Jornalismo e “construção de futuros”

 

Marcus Antônio Assis Lima*

Só o impossível acontece. O possível apenas se repete.” (Chacal)

“(...) nem mesmo a testemunha ocular traça um quadro ingênuo da cena. Pois a experiência parece mostrar que ela própria traz à cena alguma coisa, que dela retira mais tarde e o mais das vezes, o que supõe ser o relato de um acontecimento é, na realidade, uma transfiguração dele.” (W. Lippmann)

A vida cotidiana está repleta de eventos imprevistos e incontroláveis, os quais precisamos organizar em estruturas lógicas, de modo a equacionarmos nossa experiência nessa estrutura que chamamos “mundo social”. Assim, habitamos um mundo que foge ao nosso controle imediato e sensível e, ao mesmo tempo, um mundo “construído” por discursos lingüísticos. Entre esses variados discursos de construção possíveis, o jornalismo constitui-se, nos dias atuais, uma das principais fontes de elementos (informação) necessários à compreensão e organização do ambiente natural circundante, dos quais os seres humanos fazem uso (THOMPSON,1998; DAHLGREEN,1995).

Entretanto, não se deve entender a “construção social da realidade” como uma prática única e exclusiva dos meios de comunicação de massa. Essa construção situa-se, evidentemente, na esfera de realidade da vida cotidiana, espaço onde ocorrem os processos de institucionalização das práticas e dos papéis sociais. A realidade, dessa forma, constitui-se como processo socialmente determinado e intersubjetivamente construído (LUCKMANN & BERGER, 1998). Nesse quadro, a atividade jornalística pode ser entendida como tendo um “papel socialmente legitimado para produzir construções da realidade que são publicamente relevantes” (ALSINA, 1996:18), ou seja, ao jornalista é delegada a competência para recolher os acontecimentos e temas importantes e atribuir-lhes sentido, firmando, com a sociedade, um “acordo de cavalheiros”, “contrato fiduciário” social e historicamente definido (TRAQUINA, 1993:168; OLIVEIRA, 1996:26). Embora esse processo de construção social dependa dos conteúdos e da prática discursiva do jornalismo, deve-se ficar atento para não incorrer no erro de imaginar essa construção sem a participação ativa da audiência, nas diversas interações em que os indivíduos tomam parte na realidade da vida cotidiana. A notícia é, como ficará claro ao longo deste artigo, uma realidade social construída, mas não é mais que uma das realidades que os indivíduos constróem cotidianamente.

O atentado terrorista ao Word Trade Center, em 11 de setembro de 2001, nos Estados Unidos da América, pode servir como exemplo atual e eloqüente daquilo que pretendemos mapear neste artigo: a construção de realidades promovida pela mídia em geral e pelo jornalismo em particular, visto como instituição social indispensável ao mundo capitalista contemporâneo (TUCHMANN,1983). Mais precisamente, este artigo visa discutir aquilo que o professor e jornalista sueco Jan Ekecrantz chama de “construção de futuros”. Para esse pesquisador, uma enorme contradição que se pode perceber nas notícias dos jornais contemporâneos é a tendência de se construírem futuros, enquanto a notícia, por definição, trata de eventos ocorridos. Para Ekecrantz, a diferenciação das fontes utilizadas pelos jornalistas marca bem essa postura: quando fala de projetos a serem desenvolvidos, como a guerra no Afeganistão, a alta do dólar ou uma inovação tecnológica, o jornal seleciona fontes localizadas nos estratos superiores, ouve especialistas, intelectuais, formadores de opinião. Ao contrário, ao falar de eventos ocorridos, como a queda de um barraco, um acidente trágico no trânsito, as fontes utilizadas são, via de regra, integrantes das camadas populares [1] .

Entretanto, antes de entrarmos na questão central aqui proposta, precisamos deixar claro o “local de fala” em que nos encontramos. Até algumas décadas atrás, a realidade, o mundo que nos cerca, era entendida como sendo ontologicamente dada, isto é, exterior à subjetividade. Dessa forma, o conhecimento da realidade seria apreendido objetivamente, sem interferência da experiência individual do observador. Suplantando esse modelo, as teorias atuais apontam para a realidade como sendo o resultado de ações sociais intersubjetivas ou, dito de outra maneira, a objetividade seria um produto social intersubjetivo (LUCKMANN & BERGER, 1998). Ainda nessa linha de pensamento, é preciso ressaltar a importância dada à linguagem, no que diz respeito a sua influência sobre o pensamento e o conhecimento humanos [2] .

Nesse paradigma, poderíamos apontar duas tendências de análise para as relações entre a sociedade e os meios de comunicação. Num primeiro momento, a mídia tenderia a construir uma realidade aparente, ilusória. Duas vertentes decorreriam disso: a) a mídia manipula e distorce a realidade objetiva (ENZENSBERG, 1979); b) a mídia produz um simulacro da realidade social (BAUDRILLARD, 1978). Em direção oposta, estaríamos assistindo a uma hiper-realização da realidade, a mídia construindo uma realidade virtual que, como demonstram alguns autores, está a se transformar na esfera de realidade mais preponderante do mundo contemporâneo (THOMPSON, 1998; CALHOUM, 1994), ou, como proposto nas teorias sociosemióticas e etnometodológicas mais recentes, onde os fatores organizacionais influiriam no produto final das empresas jornalísticas (ALSINA, 1996; SOUSA, 2000). De qualquer modo, em nossa sociedade, são os meios de comunicação de massa que produzem a realidade social (VERON, 1981), e os acontecimentos só seriam conhecidos graças à mídia de massa e sua atividade discursiva (MAIA, 1999).

Desse modo, da enormidade de eventos simultâneos que irrompem na esfera da vida cotidiana, teríamos conhecimento, principalmente, daqueles que se tornassem acontecimentos jornalísticos, ou seja, aqueles eventos que, por força de sua noticiabilidade [3] , “explodem na superfície da mídia sobre a qual se inscrevem como sobre uma membrana sensível.” (MOUILLAUD, 1997:50). Mais uma vez, será preciso um corte na argumentação, a fim de apontarmos o estado atual do entendimento do que é notícia, de modo a entendermos a construção de realidade a que nos referimos.

Podemos iniciar nossa jornada pelos conceitos e definições de notícia para, depois, propormos um conceito mais afeito à realidade contemporânea. No senso comum, notícia é qualquer informação nova, atual [4] . Nas redações dos jornais, corre a máxima de que notícia é o homem morder um cão e não o contrário [5] . Na tradição jornalística, notícia seria “o relato de uma série de fatos a partir do fato mais importante, e este, de seu aspecto mais importante.” (LAGE, 1982:36) ou, mais sinteticamente, como aparece no manual de redação do jornal Folha de S. Paulo, notícia seria o “puro registro dos fatos, sem opinião.” (MANUAL DE REDAÇÃO DA FOLHA DE S. PAULO, 2001:88). Para Mário Erbolato, “no chamado império jornalístico, ninguém conseguiu defini-la [a notícia] satisfatoriamente. Os teóricos dizem como ela deve ser, mas não o que realmente é.” (ERBOLATO, 1991:53, grifos do autor). Para Dulcília Buitoni, “a notícia, como conceito definidor, é um marco que produz e ao mesmo tempo limita o significado.” (BUITONI, 1990:177). Porquanto possamos elencar uma centena de outras definições para o que seja a notícia jornalística, basta-nos a clássica definição apontada por Nilson Lage. Tomando-a como exemplo, podemos dizer que as informações dadas por um médico a um paciente, acerca de resultados de exames clínicos, constitui uma notícia. O médico enumera, em ordem de “gravidade” para a saúde, variados “fatos” recolhidos a partir dos exames, assim como um amigo, contando a outros suas peripécias amorosas do final de semana, estará dando uma notícia a eles. Mas, para nós professores/pesquisadores e profissionais do jornalismo, essa definição não ajuda muito quando pretendemos discutir teoricamente, em sala de aula, os efeitos das mensagens jornalísticas na sociedade.

A definição clássica traz implícita a pretensa objetividade do jornalista na observação e posterior relato de determinado evento da vida cotidiana. Nesse aspecto, o jornalista, isento e imparcial, seria um simples “mediador” entre o evento cotidiano e a sociedade. Como o relato que é produzido estaria imune da subjetividade do jornalista – o ponto de vista do indivíduo que observa o fato, os consumidores da notícia, dessa forma, teriam acesso “imediato” ao acontecimento: ao ler um jornal, o leitor estaria experimentando um determinado evento, no qual ele teria a sensação da co-participação.  Essa visão romântica está há muito ultrapassada. As teorias que enxergam as notícias como um mero relato observado e registrado pelo jornalista “neutro, desligado dos acontecimentos e cauteloso em não emitir opiniões pessoais” (TRAQUINA, 1993:167) propõem, dessa maneira, a metáfora do jornalismo como “espelho” da realidade. Estaríamos diante, nos jornais, da realidade pura, tal qual ocorrida na vida cotidiana.

Em oposição a essa visão, o professor Nelson Traquina afirma:

“(...) os jornalistas não são simplesmente observadores passivos mas participantes activos no processo de construção de realidade. E as notícias não podem ser vistas como emergindo naturalmente dos acontecimentos do mundo real; as notícias acontecem na conjunção de acontecimentos e textos. Enquanto o acontecimento cria a notícia, a notícia também cria o acontecimento.” (TRAQUINA, 1993:168, grifo do autor).

Dessa forma, na elaboração da notícia estão presentes, além da experiência do jornalista que observa, seleciona e relata o evento, os constrangimentos organizacionais sobre os quais os jornalistas trabalham: “As decisões tomadas pelos jornalistas no processo de produção das notícias (newsmaking) só podem ser entendidas inserindo o jornalista no seu contexto mais imediato – o da organização para o qual ele ou ela trabalham.” (TRAQUINA, op.cit:169). Assim, a notícia passa a ser entendida como uma “representação social da realidade cotidiana produzida institucionalmente, que se manifesta na construção de um mundo possível.” (ALSINA, 1996:18). Antes de discutirmos essa definição, faz-se necessário, então, discernirmos entre “fato” e “acontecimento”.

Para nós, seriam fatos aqueles fenômenos que ocorrem na realidade da vida cotidiana, dos quais não temos controle e nem podemos determinar seu aparecimento. Como dito anteriormente, há uma infinidade de fenômenos ocorrendo simultaneamente em nossa sociedade e o indivíduo não é capaz de abarcar a totalidade desses fenômenos. Daí a necessidade de se operar com estruturas lógicas que ordenem, por intermédio da linguagem, esses eventos, tornando-os “objetos dotados de significação” (LUCKMANN & BERGER, 1998:39). Se no real não podemos ter acesso a essa multiplicidade de fatos, o jornal, como espaço delimitado temporal e espacialmente [6] , muito menos. Assim, ao jornalista cabe a decisão de selecionar aqueles fatos que tenham potencialidade, traduzida no conceito de noticiabilidade, de tornarem-se “acontecimento”. O acontecimento jornalístico, assim, seria um “acontecimento de natureza especial, distinguindo-se do número indeterminado dos acontecimentos possíveis em função de uma classificação ou de uma ordem ditada pela lei das probabilidades” (RODRIGUES, 1993:27). Para Adriano Duarte Rodrigues, o “acontecimento é imprevisível, irrompe acidentalmente à superfície dos corpos como reflexo inesperado, como efeito sem causa, como puro atributo.” (RODRIGUES, op.cit:29). Essa distinção entre fato e acontecimento, entretanto, é puramente didática e retórica. Como demonstra Maurice Mouillaud, “’acontecimento’ e ‘fato’ são utilizados como sinônimos. A hipótese que sustentamos é a de que o acontecimento é a sombra projetada de um conceito construído pelo sistema da informação, o conceito do ‘fato’.” (MOUILLAUD, 1997:51).

Continuando em nossa argumentação de discernimento entre os dois conceitos, diríamos que os acontecimentos seriam os fatos selecionados pelo jornalista, na vida cotidiana, por possuírem um valor/notícia [7] que os transformaria em acontecimentos jornalísticos, ou, para usar uma definição de Rodrigues, em meta-acontecimento, “uma espécie de acontecimentos segundos (...), provocados pela própria existência do discurso jornalístico.” (RODRIGUES, op.cit:29). Miguel Alsina diria que “a notícia é a narração de um fato ou a re-escritura de outra narração, enquanto o acontecimento é a percepção do fato em si” (ALSINA, 1996:16). Como não é possível a total isenção, o jornalismo, ao divulgar um acontecimento, cria um outro, sendo, portanto, um “ativador de meta-acontecimentos” (RODRIGUES, 1990). Assim, o jornalista, na verdade, estaria relatando não o fato cotidiano, imprevisível, mas o “real domesticado”, o acontecimento, que seria a “procura e o estabelecimento de uma coerência, de uma unidade em uma diversidade, para nós, caótica. Trata-se de constituir um todo cujas partes estejam coordenadas.” (Umberto Eco citado por MOUILLAUD, op.cit:51). “É a realidade que se pretende”, afirma Dulcília Buitoni:

“Para ‘representá-la’ (re-presentá-la), textos verbais imitam o ritmo de um filme, tentando causar a impressão de que o acontecimento está se desenrolando no momento em que é lido: mágico recurso, como se o leitor tivesse o poder de fazer a cena repetir-se novamente, só para ele. O rádio, a foto, o jornalismo televisivo, os tapes e os filmes jornalísticos dispõem de mais varinhas de condão para ‘apresentar’ (a-presentar) a realidade. A voz do entrevistado, ao vivo – é algo sendo vivido, ao mesmo tempo, no rádio ou na TV. As imagens das fotos, dos tapes, dos filmes, mostram o referente ‘real’. Em todos, a valorização do ‘instante em que se vive’, do agora – a aparência do acontecer em curso -, numa simultaneidade um tanto atemporal, em detrimento do instante conhecido.” (BUITONI, 1990:175).

Nesse processo, podemos distinguir duas facetas: a) as narrativas jornalísticas apresentam-se, elas mesmas, como um acontecimento; b) os fatos adquirem importância não por sua relevância social, mas pelas facilidades operativas, ao nível da narrativa jornalística e do consumo, que oferecem. Nesse sentido, como aponta Rodrigues, duas conseqüências principais ocorreriam: 1) o jornalismo funcionaria como “mito” da modernidade: uma vez que o mundo se apresenta como uma série de sucessões aparentemente ilógicas e/ou inexplicáveis, as notícias seriam uma forma de explicação e ordenação desses “fenômenos desconcertantes”; 2) funcionaria também como uma espécie de referência sobre os acontecimentos, dando aos sujeitos o sentido de “verdade” destes (RODRIGUES, 1993). Mais ainda, e corroborando a visão de não-neutralidade do jornalista no relato dos fatos cotidianos, é preciso salientar que “a principal fonte de expectativas, orientações e valores profissionais [para o jornalista] não é o público, mas o grupo de referência constituído pelos colegas ou pelos superiores.” (WOLF, 1999:182).

Podemos, agora, voltar à definição de notícia proposta por Miguel Rodrigo Alsina e apresentada acima. Para tanto, vamos decompor a conceituação nas etapas que a compõem: 1) a representação social ou, como entendido por Durkheim no conceito de “representação coletiva”, o pensamento coletivo, que coloca a primazia do social sobre o individual. A notícia, como representação social, implica em uma “organização psicológica particular que cumpre uma função específica. Não é, como diriam os sociólogos marxistas, uma superestrutura ideológica, determinada por uma rede de condições objetivas, sociais e econômicas” (ALSINA, 1996:186), mas, antes, o instrumento que o indivíduo utiliza para apreender o ambiente a seu redor; 2) a produção institucional, já que o jornalista cumpre um “papel socialmente institucionalizado que o legitima a levar a cabo uma determinada atividade” (ALSINA, op.cit:187), no caso, a de manter a sociedade informada sobre os eventos ocorridos nos variados campos sociais que a compõem; 3) a construção de um mundo possível, já que a realidade apresentada nos noticiários jornalísticos não é a realidade da vida cotidiana. Esse mundo possível corresponderia ao mundo narrativo construído pelo sujeito enunciador a partir dos outros mundos de referência utilizados por ele: o “mundo real”, onde os acontecimentos irrompem e o “mundo de referência”, local onde se dá o enquadramento dos acontecimentos (ALSINA, op.cit:187-190). O que essa definição vem trazer de novo é, precisamente, o entendimento da notícia como uma realidade construída a partir dos eventos cotidianos e “observados” por um sujeito ativo, que possui uma experiência de mundo particular, o que torna o “relato objetivo dos fatos” uma visão particularizada, ancorada na experiência individual e nos constrangimentos organizacionais proporcionados pela organização do trabalho jornalístico (WOLF, 1999; TUCHMAN, 1983; ALSINA, 1996; TRAQUINA, 1993).

Se essa operação de “recolha, seleção e apresentação”, como divide Mauro Wolf as “rotinas produtivas [8] da atividade jornalística (WOLF, 1999:218), pressupõe uma não-neutralidade e passividade por parte do jornalista, está comprovada a derrocada da metáfora do “espelho”. Como se sabe, em cada fase das routines, o jornalista tem que emitir “opiniões”, tem que fazer uso de critérios tanto subjetivos quanto objetivos: a “distorção involuntária” de que fala Wolf, isto é, “um tipo de ‘deformação’ dos conteúdos informativos não imputável a violações da autonomia profissional, mas sobretudo ao modo como está organizada, estruturada e é desempenhada a profissão de jornalista.” (WOLF, 1999:183).

Mais especificamente, o jornalismo, além de construir uma realidade social diversa da realidade vivenciada cotidianamente, constrói, ainda, futuros. Elabora projeções da sociedade para o futuro a curto prazo, apoiadas nas falas e discursos originários, especialmente, nas esferas centrais e internas de poder [9] . Dessa forma, como tentativa de compreender esses mecanismos de seleção promovidos pela escolha criteriosa das fontes jornalísticas, em razão de uma intencionalidade (CHAPARRO, 1994) que se pretende com a divulgação de determinado acontecimento, é que procedemos a um “estudo de caso” acerca da cobertura jornalística levada a cabo após o atentado terrorista ao Word Trade Center. Assim, essa análise tomou como objeto os títulos das manchetes do jornal Folha de S. Paulo, no período de 17 de setembro a 5 de outubro de 2001, e as fontes escolhidas por esse órgão informativo. Primeiro, porque o título “não representa simplesmente uma variedade de enunciado em um corpus lingüístico, nem um item no fluxo das informações, mas a inscrição do jornal por excelência.” (MOUILLAUD, op.cit:99, grifo do autor). Para Mouillaud, os títulos representariam uma região-chave, “a abóbada do dispositivo completo do jornal.” (idem:100). Segundo, porque a relação dos jornalistas com suas fontes de informação “é sagrad[a] e é protegid[a] pela lei” (TRAQUINA, op.cit:172).

Na realidade virtual promovida pelo sistema de mídias, a afirmação de Ekecrantz pode ser facilmente percebida quando tomamos, como categoria de análise comunicativa, as relações existentes entre o futuro/passado simbólico encarnado na materialidade e a nomeação das fontes de maneira explícita. “Governo americano vê risco de novos atentados”, (manchete da Folha de S. Paulo de 1° de outubro) ou “Feminista afegã quer poder usar saia e trabalhar” (FSP, 2001:30 de setembro) indicam, claramente, uma ação futura, a se concretizar em um futuro próximo, a curto e médio prazos. Essa concretização pode até não ocorrer, e a análise jornalística ficaria maculada pela “adequação do olhar” proposta, mas esse não é o ponto nevrálgico aqui. Interessa-nos que essa ação expande-se para além da mera realização física. Ela, como uma finíssima rede tecida nos nós sociais da linguagem, produz um futuro no presente. Um futuro já realizado, é claro, se levarmos em conta que o relato do jornalista não passa de um amontoado de resumos, elaborados a partir das falas escolhidas entre os discursos pronunciados por fontes previamente selecionadas, em razão de sua credibilidade. Para além disso, Tuchmann (1983) fala na “re-construção” promovida pelo jornalista, pois, segundo ela, as notícias não são sobre o mundo, mas sobre o que as pessoas dizem sobre o mundo. Sem concessões à participação das experiências alheias na elaboração – dita “social” – de uma esfera de realidade cada vez mais inexorável, a notícia cada vez menos “espelha” a realidade da vida cotidiana, pois a atividade profissional jornalística exige “a redução das notícias a paradigmas que lhes são alheios, mas que permitem um certo nível imediato de compreensão pelo autor ou por aquele que ele supõe ser o seu leitor.” (SERVA, 2000:83).

Então, a cobertura midiática do atentado terrorista traz, pelo menos, duas tendências a nortear a atividade jornalística daqui em diante. Primeiramente, os jornais não poderão mais limitar a cobertura jornalística àqueles poucos centros urbanos que são eleitos como merecedores da instalação de uma sucursal – a delimitação espacial tratada anteriormente. Será exigida do jornalista, mais do que já é, uma cultura abrangente, capaz de lidar “naturalmente” com eventos que acontecem em países distantes. Daí, a imposição, às agências internacionais de notícias, de uma maior amplitude na cobertura realizada em âmbito mundial. Assim, parece que caminhamos para um jornalismo mais global e plural, no sentido da inclusão de povos e comunidades periféricas nas agendas político-culturais mais amplas. Para Jorge Pedro Souza (2000:126), “cada vez mais os fenômenos de comunicação massiva e mediada ocorrem a um nível glocal, ou seja, a um nível global, transnacional, embora com adaptação aos contextos locais.” Em segundo lugar, o jornalismo, em face da explosão de comunicação patrocinada pela “popularização” da rede mundial de computadores e a proliferação de veículos informativos eletrônicos, que noticiariam com mais agilidade, atualidade e menores custos que seus concorrentes impressos, encontrava-se num beco sem saída. Com o atentado, e a posterior cobertura dada pela mídia, os jornalistas fizeram ver a real função do jornalismo impresso, frente à expansão dos webjornais, no momento atual: aprofundar na análise do acontecimento. Buscar a contextualização do fato e a produção de reportagens mais aprofundadas acerca do tema levantado seria útil. Percebemos, na cobertura do atentado pelo jornais, essa preocupação e tomada de consciência: nunca se deu tanto espaço às infogravuras, que mapeiam o local da guerra, roteirizam os ataques em imagens-máquinas, listam equipamentos e posições militares estratégicas, humanizando (colorização?) um cenário que seria sombrio e acinzentado, anteriormente. Mesmo outros temas merecem o mesmo tratamento: “Novos dados dão otimismo à Bolsa de Nova York” (FSP, 29 de setembro); “Para FHC, ficar fora da Copa do Mundo seria “o pior de tudo” (FSP, 2 de outubro); “Clone humano pode ficar pronto este ano, diz cientista” (FSP, 5 de outubro).

Apontando para o passado, diz Ekecrantz, estão as fontes populares, os excluídos, os marginalizados. “Manual prático e espiritual guiou os seqüestradores” (FSP, 29 de setembro) ou “Falta ao inimigo o senso de honra dos norte-americanos” (FSP, 2 de outubro) indicam claramente essa postura. A oposição “amigos dos Estados Unidos” e “os contra” fica patente. Desse modo, o inimigo, o estrangeiro, o árabe, muçulmano, institucionalizam-se nas tipificações trabalhadas pelo conjunto da mídia. E a guerra opera em escala global, na dimensão da quase-interação mediada, que convoca a uma co-participação inexperiente, desprovida do sensível imediato do real. Se a guerra em concreto acontece no território inimigo, o Afeganistão, a guerra projetada pela mídia toma curso nos lares do mundo inteiro, ao ser transmitida por televisão, rádio, internet e pelas revistas e jornais impressos. Não é menos sintomático que o título a estruturar toda a cobertura jornalística seja, na Folha de S. Paulo, por exemplo, “Guerra na América”, escolha que gerou, entre leitores do periódico e seu ombudsman, reações contrárias. Relata Bernardo Ajzenberg:

Vários leitores se manifestaram desde os primeiros dias contra o nome ‘Guerra na América’, escolhido para os cadernos especiais do jornal. Que guerra?, perguntam alguns. Que América, se o Brasil também fica na América?, perguntam outros. Discordei do ‘slogan’ também (...)”.(FSP, 30 de setembro).

Outros títulos seguem essa tendência: “Imigrantes são quase 50% dos desaparecidos no WTC” (FSP, 2 de outubro); “Homem ataca ônibus nos EUA, e seis pessoas morrem” (FSP, 4 de outubro); “Grupo islâmico paquistanês mata 29 pessoas na Índia” (FSP, 2 de outubro).

Nota-se claramente que as organizações jornalísticas são as primeiras a se apresentarem como transmissores da realidade social. Essa virtualidade presente nos discursos jornalísticos encontra-se na base das pretensões referenciais e cognitivas dos periódicos. Esse discurso, por sua vez, autodefine-se como o transmissor de um saber específico: o conhecimento da atualidade. Assim, nos estudos dos meios de comunicação de massa, deve-se ter em conta o fato de encontrarmo-nos ante um discurso social e, como tal, imerso em um sistema produtivo. Concordamos, dessa maneira, com Miguel Alsina, quando afirma que a “efetividade do discurso jornalístico não está na persuasão (fazer crer) ou na manipulação (fazer fazer), senão, exatamente, no fazer saber, em seu próprio fazer comunicativo.” (ALSINA, 1996:14). Desse modo, sob o ponto de vista da sociologia do conhecimento, a produção da notícia seria a construção de um tipo especial de realidade: a realidade pública. Os jornalistas, então, seriam, como de parte são todas as pessoas, construtores da realidade social de seu ambiente, mas eles dariam uma forma narrativa a essa realidade e, ao divulgá-la, a converteriam em uma realidade pública.


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NOTAS


* Texto apresentado no VI Congresso Latinoamericano de Investigadores de la Comunicación, realizado de 5 a 8 de junho de 2002, na Universidad Privada de Santa Cruz de la Sierra, Bolívia. O autor é mestre em Comunicação e professor de Teorias do Jornalismo no UNI-BH.



[1] Curso “Discursos de diferença e mudança”, ministrado pelo professor Jan Eckekrantz, da Universidade de Estocolmo, Suécia, no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da FAFICH/UFMG, de 23 a 26 de setembro de 2001.

[2] Ver, por exemplo, as discussões feitas por Bakhtin, M. Estética da Criação Verbal. São Paulo:Martins Fontes, 1992 e as propostas de Mead, H. Mind, Self, and Society. From the stand point of a social behaviorist. Chicago and London:University of Chicago Press, 1972.

[3] “A noticiabilidade corresponde ao conjunto de critérios, operações e instrumentos com os quais os órgãos informativos enfrentam a tarefa de escolher, quotidianamente, de um entre número imprevisível e indefinido de factos, uma quantidade finita e tendencialmente estável de notícias.” (WOLF, 1999:190).

[4] “Notícia. [Do lat. notitia.] S. f. 1. Informação, notificação, conhecimento: Não tive notícia do acontecido. 2. Observação, apontamento, nota. 3. Resumo de um acontecimento. 4. Escrito ou exposição sucinta de um assunto qualquer. 5. Novidade, nova: Que notícias me traz você? 6. Lembrança, memória. 7. Nota histórica. 8. Jorn. Relato de acontecimento atual, de interesse público geral, ou de determinado segmento da sociedade, veiculado em jornal, rádio, televisão, etc.” <http://www.uol.com.br/aurelio/ >.

[5] “As definições são muitas e variadas. Para Martínez Alberto, a notícia é um fato verdadeiro, inédito e atual, de interesse geral que se comunica a um público e que é captado pelo sistema informativo, interpretado e valorado pelos seus profissionais. (MARTÍNEZ ALBERTO, 1977). Já I. Herraiz afirma que a notícia é o que os jornalistas acreditam interessar ao público. A notícia, portanto, é o que interessa aos jornalistas. (HERRAIZ, 1966). Já para José Nabantino Ramos, notícia é a informação concisa de fato jornalístico, com referência, sempre que possível, a lugar, modo, causa, momento e pessoas ou coisas nele envolvidos. (RAMOS, 1970). Para Fraser Bond a notícia não é um acontecimento, ainda que assombroso, mas a narração desse acontecimento. (BOND, 1962).” (OLIVEIRA, 1996:26s).

[6] A delimitação espacial no jornalismo não é sentida apenas no sentido físico – as páginas do periódico ou o espaço de tempo que um programa televisivo/radiofônico ocupa -, de um espaço previamente delimitado onde as notícias aparecem. Ela implica, ainda, na tentativa de se impor uma ordem no espaço social, através  do estabelecimento de uma rede informativa para “capturar” os acontecimentos. “Para cobrir o espaço, as empresas jornalísticas utilizam três estratégias: 1) a territorialidade geográfica: dividem o mundo em áreas de responsabilidade territorial; 2) a especialização organizacional: estabelecem ‘sentinelas’ em certas organizações que, do ponto de vista jornalístico, produzem acontecimentos noticiáveis; 3) a especialização em termos de temas: auto-divide-se por secções que enchem certas ‘rubricas’ do jornal.” (TRAQUINA, 1993:170). Além de tentar impor ordem no espaço, as empresas jornalísticas tentam igualmente impor uma estrutura sobre o tempo: primeiro, através da agenda de serviço, que elenca acontecimentos previstos de modo a possibilitar a organização do trabalho com certa antecedência (WOLF, 1999); segundo, os jornalistas lutam para impor um ritmo e criar uma ‘rotina do inesperado’ (TUCHMAN, 1983).

[7] “(...) [P]odemos definir os valores/notícia (news value) como uma componente da noticiabilidade. Esses valores constituem a resposta à pergunta seguinte: quais os acontecimentos que são considerados suficientemente interessantes, significativos e relevantes para serem transformados em notícias? (...) valores/notícia são, portanto, regras práticas que abrangem um corpus de conhecimentos profissionais que, implicitamente, e, muitas vezes, explicitamente, explicam e guiam os procedimentos operativos redactoriais.” (WOLF, 1999:195-196, grifo do autor).

[8] “Descrição do contexto prático-operativo em que os valores/notícia adquirem significado.” (WOLF, 1999:218).

[9] Faço alusão, aqui, ao modelo habermasiano de distribuição do poder nas sociedades contemporâneas: um centro de poder (executivo, legislativo e judiciário) circundado por uma periferia interna (universidades, partidos políticos etc.), uma periferia externa (as organizações não-governamentais, associações de bairro etc.) e uma periferia real, formada pelo povo em geral (HABERMAS, 1995; FERNANDES, 2000).