A resistência da cultura aos media.

Para o fim do paradigma sociológico nos estudos de comunicação.

 

José Júlio Lopes, Universidade Autónoma de Lisboa

 

Copyright ã 1999 José Júlio Lopes

 

… philosophy persistently and with the claim of truth, must proceed interpretetively without ever possessing a sure key to interpretation… The text which philosophy has to read is incomplete, contradictory and fragmentary.  (Adorno: The Actuality of Philosophy, 1932)

 

 

Parte A: a resistência da teoria.

 

Quando uma televisão comercial termina o seu telejornal da hora de jantar com a frase apelativa: «resistir é vencer» [1], algo precisa de ser urgentemente compreendido. É a veemência do apelo da televisão que nos impõe a obrigação de lhe correspondermos: resistir.

 

 

Duas Questões Prévias:

Para que servem as ciências da comunicação?

 

A crença ainda positivista que vê o campo da comunicação como um lugar onde se joga um místico jogo entre causas e efeitos é herdeira do modelo racional que enformou a constituição das ciências humanas e a sociologia em particular - em que as regras do método sociológico e o desejo de obter resultados imperam. Uma certa fixação no chamado estudo dos efeitos tem mesmo marcado um impulso importante das ciências da comunicação, como modalidade legitimante da sua constituição e autonomia.

 

Esta ideia supõe que as Ciências da Comunicação possuem duas orientações possíveis (com graus de utilidade variáveis): 1 – podem servir, com a sua voz autorizada de ciência, para o desmascaramento e denúncia dos discursos, ou, numa versão mais benévola, podem servir para a desocultação, a revelação do sentido e do sujeito (instrumentos como a velha análise de conteúdo e disciplinas antigas ou modernas como a retórica, a hermenêutica, a pragmática, as semióticas, etc, no seu esforço interpretativo ou revelador, querem dizer-nos o que as coisas realmente querem dizer ou significam); 2 – devem ser um receituário de fórmulas estabilizadas para comunicar melhor, seguindo a ideia mais ou menos ingénua e comum de que a comunicação é fundamental para a coexistência pacífica dos indivíduos numa sociedade, para a consolidação das relações intersubjectivas, para a cimentação dos laços sociais – sendo mesmo a comunicação tomada como solução para alguns problemas do mundo que resultariam precisamente de «as pessoas não se entenderem», porque não comunicam, ou não comunicam bem e estão em conflito [2] (haveria que convocar aqui a proposta de consenso de Habermas, por exemplo).

 

Estudar ciências da comunicação é, com efeito, para muitos, aprender regras para comunicar melhor, soluções teórico-práticas ou mesmo só práticas para obter determinados efeitos no destinatário. Alguma da procura vem de futuros operadores de comunicação (jornalistas, publicitários, etc) que buscam uma aprendizagem direccionada para a sua futura prática profissional. Um anseio legítimo. Porém, as ciências da comunicação devem interrogar-se profundamente sobre se devem ou não dar essa resposta.

 

Os operadores de comunicação (onde se incluem também os empresários dos media) não são cientistas. São profissionais que operam dispositivos discursivos, tecnológicos e empresariais e que, num plano diferente do da ciência, encontram acordos para uma conduta ética e deontológica (os quais correspondem, grosso modo, ao mesmo género de restrições que impede que, por exemplo, a indústria alimentar coloque no mercado produtos em estado impróprio, fora de prazo, de proveniência e composição desconhecida, etc): as ideias de objectividade, isenção, que são importações do jargão e do modo científico. No seu conjunto, constituem-se numa máquina de uma indústria.

 

Depois de passarmos alguns séculos (e, no caso nacional, algumas décadas recentes de luta acesa) a defender a liberdade de expressão, pode ter chegado a altura de reflectirmos sobre as consequências da industrialização dessa liberdade.

 

O problema actual da investigação em ciências da comunicação.

 

Na classificatória dominante, as ciências da comunicação pertencem ao campo das ciências sociais e humanas. O seu percurso de autonomização tem sido marcado por alguns gestos diferentes: a) o de absorver outras ciências, correspondendo à redução substantiva da ideia de que tudo é comunicação, ou à ideia nietzscheana de uma mudança de perspectiva; b) o de criar modalidades de investigação e um discurso autónomos gradualmente libertos da sua interdisciplinaridade fundadora.

 

As ciências da comunicação têm tido que encarar os mesmo problemas epistemológicos, portanto. Na verdade, é a natureza «problemática» das ciências humanas que impõe um certo heroicismo ao investigador, que aliás se comporta perante o seu objecto como um verdadeiro príncipe encantado – não o atinge como é próprio do encantamento e supõe inversamente não ser atingido. Realizar uma acção temerária geralmente dá ao herói o convencimento de que realizou uma boa acção – pois que pelo próprio facto de ela ser temerária e por ter sido realizada ultrapassando todas as dificuldades lhe dá um valor (deveríamos dizer, sabor) heróico que, no entanto, obscurece o valor próprio da acção. Pedem-lhe que se abstenha da sua condição humana para observar e analisar fenómenos humanos, esforçando-se, num verdadeiro acto de renúncia, em nome da ciência, por passar sobre o facto de, como se diria no universo dos negócios e da jurisprudência, possuir na verdade um conflito de interesses com a realidade.

 

O cientista social - e o comunicólogo em particular - seria assim idealmente um sujeito desafectado e não afectável pela condição do seu objecto. O senso-comum aceita facilmente esta ideia como uma boa ideia. Sabemos isso. O discurso científico curiosamente neste aspecto está de acordo com o senso-comum. No entanto, o problema é sempre o mesmo. Dado que o objecto não é realmente aquilo a que tradicionalmente chamamos uma coisa, a solução é coisificá-lo. Mas ele não é coisificável. Coisificá-lo significa que vemos o que queremos ver, ou seja, a forçarmos a realidade a transformar-se em algo analisável com os instrumentos de que dispomos. Isto corresponde porém a uma capitulação antiga, perante o modelo das ciências exactas (o que implica a contradição de considerar ciências inexactas). A questão é exemplarmente colocada por John Searle (cito): «(...) a nossa tradição cultural impede-nos de considerar o espírito consciente como um fenómeno biológico como os outros. Esta tradição remonta a Descartes, no século dezassete. Decartes separava o mundo em dois tipos de substâncias: as substâncias mentais e as substâncias físicas. Estas últimas eram do domínio próprio da ciência; as substâncias mentais eram do domínio da religião. Mesmo hoje, continuamos a atribuir a esta divisão a mesma importância. É assim por exemplo que a consciência e a subjectividade são frequentemente tidas como inacessíveis à ciência: esta recusa procede da persistência de uma tendência para a objectivação. As pessoas pensam que a ciência se deve interessar pelos fenómenos objectivamente observáveis (SEARLE, 1985: 11). [3] O pensamento é natural porque faz parte dos dispositivos naturais do corpo humano, do ser humano. [4]

 

Provavelmente, temos vindo a usar instrumentos inadequados para analisar os fenómenos comunicacionais. A investigação em Comunicação tem sido dependente do uso dos mecanismos e das regras e métodos de outras ciências, como a sociologia, tradicionalmente, esta última, convencida de que deve apresentar soluções para o social - e que por isso é muito justamente chamada a realizar essa tarefa. Ora soluções para o social são necessariamente políticas; ora convocar uma ciência para resolver o social corresponde ao desejo político de despolitizar o social. Uma ciência que aceita esse papel branqueia, por assim dizer, o real e oferece à esfera da política uma legitimação para agir em nome de uma ciência.

 

O investigador em comunicação no estádio actual da ciência, investe com a sua pesquisa sobre um problema comunicacional como um herói contemporâneo capaz de realizar o feito de explicar, de possuir e de produzir, de entre todos, uma razão tranquilizante. De agir, em suma: mostrando como se deve comunicar, fazendo parte do processo, propondo, como resultado das suas pesquisas melhores formas para aumentar a eficácia da comunicação.

 

Por isso, hoje, comunicólogos aceitam fazer parte do chamado dispositivo dos media com a sua explicação da realidade em «tempo real», aceitando assim do mesmo passo ser incluídos na estratégia inconsciente dos operadores do meio que procura validar e legitimar um discurso, uma fala ou mesmo uma visão global sobre a realidade.

 

A aparência é a do gesto pedagógico: resulta de uma suposta necessidade de explicar a realidade às massas. A essência é outra: é fazer parte da indústria dos media, legitimando a sua existência, em espectáculos que reproduzem para uma audiência imaginária a degladiação de contedores de uma disputa. É colocar o discurso científico ao alcance do aplauso ou do apupo da multidão.


 

Parte B: Media e tecnologia

 

Primeiro aspecto. A liberdade industrial.

 

De que falamos, quando falamos em Media? Evidentemente que falamos do conceito estabilizado de media, como plural da palavra latina medium, ou seja, como mediação entre sujeitos e entre sujeitos e o mundo. No entanto, não falaremos aqui de Media nesse sentido alargado. Apenas no sentido restrito de mass media, ou seja, um pouco paradoxalmente, no sentido restrito de meios que se dirigem a massas indistintas de sujeitos, ou seja, os meios convencionais de comunicação (social).

 

Estes dispositivos particulares de mediação (apesar de o seu aparato ser provisoriamente ainda muito visível e presente) são apenas um território singular do campo da cultura e da comunicação; mas são hoje o lugar de novas resistências. Em muitos aspectos, e para usar a velha imagem de McLuhan, eles são extensões ou ampliações tecnológicas das velhas figuras do discurso, dos velhos processos de credibilização pessoal, das velhas técnicas da fala e da argumentação.

 

Centrar a discussão sobre as maravilhas da tecnologia fazendo supor que se trata, em si mesmo, de algo de novo, significa apenas não discutir nada e, no fundo, fazer o que cada pessoa pode fazer por si própria: sonhar com um mundo melhor, assustar-se com a fantasmagoria de um mundo de máquinas, embasbacar-se com as performances necessariamente transitórias da tecnologia. Sabemos já há algum tempo que o novo é provisório e que o destino de tudo é a sua banalização ou transformação em já-adquirido.

 

A discussão, do meu ponto de vista, não deve pois centrar-se numa mistificação da tecnologia: o discurso e a lógica da tecnologia são tão provisórios quanto o nosso espanto pelas suas performances; o espanto [5] gera formas acríticas de relação com o complexo industrial-técnico-científico-cultural. Antever e sonhar com o futuro, cada um de nós pode fazê-lo como entretém – um passatempo privado e também partilhado, para o qual sempre a humanidade se mostrou disponível.

 

O problema é que a tecnologia em si mesma não é um problema.

 

E ela só é um problema quando não é vista como uma solução e é apresentada como uma misteriosa coisa com vida própria que nos subjugará – como na ficção cinematográfica frequentemente acontece.

 

É preciso ter a noção de que aquilo a que chamamos hoje tecnologia – ou se quiserem, noutros termos, o aparato tecnológico que assiste a nossa existência nas suas diferentes faces – não é algo contra o qual se lute e se deva ou possa fazer uma revolução. A tecnologia é demonstradamente uma inevitabilidade histórica.

 

O problema que se coloca é antes o do complexo-industrial-técnico-científico-cultural quando subitamente se configura numa constelação constituida como uma forma específica de dominação. A crítica da tecnologia, mesmo alguma da que vem da reflexão teórica pura, tem frequentemente o sabor da ingenuidade ecológica e é feita com o mesmo ponto de vista rural e reaccionário do pacóvio embasbacado com a maravilha. Mas esse espanto é frequentemente uma antevisão positiva do que o mundo poderá vir a ser – o mundo aqui quer dizer também a sua própria existência concreta e privada, ou seja, o seu próprio mundo: começamos todos por reagir socialmente incomodados; refinamos os nossos comentários mais ou menos mesquinhos e os nossos olhares mais ou menos agudos, no início, e acabamos todos inevitavelmente de telemóvel no bolso. Socialmente, por exemplo, as tecnologias portáteis começaram por ser distintivas, como se sabe, e mesmo até por serem evidentes, tendo em conta ainda o seu valor inicial de raridade (o que não acontecia da mesma maneira com o velho telefone, de cuja origem nenhum de nós é contemporâneo como somos da televisão e de outros utensílios pessoais).

 

Os media, enquanto tais, são portanto formas transitórias de comunicação. Mas, o seu dispositivo ainda actual e os seus usos devem provocar uma resistência esclarecida. Seria necessária uma nova iluminação para resistir. Uma nova forma de opinião de expressão pública activa (que agisse, portanto) que não se iludisse com as possibilidades que parece serem oferecidas à sua manifestação (como erradamente pareceu acontecer no recente caso de Timor – em Portugal) seria necessária. A possibilidade anunciada e inevitável de existirem formas técnicas de interacção (as quais permitiriam uma comunicação recíproca) servirá sem dúvida para o surgimento de novas modalidades da indústria dos media. Quando a liberdade de expressão entra na lógica industrial, é preciso resistir. Até porque o conceito de liberdade deixa de coincidir com o que corresponde ao de uma liberdade universal (a um direito universal do homem).

 

Segundo aspecto. A segunda-humanidade.

 

No entanto, gostaria de chamar a vossa atenção para o seguinte (e que me parece em todo o caso mais importante): uma das direcções suspeitáveis no curso da tecnologia actual parece ser, nas várias formas de o atingir, a de conseguir uma duplicação técnica da humanidade – uma réplica da humanidade. Quer se entenda por humanidade o conjunto dos homens (a comunidade dos homens), quer se entenda como a qualidade de ser humano, esta ideia parece estar presente não só nos esforços mais recentes de ciências como a biologia (nas suas versões de engenharia genética e protésica), como também nas tecnologias digitais (nomeadamente, nas suas versões da robótica e automação).

 

A ideia de interactividade surge portanto «naturalmente» para representar tecnologicamente, ou seja, para ser o recurso tecnológico que emula uma qualidade eminentemente humana: a do relacionamento recíproco e instantâneo entre seres, ou melhor, do facto de os seres humanos serem naturalmente inter-agentes. O conceito surge necessariamente por inspiração directa do que se passa no campo natural dos homens que são o referente final de uma grande parte do esforço tecnológico.

 

O desejo e o anseio por esta duplicação surge aliás desde logo através de algo que nos acompanha desde o início: a representação. Até aqui representar (e não só na tradição aristotélica) era um privilégio de homens que se representavam reciprocamente, que repetiam na ficção ou na realidade outros seres seus semelhantes (as suas acções e situações) – a questão começou por ser estética, antropológica e sociológica. O fundo da representação corresponde, por outro lado, a uma retórica esquecida (na expressão de Nietzsche) cujo esforço é o de persuadir: contar uma história real ou ficcional através de personagens é mais credível e persuasivo do que simplesmentte narrá-la ou apelar a um conceito geral. O esforço por dar o exemplo corresponde a esse gesto retórico: as personagens são exemplares, as situações são exemplares; o gesto é: «vejam este caso, sigam este caso, imaginem que são eles e que estão a viver isto». O drama, especialmente no sentido etimológico da palavra, exige de facto uma representação de homens feita por outros homens; representar é tornar presentes homens e situações referenciais e ausentes, necessariamente através da imitação do que é ser humano. É a representação que permite a repetição de um facto primordial, a repetição da experiência original. O grau e a escala dessa imitação constitui-se nas sociedades contemporâneas como um conjunto de diferentes modalizações: simulação, hiper-representação, emulação.

 

Mas, hoje aparentemente a promessa é a de que a representação poderá vir a ser feita por entidades não-humanas, personagens virtuais (para usar a expressão consagrada, porém não totalmente correcta). O que acontecerá desde logo na indústria cinematográfica e da televisão. Mas, não só: a promessa é hoje também a de que acções-originais sejam desempenhadas por entidades não-humanas. A miragem é evidentemente a de um mundo melhor – um ideal: uma das ilhas utópicas, uma das cidades perfeitas. A teleo-tecnologia, com a sua criação de uma segunda-humanidade, resolveria assim o problema do trabalho, libertando o homem para ser e para a acção.

 

Seguiremos aqui o pensamento de Hannah Arendt e a sua distinção entre labor, trabalho e acção. Labor corresponde ao processo biológico do corpo humano - «The human condition of labor is life itself» (ARENDT, 1998: 7) -; trabalho é a actividade que corresponde à artificialidade (não naturalidade) da existência humana - o mundo está destinado a transcender a existência humana na sua finitude; acção corresponde à condição humana da pluralidade, ao facto de os homens viverem na Terra e habitarem o mundo. É a conditio per quam a vida política existe. Na sua distinção Arendt afirma ainda: «O trabalho fornece um mundo ‘artifical’ de coisas, distintamente diferente de todo o ambiente natural circundante» (ARENDT, 1998: 7) [6]. E conclui com a ideia de que a acção humana é a condição da história (idem) [7]. Esta distinção parece-nos fundamental para se entender de que modo uma segunda-humanidade de réplicas poderia co-existir com a humanidade original (a fronteira que se deseja é a da acção).

 

Neste sentido, a ideia de que o que são obras são acrescentos ao mundo supõe a nostalgia de um mundo sem obras, ou seja de que as obras seriam uma segunda-natureza (usamos esta expressão não exactamente no sentido adorniano); supõe ainda a desconfiança ansiosa de que as obras sendo artificiais possuem necessariamente o estatuto do provisório, porque não fazem parte da ordem natural das coisas (não estavam no mundo, e portanto poderão deixar de estar). A questão é que o mundo é mundo através desses acrescentos, através dessas rectificações às imperfeições da natureza, ou à recusa da ordem natural das coisas, através da qual, por exemplo, o grau da finitude humana tem vindo a decrescer. Ou seja, o mundo não é mundo por si mesmo. Ele é mundo em virtude da nossa presença e da nossa acção no mundo. [8]

 

A naturalização das obras feitas sobre o mundo é assim realizada por defeito através do enfraquecimento dessa desconfiança surda que suspeita, no fundo, que não devia ser assim.

 

No caso da arte, a boa arte seria a arte segura: aquela que realiza obras que não põem em causa a ordem natural das coisas, sejam as coisas a natureza e as suas regras e a acção humana sobre as regras da natureza (a primeira dessas acções é a que diz respeito à negação das regras da natureza em relação ao comportamento humano; dado que os homens são seres naturais regem-se pelas leis da natureza: o corpo degrada-se, a vida morre, as pulsões naturais são tornadas conceitos metafísicos como o de desejo, primeiro passo para a sua deslegitimação, desnaturalização e legislação) – onde se incluiriam todos os realismos, naturalismos e gestos pré-modernos.

 

No caso da tecnologia, a boa tecnologia seria aquela que não põe em causa a ordem natural das coisas – uma grande parte da desconfiança que a tecnologia suscita vem desta insegurança: não é natural e põe em causa a ordem natural (é fruto do trabalho e da acção do homem). Teria que ser, portanto, transparente. Insensível.

 

Terceiro aspecto. A electricidade estética.

 

A questão coloca-se relativamente à arte electrónica, a qual ganha esta sua característica por existir um suporte novo: as plataformas electrónicas, que não são senão modelações particulares da electricidade. Também chamadas, por vezes, artes tecnológicas a expressão refere-se sempre a formas e configurações artísticas que fazem uso das tecnologias actuais – as tecnologias actuais são portanto eléctricas, electrónicas e digitais.

 

Por um lado, uma electricidade estética dirige-se ao sentir e ainda e de novo ao choque da sensibilidade. O gesto é ainda o mesmo da vanguarda. Um gesto paradoxal. De alguma forma, a experiência destas novas formas artísticas provoca uma espécie de curto-circuíto: o envolvimento interactivo do espectador destrói o seu ser-espectador, ou seja, desfaz o efeito tradicional do ir-ver ou do estar-a-ver: o observador que contempla a salvo um naufrágio (para usarmos a metáfora de Blumenberg) é transformado no próprio naufrago que se vê a si próprio na desgraça e assim experiencia no corpo o sofrimento da sensibilidade da aflição e do afogamento – como um ressentimento histórico. Ser o naufrago e ver-se a si próprio da margem a naufragar é a experiência trágica e esquizofrénica proposta por uma electricidade estética que permite novas formas de relação da arte com o seu público. Destruindo o público ao transformá-lo em parte da experiência.

 

Por outro lado, e ainda do ponto de vista do espanto, a utilização de meios tecnológicos avançados em versões não interactivas e ainda apenas contemplativas provoca mesmo assim o choque transicional dos materiais, a maravilhação perante o dispositivo. Há um poder aqui. Uma retórica.

 

Tomemos agora uma ideia talvez academicamente desconcertante e excêntrica: o fim último será o de artificializar na totalidade o planeta: dominar processos naturais e problemas tão gigantescos como a meteorologia, as glaciações, os terramotos e tudo aquilo a que chamamos catástrofes naturais. Esta artificialização só poderia porém corresponder à fuga da humanidade para um planeta artificial, já que um planeta conhecido (isto é, natural) e existente implicaria uma refundação do mundo, de um novo mundo realmente, através de novo da acção sobre um mundo ainda não mundo; uma refundação só poderia ser total se fosse sobre um mundo que nascesse desde logo como mundo, isto é, que fosse todo ele criado pela cultura (i.e., pela técnica também), quer dizer, pelo homem.

 

Aparentemente do lado das extravagâncias da literatura de ficção-científica estas ideias não são porém tão estranhas assim. A ficção científica constitui-se, aliás, como uma espécie de narrativa mítica moderna de outros mundos (como toda a ficção, de resto), alimentando a crença actual (que desde logo sobrevoa a crença clássica em Deus) da existência de vida noutros planetas e, portanto, dando possibilidade à mitologia de uma possível refundação e de um mundo-outro. A banalização da ideia da finitude do mundo natural que se crê estar descontrolado - ou possuir uma ordem ou uma lógica de tão grande complexidade que escapa à possibilidade de um controlo humano; embora não se saiba, suspeita-se, de que a abundância de coisas, objectos e obras culturais postas sobre o mundo de alguma forma estarão silenciosamente a por em risco a existência seguindo-se o castigo por no traço geral das suas acções a humanidade andar «a brincar aos deuses» -, encontra assim, como seu reverso, esta possibilidade sonhada que alivia a tensão de se saber que não há uma segunda oportunidade para a humanidade.

 

Por outro lado, a constante referência nos mitos contemporâneos a seres extraterrestres como entidades de inteligência superior e, portanto, com um desenvolvimento tecnológico superior (em certos casos tão superior que nem se vê [9]) corresponde à reconstituição de uma mitologia que renova a esperança de uma refundação na crença de que os nossos erros sobre a natureza serão perdoados por esses deuses bondosos e condescendentes que nos observam ou mesmo que estão entre nós (os quais são de resto infinitamente sábios e tranquilos por terem tido a mesma experiência nos seus mundos; os terrenos seriam assim parte inferior de uma cadeia evolutiva de uma espécie universal de seres).

 

Estas visões, são no entanto visões problemáticas. Visões, diríamos, apocalípticas e rurais (a ruralidade como o último ponto de contacto moderno com o mundo natural e a «verdade» última e fundadora da natureza). A sua raiz na cultura judaico-cristã e na literatura profética e apocalíptica [10] é clara e mantém os seus efeitos ao longo do tempo – e do nosso tempo – exercendo a tecnologia a típica relação atracção-repulsa que caracteriza a forma como a cultura e o pensamento contemporâneos lidam com a questão.

 

À medida que nos aproximamos deste território quase místico surge inevitavelmente a questão seguinte: a ideia de ligação/desligação pressupõe uma explicação mais universal para aquilo a que parece corresponder. Esta é uma nova configuração da ideia medieval do uno e do múltiplo.

 

Porquê ligar e desligar. Só se liga o que está desligado; só se desliga o que está ligado. O conceito de comunicação remete precisamente para esse universo; o desejo último da comunicação perfeita é a ligação definitiva de todos os seres separados e desligados (pela sua condição humana natural). O mundo é constituído por uma humanidade de seres desligados pela sua própria natureza fragmentária, cuja história é marcada por uma conspiração metafísica contra a fragmentação física e concreta dos corpos e dos espíritos.

 

O único modo de governar com eficácia é exercer o poder sobre um todo que seja uno, sobre uma humanidade una; uma humanidade que seja um só homem e não uma multiplicidade de seres. O totalitarismo político radica neste horizonte; as ideias de nação e povo têm este horizonte ideológico e prático. A comunicação perfeita e ideal desfaz a fragmentação; a tecnologia vem desenvolvendo dispositivos de ligação cuja imagem final é a da ligação universal que só pode ter como resultado uma nova humanidade, num todo orgânico, em suma, em Deus, no todo. O totalitarismo político tem o seu fundo nesta possibilidade cujo caminho é inevitavelmente este; o totalitarismo visível nas disposições da tecnologia para a comunicação/ligação é a destruição da humanidade enquanto comunidade de homens desligados/em comunicação e para a criação de uma outra humanidade como totalidade dissolvida em si mesma, livre das tarefas do trabalho (salva, digamos, por uma segunda-humanidade tecnológica).

 

A crítica de uma teleo-tecnologia deve precisamente apontar para estes aspectos contraditórios: o mundo ideal possui uma segunda-humanidade para o trabalho, que permite a libertação do homem para ser e para agir; as mediações tecnológicas refinarão cada vez mais as suas performances e os seus dispositivos de modo a permitirem o fim da fragmentação dos seres – a ligação final. Parece o paraíso. Pode vir a ser um inferno [11].

 

A unificação dos seres tem toda a vantagem em permanecer apenas poética e afectiva.

 


 

 

Parte C: a resistência da cultura.

 

Contra o método: a fantasia exacta, a imaginação exacta.

As virtudes da especulação poética.

 

Um pensamento crítico sobre a comunicação, seguindo um método negativo [12] e tendo como ponto de vista os campos da cultura e das artes (mudando de perspectiva, precisamente), deve abster-se portanto de oferecer soluções instrumentais para comunicar melhor. Deve mesmo negativamente criticar todas as soluções para esse fim.

 

Adorno, num texto antigo [13], falava sobre o uso de palavras estrangeiras. Dizia ele que: «Uma vez que a linguagem possui uma carga erótica nas suas palavras, pelo menos para a pessoa capaz de se expressar, o amor conduz-nos às palavras estrangeiras… A velha atracção por palavras estrangeiras é como a atracção por raparigas estrangeiras e de preferência exóticas; o que nos dá uma espécie de exogamia da linguagem.» («Words from Abroad», idem). Mais saborosa seria a tradução literal do título, para: sobre o uso de palavras estranhas. Preferimos evidentemente esta última versão. O que são palavras estranhas?

 

A questão colocou-se também a propósito do «jargão da filosofia». Mas coloca-se evidentemente sobre a terminologia técnica da comunicação, no seu estado actual. A ilusão que essa terminologia gera é a da possibilidade de apropriação do objecto, do «material» em observação. E é preciso desde já entender que isso não corresponde, com os instrumentos que possuímos, à verdade. Nem corresponderá.

 

A imaginação exacta de Adorno [exakte Phantasie] é precisamente um conceito que conjuga conhecimento, experiência e forma estética. Para Adorno, com efeito, essa imaginação exacta, ou fantasia (embora esta palavra possua uma ressonância freudiana estranha a Adorno), deve permanecer estritamente confinada ao «material» que se apresenta ao investigador (ou melhor, ao pensador) e à ciência, mas ultrapassa-os. É assim enfatizada a capacidade que a imaginação (ou fantasia) possui de descobrir ou produzir «verdade» pela reconfiguração do material de que dispõe. Esta imaginação fará uso de palavras estranhas (conceitos) e de uma linguagem exogâmica (estranha à ciência) que convocará uma poética particular na expressão e na reflexão, que não corresponde ao modo ortodoxo do pensamento científico e às verdadeiras regras do método.

 

Este aspecto é essencial. Adorno defende que o conhecimento é inseparável da forma e configuração que a imaginação lhe dá. Imaginação, mas exacta. O termo «exacta» opõe-se obviamente à vulgar «criatividade».

 

A resistência da cultura aos media só pode ser feita a partir de um lugar assim. Um lugar que contrarie a aparência de verdade e as assunções e corruptelas vulgarizadas pelos media como forma discursiva de legitimação. Uma das oposições possíveis e mais activas (uma acção, portanto) é a demonstração de que uma parte do conhecimento é não-discursivo e experiencial.

 

As virtudes da especulação são inúmeras. São o fruto dessa imaginação exacta. E esta mesma reflexão que aqui se apresenta corre o risco de precisamente não ser científica (poucas palavras estranhas), porque não pode produzir a demonstração objectiva da sua justeza (o método não apresenta as suas regras).

 

 

(José Júlio Lopes, 28 Out, 1999 - lisboa)

 

Bibliografia (obras citadas directamente)

(Vejam-se outras referências em notas)

 

ARENDT, Hannah

1998             The human condition. Chicago, London: UCP.

SEARLE, John

1985             Du cerveau au savoir. Paris.



[1]               A SIC: é certo que o contexto era Timor. Acessoriamente, esse contexto demonstrou, perante os nossos olhos e no tempo real dos media, alguns aspectos teóricos inovadores relativamente ao chamado poder dos media e às ideias de objectividade e isenção. Uma reflexão que se fará, sem dúvida, mas no tempo real do pensamento.

[2]               Evidentemente que a redução de alguns problemas e contradições do campo social e político a problemas de comunicação é uma clara mistificação.

[3]         «(…) notre tradition culturelle nous empêche de considerer l’esprit conscient comme un phènomène biologique comme les autres. Cette tradition remonte jusqu’à Descartes, au dix-septième siècle. Descartes séparait le monde en deux sortes de substances: les substances mentales et les substances physiques. Ces dernières étaient le domaine propre de la science; les substances mentales étaient du domaine de la religion. Même aujourd’hui, on continue d’accorder à cette division une sorte consequentement. C’est ainsi, par exemple, que la conscience et la subjectivité sont souvent tenues pour inaccessibles à la science: ce refus procède de la persistance d’une tendence d’objectivisation. Les gents pensent que la science doit porter sur les phénomènes objectivement observables» (SEARLE, 1985: 11).

[4]               Numa outra perspectiva também Adorno, entre outros, se manifesta contra a objectivação do não-objectivável, contra a sua coisificação – ou reificação também na linha lukacsiana -, como primeiro passo para a sua apropriação e desligamento.

[5]               O conceito de espanto foi retrabalhado por Pedro Frade a propósito da fotografia, na sua obra Figuras do espanto (Lisboa: ASA, 92).

[6]               «Work provides an ‘artificial’ world of things, distinctly different from all natural sorroundings» (ARENDT, 1998: 7).

[7]               Viria aqui a propósito a distinção grega dos sofistas entre poiein e prattein: poiemata e pragmata a distinção entre fazer e agir.

[8]         Seguimos aqui a tese de Rémi Brague «The world is not a world because of itself. Its wordliness does not stem from itself, but from our presence in it» (Brague, 1995). Arendt defende ainda: «The impact of the world’s reality upon human existence is felt and received as a conditioning force. The objectivity of the world – its object- or thing-character – and the human condition supplement each other; because human existence is conditioned existence, it would be impossible without things, and things would be a heap of unrelated articles, a non-world, if they were not the conditioners of human existence» (ARENDT, 1998: 9).

[9]           O que corresponde em termos humanos ao desejo de uma tecnologia ideal: um conjunto de mediações tecnológicas tão perfeitas que não se sentem (não se vêem, não se ouvem, não se tocam, em suma, não se impõem) e portanto não chegam sequer a ser mediações nem a exigir a sua experiência.

[10]             Devemos esta observação a Luis Carmelo. Veja-se o seu recente livro Anjos e Meteoros (Lisboa: Ed Notícias, 99).

[11]             A fantasmagoria, o imaginário e o ideário nazis eram, na verdade, uma versão pouco sofisticada - e fora de tempo, poderemos talvez temer – deste mesmo tema (um inferno). Na realidade, se considerarmos o desejo nazi da purificação da raça (ariana) temos obviamente aqui o modelo de uma ligação que era desejada, mas apenas entre seres ligáveis por serem do mesmo género (os arianos puros). O homem-novo que surgiria (também no totalitarismo soviético) seria uma nova humanidade que refundaria o mundo e retomaria um caminho certo, mas ainda e apenas com a perspectiva de uma segunda-humanidade natural, dedicada ao trabalho, ou seja, numa palavra, através escravização de uma parte da humanidade (o que historicamente não constituia nenhuma espécie de novidade). A questão era apenas decidir o que é a humanidade. Humanisticamente, humanidade é todo o género humano. Funcionalmente, a história tem mostrado diferentes segmentações da humanidade conforme a perspectiva se vai alterando.

[12]             A referência óbvia (mas não a única) é o conceito de dialéctica negativa (negatividade) de Adorno. Cf Theodor W Adorno, Negative Dialectics (Negative Dialektik), New York, Continuum, 1997 (1966): «As early as Plato, dialectics meant to achieve something positive by means of negation; the thought figure of a ‘negation of negation’ later became the succinct term. This book seeks to free dialectics from such affirmative traits without reducing its determinacy. The unfoldment of the paradoxical title is one of its aims». Adorno defende (a propósito da obra de arte) que apenas através da interpretação é possível a revelação da verdade; e que a única via possível a um filósofo para o não-conceptual é através do conceito. A tese é a de que o conhecimento não pode conter o seu objecto (Vd Adorno, 1997).

[13]             «On the use of foreign words», in Notes to Literature (c. 1920/30).