A chama dourada: sociabilidade e religiosidade na Internet


Simone Carneiro Maldonado, Universidade Federal da Paraíba, Brasil

Julho de 2000


Este texto se constitui das primeiras reflexões, desenvolvidas por mim em pesquisa recentemente iniciada sobre a sociabilidade na era ciber, de como neste meio aparentemente irreal, duro e impiedosamente exato, floresce o reencantamento da tecnologia (Lemos, 1999). O ponto de partida desta pesquisa se iniciara quando de estudos que fazia já há dez anos sobre as teorias sociológicas de Georg Simmel dentre as quais se destaca a questão da sociabilidade. Havia terminado de traduzir a sua "Sociologia do Segredo e das Sociedades Secretas" em cujo bojo há uma curta, porém rica digressão sobre a comunicação escrita, sobre a objetividade e a objetivação que promovemos ao inscrever, ao viabilizar a leitura de algo que outrossim seria de ordem unicamente subjetiva, através da possibilidade de releitura de um texto, o texto epistolar, "de onde não se pode mudar uma vírgula" (Simmel, 1906). São, aliás, as teorias simmelianas e os trabalhos de Michel Maffesoli e de Paul Virillio que norteiam as análises mais recentes veiculadas pela própria rede (Méndez,1999; Marina,1998: Lemos, 1999), sem falar na vasta literatura mundialmente produzida sobre a questão.

Na juventude a alternativa favorita da minha fantasia e dos meus devaneios era corresponder-me com jovens de outros países, de outras culturas. Hoje vinha uma carta da Suécia, amanhã uma do Japão, de Portugal, dos Estados Unidos, da Rumênia. A alegria da carta à minha espera na volta do colégio! A ansiedade por receber a primeira foto do correspondente, por ver-lhe o rosto (eram raras ainda na época as fotos coloridas, para dar uma idéia de como era aquele mundo da imagem) os cartões postais e discos, lenços étnicos e livros de tantos lugares!

Houve um rapaz sueco que me mandou, certa feita, um barbante com a medida da altura dele para eu avaliar como ficaríamos caminhando juntos... pedindo-lhe que mandasse um barbante semelhante, ou uma fita, que reproduzisse para ele a minha altura. Não posso deixar de tomar este atalho afetivo e pessoal, essa experiência de sociabilidade para falar do meu trabalho de agora, como logo se evidenciará.

O momento da pesquisa em que me encontro, é justamente o da sinalização do Outro, o das decisões efêmeras dos primeiros passos, o estranhamento já conhecido como experiência subjetiva da pesquisa antropológica.

Logo que comecei a usar a internet, dei-me conta de que a prática dos antigos correspondentes se viabiliza desta vez com as ciber amizades e ganha vigor com as formas específicas de surgimento de comunidades virtuais. Agora não somos mais eu e os meus amigos, mas eu que entro na constituição de um coletivo com objetivos comuns (o Zweckverband simmeliano). As pessoas se agrupam em círculos, fóruns, sítios que têm murais e noticiosos virtuais sendo a troca de emails a forma mais comum de frequentar grupos e manter amizades, assim como fazem chats (conversas "de verdade") e formam grupos de ajuda mútua, de preces, de cura, de discussão, de troca, sendo insistentes os convites de visita às "páginas" pessoais.

Compartilhamento. "(...) O intuito de poder dividir alguma emoção que porventura possa estar trazendo angústia à pessoa, ou em busca de ajuda ou aconselhamento" (Internet). As fotos de viagem, dos filhos, dos animais de estimação. As interpretações são várias, e todo um léxico se cria para dar conta das novas realidades, práticas, sociabilidades. Fato é que a frieza, o congelamento da afetividade e da própria sociabilidade não se evidenciaram de forma alguma, como prevêem os "apocalípticos" (Costa, 1999) Ao contrário. Estes apostam no resfriamento total da interação, num refinamento das formas de distribuição e de consumo de produtos que pode levar a um consumismo e uma diferenciação ainda maiores do que o que marca a relação da cultura objetiva e da cultura subjetiva de hoje (Simmel, 1950). Vende-se muito pela internet sim. Paga-se contas. Outro dia, num dos grupos que frequento, uma pessoa esteve 15 dias numa "cadeia virtual". Isso significou o silêncio. Adrienne Cobbs passou um certo tempo sem poder colocar qualquer coisa no mural virtual, nem receber mensagens. Poderia, é claro, dar continuidade a quaisquer outros grupos de que porventura participassse, assim como escrever aos seus amigos pessoais. O ostracismo era na lista. Enfim, pode-se fazer quase tudo virtualmente.

Para Costa (idem) os "integrados", o outro lado da medalha seriam os que "vêem nas últimas mudanças uma panacéia universal. Sim. Refiro-me neste artigo justamente a esse lado menos tétrico das novas tecnologias, sem no entanto perder o distanciamento reflexivo que me permita fazer também a crítica e evidenciar riscos na sua utilização. Não necessariamente panacéia. Não necessariamente universal (ainda). Não tão democratizante da distribuição da informação e do conhecimento como se possa pensar. Esses são os primeiros cuidados antes do mergulho na reflexão sobre o tão novo (ainda!).

A classificação e as posturas "apocalípticas"/"integradas" são solidárias no tempo e na estrutura com os estudos de Farina (....) que lembra que o acesso ao ciberespaço e à cibercultura ainda não são universais e de certo modo ainda excludentes, pois não é majoritária a porcentagem de usuários deste sistema no mundo. Assim sendo, admite que haja pessoas cujas vidas e cujas interações foram modificadas pelo uso da internet e outras que, ao contrário, dela não têm idéia, vivendo "como dantes no quartel de Abrantes", ou seja, mandando suas cartas, indo ao mercado, trocando dinheiro na calçada, indo às biroscas e às rinhas e às sinucas para se divertir e para beber, em altas gargalhadas e gritos de estímulo uns aos outros. Farina opõe a este, a quem ele chama "o selvagem feliz" os "homens de vidro", que passam horas diante do computador, que numa ilha deserta prefeririam certamente a internet à TV ou ao telefone, que usam nicks (apelidos usados pelos internautas), deletam (apagam) coisas, atacham (anexam) documentos e cartas de amor e escaneiam (imprimem) fotografias e cartões postais. Que praticam do turismo ao sexo virtual, por preocupante ou difícil que isso possa parecer.

Em termos de linguagem, o próprio termo "virtual" é uma ruptura com um significado se se quer oposto que a palavra teve anteriormente, quando "virtual" significava presente e verdadeiro. Falava-se de "presença virtual", "testemunha virtual", "fatos virtualmente narrados", "texto virtual",, "citação virtual", num sentido bem diverso do que tais conjuntos de palavras (que continuam sendo usados!) assumem no mundo informatizado.


Na "Realidade"


Passo então a explicitar meu recorte na pesquisa ora em andamento, exemplificando os aspectos do fenômeno da comunicação virtual já com algumas das instâncias vindas dos próprios dados. Impressões fortes, porém ainda parciais e sujeitas à revisão.

Estudando, como disse, a teoria das sociabilidades em Georg Simmel e tendo vivenciado a experiência de trocar correspondência com estranhos estrangeiros de maneira sistemática durante muito tempo, a minha atenção recaiu sobre esse tipo de sociabilidade, a interação eletrônica via comunicação escrita sem objetivo comercial, financeiro ou acadêmico. Como nos velhos tempos. Pessoas que compartilham não só a experiência da correspondência por email como se entre-alimentam com informações sobre países culturas, acontecimentos mundiais assim como a tristeza da vizinha que perdeu seu gato e, a depender da tendência predominante no grupo, troca-se, sobretudo confidências, sendo este um lado forte do ponto de vista da relevância sociológica deste recorte temático, assim como da abordagem conceitual simmeliana para falar das novas formas de comunicação no que elas propiciam de clareza e imprecisão.

A minha intenção na verdade ao conceber o projeto era, a partir do reconhecimento do profundo impacto nas formas de sociabilidade trazidas pela internet, mostrar que as velhas formas de intercâmbio, eram vozes que não silenciavam inteiramente mediante as mudanças de que tanto se fala hoje em dia. Para tal, propus-me à maneira antropológica tentar fazer um trabalho de observação participante num mundo ao qual até então eu não pertencia, não sendo sequer esse pertencimento parte dos meus objetivos.

Como tudo se pode intercambiar eletronicamente, é preciso que eu explicite a que aspecto desse intercâmbio, desses feixes de relações eu me refiro. Comércio? Propaganda? Comunicação interinstitucional? Turismo virtual? Salas de conversa ("chats")? Grupos de prece e de auto-ajuda, satanismo? Rituais alternativos? Receitas de cozinha? Pontos de bordado? Pois de tudo há...

A referência sociológica básica a esta reflexão passa a ser a análise feita por Georg Simmel em 1906 sobre a comunicação escrita, sobre a objetivação do que é dito numa carta a partir de que subjetivamente a escreve e envia. A digressão (como ele mesmo nomeia essa peça) está embutida na sua Sociologia do Segredo e das Sociedades Secretas onde a carta e o adorno são tomados como epicentros de relações altruístas e egoístas, subjetivas e objetivas a partir do fenômeno do segredo. Falando de segredo, passa-se pela revelação, pela ocultação e pela transparência, pela possibilidade (ou não) da própria verdade (Simmel, 1906;Wolff,1950; Tefft, 1980; Bejárm,....; Maldonado, 1994 e 1999). Encontrei na análise simmeliana sobre o segredo os pressupostos e encaminhamentos teóricos necessários ao estudo da sociabilidade das pessoas comuns por correio eletrônico e a formação de grupos que parece inevitável.

Também a esta temática referiu-se Simmel ao falar dos Zweckverbanden, grupos de interesse comum entre os quais ele utiliza como exemplos através da análise das camadas de sentido de que se compõem, grupos que vão desde a maçonaria, às sociedades secretas tribais (dos "povos da natureza"), dos templários aos cristãos (dos primitivos à Opus Dei), à Máfia e suas ramificações e variantes (a Yakuza japonesa, a Camorra, a N'Dranghetta, assim como os atuais formadores de quadrilhas e máfias do colarinho branco), dos Mau-Mau aos druidas guardiães das tradições célticas. Também nos oferece Simmel no curso da sua reflexão sobre a interação, a sua sociação, teoria da formação dos grupos sociais e a importância da distribuição social da informação em cada um deles. Estes por sua vez se fazem presidir no seu tecido societário por um ou várias formas sociais não raro associadas aos seus próprios opostos (que também os contêm) em cruzamentos da verdade e da mentira, do altruísmo e do egoísmo, da sedição e da transparência, da solidariedade, da reciprocidade e do conflito. Assim funciona a sociedade no pensamento simmeliano, pelo menos no que nos interessa neste momento, que é a questão das sociabilidades reestruturadas ao ver-se realizada por via eletrônica. A repercussão não podia deixar de ser significativa a todos os níveis, merecendo, portanto, estudo e valorização como temática de estudo. Noções de tempo e de espaço, por exemplo, imediatamente se movimentam, achando uns que as distâncias se reduzem (o que no sentido "econômico" não deixa de ser "bom"), outros que o mundo "aumentou", que fronteiras caíram e que uma nova forma de consciência coletiva está em construção (Méndez, 1999).

Estaria, portanto, no mundo "virtual" (tanto do ponto de vista tecnológico como de uma perspectiva humanista, relacional), a possibilidade de acessar uma "realidade" exterior pré-existente atualizando-a, sempre mediante algo bem tangível, a materialidade do computador, sem a qual sequer estaríamos falando disso aqui.

É preciso levar em conta também a especificidade destes contatos. Contatos assépticos em que a pessoa fica poupada de ser vista, de ver, até de "sentir o cheiro do outro, ver-lhe o suor, a feiura" (Internet). Nesta circunstância as confidências se viabilizam mais, as pessoas se sentem mais à vontade para falar dos seus rombos interiores, de filhos drogados, da sua própria condição física, seja ela portadora de alguma doença (e como as há...), obesa, homossexual, desempregada, inconformada com alguma perda, com a separação. Algumas delas têm na internet sua janela para o mundo, sendo paraplégicas, agorafóbicas, e vendo-se de repente escrevendo cartas e compartilhando sentimentos com quem quiser, pertencendo a grupos, "indo" a reuniões, participando de viagens virtuais a lugares sagrados como Jerusalém ou de reverberação mística como as pirâmides do Egito, o Monte Shasta, etc. É comum que as pessoas se sintam mais liberadas da sua eventual exclusão ou impossibilidade de movimento e falem dos seus problemas pessoais com maior facilidade do que o fariam com alguém conhecido ou numa relação face-a-face. "A inibição faz com que ao vivo e a cores, as pessoas sofram bloqueios..."

E não só isso, como no correio eletrônico, os ciber correspondentes podem adotar identidades diferentes da sua própria; pode-se até "trabalhar" com três, quatro identidades. Certa vez, logo no início, perguntei a uma correspondente minha sobre a "verdade" das personalidades e das declarações na rede, as suas próprias,e ela me respondeu: "Também eu não sei se você existe do modo como se apresenta. O sistema tem um botãozinho chamado "delete" que resolve o problema. Se a gente não gosta de alguma coisa ou duvida de alguém, deleta que outro desaparece".

O uso dos apelidos ("nicks", do inglês nickname) é outra instância em que muitos expressam seus desejos, suas tendências. Cobra-se de quem entra na net, o seu "nick". Não é mandatório, mas espera-se que as pessoas optem por um apelido. Esta prática certamente seria reveladora de outras camadas de significado ao nível da subjetividade deste tipo de usuário. Certamente não há apelidos nas relações comerciais ou financeiras. Se bem que os conheça pelo fato de me corresponder com muitas pessoas e do pertencimento a círculos, vejo indicativos de que estes apelidos são reveladores de questões identitárias profundas. Fazem parte desta entrada, os rituais de nominação e os critérios de escolha dos nicks.

Listar os aspectos por assim dizer ancilares à pesquisa que me chamam a atenção nesta fase de aproximação daquilo que desejo visualizar na internet seria exaustivo e no momento de certo modo uma irresponsabilidade pois não disponho de elementos suficientes para a análise, além do que o objeto desta comunicação é outro.

O motivo destes comentários introdutórios é facilitar o entendimento do que passo a comentar sobre a religiosidade em meio a este mundo em que as pessoas são classificadas como "os aldeões do Mundo Feliz" (os que ainda não foram presa do fascínio da rede) e os "homens de vidro" que se comunicam friamente, que vêem e se deixam ver numa medida estranhamente próxima ao quanto se ocultam e lhes provoca incerteza (Marina, 1999).



CHEGANDO LÁ

Ainda antes comportar-me como pesquisadora, comecei a visitar links e páginas, com o intuito primeiro de ir conhecendo pessoas de outras culturas como antigamente. Meu hobby de volta. Nada mais que isso. Fui fazendo amigos que na sua grande maioria pertencem a círculos e grupos de apoio mútuo e de discussões temáticas. Há os que centram suas temáticas em animais de estimação, os que têm certas doenças, os que sofreram abuso na infância ou no casamento, os divorciados, os místicos, que Lemos (1999) chama de "tecnopagãos", semelhantes aos "ravers" e "zippies" "que misturam esoterismo e novas tecnologias "numa rede eclética que mistura espiritualidade, teosofia, hermetismo e medicina natural "(idem). Cada grupo destes tem seu material de disseminação, jornais semanais ou hebdomadários, murais virtuais, sessões de mensagem, sem falar nos chats. Não falta o que escolher e ao mesmo a pluralidade de expressões do fenômeno da virtualização da interação torna difícil a escolha e responsáveis os resultados.



A Chama Dourada

O título deste artigo é o nome do primeiro grupo de religiosidade a que me filiei, A Chama Dourada (The Golden Flame) que tem seu ponto central na Nova Zelândia, tendo, no entanto, membros de várias partes do mundo. Depois de alguns meses filiei-me ao Círculo de Orações das LOTH (Ladies of the Heart , as Senhoras do Coração), que é de orientação cristã e que também congrega mulheres do mundo todo, inclusive do Oriente, da Rússia e do Brasil. Fica difícil a gente identificar (pelo menos por enquanto) qual o ramo do cristianismo. As pessoas não declaram ser católicas, protestantes, batistas, anglicanas. São simplesmente cristãos, e a visão religiosa que prevalece é a de que Deus é Pai, Criador e digno de louvores e cheio de amor, a prece é o caminho e Jesus é seu Filho Bem Amado que é também nosso irmão e de quem se fala com muita proximidade. Os anjos são também figuras proeminentes nesse universo. Mediadores, falam com as pessoas, deixam mensagens, se deixam ver e desenhar. Há páginas e sítios dedicados unicamente a imagens e assuntos angelicais. Nenhuma referência a rituais, igrejas ou ministros. Menos ainda a santos. A própria Virgem Maria é apenas timidamente mencionada vez por outra.

Eu não os chamaria de tecno-pagãos, pois não o são. Os pagãos, (Wicca, xamanismo, revivescência de antigos cultos celtas e egípcios) também têm seus grupos e reivindicam para si o epíteto de espiritualistas pela sua crença nas forças da natureza e na possibilidade de comunicação dos xamãs com outras dimensões de consciência e sua capacidade de curar. O sítio desta tendência a que me filiei se chama A Mystickal Grove e há divisão por regiões e países, inclusive o Brasil. Assim, eu tenho podido manter contato com pagãos também do nosso país. Filei-me ao Grove e cheguei a fazer amizade com uma xamã praticante que é também professora de literatura russa. Estes detalhes enriquecem muito a situação, pelo menos para mim! Surpresa após surpresa!

O terceiro grupo é a School-Gate, um grupo teosófico que apesar do nome inglês se irradia a partir de Brasília e conta com brasileiros como membros majoritários. Temos companheiros também na Inglaterra, nos Estados Unidos e na Dinamarca. Neste grupo, uma pessoa "central" manda citações de textos místicos ou herméticos, bem na linha da teosofia, que geram discussão sobre vários pontos. Neste momento algumas pessoas estão lendo Helena Petrovna Blavatski, a emblemática figura da teosofia e discute-se muito as controvérsias sobre a Amada Senhora, como a chamam. Outra discussão também atual e não concluída deste grupo é a questão de se os animais têm ou não uma centelha divina. Isto veio a partir do estímulo de um membro, uma arquiteta de S.Paulo, condoída com o que ela chama de " a nossa atitude cruel e desumana para com os animais". As respostas são as mais várias. Vão desde as teorias da teosofia sobre o quanto de divino existe na Criação, frases dos grandes nomes ( Helena Blavastki, Annie Besant, Jiddu Krishnamurti), até o lembrete de que muitas pessoas tratam seus animais melhor do que os humanos que os rodeiam.

O Círculo de Preces é um sub-grupo de outro maior, o das Senhoras do Coração (LOTH-Ladies of the Heart). O LOTH é exclusivamente feminino e se caracteriza mais como ajuda mútua e troca de experiências do cotidiano. Ainda não saberia dizer quantas somos, mas já encontrei outra brasileira, e nos dividimos em Regiões. Eu por exemplo, pertenço à Região 30 cuja coordenadora mora em Porto Rico. A Região 30 "cobre" o México e a América Central. As ilhas do Caribe, nossas vizinhas, já pertencem à região 31 que, no entanto, está estreitamente ligada à nossa, a 30, dando-se a comunicação e sendo os semanários em idioma espanhol. O LOTH favorece a expressão da religiosidade vinculada às dores, alegrias e pedidos de preces quando as pessoas estão com medo, sob ameaça, doentes, solitárias, em fase de crise familiar (com filhos ou com parceiros), deprimidas. No entanto, se subdividide em grupos mais "especializados" entre os quais está o Circle of Prayers (Círculo de Preces) As atividades são bem diversificadas aí. As pessoas enviam salmos, textos bíblicos, citações, sempre referendando o Criador e Pai e o amor do Filho, Jesus como nossos refúgios e recursos mais certos.

Promovem-se também discussões que muitas vezes duram semanas e até meses. No momento, alguém citou uma frase sagrada sobre a prece. Pedir? Não pedir|? Insistir nos pedidos que não são atendidos? Por que alguns sim outros não? Se Deus tudo sabe de nós, será que é necessária a prece repetitiva? O que é rezar? E as mensagens se entrecruzam com as mais variadas interpretações e opiniões. É o que está sendo discutido neste momento neste círculo.

Volto um pouco à Chama Dourada. Este é bastante diversificado e se caracteriza mais pelas canalizações. A pessoa-centro é neo-zelandesa, recebe e transmite mensagens angélicas, algumas bastante longas. Metatron, Sandalphon, Milaralay, Sananda, O Conselho dos 12, são entidades em sintonias diferentes da nossa que nos acompanham e reafirmam a nossa esperança através de Karen Langdon que cuida do mural virtual e manda o jornal da Chama Dourada, o "Golden Flame Newsletter" a cada mês. Neste grupo há os que se comunicam com seres ultra-terrestres, eu diria, numa forma religiosa de falar e de transmitir as mensagens.

É um mundo vasto e misterioso que acabo de adentrar. Tudo ainda me parece provisório e pede um burilamento para que se possa falar de pesquisa. Por isso, apesar de navegar em outros sítios como a Kryon Homepage que é também meio religiosa, meio ufológica, a Avatar Search, o Isis Project, a Carta de Notícias, concentrei a minha coleta nos grupos acima citados e já aceita como membro e participando da algumas atividades, declarei a minha intenção de enveredar pela pesquisa analítica, pedindo inclusive permissão para recolher as discussões e utilizá-las como dados. Os grupos foram muito receptivos à idéia, de modo que agora está claro o que estou fazendo.

Considero-me, portanto, em plena pesquisa participante de vez que também eu me envolvo nessas discussões e tenho as minhas tarefas no campo da ajuda mútua, do atendimento a pessoas que estão em fase crítica e nos círculos de preces.

Há autores como Lemos (op.cit.) que falam do "vitalismo social" permitido no ciber espaço que, segundo ele, impõe uma interface entre o sagrado e o profano, e que sugerem se se quer o afastamento da assepsia, de um lugar de informações precisas e utilitárias. Uns o dizem asséptico. Outros, humano, caloroso, íntimo.

O que me interessa no momento é a expressão de várias tendências na busca da transcendência e do sentido da vida e do mundo no bojo das novas sociabilidades (ou socialidades como muitos preferem) na internet. Entre o compartilhamento e a solidão, as coisas se misturam um pouco. O desabafo sobre o fracasso de um casamento, sobre a prisão de um filho viciado, o nascimento de um bebê doente, se mesclam à esperança de que as preces de um grupo inteiro possam remir a aflição.

Essas expressões se encaixam no que U. Hammerz (apud Lemos, 1999) chamada "communauté sans proximité" (comunidade sem proximidade), em que "a tecnologia não chega a erradicar a potência da ligação (da re-ligação), e às vezes serve-lhe até de coadjuvante".

Encerro esta breve comunicação reconhecendo e esperando a compreensão dos leitores para a incipiência das propostas aqui contidas, o que se explica pela altura em que se encontra a elaboração da pesquisa descrita.


PARA TERMINAR

A literatura contemporânea sobre a articulação das novas sociabilidades ao contato com as novas tecnologias, fala de "clonagens cotidianas" de relações que entram em manuais de costumes (existe inclusive uma "netiqueta" que começa a conceber e divulgar éticas e códigos de comportamento na rede), que "nada mais são do que novas formas de desejo (Méndez, 1998): a confirmação de que alguém pensa em nós", se bem que muitas vezes a mensagem consoladora e solidária que tanto nos tocou e que parece ser nossa, tenha sido mandada a muitos, o que se pode ver pelo endereçamento da mensagem.

O mesmo autor fala da "filtragem do outro", viabilizada pelas novas tecnologias de comunicação. Diz ele que "negócios, religiosidade, compras e prazeres se resolvem em telas amáveis e luminosas (...) em e-mails ou ICQ. Além disso, na mesma perspectiva, tratar-se-ia de uma espécie de assepsia (de que falamos há pouco), numa vida em que a rua nos expõe "ao mau-humor, ao trânsito estressante, à sujeira à pressa e aos aglomerados, argumentos severos em favor da limpeza e da economia dos encontros virtuais".

Outros estudiosos do tema como José Antonio Marina (1998) afirmam ser ainda majoritária a população à margem do mundo virtual. No entanto, esse universo continua a multiplicar-se e a crescer, constituindo-se de "indivíduos frágeis, alérgicos à vivência sentimental da existência, sem outra pátria a não ser a Rede, portadores de tristezas e solidões ainda não classificadas pela psicologia".

Seja como for, são novas formas de comunicação que se desenvolvem e proliferam nas mais variadas formas e com as mais diversas motivações, que vão desde dores pessoais até a poesia, receitas de cozinha e fóruns de denúncia e de protesto contra a violência, a guerra, as perseguições, a insegurança que perpassam hoje a vida urbana e ameaçam os ambientes ainda bucólicos e vida ainda prazeirosa.

Para não concluir sem citar pelo menos uma das peças enviadas pela rede e por mim recolhida a 10 de outubro de 1999, segue-se uma peça de Roque Schneider, religioso brasileiro, que foi enviada de Fortaleza e que é representativa do espírito proposto pela religiosidade na rede:



O VALOR DAS PEQUENAS COISAS

Aprende a escutar a voz das coisas, dos fatos, e verás como tudo fala, como tudo se comunica contigo.

Em cada indelicadeza, assassino um pouco aqueles que me amam.

Em cada desatenção, não sou educado nem cristão.

Em cada olhar de desprezo alguém termina magoado.

Em cada gesto de impaciência, dou uma bofetada invisível nos que convivem comigo.

Em cada perdão que eu negue, vai um pedaço do meu egoísmo.

Em cada ressentimento, revelo meu amor-próprio ferido.

Em cada palavra áspera que digo, perco alguns pontos no céu.

Em cada omissão que pratico, rasgo uma folha do Evangelho.

Em cada esmola que eu nego, um pobre se afasta mais triste.

Em cada oração que não faço, eu peco.

Em cada juízo maldoso, meu lado mesquinho aflora.

Em cada fofoca que faço, eu peco contra o silêncio.

Em cada pranto que enxugo, eu torno alguém mais feliz.

Em cada ato de fé, eu canto um hino à vida.

Em cada sorriso, eu planto alguma esperança.

Em cada espinho que finco, machuco algum coração.

Em cada espinho que arranco, alguém beijará minha mão.

Em cada rosa que oferto, os anjos dizem amém!


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BIBLIOGRAFIA CONSULTADA


CADOZ, Claude - "Les Realités Virtuelles", Paris, Flammarion, 1994.

LANGDON, Karen - " Friends Without Faces", Golden Flame Nesletter, Julho de 1998. Fonte:Internet.

LEMOS, André - "Ciber-Socialidade. Tecnologia e Vida Social na Cultura Contemporânea. Fonte; Internet, http://www.facom.ufba.br.

MALDONADO, Simone C. - "Amigos que Não Têm Rosto", comunicação apresentada nos Encontros sobre o Imginário, UFPE, 1999.

MARINA, J.A. - "Etica para Náufragos", Caracas, Venezuela Analítica, 1998.

MÉNDEZ, Ivan -" Vacaciones de la Realidad", Venezuela Analitica, 1998 (Fonte: Internet)

______________ - "Deseo de Inexistencia", Caracas, Venezuela Analítica, 1998.

SIMMEL, G. "The Sociology of Secret and of Secret Societies", The American Journal of Sociology, Vol.IX (4), 1906.

WATZLAWICK, P. et al. - "Une Logique de la Nouvelle Communication, Paris, Ed. Du Seuil, 1972.