Notícia sobre a História Trágico-Marítima

Maria Angélica Madeira *, Universidade de Brasília


Palavras-chave: Comunicação, História, Literatura e Crítica Pós-Colonial.


Monumento literário e importante conjunto de documentos, a História Trágico-Marítima é uma coletânea de narrativas de naufrágios da segunda metade do século XVI e início do XVII, compiladas pelo historiador setecentista português Bernardo Gomes de Brito, e publicadas, como conjunto, em Lisboa em 1735 e 1736. Não se pode saber ao certo que alterações foram feitas pelo historiador sobre o texto dos narradores originais. Raros foram os relatos que sobreviveram, e pode-se dizer que se não fosse o trabalho de Gomes de Brito teríamos perdido aqueles textos, de extrema beleza e relevância para a pesquisa histórica, etnográfica e literária.

Os narradores quinhentistas provêm de estratos sociais e possuem níveis intelectuais muito diferentes. Há, por exemplo, um cosmógrafo real como João Batista Lavanha, um cronista e escritor de renome como Diogo do Couto, amigo de Camões, um boticário, padres jesuítas e até mesmo narradores anônimos. Alguns deles tomaram parte nos acontecimentos e narram sua própria experiência; outros ouviram a história de algum sobrevivente. Alguns escreviam movidos por intenções pedagógicas, outros para pagar uma promessa, outros ainda escreviam sob encomenda de algum familiar do náufrago, a escrita valendo como um ex-voto ou um memorial.

O certo é que os relatos conheceram uma grande popularidade à época, atingindo recordes editoriais, talvez pela moda do impresso surgida da necessidade de suprir as numerosas tipografias que se estabeleceram precocemente em Portugal. As casas de impressão publicavam os relatos sob forma de libretos, em edições populares e baratas, trazendo na folha de rosto a sua síntese e, como ilustração, uma gravura representando a cena do naufrágio. Talvez o sucesso de público possa também ser explicado pelo grande envolvimento dos portugueses com o empreendimento comercial e marítimo do país. Segundo estimativa, a população média de Portugal entre 1500 e 1580 era de um milhão e 500 mil habitantes e destes, 280 mil no início e 360 mil no final do século - ou seja em torno de 1/4 da população total - andavam embarcados ou estavam diretamente envolvidos nos negócios da navegação.

Mas a explicação mais plausível para o sucesso daquelas narrativas é o gosto por histórias trágicas, profundamente arraigado no imaginário coletivo que, em contato com os acontecimentos reais, potencializa uma percepção catastrófica do tempo, como um contraponto ou como uma “coda” aos discursos épicos e laudatórios sobre as façanhas expansionistas, comerciais e coloniais dos portugueses.

O interesse das narrativas ressalta-se, qualquer que seja o viés através do qual sejam abordadas. Interesse histórico -documental, por narrar um capítulo da “era dos descobrimentos” por um ângulo inusitado, tendo sempre a “grande história” como contraponto aos eventos narrados; interesse etnográfico, permitindo reconstituir “cenas” da vida cotidiana no mar, ampliar o conhecimento sobre a cultura marítima, a vida a bordo, trazendo algumas vezes interpretações pouco comuns entre os cronistas e historiadores quinhentistas oficiais. Interesse etnográfico, ainda, em relação ao repertório de conhecimentos acumulados sobre a América, a Índia e, principalmente, a África. Apesar do eurocentrismo marcante dos discursos, os narradores revelam-se bastante perspicazes para apreender sistemas de parentesco e descrever práticas religiosas e rituais das tribos e clãs da África Oriental, em cujas praias erravam os portugueses após os naufrágios.

Não deixa de ser relevante - esclarecedor - o surgimento da série de “narrativas de desastre” que encenam um imaginário trágico, apresentam os portugueses como perdedores, introduzindo uma contra-coerência na interpretação da empresa conquistadora européia.

Porém, se abandonamos o viés documental e nos voltamos para as narrativas como textos estéticos, ficamos surpreendidos e fascinados com a quantidade de questões novas que surgem. Figurações imaginárias daquela sociedade, os relatos se apresentam como realizações precoces de uma prosa literária barroca, utilizando alegorias e imagens de forte poder emocional, em sua intenção explícita de estilizar e ficcionalizar a realidade.

Há, nos relatos de naufrágio, regularidades impressionantes que permitem tratá-los como um conjunto esteticamente elaborado. Todos eles apresentam, grosso modo, três seqüências que correspondem às fases da viagem marítima - a partida, o naufrágio e a perdição dos sobreviventes. Apesar do encadeamento cronológico evidente entre as partes, ficam visíveis os encaixes que as unem, o princípio da justaposição que rege aquelas estruturas. As narrativas mesclam convenções dos discursos histórico, ficcional e etnográfico, sem se deixarem, contudo, classificar inteiramente nestas categorias. Além disso, o hibridismo se faz presente na própria superfície textual inclassificável, constituída de materiais culturais muito heterogêneos como citações de autores gregos e latinos, dos Evangelhos, ditados e provérbios, preces e sermões, lendas e crenças, saberes populares e conhecimentos eruditos, científicos e técnicos, sobretudo os ligados à navegação.

I Quem era aquele povo viajando de Portugal para a Índia ou para o Brasil, ou, no caminho de volta, de Goa, Cochim ou de Olinda para o Porto de Lisboa? Como era organizado o espaço e dividido o tempo? Como era vivido o dia-a-dia, e o que pode ser dito sobre a economia das emoções dos passageiros? Como enfrentavam a morte? Estas questões orientaram a primeira parte das pesquisas e conduziram a uma reflexão sobre o tipo de sociedade específica que se forma entre os embarcados.

Não é um exagero repetir que todos os representantes da sociedade em terra estavam presentes em uma viagem marítima. Havia nobres como capitães, padres e missionários, oficiais, artífices e burocratas. Nas escalas mais baixas, marinheiros, grumetes, subordinados ao mestre ou ao contra-mestre, e os soldados, subordinados ao mestre-canhoeiro ou condestável. Os soldados e seus chefes, embora atuassem como um "exército" na defesa do navio em caso de necessidade, viajavam a caminho das feitorias das colônias onde iam servir. [Soldados eram organizados em pequenas unidades chamadas "estância", "bandeira" ou "companhia".] Os mais baixos no escalão da tripulação de uma nau eram os grumetes e os criados. Não menciono os escravos porque estes eram contados como mercadoria e não eram sequer considerados como parte da sociedade do navio. Assim também as mulheres e as crianças só mereceram alguns parcos comentários por parte dos narradores. Apesar da maioria da população ser constituída por homens, sabe-se que mulheres e crianças sempre viajavam e, dada a situação, formavam um pequeno grupo a parte. Há referências a escravas e criadas, assim como a fidalgas acompanhando seu pai ou marido. Há também as órfãs do rei, jovens trazidas dos orfanatos de Lisboa e enviadas para as colônias, como estratégia para incrementar o povoamento nas colônias. Levavam consigo um dote que em geral era um posto no serviço público para o homem que a desposasse, conforme nos ensina o historiador inglês Charles Boxer.

Os relatos fazem pouquíssima referência aos escravos, quando se sabe que estavam presentes, algumas vezes, em grande número. Eles são citados apenas quando se trata de inventariar as mercadorias que conseguiu se recuperar do naufrágio ou então quando são chamados para carregar um sobrevivente doente ou o andor de um aristocrata cansado. Eles eram contados por peças, e de acordo com o mesmo historiador uma peça podia ser composta de duas ou três pessoas, dependendo da idade, saúde e sexo.

Apesar da proibição de crianças a bordo, encontramos muitas referências a elas nas narrativas, sempre acompanhadas de seus pais, ou dos padres, sobretudo dos pedagogos jesuítas. No navio São Paulo, afundado perto da ilha de Sumatra em 1561, segundo o narrador Henrique Dias, procissões a pé descalço eram organizadas. O capitão, muitos sacerdotes, o próprio narrador, que era um boticário, todos participavam e "todos os meninos, dos quais devia haver uma quantidade de aproximadamente uns trinta, de doze anos para baixo, cumprindo a disciplina até que Deus Nosso Senhor deixou cair sua mão de punição sobre nós" (HTM, 65).

Homens ricos eram acompanhados de um séquito completo: secretários, criados e escravos, especialmente quando viajavam com as famílias para se estabelecer na colônia por algum tempo.

Como instituição, a singularidade do navio mercante reside no fato de ser um "híbrido social" flutuante, sociedade constituída para a circunstância daquela viagem. Ponto de cruzamento de interesses, espaço de alta tensão, pela concentração de poder, pela ansiedade com a expectativa do enriquecimento. Tensão também criada pela situação de provisoriedade e instabilidade assim como pela presença de estruturas altamente hierarquizadas em um espaço afeto às misturas.

II. Abandonando o viés documental - sócio-histórico e etnográfico -, pode-se melhor apreciar a dimensão estética dos “relatos de naufrágio”. Estes apresentam a já referida estrutura regular em tríptico cujas secções - a partida, naufrágio e perdição em terras estranhas - utilizam convenções retóricas que prenunciam que só se tornarão canônicas a partir do século XVIII.

Além desta estrutura bastante marcada, os relatos de naufrágio também apresentam, muitas vezes, uma abertura sob forma de um prólogo onde o narrador explica as razões e motivos que tem para escrever: folgar com o fim dos males, dar um exemplo, fazer uma homenagem, responder a um pedido, uma promessa. Esta "portada" constitui o primeiro encaixe, ou seja, o enquadramento, o primeiro lance do jogo da enunciação que vai estabelecer o padrão do permanente ponto/contraponto entre o ato de escrever e rememorar, e o acontecimento. É também a duplicidade desta posição inicial que permitirá os saltos abruptos no tempo e na consciência, criando esta «diagonalidade narrativa» que resulta em engenho artístico, metalinguagem implícita dos mestres da prosa barroca, segundo Afonso Ávila.


Esta portada muitas vezes adquire autonomia, ampliada por reflexões digressivas onde o narrador deixa transparecer sua formação intelectual, na maior parte das vezes humanística e religiosa ou, mais raramente, científica. Ali também podem ser lidos os valores aos quais adere, reveladores de sua biografia - nascimento e educação. São legíveis, tanto os valores adquiridos por uma educação erudita quanto aqueles preservados da cultura popular, tradições que, aliás, não aparecem como saberes distintos ou em oposição. Exemplar, neste sentido, é o prólogo do relato do naufrágio que passou Jorge d'Albuquerque Coelho (1565), onde o narrador inicia contando o costume antigo, praticado pelos que escaparam de um grande perigo ou enfermidade, de oferecer no Templo uma tábua onde estivesse escrito o perigo do qual se viu libertado. Conta ainda, seguindo Estrabão, que foi recolhendo estas tábuas, que continham as doenças e os remédios, que Hipócrates pôs a Medicina em arte. Compara em seguida seu relato a um ex-voto, lembrança dos trabalhos passados no naufrágio e remédios usados: lágrimas, contrição e arrependimento das culpas. Seu intento é evitar o esquecimento, agradecer a mercê do Senhor que o salvou e assim louvá-lo para sempre.

Se a primeira seqüência do relato, preocupa-se em fornecer informações sobre a conjuntura política, ora de Portugal ora das colônias, sobre o tempo e alguma circunstância especial na partida, sobre a formação da armada e seus dirigentes, a seqüência seguinte - a tempestade e o naufrágio - apresenta-se como dotada das estratégias do discurso ficcional, altamente estilizado, codificado, o que leva o leitor a ter a consciência de estar lidando com uma convenção literária forte e arcaica do medo e da morte. De fato, o caráter repetido e seriado desse fragmento levou-me à constatação de que se trata de um dos tropos retóricos mais tradicionais e elevados da literatura ocidental, constando da ekphrasis dos oradores gregos. A fórmula da descrição compreende: a leitura de sinais da natureza que prepara a seqüência da tempestade; a luta entre os elementos - a "discórdia elementar"; a luta do barco contra os ventos e as ondas; o desastre e outros trabalhos; o naufrágio: a morte da nau que, em geral, quebra-se antes de ir ao fundo; cenas de afogamento e morte; salvamento em alguma praia deserta ou pântano.

A seqüência comentada representa o ponto de desordem por excelência - «confusa ordem com que a desventura tinha tudo aquilo ordenado» (HTM, 53), a situação-limite a que chega um grupo social, o evento que torna a viagem memorável. Ponto de referência crucial, alvo para o qual os signos tendem e a partir do qual todos se dispersam e se rebatem sobre a totalidade da narrativa que encontra no naufrágio sua própria razão de ser.

A elipse - figura barroca por excelência - deslancha um dispositivo cognitivo específico que permite compreender, ao mesmo tempo, esta duplicidade do foco narrativo e a complexidade da construção do ritmo e dos padrões de duração - a alternância entre ralentis e acelerações - que estilizam o fluxo e a fúria das águas e das palavras. A partir destas imagens em movimento torna-se possível compreender a cumplicidade entre os efeitos retóricos e a estrutura narrativa.

Provocando sensações de contraste e de instabilidade, a figura da elipse rebate-se também sobre as imagens que privilegiam a linha curva e a forma côncava; os ressaltos das próprias narrativas - que seguem um pouco "aos couces", como se diz em uma delas, como as naus que se quebram sobre as ondas de matéria dura, feitas de pedra.

A ventania e o turbilhão impedem toda quietude, a posição sempre adernada do barco constrói a imagem instável:

"o mar era tamanho que lhe não consentia fazer obra nenhuma, nem havia homem que se pudesse ter em pé (HTM, 8)".

Esta seqüência apresenta-se ainda como um encaixe, pedaço destacável, fragmento imaginário, representação do acontecimento que se efetua como destino, alegoria, figuração contundente da morte.

A cena do desastre é uma das mais impressionantes e recorrentes nos relatos. Momento da realização plena da alegoria da “vaidade” e precariedade da saúde e de riqueza. O ato de jogar as riquezas ao mar tem a força da alegoria despojamento dos bens que antes eram amados por seus donos e, agora, só estorvo fazem à mareação. Lançavam, para aliviar o convés, tapetes valiosos, peças de seda e brocado, drogas odoríficas, ficando assim o mar coberto daquelas infinitas riquezas que de nada valiam aos seus donos.

III A seqüência final dos relatos de naufrágio, incide sobre a perdição e o desterro dos sobreviventes, jogados pelas ondas em praias desertas. Este é o ponto de partida da caminhada ao longo da qual os portugueses entrarão em contato com os nativos, principalmente da costa oriental da África, dividida entre a Terra de Natal, ao sul, e a “Terra da Cafraria”, hoje Moçambique, e a Terra dos Fumos, ao norte.

A posição do colonizador estará invertida: ele é muitas vezes feito escravo e o narrador relata seus medos e a angústia pelos trabalhos, fomes e privações que passavam assim como pela incompreensão da língua dos gentios. O relato detém-se ainda, muitas vezes, na descrição dos ritos e costumes cotidianos das tribos africanas, exercitando uma modalidade de discurso que, em muitos aspectos, prenuncia o relato etnográfico.

Se postos em contato com outros textos coetâneos/contemporâneos, os “relatos de naufrágio” possibilitam ainda uma leitura comparativa que revela com nitidez as diferenças e a gradação hierárquica na construção do outro. Julgamentos valorativos distintos são atribuídos ao Oriente, possuidor de civilização, apesar de tudo; à América, alteridade mais absoluta; e à África, com longa tradição de colonização, o continente que representa talvez a construção eurocêntrica mais poderosa e, aos olhos do colonizador, a alteridade mais subalterna.

Sabemos que, quando surgem os relatos de naufrágio, o conhecimento sobre África produzido pelos portugueses já possuía grande densidade. O contato com os negros africanos já datava do século XV, primeiramente com as tribos da costa ocidental onde “resgatavam” ouro e marfim, e, em seguida, após a viagem do Gama, passaram também a entrar em contato com as tribos da costa oriental no caminho das Índias. A produção de conhecimentos sobre o outro (asiático, africano, americano) é paralela à intensificação do comércio e da ação dos missionários. E é curioso observar como o olhar vai se modificando à medida em que se conhece melhor e que o narrador é capaz de suspender seus juízos de valor. Isso é particularmente verdadeiro em relação ao Oriente (Índia, China, Japão, Java) sobre o qual há, em menos de 50 anos, uma mudança significativa na interpretação das diferenças culturais. Embora reveladores do etnocentrismo dos narradores, pois estão sempre buscando traçar paralelos com os costumes e ritos dos povos cristãos, alguns relatos são especialmente ricos de informação sobre muitos aspectos da cultura das tribos africanas, captando os diferentes graus de complexidade de sua organização social e política, relatando ritos iniciáticos e mortuários, hábitos alimentares, habilidades técnicas. Dotados de grande capacidade de observação, os narradores preocupam-se em avaliar sempre o potencial bélico e comercial do grupo com o qual interagem.

Os relatos de naufrágio contêm apenas referências vagas à Índia. Serão necessários outros relatos - como a Suma Oriental ou a ... - para continuarmos esse exercício de observação das diferenças na qualificação das alteridades. No Oriente, os portugueses encontraram sociedades possuidoras de elevado grau de civilidade e que cultivavam a arte da cortesia. As observações sobre a religião são as mais equivocadas, pela necessidade de fazer traduções quase literais em relação ao cristianismo.

Há apenas três relatos que tratam do Novo continente. Dois deles, casualmente são passados na América. Os navios foram arrastados pelas correntes e ventos e, ao invés de seguirem a rota das Índias vieram dar às costas do Brasil. Terceiro é o único em que a nau sai do porto de Olinda em demanda do Reino. Todos eles são um pouco anômalos, se tomamos como referência à estrutura do relato de naufrágio, anteriormente mencionada. O narrador do naufrágio da nau São Francisco é um padre jesuíta e escreve seu o relato sob forma de uma longa carta ao seu superior. Detém-se, deliciosamente, narrando o modo de vida do colégio dos jesuítas na Bahia, onde foi acolhido após o primeiro naufrágio, os hábitos dos colonos e dos índios da América Central, - Hispaniola (Santo Domingo/ Costa Rica) onde naufraga pela segunda e, depois, em Cuba onde naufraga pela terceira vez. O relato da Nau Santo Antônio, que sai de Olinda em 1556 não possui a seqüência final, e fica entre o relato de naufrágio e a descrição de uma “Cenas de batalha”, outro sub-gênero difundido à época. Atacada por corsários franceses, e protegida por grandes nevoeiros, a nau consegue chegar a Lisboa com alguns sobreviventes. Este relato é uma rara fonte de informações sobre a guerra que a família Albuquerque Coelho manteve contra os índios Caeté, em Pernambuco e sobre os métodos de barbarização que utilizavam contra os gentios.

Já o narrador do naufrágio da nau São Bento traz apenas informações secundárias sobre o Brasil, recolhidas no curto período de alguns meses que esteve à espera do reparo da nau na Ribeira da Bahia. Todos os discursos sobre a América reiteram os lugares-comuns sobre a natureza, a fauna e flora exuberantes, sobre a grandeza e fertilidade da terra, contidos nos relatos dos primeiros narradores, Caminha, o Piloto Anônimo, Gabriel Soares, Antonil.

Mas a África é o continente mais presente nos relatos de naufrágio e sobre o qual mais incidem os juízos de valor. Qualificados genericamente de ladrões, salteadores e falsos, os africanos, apesar de tudo, não são vistos como uma homogeneidade. Havia tribos e reis amigos e outros completamente hostis, o que revela a complexidade das alianças na região e as reações dos nativos quando os portugueses forçam sua entrada em um comércio que já existia secularmente, controlado pelos árabes, entre aquela região da África, o Golfo Pérsico, a Índia, a Indonésia e a China.

Poderíamos continuar multiplicando exemplos e exercitar formar de transitar da dimensão documental à estética, tal como tentamos manter na escrita deste ensaio. Seria difícil até mesmo apontar todas as questões novas que surgem quando, ultrapassando o viés histórico-etnográfico - como era a vida a bordo? Que informações transmitem os relatos? Que funções exercem em sua sociedade? -, passamos a abordar as narrativas como textos possuidores de propriedades literárias e como figurações imaginárias. Abrem-se muitas frentes de pesquisa aos que se aventuram em semelhantes trilhas. Os relatos de naufrágio podem ser considerados como um acontecimento discursivo único ocorrido na língua portuguesa, pois, ao reunir fragmentos heterogêneos, dispersos e incompletos, preserva usos lingüísticos, convenções retóricas e saberes coletivos que de outra forma estariam perdidos. Eles podem também ser vistos como verdadeiros artefatos culturais que, além de codificar imagens e formas narrativas da tradição ocidental, põem em cena imagens arcaicas do medo, do pavor e da morte. Por essa razão continuarão a exercer enorme fascínio sobre os leitores de qualquer época, mesmo sobre os contemporâneos afeitos a uma percepção trágica e estilizada do seu tempo.




Este texto foi disponibilizado originalmente na Revista on line LUGAR COMUM, uma edição da UFRJ <http://server.cfch.ufrj.br/lugarcomum/index.html>


* A Prof. Dra. Maria Angélica B. G. Madeira ministrou disciplinas ligadas à comunicação, cultura e linguagem no Departamento de Comunicação, da Universidade de Brasília e atualmente leciona nos cursos de Graduação e Pós Graduação em Sociologia, da UnB. Dentre os trabalhos publicados, Angélica Madeira, em coautoria com a Prof. Dra. Mariza Veloso, lançou, recentemente, o livro Leituras Brasileiras, Itinerários no Pensamento Social e na Literatura, ed. Paz e Terra, 1999. A mesma tem proferido conferências no Brasil e no Exterior sobre História, Literatura Brasileira e Crítica Literária Pós-Colonial.