MÚSICA E DRAMA: NOVAS DIRECÇÕES
Um outro conceito de escrita teatral 1
 

José Júlio Lopes
copyright © 1987, 1992 José Júlio Lopes


[INTRODUÇÃO]

Na base da expressão escrita cénica está habitualmente a ideia de um trabalho literário (quer dizer, um trabalho feito com palavras), que é produzido por autores dramáticos (isto é, escritores que escrevem peças de teatro). Trata-se portanto de um modelo linguístico, cuja substância é textual, e que opera na ordem do literário, por mais próximo que esse dramaturgo esteja do processo da produção teatral. A questão da escrita cénica prende-se, do nosso ponto de vista, com a necessidade de definir com rigor o estatuto da emissão no processo de comunicação teatral (no fundo, a questão da autoria) e a sua eventual crise relaciona-se com a urgência em compreender que o lugar da vanguarda não é mais ao nível dos conteúdos.

É neste sentido que gostaríamos de vos apresentar aqui algumas inquietações acerca de um conceito limitado de escrita cénica, de base literária. É nossa convicção que o teatro não deve ser entendido como um género literário, mas antes como um acontecimento complexo e compósito, no sentido em que nele tomam parte integrante, não só esse texto literário, mas várias outras linguagens e expressividades. Cabe ainda referir, para já, que pensar uma escrita abrangente de todas estas linguagens não é de forma nenhuma uma questão menor, sobretudo se pensarmos que o teatro (tal como a música, o bailado, a ópera) tem forçosamente que passar do momento da sua concepção ao momento da sua execução, sendo o registo que fica dessa concepção a garantia da possibilidade das suas múltiplas execuções ou repetições, enquanto obra total e una. Não é uma questão menor também porque obriga assim a que se tome consciência da necessidade de repensar, uma vez mais, e para além dos esforços dos modernos, a própria noção de teatro. Da seguinte forma: o que pode ser hoje o teatro?

Os passos que daremos passarão por Berthold Brecht; Peter Brook; pelo debate da questão da mimesis; pela recuperação da noção wagneriana de gesamtkunstwerk (obra de arte total); pelo debate da questão da composição, como poética contemporânea; pela homologia entre os processos do trabalho musical e teatral; e, finalmente, por uma nova noção de drama (e não de teatro) que permita alargar as possibilidades de trabalho poético.
 

[PRIMEIRA PARTE]

Pertencendo ao campo geral das práticas comunicativas, o teatro, que se manifesta na ordem do estético, coloca questões específicas. O problema principal continuará a ser o de uma definição de teatro. Se houve no passado tentativas positivas de definição, através do uso de enunciados que se pretendiam irrefutáveis, não nos parece que hoje um tal movimento possa ser igualmente credível e verosímil. Uma tal definição esbarra contemporaneamente com o largo conjunto de novas expressividades artísticas dramáticas, às quais o teatro, a que chamaremos operacionalmente convencional ou tradicional, tem resistido.

Submeter esse velho teatro a uma crítica cerrada é uma necessidade que cresce na razão directa da escassa produção teórica existente (nomeadamente em Portugal) e na hesitação que caracteriza o pensamento actual sobre esta arte. De facto, não nos parece que seja possível, ainda hoje, continuar a trabalhar sobre modelos que foram construídos em períodos de mutação histórica e ideológica e que, também por essa razão, foram assumidos como bandeiras de dois lados diferentes de uma batalha: a batalha da interpretação, da explicação e da transformação do mundo, que nem por isso é menos violenta do que as outras.

A título de exemplo, por motivos e com importâncias diferentes, destacaremos aqui dois autores que produziram duas abordagens igualmente diferentes, mas ambas originárias de dentro do teatro: Brecht e Brook. Trata-se de declarações explícitas de artistas, nas quais, como assinala Umberto Eco, repousa a maior parte da pesquisa sobre a poética. Constituem, por isso, material que não deve ser desprezado, neste momento em que a crise das categorias estéticas se torna evidente e à qual nenhuma «História da Arte» pode obviar.

Na sua vasta produção teórica, Brecht realiza a reformulação de velhas questões ligadas à legislação aristotélica sobre o trabalho teatral, transformando num dos mais fortes e consistentes eixos do seu pensamento a crítica à tão obscura noção de catharsis e à sua legitimidade. Apesar de, por assim dizer, ter substituído um sistema por outro igualmente normativo, a sua grande virtude terá consistido em operar a deslocação do enfoque tradicional, acentuando questões que viriam mais tarde a ser abordadas num estudo da recepção. Fruto de um programa político e ideológico, o acervo crítico que o levou à formulação do chamado efeito de distanciação centrava-se evidentemente numa certa consciência de um processo de comunicação que (segundo o modelo proposto por Jakobson) procuraria o reenvio constante para uma consciência da natureza da mensagem e para o âmbito do canal (enquanto efectuador desse programa político). Um pouco como se tinha verificado na pintura: já Velasquez, como muito bem nota Foucault, ao expôr o dispositivo técnico da sua arte em «Las ninas», terá certamente produzido um efeito semelhante. Por mais política e ideológica que possa ser a actual renúncia e crítica ao sistema brechtiano, é inegável o facto de ter sido nele que esta importante transformação se realizou.

Estamos, mais uma vez, frente a uma proposta só consumável no âmbito de um projecto modernista, comparável, ainda na pintura (e aqui os exemplos seriam inúmeros), ao «Ceci n'est pas une pipe», de René Magritte. Em Brecht, como em Magritte, a noção de mimesis não é posta em causa. Ela é interrogada, apenas no sentido em que a mimesis como processo artístico universal se encontra sinalizada e advertida: «isto não é a realidade; isto é a cópia.» Não entra portanto, ainda aqui, em crise radical. De resto a crítica ao teatro naturalista e institucional burguês feita por Brecht, só podia ter lugar a partir da catharsis e não ainda a partir da crise da mimesis. Porque a um programa político e ideológico como o seu teria que corresponder um elemento igualmente político, como é a catharsis, por se relacionar com todos os problemas a que hoje se chamam da manipulação. Ou seja, essa crítica só pôde existir a partir do momento em que se colocou em questão a sua legitimidade, em nome, no caso, de uma participação racional e activa (consciente, portanto) dos espectadores; isto é, de uma participação política (não apenas em sentido restrito), pois trata-se de uma política de emancipação dialéctica da «humanidade».

Peter Brook (The Empty Space), expõe um conjunto de teses, sem dúvida interessantes e ousadas no seu tempo, mas cuja lógica é estritamente teatral - quer dizer, não sendo enquadradas por nenhum sistema filosófico estético geral; pelo contrário, esforçam-se até por alguma inocência política e ideológica ("ingenuidade" que é bem própria de algumas escolas). Sem pôr em causa o teatro, recupera para o campo da teoria e para a prática do trabalho teatral quotidiano todos os pequenos e grandes cortes operados com a arte moderna. Este seu lado, a que chamaremos conservador, e que nunca o terá deixado fazer nada contra o teatro, é contrabalançado pelo facto de Brook ter representado a recuperação de um programa moderno, num momento de descrédito nas suas virtualidades. Pôde então dar seriedade a propostas radicalmente modernas como eram as de Artaud, Jarry, Brecht, Beckett e outros.

Foi, no entanto, Brook, quem primeiro formulou com clareza a ideia de que teatro pode ser definido a partir de elementos invariáveis, reconhecíveis portanto num maior númreo de manifestações de raíz teatral. Temos então, segundo Brook, como base minimal de toda a manifestação teatral, um triângulo constituido por um actor, um espectador e um espaço vazio. O teatro é assim definido a partir dos seus elementos constantes e essenciais e não mais pensado a partir dos seus efeitos, ou de uma sua vocação supostamente religiosa, política ou estética. Graças a este passo é possível pensar uma teoria da teatralidade, ou como nós preferimos chamar-lhe, uma nova teoria do drama que permita revelar uma qualidade dramática num maior número de acontecimentos artísticos. Parece-nos serem estes alguns elementos imprescindíveis para um pensamento que se queira articular com a situação contemporânea da arte.

A lógica de Brook é claramente construtiva e parece visar, além do mais, a legitimação da ditadura do trabalho de equipe, segundo a mitologia higienicizada (tão ao gosto da generosa cultura da contracultura) das virtudes da equipe contra os vícios do colectivo. Nesta proposta poderiamos identificar os passos de um pensamento estruturalista, malgré lui, que marcava o espírito daquela época crepuscular, na qual se procedia aos primeiros ensaios para o funeral do folklore barroco dos anos sessenta.

Vimos em Brecht como se abriu caminho para uma análise radical ao trabalho da mimesis, através da contestação da noção de catharsis; e vimos como, em Brook, a busca de uma essência (não transcendente), isto é, a busca de um teatro sem ornamentos (retirado dele justamente o não essencial), parece abrir portas para uma teoria do drama, através da qual seja possível determinar uma qualidade dramática em diversos acontecimentos não abrangidos tradicionalmente pelo nome de teatro. Justamente, parece-nos limitativo continuar a basear a prática artística contemporânea numa ideia de teatro incontestada.

É possível reconhecer dramaticidade em muitos outros acontecimentos espectaculares - pensamos no bailado, no multimedia, nas chamadas performances (de qualquer raíz: musical ou plástica), etc. - os quais se inscrevem numa lógica claramente dramática, não só por fazerem uso de processos "narrativos" contíguos e próximos, mas também porque perseguem uma ideia de obra que é inspirada na totalidade teatral, entendida esta como uma citação referenciada a uma globalidade e a uma simultaneidade. A ideia que é autorizada por uma definição de teatro como a que nos é proposta por Peter Brook, não é mais do que um modelo que continua a admitir todos os elementos classicamente incluídos numa definição de teatro, embora isso seja conseguido através de uma depuração muito maior e mais interessante. Essa depuração não põe em causa a natureza do objecto na sua especificidade, nem sequer contesta nele, antes reforça por ser talvez possível reconhecê-la melhor, a ideia de que «a mimesis liga a arte à experiência humana individual».
 

[SEGUNDA PARTE]

A tradição dos estudos teatrais tem sido marcada por duas atitudes complementares e fundamentais, quase sempre inquestionadas e intocadas: a ideia de que o teatro é um género literário e que cabe, por isso, numa secção da história da literatura; e a de que o estudo do teatro deve ser empreendido segundo uma perspectiva arqueológica e generativa. A primeira ideia tem marcado, não só o trabalho teórico, com raízes que se afundam pelo menos até à Poética, de Aristóteles, como a prática corrente dos artistas. A instauração desta lógica, segundo a qual um texto literário é posto em cena (encenado), é responsável pela existência do encenador (i.e., pela função encenação) e pela preponderância dada a esse texto numa história autónoma do teatro. Essa função é assim requerida pela necessidade de pôr em cena, o que quer dizer que a produção teatral vive sempre estes dois momentos separados que são o texto e o texto em cena.

O encenador é assim a figura que cumpre não só a tarefa técnica de pôr em cena, mas também a tarefa de criar uma versão cénica daquele texto, movendo-se portanto, na esfera da autoria, que é (ou tem sido, em períodos concretos da história do teatro) verdadeiramente determinante do espectáculo. É a pré-existência do texto literário que permite este segundo trabalho - o dramaturgo, isto é, o autor do texto primordial, é assim, uma entidade quase explusa do processo de criação da obra, apagado ou esbatido nesse processo para dar lugar à importância do trabalho de re-criação, ou de sobre-criação do encenador. Aquilo que lhe é pedido muitas das vezes é um texto "branco" (sem indicações de cena: didascálias) que permita ao encenador (assumindo-se este como verdadeiro autor do espectáculo) uma liberdade total de adaptação, de re-criação, e de adequação da primeira à segunda "linguagem": a da cena. "Linguagem" esta que é composta de vários elementos oriundos de outras àreas, arranjados e combinados (eis o segredo: a combinação) segundo uma ideia de totalidade compósita e complexa.

Parece-nos que o texto literário pré-existe em virtude da convicção generalizada de que não é possível escrever um espectáculo. Pretendendo salientar aqui o carácter espectacular desta arte, não podemos deixar de refutar esta ideia: de facto, o teatro não pode ser simplemente considerdo como um género literário, mas sim, antes, como uma prática cénica, como espectáculo, como execução pública. O esforço revelado pela tradição tem acentuado, na espectativa de ancorar o teatro ao seu passado (saber o que foi, para saber o que é ou poderá ser), a necessidade da procura de um padrão positivo de verdade, i.e., o primeiro teatro, matriz universalizante e tutelar de todas as práticas teatrais.

O resultado tem sido uma legislação totalitária (as mais das vezes pouco mais do que consuetudinária) que pretende fixar normas e verificar desvios. O que esta análise histórica e cronológica tem para nos dar é apenas uma relação de géneros numa perspectiva evolucionista que obriga toda a inovação conceptual a inscrever-se como desvio e como rotura, dando-lhe um lugar à margem até que o tempo a repesque para dentro de história. Entre outras insuficiencias destacaremos o facto de não haver aqui uma preocupação não ideológica de definição e de produção conceptual que vise modelos estabilizados fora de um contexto histórico. Muitas vezes, aquilo a que se chama história do teatro não é mais do que uma sucessão de nomes de dramaturgos e de peças de teatro, classificados segundo critérios marcados por considerações não isentas de estratégias de dominação dentro da arte.

A contradição parece ser clara. É que esta história do teatro não é uma história de espectáculos, mas de textos literários. Ora sendo o teatro uma forma particular de espectáculo é insuficiente produzir uma história que se baseia precisamente naquilo que é secundarizado pela prática artística. Quer isto dizer que, sendo afinal uma história de peças de teatro e não de espectáculos, fica de fora tudo aquilo que corresponde ao modo de realização da cena. Do nosso ponto de vista, este equívoco baseia-se numa "falta" que tem caracterizado o modo de produção teatral: contrariamente a todas as artes que, para se actualizarem, devem ser executadas (isto é, lidas e interpretadas de novo) o teatro não possui nenhuma forma de escrita que abranja o espectáculo no todo. Escreve-se no ar; inscreve-se na memória dos actores; repete-se, repete-se sempre até estar decorado, mecanizado, fixado - até a personagem ser quase como uma aquisição do actor. É pois um trabalho agrafo e assombrosamente artesanal.

Temos vindo a insistir na questão de uma escrita global para o teatro, enquanto espectáculo. Uma escrita que seja, portanto, a de um espectáculo dramático e não apenas a do texto literário que lhe serve de base. Tratando-se no espectáculo de abranger uma totalidade ampla e complexa num único texto, parece ser óbvia a necessidade de desenvolver as possibilidades da sua existência. O que aqui se propõe é um paralelo entre a escrita musical e uma escrita para drama que resulte da aplicação dos principios de escrita dessa arte contígua (e também ela de execução), cujo modo concreto e específico se baseia num macro-texto - a que se chama partitura - no qual estão notadas todas as indicações necessárias à realização da obra. A ideia da partitura surge assim, não apenas como metáfora, mas como possibilidade técnico-prática.

A palavra partitura diz claramente respeito à música. Trata-se, em suma, de um todo de onde se extraem as partes que cada instrumento ou voz interpreta. Utiliza-se na escrita de peças para conjuntos de instrumentos e/ou vozes e nela se inscrevem instruções mais ou menos precisas sobre altura, durações, dinâmicas, tempo, andamento, etc. Olhando para uma partitura musical é possível observar, na vertical, a evolução e o encadeamento de acordes (harmonia) e, na horizontal, linha a linha, o desenvolvimento melódico e ritmico. Assim, num dado momento sabe-se, pela leitura, o que cada instrumento está a executar, ou que cor tem um determinado acorde num dado compasso. Este modelo é homologável.
 
 

O espectáculo pode ser deste modo comparado, por exemplo, a uma sinfonia interpretado por uma orquestra, na qual cada instrumento se distingue pelo seu timbre, pela cor do seu som, pelo seu discurso. É igualmente visível como instrumentos e vozes caracteristicamente diferentes podem falar com ritmos diferentes produzindo na sua relação com as outras resultados sonoros completamente novos (e outros universos de sentido). Podemos então comparar tudo isto às vozes que emite o cenário, a entrada ou saída de uma personagem, uma mudança de luz, as falas, etc.

A ideia de uma partitura para o espectáculo dramático parece servir perfeitamente a um género de concepção que é reportado a uma obra compósita e complexa, funcionando a vários níveis de leitura mediatizados por um contexto dramático. A partitura musical, sobre a qual, como se disse, é construida a obra musical, oferece portanto a possibilidade de ser apropriada pelo trabalho teatral, estendendo os seus efeitos à própria noção de obre de arte contemporânea. O texto resultante desta apropriação contém todas as «linguagens» intervenientes no espectáculo. Esta ideia liga-se também necessáriamente à noção de composição.

Na música trata-se de um processo que enforma a concepção da obra: compõem-se múltiplos sons segundo uma ideia directora para cada obra, de acordo com as leis que vigoram na arte da combinação dos sons: Trata-se justamente de um trabalho de combinação de sons, na música, e de múltiplas «linguagens» num espectáculo dramático. A intervenção de várias vozes na polifonia, significa que a escrita de linguagens diversas e simultâneas na música é um processo natural. Parece-nos que a aproximação do conceito de composição, como processo de construção e escrita da obra, à concepção do espectáculo dramático pode ser altamente vantajosa, tanto mais que, no drama, como na música, tudo fala ao mesmo tempo. A este propósito, diz Roland Barthes:

«O que é o Teatro? Uma espécie de máquina cibernética. Em repouso esconde-se por detrás de um reposteiro mas assim que fica a descoberto começa a enviar-nos mensagens. Estas mensagens têm de característico o facto de serem simultâneas e todavia, terem diferentes ritmos; em determinada altura do espectáculo recebemos ao mesmo tempo seis ou sete informações (provenientes do cenário, da indumentária, da iluminação, da colocação dos actores, dos seus gestos, mímica, falas) mas algumas permanecem (como acontece com o cenário) enquanto outras se vão modificando (as palavras, os gestos); estamos, portanto, perante uma verdadeira polifonia informativa e é isto que constitui a teatralidade: uma densidade de signos.»

Esta densidade de signos só pode portanto ser capturada num macro-texto complexo: a partitura. A nossa proposta consiste portanto num trabalho de arquitectura, visto que a concepção é global e simultânea e que o seu texto(-global) é convertido numa partitura abrangente de todo o espectáculo.

Ao procurar o modelo formal da música como enformante de uma escrita global e da concepção da cena, recupera-se a ideia wagneriana da gesamtkunstwerk (obra de arte total), que parece ser a que melhor se aplica a um trabalho de produção de sentido múltiplo e complexo, como é o da cena. A ideia de totalidade não é particularmente nova. É um desejo hegemónico de unificação (divino e não diabólico) que um novo tipo de obras procura. A ópera, a tragédia dos gregos, o bailado, etc, são obras de grande complexidade que já resultaram desse esforço agregador. Um esforço grande de composição e organização. Reunoificar as artes fragmentadas desde o grande desastre grego (Nietzsche) foi o desejo de Wagner (a música e o drama). Hoje, o desenvolvimento de novos meios eléctricos e electrónicos (Syberberg e o cinema: poderia ter sido aí a obra total) veio contribuir para uma crescente sofisticação dos acontecimentos multi-media e viabilizar, embora de modo orgânicamente antagónico, a gesamtkunstwerk.

Tendo como conceito de espectáculo dramático a ideia de obra total, fica aberta a possibilidade da escrita de obras novas, baseadas numa nova escrita cénica totalizante. Espectáculos a que se poderá chamar multimedia, embora esta designação esteja já demasiado conotada com alguns falhanços de ordem técnico-estética, vazios e sem projecto.

É claro para nós que só é possível fazer alguma coisa a favor do teatro se se souber estar contra ele em alguns momentos. É preciso portanto acentuar as fissuras que já estão à vista, agudizar as questões que já estão a ser trabalhadas por alguns artistas, provocar cisões radicais de ordem conceptual e teórica, e, sobretudo, pôr em causa as ideias mais óbvias e banais. Processo artificioso este que pretende chegar a algum lugar, num momento em que, mais uma vez, as opiniões se dividem entre os profetas do extremínio (aqueles que advogam o fim do teatro) e os mais românticamente esperançados num seu renascimento das cinzas.

Com efeito, um crescente número de posições pretende defender que hoje o teatro é uma arte moribunda, totalmente credora dos contributos de todas as outras e totalmente incapaz de responder com suficiente eficacia aos poderosos apelos dos tempos modernos. Contesta-se aqui a atitude que, dentro do teatro, tem sido mantida acerca de novas disciplinas artísticas. O teatro, digamos convencional, tem-se mantido obstinadamente incapaz de assimilar essas novas expressividades, em nome de uma pureza ingénua que o remete de novo para a arqueologia de um trabalho completamente alheado da situação histórica, cultural e tecnológica do seu presente.
 
 

Comunicação ao Primeiro Congresso Luso-Espanhol de Teatro. Coimbra SET87.


1- Texto da comunicação apresentada ao Primeiro Congresso Luso-Espanhol de Teatro, realizado de 23 a 26 de Setembro de 1987, em Coimbra. Publicado in Dramaturgia e Espectáculo, Actas do 1º Congresso Luso-Espanhol de Teatro, Coimbra, Livraria Minerva, 1992.