Música e Internet: pluralismo ou globalização? (1)
 
José Júlio Lopes, Universidade Autónoma de Lisboa
1998

 

Música e Internet.

Não penso que, do ponto de vista composicional ou de estética musical, quer dizer, do ponto de vista dos grandes paradigmas da música contemporânea (em sentido literal), o futuro da música em si passe especialmente pela Internet. Por enquanto, penso que a própria Internet ainda não oferece em pleno as possibilidades que se anunciam (2). Para já do que se trata é da possibilidade de os processos de difusão e venda de música pelo complexo industrial-cultural se reconfigurarem através da plataforma digital que no limite acabará com o formato dos discos que conhecemos (discos com um conjunto pré-fixado de temas); cada consumidor de música poderá fazer os discos com a música que preferir.

Nos aspectos intrinsecamente musicais, a Internet terá sem dúvida o mesmo efeito (eventualmente um efeito exponencial) no futuro que a Rádio, a Televisão e a edição discográfica tiveram sobre a música: acentuaram a sua coisificação e reificação através da radicalização dos usos comerciais da música e dos músicos com a consequente corrupção das formas, dos géneros e das estruturas; ao mesmo tempo que acentuava o movimento de fuga e de resistência que caraterizaram a música moderna, a música de vanguarda e a música contemporânea (designação, ela própria, bastante pluralista e tolerante) e a empurraram para os grandes cortes que conhecemos.

Neste aspecto, Adorno tem razão quando reflete sobre a regressão do ouvido como consequência da massificação e da audição musical, tornada consumo musical, da redução da música a canções descartáveis e de validade limitada, da permeabilidade dos músicos relativamente ao diktat da indústria, da infalível estruturação das canções em estrofe e refrão, acompanhadas das inevitáveis cadências perfeitas e ainda esse mito extraordinário da melodia que fica no ouvido – em que ouvido? Nesse ouvido-comum que permite ao senso-comum ouvir, nesse ouvido que estará também em grandes quantidades à escuta Internet.

Uma outra consequência da massificação parecia ainda há uns anos atrás um facto altamente positivo: muito mais pessoas hoje têm contacto com a música - e mais, potencialmente têm contacto com toda a música, ou com todas as músicas. Curiosamente, talvez por essa razão, a maior parte dos consumidores de discos e de canções não sabe tocar um instrumento.

Resistência.

Deste ponto de vista (como aliás de todos os outros em relação à Internet que no futuro ela própria será uma realidade verdadeiramente problemática), há lugar para novas resistências. Como, de resto, há lugar para novas resistências ao nível do pensamento sobre um pluralismo demasiado racionalizado e metódico que esvazia a possibilidade da crítica.

Se já hoje estamos tendencialmente reduzidos a ilhas, ao menos que cada ilha possa ser uma utopia… e que a resistência seja feita em nome, como sempre, de uma dessas utopias.

Globalização e pluralismo.

A Internet potencia a globalização e o pluralismo, de facto, embora ambas as categorias existissem antes e existam para além dela. A globalização de géneros, formas e poéticas musicais existe desde logo como consequência simultânea de uma conjugação particular de fundo económico, político, tecnológico e, evidentemente cultural, e emerge como uma disposição geral da nossa era, da mesma forma que o pluralismo surge como um ideal contemporâneo que ensina a tolerância e a coexistência pacífica entre agregados culturais (onde se incluem géneros e disciplinas artísticas e uma hierarquização valorativa das práticas artísticas), políticos, étnicos, civilizacionais, etc, que antes não se encontravam conciliados.

Pluralismo.

Quando falamos de pluralismo a propósito da Internet estamos a falar de um desejo próprio do nosso tempo, a que a ideia de rede tende a corresponder, como no geral vão correspondendo as infraestruturas tecnológicas, as superestruturas culturais e os paradigmas do pensamento contemporâneo.

Hoje, no entanto, quando falamos em pluralismo estamos a querer dizer tolerância e abertura perante a pluralidade e coexistencia pacífica e não sectária entre todas as poéticas, pondo lado a lado, um pouco acriticamente, a produção e a reprodução industrial, com as suas variadíssimas corruptelas, e os processos criativos e poéticos realmente originais e autênticos para retomar um tema caro a Benjamin.

No fundo, do que se trata é de uma descentração ou de um desfazer da hierarquização dos géneros musicais, enfim, para usarmos uma imagem realmente musical, trata-se de um sistema de coexistencia de géneros que, como na música serial, foge à atracção da tónica e de um centro e no fundo atribui a mesma importância a todas as notas da série dando a possibilidade a cada uma de ser um centro – que é o que é próprio da rede.

Globalização.

A Internet pode ser portanto mais um meio a facilitar o aumento de ligações e conecções. Porém, as transformações tecnológicas mais relevantes não são para já consequência da Internet, são antes de raiz informática e computacional; isto é: aquilo que mudou realmente a música foi o software musical de apoio à composição, edição e produção; e foi antes o processamento de sinal, a electroacústica, a invenção dos instrumentos eléctricos e electrónicos (o rock só foi possível depois da guitarra eléctrica e do amplificador), a invenção dos processos de gravação e reprodução mecânica, magnética e agora digital.

Não foi a Internet, pelo menos por enquanto, que é apenas uma rede de computadores ligados entre si; donde, não me parece especialmente interessante improvisar com um músico a seis mil quilómetros de distância, com o corpo e as emoções musicais diferidas e mediadas por um enorme dispositivo - que ingenuamente acreditamos ser descontrolado, ou ser não-controlado. O que aparentemente pode acelerar são os contactos, não necessariamente os paradigmas de fundo que têm mudado a música; a novidade, reside provavelmente no facto de a plataforma comum ser digital e de, portanto, começar a haver condições para uma standartização universal dos suportes e, por consequência, da circulação, distribuição e recepção da música também através da Internet.

Música.

De que música falamos quando estamos a falar de Internet? O que é que a música do futuro terá como marca desta Internet do passado de que somos protagonistas hoje? Do que se trata, recorde-se é de música em suporte digital; mas isso não é a mesma coisa que falarmos da questão musical de fundo, aquela que tem a ver com as questões de estética musical que têm feito a música mudar e que não são, ao longo da história da música, estritamente tecnológicas ou técnicas - tanto como eventualmente noutras artes que mais directamente se desenvolveram especificamente em consequência da introdução de novos meios (como as artes-plásticas, o cinema e o audio-visual, etc).

Interactividade.

De uma forma pouco entusiasmada vale a pena colocar a questão de saber qual é o interesse da interactividade na música. No que respeita ao fazer musical? Ou ao tipo de partilha que o uso antropológico-cultural da música gera entre os homens? Que barreira se trata de transpor afinal? A de que nem toda a gente pode fazer música, ou tocar um instrumento? Mas, esta não é uma questão musical em si mesma. Na realidade, como sabem as pessoas que se dedicam ao ensino da música, ou as pessoas das nações que encaram o ensino da música a sério, a maior parte das pessoas pode fazer música, isto é, pode participar num acontecimento musical, cantando ou tocando um instrumento, criando a sua própria música, ou integrando-se numa cadência rítmica (3).

E não parece que o facto de estar em progresso aquilo a que hoje chamamos Internet faça com que um maior número de pessoas passe a saber música (no mesmo sentido em que dizemos que uma pessoa sabe falar, ler e escrever). O que parece estar aqui em causa é de novo o oasis constantemente prometido às massas pelo complexo industrial-cultural, uma nova utopia que vende a ideia de que todos podem ser tudo, sem responder realmente à questão de saber porque é que só alguns é que realmente são alguma coisa.

Arte electrónica ou electricidade estética.

A Internet parece aprofundar também, no caso de acontecimentos artísticos com música ou de criações musicais para difusão na rede, as possibilidade de uma arte electrónica ou de uma «electricidade estética», estas sim, com a possibilidade de realmente provocarem o choque, mais do que alguma vez a vanguarda conseguiu.

Obra. Totalidade.

A questão da obra. A perspectiva de que a Internet ou a rede, como conceito desierarquizado, permite ou pode acentuar a possibilidade do afundamento da categoria de autor, desde logo porque as obras também podem possuir essa característica através da interactividade, desejo enunciado em muitas obras da música de vanguarda e mesmo no conceito de obra-aberta que foi o paradigma que regeu uma grande parte das atitudes dos compositores contemporâneos.

Estas últimas questões encontram um fundamento curioso na ideia de gesamtkunstwerk apresentada por Wagner no século XIX (e que inevitavelmente a foi buscar aos gregos). Para a realização da obra-de-arte-total haveria que resolver alguns problemas técnicos e tecnológicos. Desde logo Wagner escondeu a orquestra no fosso, para «escamotear os parafusos que solidificam a estrutura» (Dalhaus). A música que é, da sua própria natureza, invisível tornava-se assim absolutamente divina, posto que passava a ter origem realmente fora da vista - o som pairava vindo de um u-topos, de nenhum lugar. Eis um problema que a tecnologia deste século viria de facto a resolver.

Tornar a música invisível (retirando os músicos e a fonte sonora do campo de visão) é, no fundo, uma parte do programa que neste século parece estar a ser concretizado através da tecnologia digital, pois como Tod Machover afirmava em Agosto de 92 à revista Opera News, a propósito do projecto Brain Opera: «no real actors or singers, no real objects.» Esta ideia, que retoma noutros termos o projecto artístico-comunicacional wagneriano, se for levada ao seu limite, apresenta uma paradoxal e inesperada solução: quanto mais avançados, complexos e sofisticados os media utilizados mais deixam de se sentir como media, ou seja, a tecnologia deixa de se sentir como uma interposição entre os sujeitos, ou sequer entre os sujeitos e o mundo e a experiência. Cito Tod Machover que afirmava em 1996 (à revista Time Out New York) que o seu objectivo era «to create a feeling where the technology is so good that it disappears.»

Hiper-instrumentos e uma hiper-música.

No MediaLab dois dos projectos musicais mais interessantes chamam-se precisamente Hiper-instrumentos e Brain Opera.

O ponto de partida para estes projectos era o seguinte:

Há cem anos atrás para haver música era preciso fazê-la. Hoje basta comprá-la. Hoje muito mais pessoas, senão mesmo todas as pessoas, têm uma relação com a música - ela está em toda a parte, nos rádios, na televisão, nos carros, nos supermercados, nos elevadores, nos aeroportos, nos telefones; no entanto, a maior parte das pessoas não faz música, não sabe fazer música e tem medo de fazer música.

A questão era pois a seguinte: se é possível sair para a rua com uma câmera video e controlá-la, por que não há-de ser possível a cada indivíduo fazer a sua própria música? Esta é uma questão estranhamente comum quer à reflexão estética musical ainda vanguardista, quer aos interesses da indústria dos bens culturais. Aparentemente porque a aquisição da técnica de um instrumento é um obstáculo. Portanto, trata-se muito simplesmente de criar outros instrumentos que possam ser tocados (a expressão é estranhamente desadequada) por qualquer pessoa. Mas, que música é que qualquer pessoa fará? Ou mesmo: que interesse tem a música que qualquer pessoa fará?

A Brain Opera, por outro lado, precisamente propõe uma composição onde todas as referências musicais se integram simbioticamente e sugere a ideia de uma «música global», ou diríamos nós, de uma «obra global» (uma operamulti). Uma música, no fundo, que aceita todas as músicas que existem, pondo de lado precisamente a possibilidade de questionar tudo o que existe, através dessa nova categoria a que temos chamado interactividade e que nos permite idealmente a todos participar na constituição da obra.

A obra existirá. Mas será ainda uma obra-de-arte?


1  Texto revisto da comunicação apresentada no Colóquio Internacional «O futuro das artes na Internet», sob o tema «música e internet: pluralismo
ou globalização?», realizado no Goethe Institut Lissabon, em Lisboa nos dias 30 e 31 de Janeiro de 1998.

2  Que, de resto, são paralelas às possibilidades que se anunciam para a imagem, ou seja, para o futuro da televisão, por exemplo, nomeadamente com o fim previsível e até desejável do programador de televisão, numa das melhores versões da interactividade - aquela que permite potenciar a dimensão da liberdade e da escolha

3  Que nos nossos dias assume a sua forma mais pobre e menos interactiva de integração através dos ritmos militarizados da música tecno, hip-hop, rave, e num vasto conjunto de criações pop e rock.