Gonçalo Madaíl
1999
Iniciámos a viagem logo pela manhã, num daqueles dias
em que as nuvens ainda dormem lá no fundo da Cova da Beira e os
carros já fervilham, roucos da humidade, bem no topo da encosta,
no centro da cidade da Covilhã.
À medida que nos afastamos da cidade, de periferia em periferia,
a urbe vai-se desmoronando calmamente e com naturalidade, cedendo gradualmente
espaço à constância da natureza e à melancolia
do campo, dos montes que há milénios nos observam sábios
e impávidos.
Para lá de tudo, de qualquer Ourondo ou Paúl, avistamos
o Zêzere serpenteando avidamente pelos vales da serra, alimentando
uma vegetação fiel, dos cumes aos fundos.
É sob este ambiente que, de repente, se insurgem aqui e ali
verdadeiras montanhas artificiais de cascalho que esventram a verdura com
um amarelo ocre, quente e majestoso. Aqui vive a comunidade do Couto Mineiro
da Panasqueira. Pequenas aldeias que coexistem avizinhadas em torno de
uma mina que as abraça, por fora e por dentro: Rio, S. Francisco
de Assis, Barroca Grande, Cambões, Panasqueira e S. Jorge da Beira.
Espaços humanos com história, com um passado para trás
e um futuro pela frente, por fora e por dentro.
A ideia que ali nos conduzia era a de realizarmos um Documentário
sobre a condição social dos mineiros, sobreviventes de um
passado conturbado e duro, mas memorável, naquela que já
foi a maior mina de Portugal.
Obviamente, procurámos de imediato por pessoas, por qualquer
pessoa, por quem quer que fosse. Os mineiros são pessoas de bem,
habituadas ao trabalho e às evidências da vida. Longe de tudo
e de todos, bem preparados para a convivência amigável, os
mineiros são pessoas que se respeitam mutuamente, mesmo até
perante as hierarquias legadas pela mina, enquanto instituição
laboral sob adminstração inglesa. Receberam-nos vivamente,
com poucos preconceitos e contaram-nos a história da mina e o que
ela significa.
Ao longo de dez dias, explicaram-nos como ali se vive e se viveu. Falámos
com os mais velhos, que nos explicaram como foi difícil dedicar
uma vida inteira a um labor árduo e sem condições,
pautado por um desprezo das hierarquias mais altas pelas classes mais baixas
e desprovidas.
A instabilidade do mercado do volfrâmio mostrou-se cruel em diversos
momentos deste século. É que as minas dependeram das grandes
guerras do mundo, e isso é e foi incontornável.
Os mineiros viviam mal, ganhavam pouco e trabalhavam muito. Por mais
de uma vez, se viram forçados a lutar contra o sistema, contra a
animalidade que lhes incutiam, contra as horas absurdas de labor diário,
contra a violência de certas relações profissionais,
contra o completo desprezo pelos seus direitos. Explicaram-nos como lhes
magoou e ainda magoa verem os seus filhos partir em busca de um outro futuro,
para que o passado não se repita.
Ao longo de dez dias, caminhámos por entre escombros e ruínas,
observámos a ferrugem das estruturas metálicas, escalámos
colinas inóspitas de cascalho e resíduos, descemos ao fundo
do interior da mina, ouvimos o ruminar das máquinas e o silêncio
das ruas. Conhecemos a administração, os reformados, a miudagem,
as mulheres dos mineiros, as viúvas dos que já sucumbiram
à rudeza do trabalho, os silicóticos, o presidente de uma
Junta de Freguesia, os emigrantes em férias, os filhos dos emigrantes
em férias, as pessoas daqui e as pessoas dali.
Foi assim que descobrimos a beleza física e espiritual da comunidade
mineira, pois foram eles que nos ensinaram. Todos nos mostraram o quão
único é o seu lugar e que consequências daí
retirar: o futuro cada vez mais obscuro e duvidoso das minas e da sua actividade
cada vez adormecida e despersonalizada, já que as máquinas
não se modernizam e o número de homens continua a diminuir.
Acreditam cada vez menos no futuro das minas, mas respeitam cada vez mais
a sua omnipresença, o peso do seu significado. Queixam-se de terem
sido esquecidos, arredados do mundo dos outros, do isolamento e da desertificação
que os consome.
A comunidade do Couto Mineiro da Panasqueira manifesta-se indignada
com a classe política nacional, com os senhores deste nosso país,
pelo seu total alheamento de toda esta situação.
A comunidade do Couto Mineiro da Panasqueira sabe que se lhes proporcionarem
melhores condições de acesso e vias de comunicação,
se os libertarem para a possibilidade de terem um futuro mais optimista,
se revelaria à altura e com dignidade para não deixar morrer
um espaço tão "sui generis" quanto a sua história
e personalidade.
Precisam de oportunidades como toda a gente e nunca deixaram ninguém
ficar mal.
Nem a nós, que de lá viemos com uma colecção
de registos valiosos para a cultura da Beira Interior.
São, no fundo, a prova viva de que tudo isto faz sentido, quando
se mira com olhos de ver.
Nunca esqueceremos a comunidade do Couto Mineiro da Panasqueira.
E o esquecimento generalizado é demasiado gratuito para a dignidade
de qualquer ser humano.