(excerto de um trabalho
escrito em 1998)
A racionalidade
será ética. A racionalidade ética será comunicacional. Perante a heterogeneidade
das formas de experiência, dos modos de compreensão do mundo, dos modelos de
relacionamento social, enfim perante a diversidade na atribuição de sentido ao
que nos rodeia e ao que inventamos como possível, impõe-se uma margem
incompatível com definições prévias e rigorosas de valores, de sentidos, de
verdades.
Não há leituras literais da realidade,
não há fidelidade na apreensão do real. Percepcionamos o mundo como se,
significamos como se, imaginamos como se. A estrutura da nossa
relação com as coisas é sempre figurativa, resulta sempre de um trabalho
criador do entendimento e da imaginação.
No processo inevitável de figuração do
mundo[1], atribuímos-lhe
contornos, construímos metáforas, impregnamo-lo de linguagem[2] - na forma como o
percebemos e na forma como agimos sobre ele. Essa construção de figuras é
acompanhada (filtra e é filtrada) por juízos éticos que ou nos conduzem no respeito pelas
diferenças e na tolerância por outras formas de
figuração do mundo ou nos bloqueiam num
quadro de certezas de curtas dimensões e moldura demasiado apertada. A
figuração é transfiguração quando abre ao outro, quando solicita para lá
do imediato mediatizado pelo próprio, ou desfiguração quando rejeita as
figurações alheias e empobrece, assim, as possibilidades de criação de sentido.
A
questão do outro é de tal modo instituinte da identidade subjectiva que marca
decisivamente qualquer dos actos humanos. A inteligência é competência criadora
na apreensão, na significação, na imaginação do mundo, ela apreende
transformando, significa transformando, imagina transformando - porque atribui
sentido, porque avalia, porque se transforma transformando. Todo este trabalho
de criação é tributário do lugar reservado ao outro, ao “outro outro” e ao “outro
no próprio”[3].
Ensinar às crianças a diversidade nas línguas (há muitas formas de
designar um coelho), nos comportamentos (há muitas formas de vestir e comer),
nas visões do mundo (há muitas paisagens a descobrir),… é fazer com elas um
exercício (semiótico, pragmático e ético) de compreensão e tolerância.
A racionalidade será ética. A racionalidade ética será comunicacional. Comunicacional quer
dizer tensional, atravessada por conflitos, por diferentes interpretações.
Comunicar quer dizer gerir diferenças, pôr em comum pontos de vista,
construindo um tempo e um espaço lógicos de troca, suportados, é certo, pelos
tempos e espaços empíricos de cada interlocutor, mas de nível operatório mais
complexo. Comunicar, nesse espaço e tempo lógicos, passa por um trabalho de
bi-codificação e bi-contextualização que permita justamente pôr em comum alguma
coisa: referenciar e investir de sentido, co-referenciar e co-significar.
A comunicação é alimentada por um estado
de tensão entre os homens e entre os homens e as coisas. Estado de tensão que a
comunicação tende ela própria a alimentar num processo de diferimentos
sucessivos e nunca resolvidos. A natureza tensional da comunicação é a sua
condição de possibilidade.
Mas é também a sua condição dramática. Pensar a
racionalidade ética sem escamotear a sua dimensão comunicacional é
inevitavelmente pôr em relevo a natureza conflitual dos procedimentos
comunicacionais. Os consensos absolutos, por um lado, e as transgressões
extremas, por outro, impossibilitam a comunicação, são condições mesmo de
incomunicabilidade total.
A
racionalidade ética é, pois, incompatível com valores e limites definidos
rigorosamente a priori, é incompatível com uma lógica do consenso
disciplinadora das diferenças e singularidades, assim como é incompatível com a
ausência de critérios orientadores da inter-compreensão e convivência entre os
homens.
Que lugar então para os juízos éticos?
Como conceber uma moral que preserve a lucidez perante a heterogeneidade? Como
definir referentes de acção no labirinto das diferenças? Como definir valores
que não ambicionem a hegemonia? Como instituir direitos sem atropelar outros
direitos?
Estamos perigosamente no reino das
aporias, dos paradoxos. Ponto final, abandonemos o problema? Declaremos a
esterilidade da questão ou procuremos ainda pensá-la?
De facto, tanto as exigências teóricas
como as exigências práticas da vida impõem que se insista.
Podemos estudar os procedimentos de
validação e legitimação dos consensos; podemos tentar articular uma moral
universalista (a da Europa?) - enquanto macroética - que não ameace a
incomensurável pluralidade de formas de vida antes a proteja; podemos propor a
solidariedade como valor fundamental; podemos instituir a resolução caso a caso
dos conflitos; …
A reflexão contemporânea sobre a razão e sobre a ética é
modelada pela incontornável importância atribuída à dimensão do fenómeno
comunicacional. O logos não é uma entidade imutável, deve dar conta das contradições
e mudanças que o atravessam quando atravessa a relação que estabelecemos com o
mundo.
O logos tradicional, tal como foi
sistematizado pelos Gregos e confirmado pelo pensamento escolástico, seria
essencialmente composto por três figuras (o trabalho de figuração atinge também
a forma como o pensamento se pensa): a necessidade, a evidência e a proposição.
O ser é como é, as coisas são como o seu
ser é (na versão ontológica) ou as categorias do conhecimento são universais
(na versão epistemológica kantiana). Necessidade e universalidade. Necessidade
e imutabilidade.
As ideias primeiras e intuitivas são
evidentes, elas definem o encadeamento lógico das outras ideias. Evidência e
método. Evidência e verdade.
A proposição é a forma inequívoca de
expressão das verdades necessárias. Proposição e princípio da identidade.
Proposição e princípio da não contradição.
E, deste modo sistémico, organizado,
estariam definidas as possibilidades e os limites do pensamento. A comunicação
processar-se-ia entre consciências, a linguagem seria o instrumento que
permitiria tornar público o pensamento: concepção pobre e elementar da
comunicação que, de facto, postula mais a incomunicabilidade do que o seu
oposto.
Pensar
hoje o pensamento e pensar hoje a ética implica abandonar essas três figuras. O
ser e o não ser baralham-se, as evidências tornam-se insustentáveis, a
proposição é substituída pelo jogo dos argumentos - e a dimensão comunicacional
transforma-se assim no núcleo fundador de uma analítica do social. A figura da
“relação”, na sua complexidade lógica e na sua abertura ao novo, é hoje a mais
apropriada para pensar a racionalidade. Ela é a única capaz de impedir a
afirmação de qualquer absoluto (ontológico ou ético).
[1] «Devemos
alargar o nosso conceito de mundo (…). Conjunto de referências abertas por toda
a espécie de texto, descritivo ou poético, que li, compreendi e amei. E
compreender um texto é interpolar entre os predicados da nossa situação todas
as significações que fazem do nosso Umwelt um Welt» (Paul
Ricoeur, 1976).
[2] Fenómeno
que se designa por “linguisticidade da experiência”.
[3] «A
linguagem não é apenas uma dotação de que o homem esteja apetrechado tal como
está no mundo; é antes nela que se fundamenta e se representa o facto de os
homens simplesmente possuírem mundo. Para o homem, o mundo está como mundo,
numa forma completamente diferente daquela que possui qualquer outro ser nele colocado. E esta existência do mundo
está constituída linguisticamente»
(Hans-Georg Gadamer, 1988: 531).