AS CONTRADIÇÕES ENTRE A LIBERDADE DE EXPRESSÃO E A LIBERDADE DE INFORMAÇÃO
 
 

Francisca Ester de Sá Marques 1, Universidade Federal do Maranhão


 


A partir da reconstituição histórica da liberdade, através das teorias liberal e estatal e da emergência da liberdade de imprensa no século XVIII, o texto pretende equacionar as contradições existentes entre a liberdade de expressão e de opinião como um bem primário, voltado para a reflexão da conduta humana e baseada na idéia de igualdade, tal como é pensada por John Rawls, e a liberdade de informação, fundamentada numa moral utilitária, códigos deontológicos e regras formais de satisfação.

A intenção é esclarecer as dicotomias entre os vários tipos de liberdade, em função de suas naturezas específicas e, a partir daí, verificar como os meios de comunicação utilizam essas contradições para legitimar a sua própria perspectiva de liberdade, baseada na sua lógica de criação e produção mediática.

Todo o percurso será sedimentado pela tese de que os média contemporâneos não possuem uma dimensão própria de liberdade nem a individual fundamentada pela autonomia proposta por Kant e desenvolvida pela teoria liberal, nem a coletiva proposta pelo utilitarismo clássico, segundo a qual a satisfação média é o fim último. Por falta dessa dimensão, os média utilizam os conceitos existentes para se legitimar e se enraizar na realidade, segundo os seus interesses imediatos, mas sem deixar de considerar as prerrogativas entre a expressão e a informação.

Dessa forma, ao demonstrar essa utilização arbitrária dos média sobre os dois tipos de liberdade, o texto ressaltará as contradições inerentes a própria natureza da liberdade em relação a verdade e a racionalidade contemporâneas, pensadas como categorias sociais estratégicas e não como princípios éticos universais.
 
 

1 A constituição histórica da liberdade
 
 

Quando no século XVII alguns autores 2 fizeram germinar a semente do movimento político social, baseado na vontade de liberdade inscrita na natureza humana, que culminou, no iluminismo, com a discussão do direito natural, a partir de conceitos como verdade e razão, a dimensão ética da liberdade era apenas a perspectiva de um ideal democrático que estava ainda a ser criado como consequência do humanismo.

De fato, é no século XVIII como resultado da revolta política contra as monarquias européias absolutistas e as seitas religiosas, e com a consolidação do ideal humanista que a liberdade, enquanto ideologia política, social e econômica do liberalismo, aparece no espaço público como o primado da soberania popular e da vontade geral. Por um lado, como o princípio fundamental que deveria, no plano dos fatos, realçar o valor do homem individual no seio da coletividade e do próprio cosmos, e, por outro, no plano do direito, orientar o juízo acerca de todas as coisas.

A liberdade 3 é o princípio máximo e exclusivo do homem que deve ser entendido como anterior a qualquer opção e, só em segundo plano, como opção concorrente com os outros ideais. Entendida deste modo deveria servir como base primordial de um projeto político de autonomia individual e de emancipação da sociedade civil, cujo conteúdo concreto era dado principalmente pelo ideal democrático da modernidade.

Desta forma, o iluminismo privilegia a liberdade negativa 4 como um direito individual privado em nome do ideal da universalização dos direitos humanos. A liberdade negativa era a condição primordial para o estabelecimento de uma razão democrática porque iria permitir, por meio dos consensos racionais, o estabelecimento da vontade geral e da solidariedade, estratégia de resistência contra o poder político do Estado.

Um Estado que, a esta altura, tentava impor à sociedade civil, através de mecanismos institucionais reguladores, uma liberdade única pautada na perspectiva de uma ordem gerada, em que se fundamentava como o guardião das regras e normas sociais, enquanto limitava a liberdade individual sob o argumento de que era necessário regular a liberdade de cada um, como pressuposto para a liberdade coletiva e as relações sociais, mas também por conta da violência política e religiosa.

É neste contexto contra o poder arbitrário do Estado que a liberdade individual, vista até então como uma característica inata do sujeito, um ato voluntário interior, psicológico, autônomo, racional e fruto de um juízo metafísico, portanto, como um valor irredutível à própria condição humana, dá lugar no espaço público 5 à liberdade social, fundamentada pela idéia de igualdade de oportunidades e de cidadania. O espaço público artístico e cultural é o lugar privilegiado de difusão da verdade, enquanto forma de crescimento e libertação do homem, nem incluído na esfera privada da sociedade civil, nem integrado na esfera pública do Estado, mas um espaço de soberania da vontade geral, mas também da autodeterminação individual.

A liberdade social passa a ser condição histórica de autonomia política em contraste com a liberdade individual, ao priorizar a responsabilidade social entre pessoas ou grupos como condição para a liberdade política, cujo fundamento refere-se não ao indíviduo, mas ao cidadão. O livre arbítrio, baseado num juízo prático e numa escolha racional possibilitaria ao cidadão iluminado escolher que tipo de sociedade desejaria para si e para os outros, a partir do imperativo categórico da vontade geral.

No entanto, a condição de base para a conquista da liberdade era a garantia da livre expressão das opiniões no espaço público, o que só era possível com a consolidação e institucionalização legal da opinião pública 6 como uma força social ativa e qualificada contra o poder monárquico. A opinião pública, em função da sua dimensão política, adquire uma legitimidade racional que lhe permite ser a expressão da vontade coletiva contra o exercício do poder absoluto, mas, ao mesmo tempo, que lhe permite uma participação no exercício desse mesmo poder.

Mas, se é o espaço público quem fornece o suporte para a consolidação da opinião pública como uma força social regulativa não só das práticas institucionais, mas, sobretudo, das relações sociais, é através da imprensa que essa mesma opinião pública é concretizada como uma prática de comunicação regular, a partir da publicidade e da crítica. A imprensa, como locus privilegiado do confronto de idéias e da controvérsia política contra o controle do Estado, adquire com a modernidade uma dimensão de liberdade própria, dada em função da sua natureza mediadora e da sua capacidade de mobilização social.

Uma liberdade conquistada quando os jornais deixam a artesania de lado e buscam os meios materiais e financeiros para a livre circulação das informações e das idéias, por meio da organização da produção num espaço social específico. «A liberdade de imprensa passa a oferecer um espaço no seio do qual a liberdade de expressão não pode ser coagida e, ao mesmo tempo, assegura o pleno respeito dos direitos individuais, limites incondicionais ao arbitrário do poder»(LIBOIS,1996:p.2).

A imprensa e a liberdade de imprensa consagram-se, então, entre os direitos mais legítimos, uma vez que aparecem associados ao direito à liberdade de expressão, condição e garantia das demais dimensões da liberdade e, sobretudo da liberdade social. Deste ponto de vista, a liberdade de imprensa relaciona entre si já na sua origem a liberdade individual negativa e a liberdade social positiva 7 como uma só dimensão, uma extensiva à outra.

A liberdade de expressão individual adquire uma autêntica dimensão social à medida que a imprensa simboliza o espaço por excelência do respeito aos direitos individuais, mas, ao mesmo tempo, o espaço político dos direitos coletivos. O ato expressivo individual, fruto de uma ação livre da vontade de expressão, de um processo comunicativo intersubjetivo, baseado na interação social, confunde-se com o ato social, resultado do saber comum e do processo informativo, consequência da elaboração e propagação dos ideais democráticos da razão, do conhecimento, da crítica, da alteridade.

Neste contexto, a imprensa desempenha uma função pública como um direito político específico e responsabilidades sociais particulares, permitindo a fundação e o desenvolvimento de uma esfera política autônoma, um espaço deliberativo da soberania coletiva, estruturado pelo princípio da tematização pública das questões políticas. Havia uma íntima articulação entre a palavra oral, a opinião de cada um, e a palavra escrita dos jornais, perfomatizando um processo quase homogêneo e simultâneo entre as etapas do processo comunicativo, de produção, recepção e efeitos.

Os jornais dos primeiros tempos da burguesia em ascensão, meios artesanais de transmissão das informações mercantis dos viajantes e comerciantes, ascendem no século XVIII ao estatuto de imprensa de opinião em função da exigência do estabelecimento de um Estado constitucional burguês. Para HABERMAS(1984), a imprensa não podia deixar de se comprometer politicamente com o combate pela liberdade da opinião pública, pela publicidade e pela crítica enquanto princípios, porque a esfera pública não tinha ainda adquirido um estatuto legal e estável.

Segundo THEMUDO(1996) enquanto na Prússia, Kant insistia em que a liberdade de imprensa era o verdadeiro paladino da liberdade, batendo-se por uma imprensa livre que não existia; em França, onde essa liberdade estava instituída, a imprensa inscrevia-se na ordem pedagógica da cidadania, no sentido de levar ao povo as luzes da verdade, como penhor e formação da uma vontade para sempre inibitória do retorno dos velhos fantasmas absolutistas.

É claro que a instituição da liberdade de expressão, como a dimensão cultural da natureza híbrida da imprensa, exigia o desenvolvimento da dimensão econômica, a liberdade de empresa, vista na época, como condição fundamental para o exercício do debate público. A sobrevivência material e financeira aparecia como característica primeira da liberdade de imprensa para que pudesse expressar, sem qualquer censura, coação ou violência, as opiniões e informações contrárias ao Estado ou ao poder político.

A discussão em torno destas dimensões tem recortes específicos na teoria liberal 8 pluralista que pregava a liberdade de empresa como o devir originário para a liberdade de imprensa, exigindo do Estado a supressão de todos os entraves imputáveis à livre circulação de informações, opiniões e mercadorias. A reivindicação da abstenção do Estado visava consolidar em torno do indivíduo uma esfera inviolável contra qualquer tentativa de ingerência do poder estatal sobre as escolhas econômicas, políticas e sociais do cidadão.

Por sua vez, a liberdade de imprensa era vista pela teoria estatal 9 ou comunitária como uma base de sustentação e veiculação de informações oficiais para a expansão do Estado-Nação, ampliação dos mercados e soberania político-territorial. Através da imprensa, o Estado tentava regular o comportamento social, econômico e político sob o pretexto de salvaguardar a liberdade coletiva, por meio da fundamentação de um bem comum, quando, na verdade, a sua intenção era transformar a imprensa num canal de circulação das informações oficiais.

A tensão entre as duas teorias torna-se evidente no espaço público que se constitucionaliza como uma esfera política legalmente reconhecida por alguns princípios como a possibilidade de participação igual para todos ao nível da argumentação e da organização dos temas. Enquanto as empresas jornalísticas substituem o gerenciamento familiar e a-comercial pela administração empresarial no século XIX e início do século XX, centrada na rentabilidade do lucro e do benefício, o Estado-Nação direciona o seu desenvolvimento em função do modelo do Estado do Bem Estar Social.

Evidente também é o caráter de empresa industrial/comercial que a imprensa adota, a partir do reconhecimento legal da liberdade de expressão como um direito individual deliberativo da liberdade de imprensa. E, como empresa, a imprensa utiliza o princípio da liberdade para legitimar uma vontade de poder apoiada no desenvolvimento tecnológico e no aparecimento da sociedade de massas-, que se expressa nas concentrações multinacionais e nos monopólios empresariais, pondo em dúvida o espírito originário das luzes.

A concentração econômica e o desenvolvimento tecnológico da imprensa opinativa alia-se neste intermédio a um outro fenômeno que trai a liberdade de imprensa e de expressão como fundamento do direito individual privado 10: a criação em finais do século XIX de uma imprensa de massa descritiva, calcada em valores discutíveis como a objetividade, a neutralidade, a imparcialidade, a universalidade e a veracidade como mantenedores da informação livre e verdadeira. O efeito mais direto desse processo é a mudança 11 sofrida pela opinião pública, resultado da enorme expansão a que é exposta e do enfraquecimento da sua força política originária.

O princípio genérico que fundamenta este fenômeno e lhe confere um caráter ideológico, conforme exemplifica ESTEVES(1996) é a racionalidade econômica de caráter predominantemente instrumental, e cujos resultados são a conquista das audiências, a diversificação do consumo/público, a reestruturação contínua do mercado e o aumento crescente do número de publicações. Além dos enredamentos mercantis e políticos que esta imprensa de massa configura ao aceitar a ordem estalabelecida, criando relações de dependência com os vários poderes sociais e econômicos, segundo os seus próprios interesses, ela também limita a sua capacidade de traduzir as mediações simbólicas do espaço público por causa da sua busca obssessiva pela informação, desprovida de opinião.

A abstenção do controle da imprensa por parte do Estado, conquistada à luz do debate político e da argumentação racional, é afastada do seu espírito inicial para legitimar os atentados à liberdade de expressão e à perspectiva da imprensa como possuidora de uma dimensão positiva. Mesmo assim, os abusos à liberdade de expressão e à liberdade positiva são vistos como um mal menor em relação à censura do Estado pela sociedade que prefere esta opção à ingerência do poder político. O paradoxo é resumido por PINTO, citado por LIBOIS(1996):«A liberdade criou a imprensa. E, a imprensa tornou-se dona da liberdade. A afirmação de expressão contra o Estado, tal era o sentido da concepção clássica. A afirmação desta liberdade contra a imprensa, tal é a nova necessidade. Não deve apagar-se perante o princípio antigo, mas apenas completá-lo».

A subversão do princípio da liberdade de imprensa nega também o poder de reivindicação do iluminismo, já que o Estado, diante da exarcebação do abuso econômico da imprensa, passa a ser vista como a única instituição capaz de garantir a liberdade de expressão contra o poder arbitrário da liberdade de empresa. Deste modo, os poderes econômico e político passam a representar um perigo para a liberdade de imprensa e, de expressão, mas, ao mesmo tempo, a representar simbolicamente uma condição para a sua salvaguarda ou fundamentação pública. «A imprensa é solidária tanto da expansão do modo de produção capitalista, quanto da consolidação do modelo político do Estado-Nação»(ESTEVES,1996:p.8)
 
 

2 Mediação ou Mediatização?

Ora, o que está aqui em questão é que o problema atual da liberdade de imprensa não se limita somente a priorização da liberdade de empresa em relação à liberdade de expressão ou à redução da liberdade de imprensa a uma liberdade de informação. O que modifica a natureza do problema é a sua própria constituição. A imprensa de opinião dos séculos XVIII e XIX tinha uma função pública, legitimada pelo reconhecimento da sua dimensão específica de liberdade comunicativa: a função de mediar, de ser o espaço simbólico de representação dos vários agentes sociais e, por consequência, dos discursos promovidos em nome da democracia.

A liberdade como um valor social inviolável foi reconhecido à imprensa para que esta pudesse ser o meio de expressão dos diferentes pontos de vista presentes na sociedade e, a partir daí, denunciar os abusos do poder; formar um público esclarecido e qualificado e constituir uma vontade geral dos cidadãos, baseada na verdade e na razão. Esta natureza valorativa adquirida pela imprensa deu-lhe a legitimidade suficiente para ser a principal referência mediadora das interações sociais do espaço público burguês, mas também deixou-lhe a possibilidade de se transformar num poderoso canal de poder, de manipulação e de constituição da realidade.

As transformações sociais decorrentes da consolidação das democracias de massa no século XIX processam um reordenamento das fronteiras entre o Estado Social e a sociedade, e, consequentemente entre as fronteiras do público e do privado, agudizando os conflitos sociais e forçando uma readaptação da imprensa 12 e da própria opinião pública. Muitas vezes dependente dos interesses privados dispersos na sociedade, ou dos interesses do Estado, a opinião pública torna-se o resultado de um processo de desencantamento 13 do público que ao despolitizar-se transforma-se em massa, enquanto a imprensa evidencia o seu caráter manipulativo ao passar a reconstruir os discursos que antes vinham do exterior.

A desarticulação entre a crítica, própria dos públicos qualificados, e a opinião sistematizada e controlada que emerge das massas, causa o distanciamento cada vez mais alargado entre a liberdade de expressão e a liberdade de empresa que fundamentavam a natureza híbrida da liberdade de imprensa. Enquanto a liberdade de expressão é esvaziada da sua dimensão política de mobilização (resultado da sua prática argumentativa e comunicativa) em favor de uma dimensão normativa, a liberdade de empresa privilegia a sub-dimensão da liberdade de informação 14, em função da busca de uma verdade restritiva, parcial, votada à escolha da melhor versão, do melhor enquadramento, dos melhores efeitos estéticos e de recepção de cada instituição.

A mediação simbólica 15 necessária para consagrar a experiência coletiva e o universo comunicativo entre os sujeitos no cotidiano deixa espaço à mediatização dispositiva, tecnológica, permitida por uma quase-interação perfomativa, instântanea, resultante dos simulacros quase perfeitos da realidade construída. Há uma descontinuidade entre a experiência partilhada no mundo real da comunicação intersubjetiva e a experiência construída no mundo virtual da informação interativa, gerando reflexos e efeitos ao nível do universo simbólico e das formas de sociabilidade.

Naturalmente, o que perpassa toda esta análise é o afastamento do discurso comunicativo público, resultado das interações cotidianas dos agentes sociais em relação ao discurso funcional da imprensa, efeito da dimensão da liberdade informativa e de uma linguagem de natureza especular e auto-referencial. Um distanciamento que alimenta a desarticulação entre os processos de emissão e recepção, ou entre aquilo que é gerado pelo discurso intercompreensivo e o que é produzido pelo discurso da imprensa.

A racionalidade instrumental introduzida pelo discurso estratégico da imprensa promove a separação entre fatos e valores, em função de uma objetividade em que o ideal tipo passa a ser: «As opiniões são livres, mas os fatos são soberanos», dispondo como regra principal do discurso a descrição pura da realidade, sem interpretações ou análises opinativas. E, mesmo depois quando a objetividade permite a opinião e a interpretação, estas já vem contaminadas por regras de enunciação específicas que garantem, à partida, a pretensa neutralidade e imparcialidade da imprensa que se coloca aquém e além de qualquer envolvimento político.

Muito mais do que simplesmente adequar o seu modo de produção para adquirir a validade de objeto científico das ciências sociais no século XX, o que a imprensa 16 preconiza com esse novo modelo de racionalidade estratégica é um estatuto próprio para ser o medium por excelência da sociedade de massa, capaz não só de descrever a realidade, mas de reconstituí-la a partir da tentativa de esvaziamento da linguagem e da experiência cotidiana, e do preenchimento deste vazio por informações fragmentadas e sem significado simbólico.

O espaço público devotado até então à uma esfera política específica, nem privada, nem social, é reivindicado por esse novo modelo como parte do seu enraizamento na realidade e da sua legitimação social. Nesta reivindicação, determina o que deve, pode ou é objeto de publicização nas esferas do público e do privado, através daquilo que considera ter valor de noticiabilidade, de ser transformado em acontecimento, de ser enquadrado como notícia. «Os media passam a exercer uma função de gestão da cultura tanto na esfera da vida privada como no espaço público e não só transformam a relação entre uma e o outro como modificam também as representações que dele fazemos»(TREMBLAY apud ESTEVES:1990,77).

Isto é de tal forma generalizado, que se pode dizer que o espaço público, até então controlado ora pelo Estado, ora pelo mercado, é reduzido ao espaço mediático, segundo a seleção dos conteúdos oferecidos à tematização pública pelo lado da produção e difusão - por exemplo do agenda setting -, e consequentemente pelo lado da recepção, numa perspectiva de adequação do público ao discurso estabelecido, conforme a teoria da espiral do silêncio 17. «o melhor expectador do mundo não pode interpretar senão aquilo que recebe»(FERRY,1997,p.5).

Portanto, ao tentar tomar para si a responsabilidade pela organização de um espaço público, os media revelam a sua natureza ambivalente de medium sem uma perspectiva específica de ética, nem tanto devotada à restauração da liberdade de expressão das luzes, e por consequência da liberdade da imprensa, nem tanto à consolidação da sub-dimensão da liberdade de informação do pragmatismo instrumental. Como dispositivo tecnológico extensivo, portanto sem uma produção específica da experiência, a imprensa e os media buscam na realidade as projeções simbólicas que lhes garantem a legitimidade e concreticidade necessários ao seu estatuto mediático.

Mas, ao buscar essas projeções simbólicas dispostas na realidade, a imprensa também reelabora simbolicamente esta mesma realidade para reconduzi-la ao espaço público, ao seu espaço público, dando-lhe visibilidade e estatuto de acontecimento, num processo de dessacralização permanente. Nessa recondução, a opinião pública sofre outra mudança, consequência da mediatização generalizada e obrigatória, segundo ESTEVES(1998:p.236):«nenhum acontecimento, fato ou opinião é passível de adquirir relevo público se, a par de sua existência, não for objeto de repercussão em larga escala», por um público ilimitado, à escala universal.

O que acontece é que a imprensa e os media moldam a sua racionalidade lógica e especular adequando-se àquilo a que genericamente se referem, fundamentados pelas dimensões discursiva e pragmática, entre a ação que expressa e o efeito que produz. No entanto, apesar do desequílibrio 18 evidente entre as dimensões constitutivas do discurso e da clara funcionalização estratégica da dimensão pragmática em relação à dimensão discursiva, a imprensa e os media não podem deixar de revelar os quadros de significação do sistema social e de abrir espaços de interlocução para a participação da opinião pública. «O seu funcionamento e sobrevivência é indissociável da sua inserção simbólica na vida coletiva - a um primeiro nível, no espaço público, e a um nível superior, na sociedade como um todo»(SCHUDSON apud ESTEVES:1996,p.19).

São nestas idas e vindas, nem anteriores à realidade, nem posteriores à realidade que a imprensa reconstitui a sua dimensão de liberdade: ora expressiva da vontade geral e da experiência coletiva, baseada no princípio que todo o cidadão tem direito à liberdade de expressão; de sem interferências, ter opiniões e de procurar receber informações e idéias por quaisquer meios e fontes; ora centrada no seu interesse de informar, em função da autonomização da sua dimensão econômica. Sendo assim, a dimensão ética da imprensa não está centrada ou fundamentada na sua natureza híbrida, mas nas perfomatizações que propõe quando mediatiza a realidade.

Portanto, a dimensão ética da imprensa é uma dimensão circunstancial 19 que varia segundo o modelo de perfomatização apresentado e da lógica que o acompanha. É uma ética efêmera elaborada segundo padrões de verdade e de racionalidade estratégicos, que não recorre mais às regras e preceitos morais estabelecidos historicamente na sociedade para dirimir os direitos e deveres, mas, aproveita para tornar indiferente a esfera crítica dos valores, a pretexto de contextualizar a realidade, a sua realidade.

Na elaboração dessa realidade, a dimensão ética é perfomatizada a partir do confronto com a verdade possibilitada pela experiência concreta, pela soberania axiomática dos fatos, que se caracteriza como um conjunto de princípios valorativos que indicam as ações e os quadros de significação que podem ser enquadrados como versões dos acontecimentos. É na transposição relativa dos quadros de significação ou na transgressão deles que a imprensa garante, ou uma esfera de legitimidade racional, fundamentada em princípios éticos universais, ou a capacidade de instrumentalizar a verdade e a razão, segundo os efeitos de totalização e de exaustão que produz na elaboração da realidade.

O que reinscreve a dimensão da liberdade de imprensa no texto produzido é a capacidade de mediação plural e multifacetada da imprensa em produzir um discurso que torne a comunicação improvável em provável, a partir da neutralização das marcas enunciativas, isto é, o uso de formas que explicitem a relação dos enunciados com a pessoa, o tempo e o lugar da enunciação, para adequar o seu texto à pluralidade de vozes do discurso social. Quando a imprensa perde essa capacidade de criação e mediação, a liberdade de expressão e, por consequência, a liberdade de imprensa, como que retornam a um ciclo mítico 20 ao ignorar o indivíduo e a sua existência, ao ignorar o espaço de possibilidades para a iniciativa individual e para a experiência coletiva.
 
 

3 Conclusão

Todo o percurso feito até agora foi previsto para que se possa pensar a liberdade de imprensa, a partir de um redimensionamento da natureza valorativa da própria dimensão de liberdade. Para isso, no entanto, é necessário que a liberdade de imprensa possa ser legitimada numa perspectiva que ultrapasse o seu caráter de direito individual privado, ou liberdade negativa, e possa ser compreendida numa concepção mais alargada de função pública ou liberdade positiva.

Isto porque, o caráter constitutivo da liberdade positiva em relação à liberdade negativa não suprime as garantias da liberdade individual, obtidas pelo seu reconhecimento ao longo da história, mas alarga-as como extensões de um projeto racional justo, ao possibilitar o debate público e repor os recursos simbólicos da prática comunicativa. Repõe por um lado, a capacidade de redefinir a responsabilidade de cada sujeito na constituição da sociedade e, por outro, revela/desvela o o sistema de valores e o quadro de relações sociais da experiência coletiva que está presente em quaquer processo de comunicação.

Mas, isso só não basta para redimensionar a questão porque mesmo que haja uma mudança de estatuto da liberdade de imprensa, de direito privado em direito público, esta mudança só adquire uma validade racional justa se ela for pensada em termos de uma perspectiva filosófica alternativa 21. Deste modo, a minha proposta é que em vez da liberdade continuar a ser pensada como um bem utilitário desigual, pensado como estratégia de satisfação média de um fim último, ela possa ser pensada como um bem primário básico, voltada para a reflexão da conduta humana e baseada na idéia de igualdade.

Sendo assim, a liberdade de imprensa é recolocada no espaço político como uma dimensão ética, a partir de uma concepção pública de justiça, na perspectiva proposta de Rawls. Numa concepção pública de justiça, a igualdade de liberdades e direitos entre os cidadãos é considerada como definitiva, pois cada um aceita conscientemente os mesmos princípios de justiça, e o fato de que são as instituições que os põem em prática. Os direitos não estão dependentes de negociação política, nem do cálculo dos interesses sociais, e muito menos, das estratégias mediaticas.

Nesta perspectiva, a liberdade é pensada como equidade, ou seja, todos tem o mesmo direito perante a justiça, de tal forma que o conceito de justo é anterior ao conceito de bem, porque todos aceitam antecipadamente o princípio da igual liberdade, sem levar em consideração os seus interesses particulares. Isto significa que cada pessoa deve ter direito igual ao mais extenso sistema de liberdades básicas 22, definidos pela regras públicas da estrutura social básica. Como consequência desse primeiro princípio, o segundo diz que as desigualdades econômicas e sociais devem ser distribuídas por forma a que simultaneamente sejam em benefício de todos e que decorram de posições e funções às quais todos tem acesso.

Ora, pensar a liberdade de imprensa não mais apenas como um direito individual privado, mas como um direito social coletivo, fundamentado numa concepção igualitária de justiça permite pensar a imprensa novamente como um espaço de reflexão crítica, consciente e esclarecida, capaz de garantir o direito de participação de cada sujeito no processo político e na prática comunicativa. O valor 23 dessa liberdade é definido pela garantia dada pela oportunidade equitativa de participação, segundo o autor:

«O justo valor da igual liberdade tem um profundo efeito na qualidade moral da vida cívica e na autonomia individual. O fato de tomar parte na vida pública ou política não torna o indivíduo senhor de si próprio, mas dá-lhe uma voz igual à dos outros para que com eles decida como é que as condições sociais básicas devem ser organizadas, através da vontade pública, das convicções e fundamentos que formam o ethos da cultura política. O efeito mais comum dessa autonomia quando o cidadão ver o seu justo valor reconhecido, é o aumento da sua autoconsideração e do seu sentido de competência».

É neste sentido que não se pode pensar a liberdade de imprensa apenas em função do seu estatuto moral (negativa ou positiva), em função da sua capacidade perfomativa (o mesmo processo que instrumentaliza, também produz intercompreensão) ou em função de uma ética deontologizante (as normas e regras regulam a atividade) porque estas dimensões parciais do problema não respondem completamente ao questionamento ético-moral que se coloca à imprensa contemporânea. A solução deste questionamento passa, sobretudo, por um redimensionamento do espaço público e da própria sociedade, já que segundo ARENDT, «a liberdade só pode ser exercida mediante a recuperação e reafirmação do mundo público, como o único que permite a identidade individual, através da palavra viva e da ação vivida, no contexto de uma comunidade política criativa e criadora».
 
 

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1 Mestre em Comunicação e Cultura pela Universidade de Brasília(Brasil) e doutoranda em Ciências da Comunicação na Universidade Nova de Lisboa(Portugal).

2 Segundo FABRE, citada por THEMUDO, esse movimento não possuia um enquadramento teórico inicial próprio, mas podia ser observado em autores como Erasmo de Roterdão, Thomas Moore, Montaigne, Montesquieu, Locke. As primeiras teorias vieram mais tarde com Kant, Hobbes, Hegel e Espinosa.(1996,p.1e sgs.)

3 A liberdade, como expressão da diversidade e da criação humana, é vista como o valor mais precioso dentre todos os valores morais da modernidade, não tanto pelos benefícios que possibilita a quem o aciona, mas pelos atrativos que possui em si, pelo bem que promove, pelo prazer que concretiza e pela responsabilidade que estimula.

4 A liberdade negativa aparece aqui na perspectiva proposta por Isaiah Berlin, citado por Libois(1996:p.2) como a esfera da não ingerência garantida em torno de cada individuo, a garantia de não ser coagido nas suas próprias escolhas pela intervenção de outrém. Dá ao homem a possibilidade de fazer o que quer contanto que não impeça os seus semelhantes de fazerem o mesmo e nem entravar suas liberdades. É a esfera que tende a regular os conflitos entre os homens.

5 O que é hoje denominado de espaço público começou na modernidade a ser definido quando as pessoas, livres da sujeição da necessidade da esfera privada, passaram a se reunir em público, num espaço comum de discussão e de ação, cujo interesse era o desenvolvimento da afirmação da individualidade e da subjetividade de cada um, inicialmente na área artística, através da criação e legitimidade estética do gosto; depois na área social, como mediador das relações entre o Estado e a sociedade civil, por meio da autonomização da opinião pública, onde adquire uma dimensão política. Como ação política, o espaço público tenta discutir e estabelecer parâmetros de regulamentação da sociedade civil e do seu processo produtivo, depois a participar do poder como estrutura do poder, por meio da sua vinculação ao direito.

6 A opinião pública nasce como o reflexo dos ideais libertários dos séculos XVII e XVIII quando o público iluminado e politizado, formado somente por cidadãos livres, resolve discutir os limites da autoridade do Estado e da censura, segundo os novos critérios preconizados pelo iluminismo. Tal como refere ESTEVES(1998:p.204) KANT confere à opinião pública um estatuto superior e nunca põe em dúvida a força emancipadora do público que poderia a si mesmo esclarecer-se, principalmente se lhe fosse dada a liberdade devida.

7 É o mesmo BERLIN que define a liberdade positiva como uma dimensão que cobre aquilo que está em jogo e as formas associadas a autodeterminação individual e coletiva.Uma dimensão que possibilita ao sujeito de se determinar a si próprio de maneira racional, de ser o autor da sua vontade e não da vontade dos outros.

8 A teoria liberal considera a liberdade expressiva do cidadão no exercício da sua soberania democrática um valor supremo. Segundo essa teoria, a dignidade do homem consiste em ser ele o dirigente da sua própria existência social, decidir por si qual sistema de valores perpetuar como local ou universal. Do mesmo modo, a sua autonomia consiste em não se deixar levar por qualquer tipo de dominação natural, social ou política, cuja compreensão lhe escapa e que por isso não consegue controlar ou transformar.

9 O que caracteriza a teoria estatal é a definição de um Estado que aparece como gestor moral regulativo das liberdades individuais, através da mediação das relações entre os indivíduos e, entre estes e os grupos sociais, sob o argumento de manter a ordem e o bem estar social, ou seja, a liberdade coletiva.

10 Na concepção clássica da liberdade de imprensa como um direito individual privado, a deontologia é compreendida como o fundamento da liberdade de expressão do jornalista, acarretando-lhe responsabilidades singulares sobre os critérios de seleção, tratamento da informação e produção final da informação. Este fundamento é geralmente contestado do ponto de vista ético em função do espírito corporativo, dos interesses individuais e das preocupações profissionais que se soprepõem geralmente ao interesse coletivo e à liberdade de expressão.

11 O aparecimento do novo jornalismo no século XIX de alguma forma responde à tentativa de readequação da opinião pública no novo espaço público constituído com a consolidação e concentração do capital na esfera do trabalho que resulta em inúmeros conflitos sociais corporativos e atingem a esfera política. A ideologia liberal e a própria idéia de democracia são postas em causa, em função da pulverização dos públicos, enquanto força política impulsionadora do espaço público, e a emergência do público-massa, mais próximas das democracias de massa.

12 Nesse processo de readaptação da imprensa ao Estado e ao mercado, uma nova ordem moral é assumida em contraposição a ideologia liberal. A imprensa adota a moral utilitarista, cuja principal prioridade é a liberdade e a independência de pensamento e, o principal problema, é não dar relevância à pluralidade e a diversidade dos sujeitos sociais, por considerar o indivíduo igual a sociedade. Para esta teoria, o que importa é o fim último ou a série de satisfações médias que são obtidas, independente da natureza, da qualidade e da influência destas satisfações na vida dos indivíduos. (RAWLS,1993)

13 A divisão entre o público e a massa é já evidente no século XIX, segundo TARDE(S/d) em função de algumas características que definem um e outro. O público, por exemplo, tem como critério principal o seu caráter simbólico, ou seja, a homogeneidade, a comunhão e a consciência das idéias partilhadas numa prática comunicativa regular e intersubjetiva, enquanto a massa é definida pelo seu desenraizamento político, com interesses circunstanciais e não simbólicos, um comportamento espontâneo, reativo e auto-reprodutivo.

14 A emergência de uma sub-dimensão da informação é o resultado da separação entre informação e opinião para evidenciar um novo conceito de notícia que nega a experiência cotidiana, em função de um corte arbitrário da realidade. O que vale neste modelo é a versão simplificada e descontextualizada da experiência, fundamentada numa verdade efêmera e temporária que muda conforme a seleção dos fatos, a perspectiva do jornalista ou a política editorial da instituição.(MOUILLAUD,1997)

15 Embora do ponto de vista etimológico, os termos mediação e mediatização apareçam como sinônimos, tendo como idéia principal a função de mediar, de ser intermediário, nesta análise, eles aparecem com funções diferentes, conforme as intenções que propõem. Assim, enquanto o termo mediação dá conta das relações que ocorrem no universo simbólico entre os sujeitos, num espaço comum de diálogo, no qual a emissão e a recepção contam com o mesmo estatuto comunicativo, o termo mediatização também faz a mediação, mas desconecta o espaço comum do diálogo, tornando a emissão e a recepção dois processos distintos de enunciação.

16 Apesar da imprensa iniciar este processo ao longo da história, atualmente ele é extensivo aos demais meios de comunicação de massa, incluindo os audiovisuais. Aliás é nos modernos meios de comunicação, que a racionalidade estratégica apresenta-se como mais evidente, como o resultado direto dessa instrumentalidade.

17 Elisabeth Noelle-Neumann suspeita dos estudos de opinião pública, porque diz que as pessoas, quando interrogadas, respondem em função daquilo que elas crêem ser a opinião dominante, mesmo que tenham opinião diferente. Segundo ela, se as pessoas pensam que sua opinião é minoritária, terão tendência para a recalcar num discurso público, conforme àquilo que pensam ser a opinião legítima, senão maioritária. Ser maioritário significa ter politicamente razão (NEUMANN, 1984). Essa idéia do conceito da espiral do silêncio remete a uma outra do Estado absolutista, em que Hobbes considerava a opinião como consciência quando dizia que consciência era a opinião evidente. (HOBBES apud ESTEVES, 1998, p.190)

18 Um desequilíbrio que, ao longo do tempo, violou a natureza narrativa e textual do discurso jornalístico que pressupunha uma relação argumentativa com o interlocutor em função de um espaço/tempo lineares, em troca de um outro discurso fragmentário, fluído e heterogêneo, mas aparentemente difundido como acabado, completo e sem intermitências, pautado pelo aqui e agora do tempo virtual e por uma retórica persuasiva e sedutora, cuja característica principal ainda é convencer o interlocutor da verdade produzida mediaticamente. Uma verdade produzida por estratégias de composição textual envolvendo a naturalização, o reforço, a compatibilização, a exarcebação das tensões, a transparência e a alteração do regime de funcionamento social.(MARQUES)

19 Por dimensão circunstancial entendo a ética como um conjunto de preceitos ou práticas próprias que se destinam a ocupar o lugar deixado vazio pelo apagamento das normas morais, no mesmo sentido dado por CORNU(1996,p.2). A ética é orientada para fins pragmáticos, dando lugar às formas acomodatícias do utilitarismo; perdendo em força normativa, perenidade e universalidade, mas ganhando em contrapartida em flexibilidade, capacidade de adaptação, faculdade de resposta às situações concretas, em eficácia estratégica.

20 «Na mentalidade arcaica o desejo de cada um coincide com a situação dada, não havendo condições possibilitantes de alternativas e de oposição entre controle mítico e iniciativa pessoal. Não havendo possibilidade de cisão entre o real(situação dada) e o possível não pode haver consciência infeliz»(TEIXEIRA, s/d: p.1103)

21 A perspectiva é a proposta por RAWLS em Teoria da Justiça, cuja estrutura é concebida para guiar moralmente os sujeitos racionais na escolha de princípios numa sociedade ideal, capazes de fornecer uma explicação satisfatória dos seus direitos, liberdades fundamentais e prioridades. São os cidadãos livres e autônomos, numa posição de igualdade original, que escolhem a forma de cooperação social e o conjunto de princípios para orientar os direitos e deveres e a distribuição adequada dos beneficíos sociais, numa estrutura básica. Para o autor, os direitos e liberdades fundamentais e as respectivas prioridades garantem de forma igual para todos os cidadãos as condições sociais essenciais para o desenvolvimento do sentimento de justiça e do valor do bem.

22 Dentre o conjunto de liberdades básicas, o autor destaca a liberdade política (o direito de votar e de ocupar uma função pública); a liberdade de expressão e de reunião; a liberdade de consciência e de pensamento; a liberdade pessoal que inclui a proibição da opressão psicológica e da agressão física(direito a integridade física), o direito a propriedade privada e a proteção diante da detenção e prisão arbitrária. Nenhuma destas liberdades é absoluta, mas o sistema deve ser o mesmo para todos, independentemente dos ajustamentos.

23 O autor faz uma distinção entre a liberdade e o valor da liberdade. Por isso, enquanto a liberdade é representada pelo sistema completo das liberdades que compõem a igualdade entre os cidadãos, o valor da liberdade depende da capacidade dos homens de prosseguirem os seus fins dentro da estrutura definida pelo sistema.