copyright
@
2000, José Júlio Lopes
O pó voa e cada grão é o mundo inteiro
Houve
uma época em que pareciam ser evidentes no mundo sinais de que a história
estava a chegar ao seu destino. Ironicamente porém a história mostrava, em
outros sinais discretos, que se movia. Ainda. Nessa sua desconcertante ironia a
história fez-nos supor que teria parado. Para continuar a deslocar-se, apesar
da nossa momentânea distração filosófica.
O
anúncio apocalíptico do fim das utopias, das ideologias e das grandes
narrativas que sobressaltou os anos oitenta, correspondeu durante algum tempo a
uma espécie de rendição do pensamento e, por consequência, também da acção.
A actualidade foi-se constituindo apesar de tudo. A história, habituada a
grandes anúncios (a morte de deus, o fim da filosofia, a morte da arte, o fim
da modernidade e a possibilidade de uma pós-modernidade), foi demonstrando que
as imensas contradições que entretecem o destino da humanidade, no seu fino
paradoxo, nunca permitirão que ela chegue ao seu destino: à ideia utópica de
um projecto cumprido, à ideia de uma
humanidade realizada numa comunidade de
homens bons. O seu destino não existe: é essa a ironia.
Não
sem razão. A súbita consciência de que todas as concretizações utópicas
surgiam no mundo como catástrofes, como monstruosos erros ou mesmo como horror
cientificamente realizado – depois do qual nem mais uma palavra faria sentido,
nenhuma poética deveria sensibilizar -, implicou, na sua urgência, a criação
de novas visões para o mundo. Visões totais ainda, porém não totalitárias,
que concebem o mundo como uma totalidade de fragmentos, num imenso arquipélago
de possibilidades de mundo; vários modos de fazer mundos, num mundo não
enclausurado numa única visão. Sendo esta visão ainda uma visão, um modo de
fazer o mundo, ela é sem dúvida uma utopia.
As
grandes utopias que conhecemos possuem uma matriz comum. Correspondem a uma
mesma ideia para o mundo (seja o paraíso, seja o seu equivalente sem deus da
sociedade sem classes), cujo programa essencial é o de corrigir o mundo
concreto, imperfeito e injusto, e constituem-se como desejo mobilizador. Da República de Platão, uma das primeiras cidades utópicas, não
poderemos afirmar tratar-se de uma cidade aberta e livre; a Utopia
de Thomas Moro na sua infinita poética e na sua aparente ingenuidade, não
parece ser um lugar exemplar e desejável; a utopia comunista impôs a construção
de muros e o alívio da sua destruição; a utopia nazi teve como resultado o
mais inacreditável horror. O horizonte utópico corresponde sempre a uma forma
absoluta de recobrimento total do mundo e de intervir no curso da história.
Não
tendo lugar no mundo, o drama surge quando a utopia encontra um lugar e a sua poética
se converte subitamente numa forma concreta: a imposição do paraíso, é
sempre uma pequena arrogância que a história não perdoa. Se esta leitura da
história é aceitável, Nefertiti e Akhenaton poderão corresponder a um
momento singularmente interessante na história, pela distância, pela lonjura.
A sua visão monoteísta, unificadora e total terá correspondido a uma das
primeiras utopias impostas.
Tudo
feito em pó, diz Mephistos,
a certo momento desta trama. É esta talvez a maior ironia do destino. Mas, o pó voa e cada grão é o mundo inteiro, responde-lhe Nefertiti
– e esta é a alegoria do destino.
O
espectro da tecnologização do político.
De
certa forma, a fantasmagoria política do destino da humanidade transferiu-se
para o campo da tecnologia que surge contemporaneamente como uma espécie de utopia
desistida, fria e fraca, mas ainda como alguma coisa que amedronta ao mesmo
tempo que liberta. O discurso essencial é o de que a tecnologia não é ideológica
e que não teria logos e, portanto,
também não teria lugar político, ou seja, não corresponderia em si mesma a
uma verdadeira visão para o mundo.
O problema surge porém quando o complexo-industrial-técnico-científico-cultural subitamente se configura numa constelação política constituída como uma forma específica de dominação. O mundo é constituído por uma humanidade de seres desligados pela sua própria natureza fragmentária; e a sua história é marcada por uma verdadeira conspiração metafísica contra essa fragmentação física e concreta dos corpos e dos espíritos. As visões totalitárias do mundo encontram o seu fundamento político na ideia fácil segundo a qual o único modo de governar com eficácia é exercer o poder sobre um todo que seja uno, quer dizer, sobre uma humanidade una: uma humanidade que seja um só homem. O totalitarismo político tem este horizonte; as ideias de nação e povo possuem esta configuração ideológica.
Um dos mais fortes paradoxos da actualidade consiste numa das tarefas atribuídas à tecnologia: o de fornecer dispositivos de ligação que permitam desfazer a desligação seguindo a miragem de uma comunicação perfeita que anule a fragmentação. A imagem final é a da ligação universal numa nova humanidade, num todo orgânico, em suma (e de novo, como sempre), na própria ideia de deus, num todo. O totalitarismo visível nas disposições da tecnologia para a comunicação/ligação é o da destruição da humanidade enquanto comunidade de homens e da criação de uma segunda humanidade como totalidade dissolvida em si mesma. Se isso corresponde a uma utopia secreta que anima a humanidade no seu movimento parece ser verdadeiramente a questão hoje. Desejaremos realmente dissolver-nos uns nos outros?
Um
segundo paradoxo da actualidade pode ser enunciado desta forma: realidades de
fundo tecnológico que hoje nos maravilham e seduzem poderão vir a tornar-se
lugares para novas resistências (por exemplo, a Internet, como lugar
verdadeiramente utópico, na sua virtualidade). Por um lado, favorecem a expressão
individual, por outro, mostram já nessa possibilidade o caminho da dissolução
da individuação. A tecnologia, porém, é demonstradamente uma inevitabilidade
histórica. E, sem dúvida nenhuma, constitui uma das mais poderosas formas de
concretizar visões para o mundo (mesmo que se trate de mundos paralelos e
virtuais). E sempre de, pelo menos, o alterar.
O
espectro da estetização do político.
A
situação contemporânea encontra-se assim marcada pela questão comunicacional
e tecnológica, da qual emergem novos problemas no campo das artes. Face a novas
formas de expressividade dramática, nomeadamente formas agregativas e
multimedia, e num mundo em que os olhares se converteram à visão dos grandes
meios, reconfiguram-se as possibilidades de expressão artística. Uma tendência
para um regresso a formas agregativas (que têm como referente a tragédia dos
gregos e a ideia de obra-de-arte-total - gesamtkunstwerk
- de Wagner) é visível num regresso à ópera e também naquilo a que se tem
chamado o multimedia, o teatro-dança,
a ópera-teatro, teatro-música, teatro musical, designações constituídas por
defeito à falta de outras melhores.
A
resposta a estas questões não tem partido do teatro convencional, já que as
configurações que estes novos espectáculos propõem não cabem na classificação
corrente dos géneros dominantes. As respostas a estes novos desafios têm tido
origem noutras disciplinas artísticas que retomam um esforço agregativo e de
re-união das artes (as artes-plásticas, a música, a poesia).
Mas,
as novas configurações das obras de arte surgem em grande medida no seu
cruzamento com as novas tecnologias digitais da imagem e do som. Constituem-se,
com este novo material, em formas miríficas
de uma electricidade estética cujas
possibilidades são aparentemente mais poderosas. Possibilidades de construção
de artifícios e de ilusões. Possibilidades para a criação de espectáculo
e para novas formas de estetização do político (numa versão tecnologicamente
actualizada que integra radicalmente a experiência estética num processo de
imersão do sujeito na própria obra).
Uma electricidade estética dirige-se assim ao sentir e ainda e de novo ao choque da sensibilidade (da aesthesis). O gesto é ainda o mesmo gesto arcaico da vanguarda. Um gesto paradoxal. De alguma forma, a experiência destas novas formas artísticas provoca uma espécie de curto-circuíto: o envolvimento interactivo do espectador destrói o seu ser-espectador, ou seja, desfaz o efeito tradicional do ir-ver ou do estar-a-ver: o observador que contempla um naufrágio (para usarmos a metáfora de Blumenberg) é transformado no próprio naufrago que se vê a si próprio e assim experiencia no corpo o sofrimento da sensibilidade da aflição e do afogamento – como um re-sentimento histórico. Ser o naufrago e ver-se a si próprio da margem a naufragar é a experiência trágica proposta por uma electricidade estética que permite novas formas de relação da arte com o seu público. Destruindo o público, transformando-o numa parte da experiência.
O paradoxo é pois o da ultrapassagem da velha ideia da comunhão de uma comunidade de homens que assiste (como na tragédia, no drama wagneriano, no teatro convencional), pela ideia da experiência da dissolução.
A luz e a utopia - a
alegoria da redenção. A conspiração das imagens e das palavras.
Nefertiti é um mito sem palavras. A sua imagem quase intocada e o seu misterioso olhar viajaram assombrosamente ao longo da história. Foi a linguagem que a tornou conhecida. O que sugere uma espécie de conspiração histórica com o objectivo de restaurar a sua memória, depois de quase desaparecer em consequência do primeiro gesto conhecido de reescrever a história (o período seguinte ao reinado de Akhenaton ficou conhecido pela sua violência; hoje sabe-se que os nomes de Akhenaton e Nefertiti foram sistematicamente martelados das inscrições da época). A sua imagem é a nossa primeira pista. Através da sua secreta e laboriosa tarefa de guardar a memória, escribas (aqueles que escrevem e que usam a linguagem) e escultores (aqueles que produzem imagens) perpetuaram a sua existência.
E assim hoje recebemos um mito poderosíssimo: um mito sem palavras, sem memória, sem história. Apenas um ícone, uma imagem cujo referente é quase improvável. Mais do que outros, Nefertiti é um mito a exigir a sua história, a exigir a redenção da sua memória. Mas essa não é a nossa tarefa: a história que o faça. É do tempo que estamos a falar. Da linguagem. Da imagem.
Nefertiti não é uma recriação histórica, nem a sua construção se esforçou em aceder ao espaço da reconstituição factual. Nefertiti poderia ser um espectáculo cujo desejo fosse o de se integrar num processo de remitologização do contemporâneo, mostrando e defendendo uma visão do mundo (tentação a que os artistas sempre tiveram dificuldade em resistir). Mas não é. Este mundo de que estamos a falar é um mundo sem-lugar, e Nefertiti é um mito sem costas; um mundo de grãos de pó, improvável, sempre em deslocação caótica.
No entanto, se alguma vez viermos a saber o que realmente aconteceu no período amarniano, talvez a tese de Freud (vd. Moisés e o monoteísmo) encontre o seu fundamento e possamos determinar com rigor qual a origem do deus que tem regulado a nossa cultura. Se a origem da religião cristã e do seu deus único puder ser traçada até ao momento amarniano, sem dúvida a grande novidade é a de que Deus poderá ser pensado como uma casualidade histórica ou, pelo menos, com uma origem pouco divina e razoavelmente arbitrária – a conversão dos deuses do panteão egípcio num só correspondeu a um gesto político humano e não divino (e a história teria que ser contada outra vez). Não parece ser esta a forma divina de um deus se revelar. Ou, como diria Nietzsche, «estamos demasiado habituados ao contraste entre a verdade e a não-verdade histórica. É cómico pensar que os mitos cristãos devam ser inteiramente históricos.»
A alegoria da forma: a
citação do grande estilo.
Em
vez de uma fusão, do que se trata aqui é de uma justaposição de modalidades
de expressão diferentes. Recuperar a forma da ária
e recitativo significa recusar fundir
os géneros convocados, simplificando os elementos do espectáculo de forma a
fazê-lo emergir composto por unidades autónomas. Este enfoque fenomenológico
preliminar, ao invés de disfarçar a verdadeira natureza de cada arte,
mergulhando-a na mitologia de uma arte irreconhecível e sui
generis (era esse o desejo de Wagner), acaba por revelar claramente a
linguagem específica de cada voz, contrariando assim também a tese de Rousseau
que defende que, na ópera, a melhor música é a que se faz esquecer (ou seja,
que nem se ouve). Este processo fragmentador na forma e no estilo constitui-se
como a alegoria da própria forma – o grande estilo (a ópera) - e como a
forma paródica da linguagem.
O mosaico. Música e
alegoria. Fragmentos ligados e desligados.
Walter
Benjamin refere-se ao projecto de uma obra que fosse toda ela constituida por
citações compostas num complexo painel intertextual que fizesse reviver as
vozes de outros nesse gesto agregador de fragmentos. Essa obra assim composta
era descrita por Benjamin como um mosaico.
Aparentemente tratar-se-ía de reconhecer que não haveria mais nada para
escrever senão ir reordenando sucessivamente o que já tinha sido escrito antes
e por outros.
Esta
mesma figura (o mosaico) faz parte da terminologia musical contemporânea
correspondendo a um conceito construtivo e a uma técnica em que a composição
se estrutura a partir da imagem do mosaico;
não como conjunto de citações de obras pré-existentes, antes como ordenação
de fragmentos compostos e ligados entre si por um programa que instaura uma lógica
unificadora criada pelo compositor. O compositor italiano Franco Donatoni fala
em paineis referindo-se ao mesmo gesto
de compor «um quadro» de pequenas partes, fragmentos retirados do universo
caótico da linguagem musical do próprio compositor.
Lisboa,
Janeiro 2000