Changing Concepts of Time 50 anos depois
A contribuição de Harold Innis para o estudo do jornalismo digital

Elias Machado1

Introdução

Lançado poucos meses depois da morte de Harold Innis, em 1952, pela Universidade de Toronto, o livro Changing Concepts of Time2 representa um marco fundacional para o estudo das conseqüências das revoluções tecnológicas na imprensa. Nesta coletânea de cinco ensaios escritos entre 1948 e 1951, que trata desde as matrizes militaristas do modelo constitucional adotado pelos Estados Unidos até as relações existentes entre o Direito Romano e a consolidação do Império Britânico, passando pelo lugar ocupado pelo Canadá dentro do processo de rearticulação do poder mundial depois da segunda Grande Guerra, Innis formula, de forma pioneira, em The Press: A Neglected Factor in the Economic History of the Twentieth Century,3 um conjunto de hipóteses de trabalho para pesquisar os meios de comunicação como uma das indústrias essenciais para o desenvolvimento da economia nas sociedades contemporâneas.

Muito denso devido ao estilo enciclopédico de construir o próprio texto como uma colagem de citações, articuladas como provas para as teses apresentadas, em apenas 23 páginas, o ensaio elaborado como uma Leitura em memória do Barão Stamp, utiliza o estudo de uma indústria até então negligenciada pela Economia Política - a imprensa - como um pretexto para repassar as dramáticas implicações para todas as esferas da sociedade das mudanças tecnológicas no campo da comunicação. Em The Press: A Neglected Factor in the Economic History of the Twentieth Century, quando se concentra no período de transformação dos meios de comunicação numa indústria, Innis retoma a tese, apresentada em obras anteriores4, que em cada civilização o controle do poder depende das relações estabelecidas em torno dos meios de comunicação. Para Innis a continuidade e a extensão de uma civilização estão vinculadas à natureza dos meios de comunicação e o significado de cada meio provém do tipo de monopólio do conhecimento estruturado na sociedade. Pela tese de Innis o predomínio dos meios duráveis como a argila, o pergaminho e a pedra, articulados ao tempo, favorece a criação na arquitetura e na escultura, enquanto que a hegemonia de meios flexíveis como o papiro e papel, relacionados ao espaço, estimula a administração, os negócios e a constituição de impérios.

Entre as diversas teses levantadas pelo mestre canadense, mesmo que de modo muito pouco sistemático ao longo deste texto ora comentado, destaco três:

  1. Caráter conservador dos monopólios do conhecimento impulsiona revoluções tecnológicas nos meios de comunicação em áreas periféricas;
  2. Mudança no conceito de tempo provoca especialização na produção de notícias para atender demandas da circulação;
  3. Sistema centralizado de comunicação compromete estabilidade social porque transforma pessoas em consumidores de conteúdos massificados.
Neste trabalho, passados 50 anos da publicação deste ensaio que, mesmo estando entre os mais originais escritos pelo autor canadense, permanece como um trabalho pouco conhecido entre os especialistas, pretendo discutir a atualidade destas teses de Innis para compreender as implicações sociais para o jornalismo do processo de difusão da tecnologia digital em todos os setores da sociedade.

1- O caráter conservador dos monopólios do conhecimento impulsiona revoluções tecnológicas nos meios de comunicação em áreas marginais

Uma das teses mais frágeis, muito limitada às circunstâncias específicas do Império Britânico durante a industrialização da Imprensa nos Estados Unidos, mas de difícil comprovação no processo mundial em curso de digitalização da sociedade. No caso do Império inglês, Innis sustenta que a estagnação do jornalismo na metrópole, confinado aos círculos restritos das elites, representava uma conseqüência das taxas de conhecimento, cobradas para a edição de publicações, com o fim de garantir o monopólio ao The Times.5 Innis defende que a falta de condições político-econômicas para constituir um jornalismo de massas em Londres, no centro do império, devido ao monopólio do Times, permitiu que o mercado dos Estados Unidos, desprotegido da existência de uma proteção aos direitos autorais e contanto com a salvaguarda constitucional da liberdade de expressão para imprensa, se transformasse numa espécie de laboratório para o lançamento de um novo modelo de jornalismo: empresarial, massivo e desvinculado dos partidos políticos.6

Sem contar com o suporte de uma tradição no mercado de livros como ocorrera no caso do desenvolvimento do mundo literário na Grã-Bretanha, Innis recorda que, nos Estados Unidos, a imprensa acabou sendo um dos únicos meios de sobrevivência para os escritores, por sua vez, essenciais para inventar um modelo diferenciado de jornalismo, mais tarde copiado inclusive pelos ingleses, quando terminada a cobrança das taxas de conhecimento e, mesmo com reservas, pelo restante dos europeus.7 A debilidade da tese consiste em que tomando uma premissa correta - o monopólio do conhecimento dificulta a inovação - parte para uma conclusão sem o devido lastro. Antes de uma aventura na periferia do Império Britânico, o jornalismo empresarial encarna o modelo forjado nos Estados Unidos quando da constituição do país como nação.

O esforço social concentrado para a criação de tecnologias como o telégrafo, o telefone e as rotativas, dependentes de pesados investimentos públicos ou ao menos da anuência do poder estatal, seria impensável caso o futuro do país não estive vinculado à expansão do jornalismo de massas, encarregado de, ao mesmo tempo, inventar um idioma comum à miríade de imigrantes e estabelecer as relações entre as antigas colônias, agora articuladas como estados federados. A própria liberação das amarras ao jornalismo na metrópole, como revela Innis mais adiante, esteve condicionada aos interesses de garantir a aceitação do Império Britânico entre os súditos.8 O derradeiro equívoco de Innis repousa em considerar os Estados Unidos do século XIX, berço do jornalismo moderno, um lugar periférico. Como a Rússia da primeira metade do século XX, que lança as bases para a indústria aeroespacial, a formação dos Estados Unidos representava o exemplo de uma sociedade que enfrentava desafios típicos de experiências sociais revolucionárias.

A emergência do jornalismo digital evidencia que a tese de Innis de que o monopólio do conhecimento nos países centrais facilita o aparecimento das revoluções tecnológicas na periferia fica cada vez mais insustentável. No chamado período técnico-científico-informacional,9 quando o próprio conceito de natureza pressupõe a incorporação de objetos técnicos inteligentes, a divisão internacional do trabalho tende a concentrar mais do que nunca os processos de inovação em determinados lugares do mundo, cabendo as tarefas menos nobres aos pontos considerados periféricos. Na sociedade das redes a divisão do poder mundial mais que da apropriação de determinada tecnologia, que inclusive aparece como um pré-requisito para o funcionamento da economia capitalista, depende justo da capacidade que cada país ou empresa tenha para liderar os processos de inovação tecnológica.

A disseminação ao largo da geografia do planeta das técnicas de produção implantadas pelo jornalismo nos Estados Unidos revela que, mesmo sendo desenvolvido de forma específica em distintos lugares do mundo, devido ao potencial de inovação da indústria daquele país, a adoção do modelo de jornalismo norte-americano significou a importação das técnicas de gestão, produção, impressão, composição, comercialização e, inclusive, mecanográficas, tornando a marca Remington quase um sinônimo de máquina de escrever. Tampouco surpreende que, embora o lapso de tempo entre o lançamento comercial do jornalismo digital entre Estados Unidos e Brasil, por exemplo, seja pequeno, o que distancia um do outro seja o investimento prévio feito em pesquisa para inovação, condicionando o empresariado brasileiro do campo jornalístico a uma espécie de mimetismo das experiências norte-americanas.

Como uma indústria que necessita a geração contínua de aplicativos para viabilizar cada novo projeto o futuro do jornalismo digital depende dos laboratórios de pesquisa aplicada, mantidos pelos complexos de inovação articulados ao redor de universidades, empresas e agências de fomento à pesquisa.10 Sem tradição na pesquisa aplicada a indústria local dos países periféricos fica com poucas condições de disputar fatias no mercado do jornalismo mundial, sendo obrigada a dividir, sem nenhum tipo de contrapartida, o próprio mercado local com os investidores externos.

2- Mudança no conceito de tempo provoca especialização na produção de notícias para atender demandas diferenciadas da circulação

O distanciamento garantido pela passagem dos anos demonstra o acerto da segunda tese de Innis, que estabeleceu, pela primeira vez, um nexo profundo entre tecnologias como o papel de polpa de madeira, a rotativa, o telégrafo e o telefone e a mudança no conceito de tempo para o conjunto da sociedade e, de modo mais específico, para alavancar um novo modelo de jornalismo. Como negócio, cada empresa assume uma relação de dupla dependência: com o aumento da circulação para suprir os interesses do mercado de anunciantes e com a especialização nos conteúdos para atender as demandas dos leitores de cada região. "A redução nos preços do jornal representava um esforço ao lado da mudança nos conteúdos para atrair mais leitores a fim de consolidar a circulação comercializada para os anunciantes.begintex2html_deferred16 Para ocupar uma posição dentro do mercado da notícia cada centro regional teve que explorar as suas particularidades. "Chicago, como um centro no interior do país, com um fuso horário distinto de Nova Iorque, principal centro financeiro, se concentra sobre notícias de crime".11

A entrada em cena de modelos diferenciados de produção de notícias com a expansão das redes telemáticas comprova a pertinência da tese de Innis de vincular o tipo de conteúdos oferecidos pelo meio à noção de tempo constituída pelo suporte tecnológico dominante em cada época. Antes da incorporação do telégrafo era impensável a existência de notícias diárias do mesmo modo que a criação de televisões dedicadas 24 horas ao jornalismo como CNN sem uma rede mundial de satélites. Com a interligação do planeta pela tecnologia digital, que permite a difusão de instantânea de todas as formas de expressão no mesmo suporte, o formato padrão de produção centralizada da notícia dentro do ciclo diário passa a sofrer a concorrência de um sistema mais descentralizado, de alimentação contínua dos conteúdos. A redefinição das empresas jornalísticas para incorporar o jornalismo digital demonstra que, como previra Innis,12 no caso do jornal impresso, o monopólio do conhecimento de um meio mais que impedir a inovação incita à diversificação, aumentando a complexidade comunicacional do sistema social.

Neste processo de acomodação mercadológica, nenhum meio ganha salvo-conduto de sobrevivência por antecipação, ficando o futuro do monopólio dominante condicionado à capacidade que apresenta para aproveitar as vantagens da tecnologia na invenção de um protótipo mais dinâmico de negócio.13 As diferenças de cada lugar, acentuadas pelas desigualdades regionais, são um fator determinante na diferenciação dos conteúdos acionada pela multiplicidade temporal. No século passado, o aparecimento do jornal diário supôs os acordos de cooperação para formar as agências de notícias, articuladas em torno do intercâmbio de conteúdos entre os parceiros e especializadas em termos temáticos ou espaciais, enquanto que a produção em tempo real de notícias para as redes telemáticas decorre do desenvolvimento das redes financeiras a nível mundial, sustentadas em larga medida pelo mercado de transações especulativas, uma espécie de epifenômeno derivado da adequação das agências de notícias ao paradigma das redes dentro do modo de produção capitalista.

A evolução tecnológica que marca as etapas do processo de trabalho e as relações sociais assinala ao mesmo tempo as particularidades dos sistemas de circulação da notícia. É em consideração às funções do espaço e dos processos como as redes são ativadas no tempo que um sistema jornalístico se distingue dos outros. Como ao largo do tempo um sistema de circulação atua em consonância a um sistema de técnicas, o aparecimento dos satélites digitais, por exemplo, supôs para as agências de notícias novas formas de ações. Em um mercado aberto à competição mundial a agência, por uma parte, perde a exclusividade da venda no atacado das notícias externas para cada país, que passa a disputar com as cadeias mundiais de televisão ou os sistemas regionais de intercâmbio e, por outra, entra nos mercados de varejo internos e externos.

O padrão espacial emergente é muito mais complexo e produtivo porque a metamorfose funcional das agências obedece a relações pactuadas no cenário das redes digitais que contempla uma escala hierárquica distinta dos lugares. Como um produto provisório da teia de relações que prenha de conteúdo social as formas espaciais em princípio virtuais o sistema de circulação de notícias atualiza de modo sucessivo a contradição entre um presente invasor e ubíquo que nunca se realiza completamente e as reminiscências do passado objetivadas nas formas sociais e nas formas geográficas encontradas.14 Quando o sistema de circulação de notícias atua sobre o espaço, não o faz através de um meio isolado, mas como conjunto de meios, em que as formas e os conteúdos de uns são determinados pelas articulações com os demais. A definição das funções das empresas jornalísticas e a constituição do espaço são ações contínuas e simultâneas.

Com o desafio de adaptar os conteúdos às especificidades de sistemas de circulação acionados por uma noção mais complexa de tempo, em que a notícia circula de forma ininterrupta, a empresa jornalística deve ampliar a variedade de produtos oferecidos a fim de se diferenciar dos concorrentes. No final do século XIX, como lembra Innis,15 a imprensa teve de apostar nos colunistas, na cobertura de cidades e nas tiras de quadrinhos para fugir da padronização decorrente da distribuição de conteúdos pelas agências de notícia e vincular a publicação à comunidade local. A diversidade de publicações no ciberespaço obriga as empresas jornalísticas a um movimento idêntico, desta feita aproveitando as características da tecnologia digital para propor novo tipo de relação com os usuários: de participação nos conteúdos- e pagar dívida contraída pelos sistemas centralizados, em que, aos leitores, cabia a função de consumidores de notícias.

3- Sistema centralizado de comunicação compromete estabilidade social porque transforma pessoas em consumidores de conteúdos massificados

Com muita antecipação, quando a pesquisa no campo estava preocupada com o estudo dos efeitos dos conteúdos, Harold Innis soube identificar que o avanço tecnológico em comunicação, ao menos na forma como estruturado pelo regime de monopólios do conhecimento, implicava uma restrição na variedade do material distribuído e uma ampliação na variedade de consumidores.17 Dito de outro modo: um número mais amplo de indivíduos estava em condições de receber as mensagens, mas em contrapartida, ficava desprovido para produzir qualquer tipo de resposta que alterasse os conteúdos dos meios emissores, aumentando a instabilidade do sistema social. ``Quem está na ponta da recepção de um sistema central mecanizado fica impedido de participar em rica, vigorosa e vital discussão...´´18

Uma das teses mais criativas de Innis, porque vincula a estabilidade social ao modelo de interação estabelecido pela tecnologia, esta terceira tese demonstra que, ao contrário do professado por alguns especialistas,19 Changing Concepts of Times longe está de ocupar um lugar secundário na bibliografia de Innis devido à excessiva preocupação com os estudos de caso. A originalidade da contribuição de Innis consiste em perceber que a estabilidade de uma sociedade depende da participação das pessoas na produção de conteúdos dos meios. Diante da produção centralizada na imprensa e, de forma embrionária com o rádio, que priorizava a hierarquia, consagrando a expansão dos impérios - ao mesmo tempo que estimula a conquista de territórios - Innis contrapunha a dinâmica da interação oral, que permite o intercâmbio entre os participantes. Mais que um lamento saudosista, o comentário deveria servir como alerta dos riscos do controle centralizado da tecnologia, como demonstra o mercado financeiro mundial, capaz de, num piscar de olhos, destruir economia de milhões de indivíduos ou mesmo de países inteiros como a Argentina.

Como a arquitetura dos meios de comunicação reflete as relações de poder em uma dada sociedade, o modelo de constituição dos sistemas de circulação de notícias varia e, dependendo do jogo de forças envolvidas, pode assumir conformações simétricas ou assimétricas.20 Ao contrário do que se costuma pensar não é a tecnologia que determina a estrutura dos sistemas de circulação, mas os tipos de gestão dos meios ou de relações entre os jornalistas e os usuários que impõe um certo modelo de sistema de circulação de noticias em detrimento de outras alternativas.21 É nos períodos de ascensão de uma nova tecnologia que fica evidente o caráter convencional e precário das noções assentadas pelo sistema de monopólio do conhecimento antes hegemônico.

Os complexos sistemas de produção de notícias têm sido estruturados de uma maneira que requerem ao mesmo tempo, por uma parte, uma grande especialização e diferenciação, e, por outra, que o processo de circulação da notícia fosse concebido como um sistema de distribuição de dados previamente manufaturados. A divisão do poder social se manifesta no grau de controle que cada instância conserva sobre o material bruto. Na cadeia produtiva a diferenciação se dá por uma dupla divisão de funções. No nível interno, entre os jornalistas divididos entre repórteres, redatores ou editores, enquanto que, no nível externo, pela demarcação das fronteiras entre os produtores e os consumidores de notícias.

Como o leitor, o telespectador, o ouvinte e, em muitos casos, o usuário das redes recebe somente uma dose diluída dos dados concentrados na forma de notícias publicadas, emitidas ou postas em linha, na era dos meios massivos e, inclusive de certo tipo de personalização, de um modo distinto que nos primeiros tempos da imprensa, se tem ampliado a distância social entre os produtores e os consumidores de mensagens. Com o desenvolvimento dos meios massivos o controle de qualidade da produção reforçou o enquadramento do público como uma audiência e assumiu largamente a forma de especialização dos profissionais, acompanhada do aumento da complexidade do sistema jornalístico como um todo.

Conclusões

Quase no final do ensaio que ora comentamos, Harold Innis, alerta que o estudo da imprensa revela que a tradição escolástica de insistência no conceito de tempo como um contínuo uniforme e quantitativo, desconsiderando o caráter plural que a categoria assume, por exemplo, entre os chineses, colabora para obscurecer as diferenças qualitativas e a descontinuidade dos processos sociais. Para Innis o aumento na velocidade da comunicação têm efeitos de longo alcance sobre os monopólios do tempo devido aos impactos provocados no sistema econômico. ``...O desequilíbrio criado pelas mudanças tecnológicas em comunicação golpeia o coração do sistema econômico, com profundas conseqüências para o estudo das crises no mundo dos negócios....''22

Com meio século de antecipação, o diagnóstico de Innis desvela as íntimas relações entre as tecnologias de comunicação e o sistema financeiro, indicando os componentes desestabilizadores destes meios para o sistema social, quando atuando com o poder de monopólios do conhecimento como ocorre com as redes especulativas mundiais, cada vez mais, quando da disseminação de forma capilar da tecnologia digital por todo planeta, mescladas com as atividades das agências de notícias. A Reuters, por exemplo, contribuiu de forma decisiva para a criação do mercado financeiro mundial, com a conexão em tempo real de bolsas de valores, centros financeiros e investidores. A convergência tecnológica, como acentua Boy-Barret, possibilita a realização em décimos de segundos de transações financeiras envolvendo bilhões de reais. Em 1995 o faturamento obtido pela Reuters através do mercado de transações em tempo real atingiu o percentual de 25% do faturamento total da empresa enquanto que a venda de notícias no varejo para as empresas jornalísticas representou um percentual de apenas 6%.23

O modelo de Innis apresenta enorme flexibilidade de aplicação porque, operando como metáfora para verificar a contribuição de uma tecnologia para continuidade de uma civilização, evita o risco de desconectar o tempo da noção de lugar, como ocorre em trabalhos como o de Castells, que defende que o espaço dos fluxos de comunicação, característico das redes telemáticas, condensa de forma sincrônica as ocorrências localizadas em pontos distanciados na geografia do planeta, desvinculando o tempo da lógica espacial: "o espaço dos fluxos dissolve o tempo, desordenando a seqüência dos acontecimentos para instalar a sociedade numa efemeridade eterna. O espaço múltiplo dos lugares, disseminado, fragmentado e desconectado, encarna temporalidades diversas, desde o domínio dos ritmos naturais até a mais estrita tirania do tempo do relógio.begintex2html_deferred28

Enquanto em Innis a variação no conceito de tempo promovida pela tecnologia serve como um estímulo à superação dos monopólios do conhecimento dominantes em cada lugar, Castells, devido à circunscrição do espaço ao tempo dos fluxos de dados, concede autonomia ao espaço dos fluxos frente à lógica temporal dos lugares.24 Caso fosse certo que "as funções e os indivíduos elegidos transcendem o tempo enquanto que as atividades degradadas e os subalternos são submetidos ao compasso do tempo", a expansão do espaço dos fluxos seria ilimitada, quando, mesmo que possa parecer o contrário, mais cedo ou mais tarde, o tempo de cada lugar cobra contas para ancorar o espaço dos fluxos. Em vez de se erguer às margens da eternidade, como supõe Castells, a sociedade das redes toma forma como uma realidade superposta, fixada ao largo da geografia do planeta.

Mesmo escrito muito antes da incorporação da televisão como um dos fenômenos culturais mais destacados da segunda metade do século XX e da assimilação, na virada para o século XXI, da tecnologia digital, que altera as estruturas da sociedade contemporânea de modo profundo, o modelo de análise de Harold Innis permanece de extrema utilidade para o estudo das conseqüências sociais das mudanças tecnológicas.25 A leitura de qualquer dos livros de Innis sobre comunicação como um trabalho acadêmico clássico, que apresenta uma tese exaustivamente demonstrada, como lembram Heyer e Crowley,26 representa um convite a frustração porque a descoberta da singularidade da visão de Innis sobre tecnologia, cultura e sociedade depende do rastreio seletivo das pistas dispersas ao longo dos diversos ensaios. Durante toda a vida crítico do otimismo ingênuo diante dos avanços da técnica, muitas vezes cético, mas jamais resignado às circunstâncias, Innis constitui um tipo de intelectual que, por formular modelos originais de análise, capazes de destrinchar as complexas relações de poder engendradas pela tecnologia, ocupa lugar marginal na história da literatura acadêmica e, por isso mesmo, merece um estudo mais cuidadoso de sua obra.27



Notas de rodapé

... Machado1
Professor e pesquisador do CNPq na Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia
... Time2
INNIS, Harold. Changing concepts of time. Toronto. Toronto University Press. 1952.
... Century,3
pp. 77-108. O tema deste ensaio aparece em outros trabalhos de Innis como ``The English publishing Trade in the Eighteenth Century'' e ``Technology and public opinion in the United States'', apresentado na Universidade de Michigan em 1949, publicados como capítulos de The Bias Communication.
... anteriores4
Ver INNIS, Harold. Communications and Empire. Oxford. Oxford University Press. 1950. e INNIS, Harold. The bias of communication. Toronto. Toronto University Press. 1951.
... Times.5
INNIS, Harold. 1952, op. cit. pp. 78.
... políticos.6
Idem Ibdem pp. 79.
... europeus.7
Idem Ibdem pp. 79.
... súditos.8
Idem Ibdem pp. 99.
... técnico-científico-informacional,9
SANTOS, Milton. Técnica espaço e tempo - Globalização técnico-científico informacional. São Paulo. Hucitec. 1998. 4a ed.
... pesquisa.10
MACHADO, Elias. ``A necessidade da pesquisa aplicada no jornalismo digital''. Trabalho apresentado no GT de Pesquisa em Jornalismo VI Fórum Nacional dos Professores de Jornalismo. Porto Alegre 28-30 de Abril 2002. Universidade Federal do Rio Grande do Sul
... crime".11
Idem Ibdem. pp. 83.
... Innis,12
Idem Ibdem. pp 87.
... negócio.13
INNIS, Harold. 1995. The Bias of communication. Toronto University Press. pp. 160.
... encontradas.14
SANTOS, Milton. 1988. A natureza do espaço. Técnica e tempo. Razão e emoção. São Paulo. Hucitec. pp. 88.
... Innis,15
Idem. Ibdem. pp. 102.
... anunciantes.begintex2html_deferred16
INNIS, Harold. 1952. op. cit. pp 82. Neste, como nos demais casos neste artigo, as citações são retiradas do original da 1a edição e traduzidas de forma livre pelo autor.
... consumidores.17
Idem. Ibdem. pp. 102.
... discussão...´´18
Idem. Ibdem. pp. 102.
... especialistas,19
HEYER, Paul e CROWLEY, David. Introduction a The bias of communication. Toronto University Press. Toronto. 1995. pp. XV. 9a ed.
... assimétricas.20
NEWHAGEN, John and LEVY, Mark R. 1988. ``The future of journalism in a distributed Communication Architecture''. In BORDEN, Diane and HARVEY, Kerric. (eds.). The electronic grapavine. Rumor, reputation, and reportagin in the news on-line Environment. New Jersey, London, Lawrence Erlbaum Associates Publishers. pp. 09.
... alternativas.21
Nesta parte, até o final deste tópico, retomo comentários apresentados de modo mais sistemático no artigo ``La circulación de la noticia em las redes digitales''. In Scripta Nueva. Barcelona. V. 69 no 33. 2000.
... negócios....''22
INNIS, Harold. 1952. op. cit. pp. 108.
... 6\%.23
BOYD-BARRET, Oliver Etall. ``Global financial news''. In BOY-BARRET, Oliver e RANTANEN, Terhi. The globalization of news. Londres. Sage. 1997. pp. 61-78.
... lugares.foot70">... tecnológicas.25
HEYER, Paul e CROWLEY, David. Introduction a The bias of communication. 1995. op. cit. pp. XXV. 9a ed.
... Crowley,26
Idem. Ibdem. pp. IX.
... obra.27
Embora tenha publicado ao menos três obras de referência sobre a função desempenhada pelos meios de comunicação - em sentido strictu sensu - ao longo da história humana, Innis permanece pouco conhecido entre os estudiosos do campo da comunicação, quando comparado a seus próprios discípulos como Marshall Mcluhan. No caso brasileiro, até 2002 nenhum dos livros de Innis havia sido traduzido para o português, ano em que a Vozes anuncia o lançamento da tradução de The Bias of communication.
... relógio.begintex2html_deferred28
CASTELLS, Manuel. La era de la información. Economía, Sociedad y Cultura. Vol 1 La Sociedad Red. Madrid, Alianza, 1996. pp. 502.