Racionalidade Ética

(excerto de um trabalho escrito em 1998)

 

Maria Lucília Marcos, Universidade Nova de Lisboa

 

                                          

             A racionalidade será ética. A racionalidade ética será comunicacional. Perante a heterogeneidade das formas de experiência, dos modos de compreensão do mundo, dos modelos de relacionamento social, enfim perante a diversidade na atribuição de sentido ao que nos rodeia e ao que inventamos como possível, impõe-se uma margem incompatível com definições prévias e rigorosas de valores, de sentidos, de verdades.

     Não há leituras literais da realidade, não há fidelidade na apreensão do real. Percepcionamos o mundo como se, significamos como se, imaginamos como se. A estrutura da nossa relação com as coisas é sempre figurativa, resulta sempre de um trabalho criador do entendimento e da imaginação.

     No processo inevitável de figuração do mundo[1], atribuímos-lhe contornos, construímos metáforas, impregnamo-lo de linguagem[2] - na forma como o percebemos e na forma como agimos sobre ele. Essa construção de figuras é acompanhada (filtra e é filtrada) por juízos éticos que ou  nos conduzem  no respeito  pelas diferenças  e na  tolerância por  outras formas  de figuração do mundo  ou nos bloqueiam num quadro de certezas de curtas dimensões e moldura demasiado apertada. A figuração é transfiguração quando abre ao outro, quando solicita para lá do imediato mediatizado pelo próprio, ou desfiguração quando rejeita as figurações alheias e empobrece, assim, as possibilidades de criação de sentido.

     A questão do outro é de tal modo instituinte da identidade subjectiva que marca decisivamente qualquer dos actos humanos. A inteligência é competência criadora na apreensão, na significação, na imaginação do mundo, ela apreende transformando, significa transformando, imagina transformando - porque atribui sentido, porque avalia, porque se transforma transformando. Todo este trabalho de criação é tributário do lugar reservado ao outro, ao “outro outro” e ao “outro no próprio”[3].

     Ensinar às crianças a diversidade nas línguas (há muitas formas de designar um coelho), nos comportamentos (há muitas formas de vestir e comer), nas visões do mundo (há muitas paisagens a descobrir),… é fazer com elas um exercício (semiótico, pragmático e ético) de compreensão e tolerância.

            A racionalidade será ética. A racionalidade ética  será comunicacional. Comunicacional quer dizer tensional, atravessada por conflitos, por diferentes interpretações. Comunicar quer dizer gerir diferenças, pôr em comum pontos de vista, construindo um tempo e um espaço lógicos de troca, suportados, é certo, pelos tempos e espaços empíricos de cada interlocutor, mas de nível operatório mais complexo. Comunicar, nesse espaço e tempo lógicos, passa por um trabalho de bi-codificação e bi-contextualização que permita justamente pôr em comum alguma coisa: referenciar e investir de sentido, co-referenciar e co-significar.

     A comunicação é alimentada por um estado de tensão entre os homens e entre os homens e as coisas. Estado de tensão que a comunicação tende ela própria a alimentar num processo de diferimentos sucessivos e nunca resolvidos. A natureza tensional da comunicação é a sua condição de possibilidade.

            Mas é também a sua condição dramática. Pensar a racionalidade ética sem escamotear a sua dimensão comunicacional é inevitavelmente pôr em relevo a natureza conflitual dos procedimentos comunicacionais. Os consensos absolutos, por um lado, e as transgressões extremas, por outro, impossibilitam a comunicação, são condições mesmo de incomunicabilidade total.

     A racionalidade ética é, pois, incompatível com valores e limites definidos rigorosamente a priori, é incompatível com uma lógica do consenso disciplinadora das diferenças e singularidades, assim como é incompatível com a ausência de critérios orientadores da inter-compreensão e convivência entre os homens.

     Que lugar então para os juízos éticos? Como conceber uma moral que preserve a lucidez perante a heterogeneidade? Como definir referentes de acção no labirinto das diferenças? Como definir valores que não ambicionem a hegemonia? Como instituir direitos sem atropelar outros direitos?

     Estamos perigosamente no reino das aporias, dos paradoxos. Ponto final, abandonemos o problema? Declaremos a esterilidade da questão ou procuremos ainda pensá-la?

     De facto, tanto as exigências teóricas como as exigências práticas da vida impõem que se insista.

     Podemos estudar os procedimentos de validação e legitimação dos consensos; podemos tentar articular uma moral universalista (a da Europa?) - enquanto macroética - que não ameace a incomensurável pluralidade de formas de vida antes a proteja; podemos propor a solidariedade como valor fundamental; podemos instituir a resolução caso a caso dos conflitos; …

            A reflexão contemporânea sobre a razão e sobre a ética é modelada pela incontornável importância atribuída à dimensão do fenómeno comunicacional. O logos não é uma entidade imutável, deve dar conta das contradições e mudanças que o atravessam quando atravessa a relação que estabelecemos com o mundo.

     O logos tradicional, tal como foi sistematizado pelos Gregos e confirmado pelo pensamento escolástico, seria essencialmente composto por três figuras (o trabalho de figuração atinge também a forma como o pensamento se pensa): a necessidade, a evidência e a proposição.

     O ser é como é, as coisas são como o seu ser é (na versão ontológica) ou as categorias do conhecimento são universais (na versão epistemológica kantiana). Necessidade e universalidade. Necessidade e imutabilidade.

    As ideias primeiras e intuitivas são evidentes, elas definem o encadeamento lógico das outras ideias. Evidência e método. Evidência e verdade.

     A proposição é a forma inequívoca de expressão das verdades necessárias. Proposição e princípio da identidade. Proposição e princípio da não contradição.

     E, deste modo sistémico, organizado, estariam definidas as possibilidades e os limites do pensamento. A comunicação processar-se-ia entre consciências, a linguagem seria o instrumento que permitiria tornar público o pensamento: concepção pobre e elementar da comunicação que, de facto, postula mais a incomunicabilidade do que o seu oposto.

     Pensar hoje o pensamento e pensar hoje a ética implica abandonar essas três figuras. O ser e o não ser baralham-se, as evidências tornam-se insustentáveis, a proposição é substituída pelo jogo dos argumentos - e a dimensão comunicacional transforma-se assim no núcleo fundador de uma analítica do social. A figura da “relação”, na sua complexidade lógica e na sua abertura ao novo, é hoje a mais apropriada para pensar a racionalidade. Ela é a única capaz de impedir a afirmação de qualquer absoluto (ontológico ou ético).

           

 

 



[1]     «Devemos alargar o nosso conceito de mundo (…). Conjunto de referências abertas por toda a espécie de texto, descritivo ou poético, que li, compreendi e amei. E compreender um texto é interpolar entre os predicados da nossa situação todas as significações que fazem do nosso Umwelt um Welt» (Paul Ricoeur, 1976).

[2]     Fenómeno que se designa por “linguisticidade da experiência”.

[3]     «A linguagem não é apenas uma dotação de que o homem esteja apetrechado tal como está no mundo; é antes nela que se fundamenta e se representa o facto de os homens simplesmente possuírem mundo. Para o homem, o mundo está como mundo, numa forma completamente diferente daquela que possui qualquer outro ser  nele colocado. E esta existência do mundo está constituída linguisticamente»  (Hans-Georg Gadamer, 1988: 531).