As escritas da abertura na música contemporânea (1)

José Júlio Lopes, Universidade Autónoma de Lisboa

1990



RESUMO

Um número crescente de obras oriundas da chamada música contemporânea apresenta formas e configurações radicalmente diferentes da tradição (clássica e mesmo até de alguma «tradição» moderna). De facto, a música que se ouve já não soa ao que soava; ela compõe-se agora também dos sons que antes pertenciam ao mundo das dissonâncias e dos ruídos. Novas poéticas e novas formatividades que subvertem completamente a lógica de uma escrita tradicional agora insuficiente e estreita para as necessidades criadas por obras que jogam com materialidades e modelos conceptuais que não têm precedentes, já que um dos traços mais caracterizantes deste tipo de produções artísticas é talvez aquele que as vem marcando segundo a lógica de uma dupla ambiguidade diferida sobre a recepção. Ambiguidade que é mesmo um objectivo implicitamente declarado, de acordo com um programa ainda moderno que deixa a definição dos contornos do sentido a produzir para o momento da actualização da obra. Fechar-se-ia aí esse ciclo. Mas, abre-se, afinal, e de novo, a cada nova solicitação, num movimento perpétuo.
 
 

[0. Abertura.]

Um número crescente de obras oriundas da chamada música contemporânea apresenta formas e configurações radicalmente diferentes da tradição (clássica e mesmo até de alguma «tradição» moderna); são obras estruturadas e concebidas como objectos estéticos de organização instável e de contornos indefinidos como resultado de novos procedimentos, de novas direcções e de novos parâmetros numa prática que operou profundos e sucessivos cortes com o passado, vivendo o conflito e as tensões que opõem os velhos métodos e os seus resultados à busca incessante de novas formatividades e ao aprofundamento de novas poéticas.

Novas poéticas e novas formatividades que subvertem completamente a lógica de uma escrita tradicional (2) agora insuficiente e estreita para as necessidades criadas por obras que jogam com materialidades e modelos conceptuais que não têm precedentes.
 
 

[I. Novas Direcções. Novas Poéticas.] De facto, a música que se ouve já não soa ao que soava; ela compõe-se agora também dos sons que antes pertenciam ao mundo dos ruídos e das dissonâncias; noutros momentos radicalmente separados da alegre harmonia e da tranquila consonância da música tonal, estes sons são o material de que é feita a música que é aceite pela escuta contemporânea. Uma das mais importantes alterações que surgiu com a nova música situa-se exactamente ao nível da sua escrita: novos sistemas de notação foram criados para corresponder às novas necessidades expressivas, aos novos materiais sonoros e às novas lógicas e disposições das obras.

Olhar para uma partitura de música contemporânea passou a ser um exercício de decifração inevitável para os próprios músicos, pois a destruição do velho sistema de notação não deu lugar a outra escrita igualmente universal, descodificável e legível. Pelo contrário, pulverizaram-se os processos e multiplicaram-se as formas. Frequentemente esta individualização do processo da escrita tem implicado que os autores façam acompanhar as suas obras de uma espécie de legendas, à maneira das didascálias no texto dramático, que duplicam o texto da obra com outras notas marginais cuja função é afinal decifrar as primeiras. Adorno chama-lhes «commentaires aberrants et ineptes dont les partitions actuelles s'accompagnent souvent elles-mêmes» (BOULEZ, 1982: 25).

Para Boulez, porém, este comentário de Adorno é aussi inepte e tinha em vista a partitura como objecto principal, referência essencial no trabalho de composição musical. No caso da música, com efeito, a questão é bastante menos gratuita do que parece, pois a escrita e os procedimentos que ela veio impor foram determinantes na (e determinados pela) própria forma como os compositores passaram a poder e a querer conceber as suas obras, e nas inúmeras possibilidades geradas por sistemas de notação livres dos constrangimentos da escrita tradicional. Apesar de a partitura não representar um instrumento essencial e central para todas as músicas, a verdade é que a questão dos novos sistemas de notação é importante, pois trata-se afinal de um aspecto tão decisivo como o da condução da execução da obra e do estabelecimento dos parâmetros gerais da sua interpretação.

A música contemporânea criou portanto uma nova escrita que é ainda uma escrita, recusando ser uma não-escrita mesmo quando os parâmetros que se oferecem aos intérpretes são virtualmente ad libitum. É, com efeito, o que nos é revelado pelo comentário do compositor espanhol Villa-Rojo a uma das suas obras: «"obtener variantes" fue el primer experimento que nos llevó a realizar una partitura dónde casi todos los parámetros deberían ser determinados por los intérpretes realizadores» (VILLA-ROJO, 1982: 10). A transformação da partitura no que se refere ao formato e à sua estruturação, surge portanto como verdadeira necessidade de actualização da linguagem e da expressão musical relativamente a novos procedimentos ao nível da composição: um trabalho de composição que prevê a interferência dos próprios intérpretes dessa partitura.

Ao assimilar e admitir novas materialidades a música contemporânea debateu-se obviamente com o problema de um sistema de notação que, não só não lidava mais com sons «rigorosos» (sons musicais, segundo a tradição), mas que, ao trabalhar novas materialidades, colocava radicalmente o problema da redução a uma partitura de sons provenintes de fontes tão diversas e musicalmente tão incomuns como os sons da própria natureza (com Cage, se pensarmos na sua obra 4'33" como um trabalho indirecto sobre os sons «naturais» do quotidiano e da natureza), electrónicos e electro-acústicos (Varese, Stockhausen, Pierre Henry, Luciano Berio, etc), ou até mesmo, a outro nível, aqueles que resultam das novas exigências feitas aos velhos instrumentos, na procura dos quartos de tom e dos sons multifónicos (nos instrumentos de palheta - e de cordas - por exemplo, com Jesus Villa-Rojo). O grande problema que surgiu foi afinal o de saber como escrever um som que não é som, ou seja, que, segundo a tradição, é ruído e que, portanto, não se encontra codificado (na realidade, ele está codificado do ponto de vista da física e da acústica); pois trata-se afinal sempre de conceber elementos de um código e uma chave de descodificação para cada som.

Como grande consequência destas transformações, todo um único modelo de escrita foi substituído por uma pluraridade de outros, todos eles possíveis e viáveis; esta alteração é importante porque surge como uma reivindicação dos próprios materiais, e como exigência das novíssimas poéticas musicais contemporâneas. Depois de jogarem tudo no trabalho sobre a dissonância e a destruição do sistema da atracção da tónica, as práticas musicais modernas e contemporâneas só podiam caminhar para uma situação de total abertura das suas formas. Mas também de um tendencial fechamento ao nível da recepção, pois como observa Adorno, «(...) proud of the discovery that what is interesting has begun to be boring, they convince themselves and others that boredom is interesting for this very reason» (ADORNO, 1973: 106). Trabalhar sobre o tecido inexplorado das novas materialidades sonoras a que a música moderna se abriu, e sobre novas articulações e programas, é a outra face de uma outra realidade: mais liberdade aos compositores; maior distância entre as obras e a sua recepção; ruína total de todos os velhos critérios que regulamentavam a fruição estética (3).

Este aumento de liberdade nos processos de criação, conceptualização e composição fez com que se esboroassem as próprias fronteiras daquilo que poderia manter incólume o estatuto do compositor, isto é, a competência particular que exige dele não só talento, mas também um saber de escola, provocando uma espécie de democratização da composição musical, cada vez menos baseada numa técnica universal e num conjunto de regras, cada vez mais resultante de uma poética que, tal como Eco a define, «n'est pas un système de règles rigoureuses (...), mais le programme opératoire que l'artiste chaquefois se propose; l'oeuvre à faire, telle que l'artiste, explicitement ou implicitement, la conçoit» (ECO, 1965: 10). O modelo pós-medieval do artista intelectual tem aqui toda a sua validade: ele deve exercer uma actividade paralela de teorização e de fixação de uma constelação de conceitos que enquadrem a sua obra e que deem corpo ao seu projecto artístico. A definição de Eco é bastante mais próxima do seu sentido clássico e permite abarcar toda a actividade artística que resulta de um programa autoproposto e não de uma praxis regulada pelas academias. O programa operatório que cada artista se propõe é construído tendo em vista uma finalidade: a obra. E é ele que estabelece em última análise o único critério de avaliação possível.

O «belo musical» contemporâneo passou assim a ter que ser algo suficientemente maçador para poder ser convenientemente apreciado, desde que a prática musical se ancorou na experimentação moderna e se baseou num trabalho de deriva poética, que foge a toda a objectivação. O reverso deste aumento de liberdade dos compositores, ou pelo menos, nos processos de composição (ao serem levantadas todas as restrições que vinham do passado), gerou obras de um tipo novo, com sonoridades e configurações especiais, que se inscrevem na chamada «música contemporânea» (4).

Para aqueles que não conseguem ainda apreciar com suficiente bonomia o maçador, e não sendo já uma vanguarda, a "música contemporânea" continua a «ir à frente demais». As palavras de Adorno pressentem justamente este fosso que separa radicalmente os consumidores das obras (que a arte moderna não se cansou de acentuar); separação que parece retirar esse lado mais imediato da fruição emotiva das obras, ou melhor, parece deslocar o prazer das sensações para o prazer do entendimento. Perscrutar os indizíveis segredos de uma melodia não é mais o confortável papel dos que escutam uma obra; parece haver nelas um convite a uma grande cumplicidade racional, mesmo quando os sentidos contradizem essa adesão inteligente. Pois é a própria noção de melodia enquanto valor estético (mas não como sucessão de notas ou sons) que está em causa.

É com alguma mágoa que Adorno comenta esta diluição e desvalorização da competência técnico-artística do compositor em favor do desenvolvimento do seu talento poético e da sua capacidade para se propor um programa e cumpri-lo; aparentemente terá deixado de ser necessário que o compositor seja competente no domínio de uma linguagem pre-existente e no domínio da sua sintaxe particular (ou por absurdo, como se diz vulgarmente, que ele "saiba música"); pelo contrário, basta que ele seja capaz de criar um texto que suscite uma interpretação, de conceber uma proposta conceptual credível, ou que domine os novos e complexos instrumentos da tecnologia electrónica. As práticas modernas e contemporâneas têm vindo a privilegiar novas poéticas musicais, contra uma competência composicional de carácter técnico; vão nesse sentido, de facto, as palavras de Adorno, «composers find themselves faced by tasks which are impossible as is the dilemma of a writer who is called upon to create a unique vocabulary and a syntax for every sentence he writes» (ADORNO, 1973: 104).

É a questão da técnica que está subjacente a esta "democratização" da composição; com efeito, a música contemporânea parece não exigir mais o domínio técnico de um instrumento, ou dos processos de composição baseados na harmonia e no contraponto tradicionais, ou em normas de qualquer academia. Ao deixar-se penetrar por poéticas de raíz extra-musical, a música contemporânea viu desagregarem-se as fronteiras da técnica (não da tecnologia; essa é outra questão) e do acesso à arte por essa mesma via; a democratização da composição pôde operar-se por ter passado a ser possível a constituição de obras a partir de um conhecimento não musical mas de carácter linguístico - o pacto existente não é necessariamente baseado numa competência técnico-musical, mas na capacidade de gerar uma linguagem. Ilusória, no entanto, esta democratização é restringida por obstáculos igualmente extra-musicais; e assume a forma do paradoxo: quanto mais acessíveis e livres os processos de composição, mais hermético se torna o meio. Inclusivamente aos músicos das "velhas músicas" que, como é evidente, coexistem.

Se, por um lado, foram as novas materialidades admitidas que reivindicaram uma nova escrita, a verdade é que houve também uma alteração radical nos modos de fazer música. As obras deixaram de caber no formato antigo da partitura. Esta alteração, que não é anterior aos anos cinquenta, sente-se já como exigência de algumas obras da época ainda notadas em partitura tradicional (as obras do dodecafonismo não propunham de facto qualquer rotura relevante ao nível da notação, embora tivessem exigências de escrita superiores, que, com frequência também, davam lugar a níveis de leitura e de execução verdadeiramente virtuosos); elas "pediam" novos grafismos que traduzissem mais claramente os efeitos expressivos e os sons pretendidos. A posterior supressão do pentagrama e o infinito manancial criativo que estão contidos numa escrita livre e mais plástica criam ainda uma outra relação com os intérpretes: uma partitura assim concebida oferece à imaginação interpretativa a possibilidade de tomar como base os próprios valores plásticos contidos nesse «texto».

Uma das principais consequências dos novos regimes de escrita, ou melhor, das novas poéticas da notação, tem a ver com o facto de os materiais de estudo disponíveis ao compositor contemporâneo não serem, como no passado, tratados, mas antes obras paradigmáticas que servem como objecto de análise e como tema para comentário, a partir de excepções e não de regras ou normas. A aprendizagem é feita com base na análise e no comentário, representando afinal o manuseamento de uma enorme quantidade de informação: é preciso conhecer um número sempre maior de obras, conhecer cada caso particular, sem nunca, no entanto, poder estabelecer o princípio e a lei (5). Mais do que consuetudinária, esta aprendizagem lida com matérias instáveis e tem em vista uma prática que persegue o modelo que continua a trabalhar a novidade.

O enfraquecimento da importância de um sistema de escrita que exactificava os sons (no cruzamento entre as duas dimensões fundamentais, o espaço e o tempo: a sua altura, o seu ritmo, as suas articulações), seguindo um modelo de certa forma similar ao da linguagem verbal (um repertório susceptível de múltiplas combinações: daí a ideia de composição), tem como consequência a criação individual para cada obra e por cada autor de um léxico, ou de uma língua, e coloca de facto o trabalho de composição e de autoria num grau zero constante. Adorno dá-se conta de uma das principais imposições que os novos materiais musicais exercem sobre o compositor, que faz com que de cada vez ele tenha se auto-propor um programa operatório e cumpri-lo - não se trata de seguir regras pré-existentes, mas de criar as suas próprias regras; regras irrepetíveis e únicas, por definição: regras de excepção, portanto, passe o paradoxo.

As novas poéticas da obra aberta, têm origem neste trabalho inicial, que exige como se viu uma menor "competência musical", mas que faz apelo a uma maior «competência poética», justamente. De tal forma que, segundo Umberto Eco, «(...) toute recherche touchant la poétique repose soit sur les déclarations explicites des artistes (...), soit sur analyse partant (mais en la débordant) de la structure des oeuvres: la manière dont l'oeuvre est faite permettant de déterminer la manière dont on voulait qu'elle fut faite (...)» (ECO, 1965: 10). A música radical (na expressão de Adorno) faz explodir não só as velhas formas de escrita, como também (e afinal por essa mesma via) todos os critérios estabelecidos, nomeadamente no que diz respeito à morfologia das obras; assim como implica que não se trate mais de averiguar a adequação da obra aos cânones académicos (que no limite deixaram de existir), pois, afirma Adorno, «since the compositional procedure is gouged simply according to the inherent form of every work - not according to tacitly accepted, general demands - it is no longer possible to "learn" definitively what constitues good or bad music» (ADORNO, 1973: 8).

A crítica adorniana reflete afinal o desespero que se instalou pelo alargamento de parâmetros e de possibilidades e que teve como resultado a explosão dos critérios de avaliação e de fruição. Não mais é possível dizer de uma obra musical que é boa ou má, usando o critério da sua adequação às regras da harmonia e do contraponto, ou mesmo a quaisquer regras objectivas; na realidade, como diz Eco, é preciso ter em consideração as próprias «declarações» dos artistas, ou seja, o programa operatório que se propuseram seguir. A adequação tem a ver com as intensões de cada obra, expressas ou não. Na realidade, muitas das obras da chamada «música contemporânea» de acordo com os critérios anteriores, ou com os critérios que ainda vigoram no ouvido do senso comum, não passariam muito simplesmente de má música, ou de não-música. E assim, a voz de Adorno curiosamente pode fazer coro com o sentimento do melómano comum e (por que não dizê-lo) tradicional, quando afirma que «for the first time, dilettants everywhere are launched as great composers» (ADORNO, 1973: 7).
 
 

[II. A Ambiguidade Da Abertura] Um dos traços mais caracterizantes de um certo tipo de produções artísticas contemporâneas é talvez aquele que as vem marcando segundo a lógica de uma dupla ambiguidade diferida sobre a recepção. Ambiguidade que é mesmo um objectivo implicitamente declarado, de acordo com um programa ainda moderno que deixa a definição dos contornos do sentido a produzir para o momento da actualização da obra. Fechar-se-ia aí esse ciclo. Mas, abre-se, afinal, e de novo, a cada nova solicitação, num movimento perpétuo.

Depois dos esforços da arte moderna que, nas palavras de Adorno, «segundo o seu modo de fazer experiências, e como expressão da crise delas, destrói o que a industrialização produziu por meio das relações de produção dominantes» (ADORNO, 1982: 76), ou seja, depois de uma arte que tentou repor o carácter de inacessibilidade das obras (ao qual Walter Benjamin chamou a aura) distanciando-as das consequências da comercialização e da massificação, o seu movimento foi inevitavelmente o de uma fuga para a frente. Depois de trabalhar o material sonoro (da tonalidade ao dodecafonismo), só lhe restava trabalhar as formas, como já vimos. Parece ser aí, em última análise, que se joga toda a moderna problemática da autoria e da abertura, em música.

Mas, esta ambiguidade de que falamos marca, antes de mais, a primeira abertura que todas as obras assumem em maior ou em menor grau e que não é mais do que a sua disponibilidade para serem interpretadas segundo a subjectividade dos seus consumidores. Ou seja, as obras apresentam-se constituídas, estruturadas e formalizadas, mas não fechadas ou concluídas (conclusão e fechamento aqui ainda no sentido em que possa ser inequívoca a sua leitura): deixam aberta a possibilidade de serem lidas de formas diversas, porém não infinitas pois os parâmetros da leitura estão contidos no esquema finito da sua estruturação; estão justamente abertas a esta interpretação. Fenómeno que históricamente sempre se verificou de forma crescente.

Nas palavras de Umberto Eco, abertura não significa porém necessariamente indeterminação na comunicação, infinitas possibilidades da forma, ou liberdade total de interpretação, pois o consumidor «a simplement à sa disposition un éventail de possibilités soigneusement déterminées, et condicionées de façon que la reaction interprétative n'échappe jamais au contrôle de l'auteur» (ECO, 1965: 19). Neste sentido, esta primeira abertura transforma as obras num campo de possibilidades de interpretação cada vez mais alargado, mas não infinito (6), já que é o próprio artista que projecta na obra um determinado tipo de consumo e estabelece assim os parâmetros para a sua interpretação. Nestes parâmetros estão implicados não só a forma como ela está estruturada, mas também o seu título e toda a carga histórica e simbólica que está associada ao nome do autor e ao valor que esse nome possui no mercado da arte. Porque, como afirma Damisch, «o artista é, antes de mais, isso: um nome» (AA.VV., 1984: 70). E um nome que vale, portanto. Ou seja, tudo aquilo que é conhecido da sua história ou do seu «mito», faz igualmente parte dos parâmetros da interpretação, pois frequentemente através de uma obra isolada é todo o conjunto da sua obra julgado ou apreciado. O que quer dizer que uma obra possui uma historicidade que entra como valor de interpretação e como parâmetro.

Tal como perante um recém-nascido se tentará sempre descortinar o pai, também, como diz Damisch, «uma obra nunca é melhor recebida, mais valorizada, no museu ou no mercado da arte, do que quando pode apresentar-se com o seu selo de origem - o nome ao qual se reduz o artista, considerado como seu pai» (AA.VV., 1984: 70). A importância da questão do autor no momento isolado do consumo da sua obra diz respeito aos limites da abertura que nela vão incluídos, até porque um desses limites é todo o trabalho de atribuição (7), que consiste afinal "numa investigação de paternidade" (AA.VV., 1984: 71), o que quer dizer, não só que a obra somente adquire existência "legal" estando assinada, como também que se fecham nesse conhecimento as possibilidades da sua interpretação. Essas possibilidades, por outro lado, não podem ultrapassar a fronteira, bem menos ilusória, da história do próprio consumidor, já que, como nota Eco, «(...) chaque consommateur exerce une sensibilité personnelle, une culture déterminée, des goút, des tendences, des préjugés qui orientent sa juissance dans une perspective qui lui est propre» (ECO, 1965: 17).

De resto, como parece ser evidente, a abertura de «primeiro plano» sempre exerceu os seus efeitos, pois sempre as obras de arte se mostraram disponíveis para ela. Esta abertura é mesmo condição inerente a toda a fruição estética dado que, para que ela possa ter lugar, a obra tem que estar, precisamente, aberta, ou seja, deve possuir uma margem de contornos suficientemente indefinidos para que (paradoxalmente, talvez) possa ser interpretada e fruída; é nessa ambiguidade e nessa capacidade de gerar equívocos que se iniciam todas as derivas que ela contém em estado potencial para oferecer aos seus consumidores.

Destinando-se a agir sobre os sentimentos, as emoções e as paixões, e não directamente sobre a racionalidade, a música é exemplar na forma como pode produzir "mensagens" tão ambíguas quanto inexplicáveis. Não se exlui todavia a existência de uma semântica e de uma retórica (enquanto arte da persuasão) musicais que jogam na produção de efeitos de sentido cuja ressonância e eficácia está continuamente a ser demonstrada sob os usos (justamente) comerciais da música, aspecto em que a crítica de Adorno é particularmente severa: «(...) the liberation of modern painting from objectivity, which was to art the break that atonality was to music, was determined by the defensive against the mechanized commodity - above all, photography. Radical music, from its inception, reacted similarly to the commercial depravity of the tradicional idiom» (ADORNO, 1973: 5). Esta libertação da objectividade de que Adorno fala relativamente às artes plásticas, revela afinal um dos momentos cruciais na «história» da abertura.

Na mesma medida em que a arte, em lugar de copiar servilmente a realidade, a foi transfigurando, foi ganhando espaço a sua abertura à possibilidade de mais do que uma forma de interpretação e de leitura. Foi a arte moderna que acabou por assumir esta abertura como essência do seu próprio programa. Estava aqui também em causa a possibilidade de um consenso sobre o belo, no sentido em que foi sendo cada vez mais difícil estabelecer acordos sobre o «significado estético» de um número crescente de obras, de propostas artísticas, e de enunciados estéticos.

Parece ser evidente, por outro lado (apesar de ser aqui uma questão lateral), que esta abertura não habita só o espaço tradicional da produção artística e da fruição estética, embora seja aí mais visível e exemplar o seu trabalho. Neste espaço assim tão amplo, abertura e polissemia são conceitos que se confundem. A ambiguidade da palavra abertura, neste uso, marca também, inevitavelmente, o próprio conceito, visto que ele possui de facto pelo menos duas leituras e aplicações diferentes. Se se pensar a metáfora como a figura da abertura por excelência, é aceitável então um alargamento da noção de abertura a praticamente todas as obras de arte. Seguindo o movimento da metáfora torna-se clara a abertura de todo o texto poético, por exemplo, que se joga justamente no espaço amplo da polissemia - entende-se também, a outro nível, como é imprescindível a interpretação e o comentário dos textos fundadores, que continuam a requerer a mediação de um interpretador (8), cujo trabalho consiste em revelar uma das suas leituras possíveis, em desocultar o que está escondido por trás do valor próprio e literal das palavras; ou como o texto jurídico apesar de tudo contém fendas que igualmente revelam a possibilidade de interpretações diversas (por vezes antagónicas) de algo que, pela sua natureza normativa, deveria ser inequívoco.

É porém a abertura a que temos chamado de segundo plano que nos interessa. É ela que marca, com efeito, as práticas musicais contemporâneas com a lógica de uma autoria que se dispersa, que se dissemina, que aceita a partilha da criação, mas que rejeita dividir a atribuição e a propriedade da obra. A assinatura desta obra pertence a um autor individual, e é assim que ela é dada a público (e que por essa razão tem direitos de propriedade sobre ela). Joga-se, no entanto, no processo da sua realização, todo um trabalho de partilha intersubjectiva de uma obra que é motivada por um autor, mas que depende dos seus intérpretes para ganhar a sua existência na forma de uma das suas realizações possíveis; a obra tem origem nele e sobre ela exerce o seu direito de propriedade, que o torna no último e afinal verdadeiro juíz sobre a execução/interpretação. Esta concepção diz respeito a obras que estão em constante processo, nunca se encontrando realmente «acabadas», até porque admitem assumir formas diversas, embora não infinitas.

Obras assim que são mais do que uma obra, pois têm dentro de si energia suficiente para gerar novas possibilidades de obra. Ao abrir explicitamente espaço para os intérpretes exercerem um trabalho de deriva totalmente livre, sem outros parâmetros que não sejam o tempo, os compositores permitem a entrada na esfera da autoria de uma outra subjectividade, embora, como diz Villa-Rojo, na partitura estejam «previstos los procedimientos y formas interpretativas - possibilidades tecnicas o virtuosisticas - que deberán adoptar-se en la realización, salvo planteamientos donde pueda ser caracteristico un margen de liberdad no controlado por el autor» (VILLA-ROJO, 1982: 16); nos momentos totalmente ad libitum os intérpretes tomam um papel completamente autónomo, ainda que condicionados pelo material antecedente e pela direcção projectada para aquela realização.

Ao nível da interpretação/realização das obras musicais contemporâneas, pós-tonalidade e pós-serialismo, existe a exigência de um comportamento particular, que defina e exponha o conteúdo expresso em símbolos visuais; símbolos visuais/gráficos que são «la base material que caracteriza la obra en un sentido de permanencia y continuidad, aunque los objetivos estén enfocados hacia infinitas finalidades» (VILLA-ROJO, 1982: 15). Os intérpretes/realizadores devem justamente aproveitar o estímulo visual e o valor estético dos grafismos, que na partitura têm o valor de signos particulares, de significação potenciável pelo trabalho sobre o próprio significante. O trabalho ao nível do significante é de primeira importância, pois ele tem a função de estimular a geração de «significado», revelando sentidos ocultos nesse esforço de interpretação que a execução da obra exige. Não se trata de descodificar um código pré-existente, com uma chave mais ou menos segura e estável; trata-se de gerar "significado" e de produzir sentidos a partir do material proposto.

Dada essa sua instabilidade, virtualmente quase tudo pode acontecer, pois «es evidente que la aleatoriedad ha dado al momento de la realización un grado de interés que nunca habría podido alcanzar en una valoración rígida del tiempo» (VILLA-ROJO, 1982: 16); é esta aleatoriedade, de resto, que cria um estado de incógnita interpretativa sempre que o «texto» do compositor exige uma total ou parcial margem de liberdade.

Na verdade, os interpretadores, ou executantes, fazem parte da própria obra tal como ela chega aos seus consumidores; a sua contribuição, aliás, sempre foi condição sine qua non para a actualização das obras musicais, pelo menos daquelas que se baseiam numa partitura como texto pré-existente, como escrita que se realiza no processo da sua execução, segundo um sistema de notação que deve ser descodificado e interpretado.

Na música clássica os executantes são chamados a interpretar as indicações do compositor segundo a sua própria sensibilidade, já que a obra clássica é «un ensemble de réalités sonores que l'auteur organise de façon immutable; il les traduit en signes conventionneles pour permettre à l'executant de retrouver (plus ou moins fidèlement) la forme qu'il a conçue» (ECO, 1965: 16); a estrutura da obra é imutável; o intérprete intervém apenas ao nível do «texto», ou do «conteúdo», mas nunca ao nível da forma e da estrutura.

De facto, ele deve justamente reencontrar a forma original e revelá-la tal como foi concebida pelo compositor; reencontrar é pois o que ele pode fazer, já que tecnicamente é improvável uma execução que repita exactamente outra. Isto quer dizer que, quando falamos em notas musicais, estamos a falar de um material que é ainda assim permeável a algumas oscilações; apesar de uma escrita de certa forma rígida, convencional e "dogmática" as notas de uma frase musical podem ser executadas de diferentes formas e modos sem que a frase perca o seu carácter, a sua direcção, ou mesmo o seu «conteúdo» (9).

A escrita convencional, de que temos vindo a falar relativamente a formas e estruturações mais ou menos estabilizadas e cristalizadas (o canon, a fuga, a sinfonia, a sonata, etc), corresponde a um sistema de notação e a uma lógica de composição de certa forma dogmáticos que pretendem «escrever tudo» e guiar de muito próximo a interpretação, segundo uma concepção da fidelidade ao «texto» do autor.

O espaço para a interpretação tem assim limites claramente estabelecidos; começam nas próprias notas, na morfologia da obra e terminam na técnica do intérprete e na sua «escola»; este facto é relevante porque o sistema tonal e a sua lógica impuseram modos concretos e estilos de interpretação fechados que vieram a revelar-se desajustados na música atonal, visto que a expressão gestual, o trabalho motor e o esforço interpretativo dos próprios executantes não estava na mesma lógica; os modos anteriores de fazer soar uma nota dentro do contexto de uma melodia tonal não têm a mesma função numa música, como a serial (dodecafónica, atonal), em que as relações entre as notas são radicalmente diferentes.

O que se passa na música tonal é «linguisticamente» (do ponto de vista do idioma musical tonal) claro e coerente: pouco mais do que um pouco de ouvido é necessário para deduzir a marcha de uma linha melódica e a suas implicações harmónicas (nomeadamente a linha do baixo); com efeito, os intervalos representam diferenças de frequência (de altura) e constituem-se segundo relações orgânicas previsíveis de acordo com a lógica da tonalidade (da atracção da tónica).

Aquilo que acontece na música atonal (com Schoenberg, ou Webern) é completamente diferente, já que uma série de sons se apresenta sem uma direcção privilegiada; a ausência de um centro tonal, e no fundo de uma lei, retira ao ouvinte a possibilidade de prever o desenvolvimento da composição, e de lhe atribuir uma única direcção. Por isso, Adorno pode ir ainda mais longe na sua crítica à música radical e à técnica dos «doze-tons» (dodecafónica): «precisely because this externalized material no longer expresses anything for him, composer forces it to mean what he wishes; and the discrepancies - particularly the astonishing contradiction between twelve-tone mechanics and expression - become the ciphers of such meaning» (ADORNO, 1973: 119).
 
 

[final] A consciência desta estranheza que se pode ter ao ouvir e pensar a música contemporânea parece ser responsável hoje pelo impasse crescente de uma música que se continua a fazer num momento histórico em que já não precisa de ser tão radical. É por esta razão que a música actual busca interacções cada vez mais evidentes com o teatro, a dança, as artes-plásticas, ou mesmo com o video. A música contemporânea continua a querer dizer; no entanto, agora quer dizer outras coisas, talvez de outros modos. E provavelmente voltará a ser escrita como no passado, retomando o velho pentagrama e as notas exactas.
 
 

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1 Publicado in Revista de Comunicação e Linguagens, nº 10/11, «O nome, o corpo, a escrita», Lisboa: CECL, Março 1990.

2 Quando falamos em escrita, neste sentido, referimo-nos aos sistemas de notação empregues pela música.

3 É o que acontece também com a chamada música minimal (repetitiva), forma musicalmente "reaccionária" e teoricamente concentracionária que esteve no centro da estética musical contemporânea e que se baseia nos efeitos acústicos imprevistos provocados por células melódicas e ritmicas (e harmónicas) apresentadas em séries de repetição cíclica ("sub-melodias" ou "sub-motivos" resultantes). O seu "poder encantatório" é, sem dúvida, um dos seus aspectos mais interessantes. Outro é o facto de esses autênticos efeitos "psico-acústicos" serem conseguidos também à custa de resultantes harmónicos provocados pela acústica da sala de concertos, pequenas irregularidades na execução, etc. (OLIVEIRA, 1989: 18) - o que parece fazer ressaltar, também aqui, a importância da execução num processo de interpretação musical que ultrapassa claramente o que está contido na obra escrita (apesar de a notação utilizada ser a tradicional). [Sobre esta questão ver ainda OLIVEIRA, 1988:56 e LESTER, 1989: 275 e em especial 296.]

4 Esta expressão designa um género musical que cumpre ainda o programa disfarçado de uma vanguarda que faliu (como procedimento e como designação) - a música contemporânea alimenta-se do seu próprio mito, vivendo no restrito espaço social e cultural da élite, cujo modelo é precisamente o de uma vanguarda que utiliza já processos instituídos.

5 A não ser, talvez, e ainda, os princípios da retórica que parecem continuar a comandar a poética das formas; de facto, a arte contemporânea tem muito para dizer; é de dizer, com efeito, que se trata ainda nalguns casos "menos musicais", é de um discurso de que se trata, portanto, ou de uma fala.

6 Ou, como disse Henri Pousseur, numa invitation à choisir. (Cf. ECO, 1965).

7 Ao qual em grande parte se reduz a história da arte dos connaisseurs, afirma Damisch. (AA.VV., 1984: 70).

8 Função exemplarmente desempenhada pelo Sacerdote relativamente ao texto sagrado.

9 Entenda-se: o nível de relações que se estabelecem em termos estritamente intra-musicais entre as notas de uma frase.