O filme documentário em suporte digital

Manuela Penafria, Gonçalo Madaíl - Universidade da Beira Interior

1999

Não existe qualquer dúvida quanto à riqueza e unidade estilística do documentário enquanto género fílmico distinto pelas suas características de produção. Esta é baseada em registos in loco a partir dos quais e por meio da criatividade o documentarista nos revela uma determinada abordagem ou ponto de vista da realidade que captou, espontânea ou intencionalmente.
A força e o potencial do documentário tem vindo a demonstrar-se ao longo da sua história à medida que a sua produção cresce e floresce em todo o mundo, reforçando-se a sua importância e o papel que exerce junto de pessoas confrontadas e maravilhadas que são com as visões da realidade que as rodeia. Neste sentido, pretendemos demonstrar a relação íntima e directa que o documentário pode estabelecer com a evolução tecnológica, mais concretamente, no sentido do documentário usufruir dos novos suportes digitais.
Assim, é totalmente possível combinar o género com as tecnologias para daí resultar a criação de um documentário em suporte digital, ou seja, um produto interactivo bem planeado e definido que proporcione ao utilizador uma experiência completamente nova e num universo navegável, isto é, num ambiente em que é possível a flexibilidade de opções e uma mobilidade estimulante para a nossa percepção e para os nossos sentidos. Interessa apontar que toda a concepção e tratamento são efectuados agora por documentaristas que, ao contrário do que é usual, vão ser confrontados com as novas tecnologias e com a ideia de se introduzir e organizar a informação, por exemplo, num CDROM, de acordo com uma estrutura por eles definida, pois será a sua perspectiva e a sua visão que vão determinar o ângulo de abordagem da temática em causa.
Obviamente, um documentário digital em suporte CDROM não terá um carácter puramente enciclopédico, descritivo ou promocional como a maioria das produções efectuadas actualmente em formato CDROM. Com o documentário digital, novos objectivos poderão ser alcançados dado que princípios como a interactividade, a dinâmica de movimentos, a ergonomia das aplicações, a funcionalidade coerente e a sincronização audiovisual vão contribuir para que o utilizador navegue e penetre de modo incisivo no universo da temática abordada pelo documentário, assimilando-o e vivendo-o. Como se de um jogo de computador se tratasse, o objectivo será que o utilizador aceda aos conteúdos de modo progressivo, permanecendo a sensação de que é totalmente livre de optar por este ou aquele caminho, embora as suas opções sejam limitadas consoante o caminho que já percorreu em direcção ao final. A interactividade é relativa, pois depende da lógica da organização dos conteúdos.
Desta forma, o utilizador contactará e conhecerá esta realidade revelada pelos seus próprios passos, pelas suas próprias opções, incluindo-se nos conceitos e nas vivências que o documentário oferece.
Todo e qualquer documentário constitui uma nova experiência da realidade. A multiplicidade das suas formas reflecte o seu valor único enquanto género, preserva toda a sua autenticidade e a evolução e a crescente multiplicidade das suas formas reforçam-no cada vez mais. O estímulo à sua compreensão e assimilação é também um estímulo à sua produção e difusão.
Se ao visionarmos um documentário estamos perante e experimentamos uma realidade (esteja ela próxima ou distante de nós próprios) as novas tecnologias poderão reforçar esta sua característica. O documentarista ao fazer uso das potencialidades das novas tecnologias, nomeadamente de um sistema de navegação interactivo (que no caso, deverá ser adequado ao ponto de vista que pretende transmitir em relação à temática tratada) terá, também, a oportunidade de tornar esse documentário digital um momento de estímulo sensorial. Os acontecimentos do mundo e a vida das pessoas surgem perante o utilizador, num espaço onde pode navegar livremente. Simultaneamente, o utilizador é constantemente confrontado com o ponto de vista ou abordagem que lhe está a ser transmitido e que, tal como acontece no documentário tradicional, fornecem a quem o consultar um conhecimento aprofundado sobre o mundo que nos rodeia e sobre a nossa própria existência.
Contudo, apesar desta mudança radical que propomos para a produção de documentários entendemos que o documentário continua a ser o que sempre foi, continua a seguir o caminho que Robert Flaherty e Dziga Vertov lhe abriram: o de gravar "fragmentos da realidade" e combiná-los; de igual modo, continua a ser tal como John Grierson o definiu: o "tratamento criativo da realidade". Para além disso, há que ter em conta que o documentário é um género que sempre beneficiou com a utilização de novas tecnologias. A revolução tecnológica verificada nos anos 60 e que consistiu na utilização de câmeras de filmar e som síncrono portáteis, permitiu uma maior e diversificada produção de documentários. Novas formas e novas estratégias ganharam vida. São disso exemplo marcante os filmes denominados "the fly-on-the-wall" e os filmes "the fly-on-the-soup". A diversidade emanente do então novo equipamento teve como único motor a criatividade do documentarista. Uma criatividade que com novo equipamento tem a possibilidade de se expandir. A nova viragem tecnológica actual não deve ser ignorada pelo documentarismo. Para Richard Leacock o equipamento portátil e sincrono que surgiu nos anos 60 favoreciam a experimentação e requeriam a intervenção criativa do documentarista. A transição para uma nova fase do documentário ficou então marcada pelo seu apelo à exploração das potencialidades desse novo equipamento. Este é, também, o nosso apelo, um apelo à exploração das potencialidades das tecnologias digitais. Assim, para o documentarista as novas tecnologias apresentam-se como mais um suporte para o "tratamento criativo da realidade".
Entendemos que este género se reinventa a si próprio de cada vez que se realiza um novo documentário. E as novas tecnologias vêm confirmar esta nossa suposição.