhe escapa e que, por isso, não consegue controlar ou transformar. E mesmo os obstáculos internos são vistos como externos à compreensão que possui do mundo e das relações sociais, nunca das suas próprias limitações.

A estatal,  embora  compreenda  a liberdade expressiva do cidadão, procura regular, através da condução da liberdade coletiva, as relações sociais entre os grupos, e entre estes e os indivíduos, como a guardiã do sistema de valores e, consequentemente, da cultura. O Estado define-se como o gestor moral convencional das várias dimensões da experiência, sobretudo do entendimento e da interação humanas que ocorrem tanto no espaço público, quanto no espaço privado. Neste sentido, a fundamentação política dessa corrente é mais ideológica porque o Estado-nação representa a sociedade e, consequentemente o homem, e fala em seu nome diante dos outros atores sociais.

Essa tendência fundamenta-se na concepção de um modelo utilitarista, segundo o qual o bem comum é o fim último, teleológico, mesmo que esse bem comum não seja o que agrada a todos, mas o que agrada ao maior número de homens[5]; estando, deste modo, ao nível da plausibilidade e da pertinência. O bem comum está fundamentado no comportamento moral que cada um tem ou deve ter no espaço público e no espaço privado, consoante as regras e normas ditadas pelo Estado, cuja transgressão exige a punição, a exceção e o extermínio.

            Estas duas posições, resultantes da instauração do Estado-nação e do projeto liberal no século XVIII[6], estiveram presentes na sociedade desde então ora em confronto, ora em consenso, mas sempre sob tensão por causa do binômio verdade/liberdade, postos em causa desde o princípio em função de uma nova organização do poder político e social, e do assentamento de novos instrumentos para o seu controle. Dentre estes instrumentos, a imprensa e a liberdade de imprensa aparecem como os mais legítimos pela sua associação com o direito à liberdade de expressão, condição e garantia das outras liberdades. O que na opinião de Mirabeau «é a liberdade mais inviolável e a mais ilimitada» (Themudo,1996:4).

            É no espaço público, e consequentemente na imprensa, visto por Habermas (1984:213-273) como o lugar privilegiado de difusão da verdade que a tensão torna-se mais expressiva em função das dimensões individual e coletiva que a liberdade pressupõe. Isto porque o princípio da liberdade «está presente na vontade, no juízo e no ato de cada homem, mas também no dialogismo próprio da relação de um homem com outro homem e com todos os homens, no círculo da compreensão que dá à ética a forma de um projeto democrático(...)» (ESTEVES,1992:28).

Portanto, envolvida pela relação tensional das duas concepções, a imprensa atravessa os séculos mediando os conflitos entre a autonomia individual e a solidariedade coletiva, mas abandona sua posição polêmica e adota uma estrutura  auto-referencial com princípios exteriores às clássicas concepções de verdade/liberdade, pautada apenas por uma ética contextual. Um período em que as especificidades dos valores de verdade/liberdade delimitaram as diferenças entre uma ética da comunicação, mais voltada para a reflexão «de la finalidade de la conducta humana» (GUISAN,1986:19), baseada na interação e no diálogo compreensivo de sujeitos,  e uma ética da informação, fundamentada em uma moral legitimada por códigos deontológicos, princípios formais e normas de conduta.

Apesar dessa mudança de perspectiva, a imprensa não deixa de referenciar os confrontos dominantes das duas concepções, resultantes das tentativas de conjugar a solidariedade e a soberania no século XIX em função do fortalecimento da sociedade industrial mas, sobretudo no século XX, diante do aumento da visibilidade, do acirramento dos conflitos sociais, das transformações tecnológicas, da globalização  da informação, da aceleração dos processos sociais, da pluralidade das experiências culturais cotidianas, da queda das barreiras ideológicas e culturais, da exarcebação da concorrência empresarial e do liberalismo de éticas particulares, fundamentadas comumente por uma racionalidade instrumental ou “razão cínica”[7].

 

 

 

3- A CONTEXTUALIZAÇÃO DO DISCURSO JORNALÍSTICO

 

 

É certo que a transparência e a visibilidade instantâneas do jornalismo em tempo real, a transmissão livre e a recepção direta das notícias criaram a ilusão permanente de um acesso igual à informação rigorosa e plural para todos os cidadãos tanto no espaço público, como no espaço privado, a partir da revolução tecnológica. Uma ilusão que pressupõe o esboroamento das fronteiras culturais, linguísticas, políticas e ideológicas, através da mediação da linguagem e da argumentação, permitindo a concretização da “aldeia global” de MacLuhan e a predominância do meio sobre a mensagem.

Por conta dessa suposta mediação global, a atividade jornalística, como um campo próprio da mídia, autonomizado em relação ao domínio da comunicação, ficou dependente das ações e dos efeitos estratégicos da indústria midiática, da concorrência excessiva dos outros meios, e de uma tecnologia on line orientada para o êxito da audiência. Uma das consequências desse processo foi o desequilíbrio entre as dimensões constitutivas do discurso, numa clara funcionalização estratégica da dimensão pragmática, em relação à dimensão discursiva.

Um desequilíbrio que, ao longo do tempo, violou a natureza narrativa e textual do discurso jornalístico que pressupunha uma relação argumentativa com o interlocutor em função de um espaço/tempo lineares, em troca de um outro discurso fragmentário, fluído e heterogêneo, mas aparentemente difundido como acabado, completo e sem intermitências, pautado pelo aqui e agora do tempo virtual e por uma retórica persuasiva e sedutora, cuja característica principal ainda é convencer o interlocutor da verdade produzida midiaticamente. Uma verdade produzida por estratégias de composição textual envolvendo a naturalização, o reforço, a compatibilização, a exarcebação das tensões, a transparência e a alteração do regime de funcionamento social.

Essa aparência de completude do discurso midiático, de um acabamento estético perfeito encobre, porém, um processo de elaboração complexo que leva em consideração a determinação dos acontecimentos selecionados, categorizados, comparados e  interpretados da realidade para serem transformados em notícia, a partir de pressupostos como a natureza do assunto, a natureza da questão, o interesse público, a relevância, a pertinência, a especificidade institucional, o quadro temporal, a necessidade de orientação. Um processo que considera aquilo que é teoricamente conhecido por concepção de responsabilidade social, nada mais do que o acesso do interlocutor a uma informação exata, rigorosa e plural.

Ora, é legitimado por essa concepção de responsabilidade que a atividade jornalística sempre parte do pressuposto deontológico/moral de que à esfera da informação corresponde não somente a veracidade dos fatos narrados e a fidelidade das opiniões, mas também a pertinência e o tratamento dos fatos a serem incluídos no agendamento midiático, e, portanto, necessários à construção do espaço público e da democracia, à exceção dos casos extremos quando outros valores e interesses se interpõem no processo de elaboração do discurso jornalístico[8].

O pressuposto utilizado pelo jornal faz parte de uma acumulação arbitrária de padrões simbólicos culturais que permeiam e orientam o sistema de escolha dos acontecimentos, atribuindo-lhes qualidades ou determinando sua natureza. Assim é que depois de analisar todos os acontecimentos emergentes na realidade para determinar quais são factíveis de se tornarem notícias, o jornal passa a ser o responsável único e difuso de um agendamento[9] que propõe não só em que pensar, mas o que pensar e como pensar, ou seja, não só seleciona os acontecimentos, mas os enquadramentos e as categorias para pensar esses acontecimentos.

É um agendamento fundamentado na projeção de recortes da realidade para construção de um pseudo-ambiente, cujo princípio de obrigatoriedade em função da concorrência e da exigência do interlocutor neutraliza, ao mesmo tempo, a relatividade dos valores e fatos em questão, e a arbitrariedade dos fundamentos utilizados para justificá-los. Enfim, um agendamento que constitui um esquema de seleções e de conhecimentos para dar sentido aquilo que é proposto a ser observado, a ser lido, a ser interpretado eticamente, pois é a seletividade que torna o improvável em provável.

«A comunicação é um processo de seleções que se desenvolve a três níveis: produção, de um conteúdo informativo, difusão e aceitação desse mesmo conteúdo(…) E é ainda um processo seletivo porque a comunicação desencadeia novas sequências seletivas, despoleta nos sistemas novas séries de seleções, com base nas quais estes operam a redução da complexidade com que se confrontam e criam condições de estabilidade» (ESTEVES, apud LUHMANN, 1993:23).

 

Esse pressuposto cultural funciona no agendamento como mediação entre o jornal e os vários interlocutores com os quais trabalha, incluindo a si próprio como interlocutor, que funcionam no plano simbólico como sujeitos morais, possuidores de uma mesma ordem ou hierarquia de valores. O agendamento, é, por conseguinte, um ato livre, individual e coletivo, ao mesmo tempo produto de uma escolha racional dos acontecimentos dispersos no caos, e de uma conduta correta ou incorreta na transformação desses acontecimentos em notícias.

 

 

4 – O AGENDAMENTO E A PRODUÇÃO DA VERDADE

 

 

No trânsito entre as alternativas de agendamento e os percursos para se chegar a elas, o jornal vê-se só, em solidão, confrontado com a sua própria verdade que não é nem adequação nem desvelamento, mas uma verdade que se caracteriza como um conjunto de princípios valorativos e normas morais que funcionam como axiomáticos naturais e que lhe indicam quadros de significação, onde as ações sociais se inserem. São os quadros de significação, ou a transgressão deles, que asseguram portanto ao jornal a possibilidade de pensar, falar e agir de modo coerente, adequando as suas alternativas e opções prévias às perspectivas previstas dos interlocutores.

É, diante da solidão aparente da verdade e da possibilidade arbitrária de reelaboração dos valores que o jornal pergunta-se: quais os acontecimentos são considerados suficientemente interessantes, significativos e relevantes para serem transformados em notícias e constituir o discurso midiático, cujas características de proximidade, interesse humano, atualidade, universalidade e contigência possam garantir o sucesso pretendido? Como tematizar esses acontecimentos na ordem do dia; dar-lhes relevo público adequado; salientar sua centralidade e o seu significado em relação ao fluxo de acontecimentos não-tematizados?.

Dessa forma, ao escolher entre um sem número de acontecimentos dispersos no mundo real os que vão transformar-se em notícias, o jornal considera na adequação dos fatos os efeitos a serem produzidos simbolicamente pelas mediações propostas das dimensões valorativa, normativa e prescritiva. A escolha dos termos, a ordem de sua apresentação, a seleção dos fatos narrados fornecem perspectivas, modelam imagens, ajudam a promover os temas, a definir a atmosfera específica, a construir a realidade. Pressupõem, assim, a existência de uma carga valorativa subjacente que consiste em considerar estes e não outros fatos dignos de serem relatados; aqui e agora; desta e não de outra maneira; com estes e não outros juízos de valor.

O jornal toma para si o papel de interlocutor moral da história, uma espécie de repositário das informações esparsas e dos quadros de significação do sistema social, com a responsabilidade de roteirizar num discurso fechado todos os enunciados abertos deixados pelos outros sujeitos que, por sua vez, ficam à espera de que a interação e a interlocução se estabeleçam a partir desses enunciados, tal como ocorre num processo dialógico de comunicação.

Num contexto comunicativo, cada interlocutor ao dar a oportunidade de fala ao outro(s) não só colabora na roteirização do diálogo, como preenche as intermitências deixados pelo fim do seu discurso e o início do discurso do outro com o silêncio, os gestos de consentimento ou negação, o olhar, o sorriso, a crispação, a espera, a dúvida, a hesitação, ou seja, com a posição como se coloca diante da relação interpessoal. Isto é possível porque o discurso comunicativo faz parte de uma agenda cultural previamente determinada pelos interlocutores que se assumem, portanto, capazes de proceder a leituras complementares e de selecionar, através da argumentação e da retórica, as concepções éticas  que lhes aprouver.

O que está aqui em causa é a existência de um senso comum, isto é, de um quadro valorativo comumente aceitável como indiscutível e natural, que constitui o contexto e os textos prévios a partir dos quais se define a relevância dos fatos e dos enunciados. O sentido, neste caso, é dado pelo contexto em função do que cada interlocutor quer compreender para ter o resultado desejado, ou seja, adotar o conteúdo informativo como premissa do seu comportamento. O senso comum funciona como infra-estrutura contigente de um desafio ou de um consenso possível, um enquadramento ético, parte de uma realidade reconhecida e legitimada  pelos interlocutores[10].

Esta possibilidade de diálogo entre os interlocutores, contudo, restringe-se tanto quanto possível à dimensão comunicacional, já que a nível da dimensão informacional a interlocução e a interação deixam de existir para dar lugar a um discurso fragmentário em que ele próprio torna-se dispositivo de notoriedade, já que articula as instâncias enunciativas individuais ou coletivas do sujeito e do objeto da enunciação: um discurso feito ação e uma ação feita discurso, ou como prefere RODRIGUES (1990:l0l e sgs.), o discurso do meta-acontecimento, produzido dentro das regras do cenário midiático.

Um discurso construído experimentalmente na terceira pessoa como estratégia de universalidade referencial, em que a verdade do fato é a de quem dele conseguir a melhor versão; totalizante ou de caráter exaustivo, em que a versão tenta abarcar e esgotar todos os pontos de vista sobre um assunto, possibilitando ao leitor construir a sua própria leitura; e fechado, ou seja, um discurso que prevê um roteiro com começo, meio e fim, conforme a importância, brevidade e frequência dos critérios de noticiabilidade que são escolhidos no desenvolvimento da ação, na aceleração do rítmo, na clareza da linguagem, no equilíbrio e nos standards técnicos mínimos.

Assim, ao ver-se enredado pelas teias de seleção, obrigado a produzir um discurso que torne a comunicação improvável em provável, o jornal funciona como um mediador plural, cuja responsabilidade é a de elaborar um texto capaz de neutralizar as marcas enunciativas, ou seja, o uso de formas que explicitem a relação dos enunciados com a pessoa, o tempo e o lugar da enunciação, para adequar o seu discurso à pluralidade de vozes do discurso social. Nessa mediação «utiliza os recursos da intextualidade como o uso de elementos anafóricos, de unidades discursivas que remetem para outras, criando efeitos co-textuais que ancoram o discurso a um sentido intertextual, identificável pelo público, independentemente do horizonte de sua experiência individual»(RODRIGUES, 1996:14).

Na confrontação com a realidade, o jornal pode optar por produzir um discurso lógico, mas parcial com vários enunciados implícitos no texto, deixando aos interlocutores a liberdade para interpretar e compreender os acontecimentos, segundo os seus próprios sistemas de valores. Neste caso, produz um discurso feito de relatos factuais, com pressupostos implícitos, mas com uma sequência semântica apropriada à situação de enunciação, possível de ser apreendida pelos interlocutores interpelados ou envolvidos na produção de sentidos desse texto.

Aqui, é regra do funcionamento argumentativo do discurso «não deixar expressa uma afirmação necessária, de maneira evidente, para a completude ou para a coerência do enunciado…». (DUCROT, apud RODRIGUES, 1996:123). É a ausência de determinados enunciados pressupostos pelos interlocutores, no desenrolar do discurso, que confere ao encadeamento dos enunciados explícitos novos sentidos. Deste modo, ao dar a entender ou ao subtender um determinado enunciado, o agente deixa em aberto a relação entre sentido implícito e sentido literal do discurso.

O jornal, pelo fato da existência destas regras, utiliza estratégias de implicitação voluntárias ou involuntárias, segundo os efeitos que prevê na audiência. Quando a implicitação do discurso é publicizada e a intenção se revelar involuntária, o jornal repõe um outro discurso em seu lugar para confirmar a realidade anterior, numa estratégia de compatibilização das tensões. Mas, quando a implicitação é voluntária, o discurso é utilizado como estratégia de exarcebação das diferenças para provocar arbitrariamente transgressões, rupturas e reelaborações dos valores existentes[11].

Por outro lado, quando o jornal opta por explicitar os pressupostos do discurso, a fim de que os interlocutores façam uma leitura o mais completa possível dos acontecimentos, através do que Derrida define como protocolos de leitura, e possam, como propõe Scholes, «reescrever o texto da obra dentro do texto das suas vidas…» (SHOLES,1989:25), produz atos ilocutórios. Um discurso que consiste na criação de um mundo comum, reconhecido e mutuamente aceito, a partir do qual os interlocutores são levados a falar e em relação ao qual os enunciados adquirem sentido, cujo resultado principal é a geração de um vínculo moral entre o jornal e os seus interlocutores. 

Na tentativa de estabelecer a relação entre os sentidos explicitados e os sentidos implicitados, o jornal acaba elaborando uma combinação de procedimentos linguisticamente codificados com outros contextualmente inferidos que, dependendo do uso e do efeito, conferem o sentido de verdade ao discurso.Quando isso não acontece por inversão, excesso ou falha da pressuposição ocorrem os conflitos, regularmente atribuídos à esfera ética. Conflitos acentuados por um interlocutor relativamente anônimo, cujo grau de probabilidade de entendimento varia segundo o seu envolvimento com o discurso e com os valores reelaborados.

 

 

5 – CONCLUSÕES

 

Em função desta análise é possível concluir que são as arbitrariedades na produção do discurso informativo que regularmente desencandeiam os conflitos éticos (ou morais) na esfera midiática por várias razões, à exceção dos casos intencionais de desvios ou excessos em que há uma intenção premeditada de tomar posição. Primeiro, porque o discurso informativo na sua constituição não ideal é assimétrico, desigual e estratégico construído por enunciados cujos valores são, não necesssariamente os mais justos, possíveis e defensáveis, mas os racionalmente estratégicos para um fim específico, que tanto pode ser o que a sociedade deseja e aspira para aquele momento, como pode ser o que o jornal intenciona para impor valores e verdades.

Segundo, por ser um discurso autônomo das demais experiências humanas, o conteúdo discursivo jornalístico parte dos acontecimentos referenciais, axiomáticos, que se propõem ao mundo como fatos acidentais, para modelar um outro discurso que assegura tanto a identificação e a importância dos atores e das instituições sociais em ação, quanto a sua própria visibilidade. É um discurso que se enquadra nas dimensões associadas do querer-dizer; do saber-dizer e do poder-dizer com estratégias de dessacralização desses acontecimentos e do enrazimento do seu próprio discurso na realidade. «Ao relatar um acontecimento, os mídia, para além do acontecimento relatado, produzem ao mesmo tempo o relato do acontecimento como um novo acontecimento que vem integrar o mundo». (RODRIGUES,l990:102).

E, terceiro porque o discurso informativo utiliza a argumentação e a retórica, via persuasão, para gerar consentimento num maior número de interlocutores, a partir do que pressupõe oportunamente como «verdades». Um consentimento muitas vezes silencioso, adesão do espírito a um juízo colocado a priori como «verdadeiro» e «natural». Há, nessa argumentação então o convencimento do leitor de uma «verdade» e a descrição do enquadramento, regulação e efetivação de procedimentos que legitimam essa verdade.

            As arbitrariedades funcionam, por conseguinte, como as variantes de sentido que o discurso jornalístico adota ao dessacralizar os textos no espaço privado dos campos de onde se originam e publicizá-los no espaço público. Nesse processo, o discurso jornalístico enraíza o seu dizer-fazer na realidade e se realimenta cotidianamente para continuar a produzir textos que pareçam sempre novos aos olhos de um leitor viciado.

 

5 - BIBLIOGRAFIA

 

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RESUMO

 

            Este artigo é parte da tese de doutorado que leva o mesmo título e que está sendo desenvolvida na Universidade Nova de Lisboa, a partir da concepção de que boa parte dos conflitos jornalísticos presentes na sociedade contemporânea imputados à ética não tem necessariamente a ver com esta instância do conhecimento, mas com as improbabilidades na produção do discurso.

 

            Desta forma, o artigo busca apreender como se dá a produção discursiva do jornalismo e as relações que estabelece não só com a ética, mas com a moral perspectivada na sociedade. A idéia é deslocar o núcleo das discussões deontológicas para a produção de sentidos que o discurso estabelece quando textualiza a realidade.



[1]Mestre em Comunicação e Cultura pela Universidade de Brasília, Doutoranda em Ciências da Comunicação pela Universidade de Lisboa e Professora Assistente pela Universidade Federal do Maranhão.

[2]Na prática social é a linguagem que possibilita o consenso cotidiano entre os sujeitos por ser a matriz de todas as mediações, e consequentemente, de tudo o que ela demanda – a construção simbólica do mundo, a cultura, as práticas e os papéis sociais, os valores individuais e coletivos, os quadros de significados, a produção de sentidos. É a linguagem, constituída por conteúdos, sentidos e formas culturais diversificadas no contexto social, que formaliza as concepções, cristaliza os conflitos, legimitima as ações, possibilita os consensos e constitui a experiência humana.

[3]A improbabilidade da comunicação como um processo que não se realiza perfeitamente é também a perspectiva adotada por Luhmann quando se refere aos níveis de seleção. «Temos, por um lado, uma improbabilidade relacionada com a compreensão que é resultado de um certo solipsismo próprio dos contextos comunicacionais – o dado de partida não pode deixar de ser um determinado isolamento dos participantes no processo de comunicação, um individualismo das consciências.Outra fonte de improbabilidade está relacionada com a capacidade de recepção, onde prevalece um pluralismo de situações e interesses. Por último, a improbabilidade relativa aos resultados pretendidos (com a comunicação): mesmo quando as dificuldades anteriores são ultrapassadas, resta, como derradeira, a de conseguir incorporar a comunicação a nível do comportamento (do outro), fazer adaptá-la (os conteúdos visados) como premissa de ação.» (ESTEVES apud LUHMANN, 1992:24).

[4]Um princípio genérico que à partida esbarra em várias contradições políticas, culturais, sociais, jurídicas e históricas, mas, sobretudo, linguísticas já que o discurso jornalístico – como uma forma de conhecimento objetivo que busca a apreensão da realidade, através da singularidade e da particularidade, com pretensão de universalidade é, por si só, um espaço de probabilidades comunicativas, por manifestar tanto a dimensão expressiva, o dizer, como a dimensão pragmática, o fazer, dos vários campos de conhecimento.

 

[5]É contra este princípio que trabalha a idéia de uma sociedade a dois terços, isto é, uma política social que privilegia dois terços da  população em detrimento de um terço colocado à margem do processo social, bastante presente nas democracias contemporâneas, que Jonh Rawls (1981) se coloca em Teoria da Justiça quando fala do «princípio da diferença», ou seja, de diferenças socioeconômicas aceitáveis.

[6]No entanto, já no século XVII a temática do direito natural e a idéia de uma liberdade inscrita na natureza humana exigiu uma reflexão filosófica mais teórica e menos literária do humanismo, em função dos movimentos contestatórios contra a intolerância política e religiosa das monarquias européias. Autores como Erasmo de Roterdão, Locke e Montesquieu propuseram novos princípios para o funcionamento da liberdade, baseados na fórmula racionalidade/ verdade/ verdade/ liberdade, com uma mesma motivação comum: a vontade de saber era semelhante a comunicar-se. (FABRE apud THEMUDO,1996:1-3).

[7] Em Psicanálise e Moral, o psicanalista brasileiro, Jurandir Freire Costa, conceitua  a razão cínica como «uma razão que não recorre mais às regras supra-individuais, historicamente estabelecidas na sociedade para dirimir direitos e deveres privados, mas obstina-se em demolir a esfera crítica dos valores, a pretexto de defender a realidade, para em seu lugar instituir uma moral supérflua, capaz de dizer que toda lei é idealismo, todo desejo de ordem é convencionalismo, que todo pedido de ética é formalismo e que os valores são sempre produtos da violência» . ( COSTA,1989: 25-31)

[8] Os casos extremos a que me refiro são as notícias produzidas com acontecimentos sensacionalistas com o único intuito de vencer a concorrência ou de aumentar as vendas, ou os casos em que há uma intenção deliberada de prejudicar alguém ou alguma instituição, ou ainda os casos em que o jornal adota uma posição parcial num determinado assunto.

[9]No agendamento (agenda-setting), o produtor trabalha com as características inerentes à natureza exóterica da mídia, por meio da acumulação (repetição contínua do acontecimento para mantê-lo em relevância), da consonância (perspectivas positivas em que as semelhanças são mais significativas do que as diferenças); omnipresença (difusão pública do acontecimento, o que reforça a disponibilidade de expressão e evidência do meio). In: (WOLF, Mauro,1987:123-153).

[10]É a esta especificidade que Habermas dá o nome de ação comunicativa, designada pela idéia que constitui os seres humanos, mediados pela linguagem: «Ao falar e discutir sobre questões normativas, que são as que nos separam, expressamos as nossas posições contrárias, mas, se dialogamos é porque procuramos o consenso, baseado numa comunicação justa e simétrica», e que leva, assim, a uma situação ideal de diálogo. (HABERMAS, apud CAMPS, 1992:151).

[11]Portanto, o receptor é sempre levado a escolher entre duas estratégias antagônicas: «ajustar o encadeamento dos seus enunciados aos pressupostos do locutor, mantendo-os indiscutíveis e aceitando sentido implícito do seu discurso, mantendo assim inteira a relação ou rejeitar esses pressupostos e romper, de maneira mais ou menos violenta, a relação…»(RODRIGUES, 1996:124).