Do testemunho à leitura: aspectos da evolução do narrador jornalístico, hoje

Bruno Souza Leal
Universidade Federal de Minas Gerais

Este texto procura elaborar, de modo inicial, uma análise sobre o que seria uma das transformações do narrar jornalístico, hoje. A ``marca contemporânea'' que se tem em vista, aqui, está associada à presença cada vez maior de fontes de informação na própria redação, seja na forma de press-releases, de matérias de agências de notícias ou de textos acessíveis via internet. Tal circunstância, resultado tanto do fortalecimento das redes de comunicação e de inovações tecnológicas, acarreta uma sensível redução dos custos da empresa jornalística, uma vez que exime o jornalista da tarefa de ``captar'' a informação na ``arena dos acontecimentos'', possibilitando a existência de redações enxutas, compostas por um número reduzido de profissionais.

Como observa Furyo Colombo (1998) se a imagem tradicional que se tem do jornalista é daquele que corre atrás das fontes, hoje em dia registra-se o fenômeno inverso: releases, faxes, pessoas, informações em suma, "caçam" o jornalista para que este os transforme em notícia. Um vício freqüente em jornais diversos, aliás, é o do aproveitamento puro e simples desse material, sem qualquer tratamento por parte do redator. Ainda que seja uma prática condenável, infelizmente não se pode dizer que seja rara, dada uma série de razões que vão desde o tamanho das equipes até as condições infra-estruturais de pequenos jornais e estações de TV e de rádio. Por outro lado, esse fenômeno aponta para uma transformação do fazer jornalístico, sugere um modus operandi que pode tanto ser complementar a outros presentes nas rotinas produtivas ou mesmo predominante.

Considerando o texto que surge a partir dessa realidade, pelo menos duas conseqüências podem ser vislumbradas, de imediato, entre várias outras. A primeira é o surgimento de uma narrativa jornalística tecida na reprodução desses outros textos que chegam à redação. No Brasil, freqüentemente, essa narrativa surge sob a forma de uma ``notícia ampliada'', uma vez que registra o fato e o contextualiza, mesmo que parcialmente, sem que haja, no entanto, o trabalho de reportagem. Essa contextualização aparece sob a forma de infografias ou de retrancas, cuja função é propiciar ao leitor uma informação rápida e complementar.

Uma outra conseqüência envolve a autenticidade e a qualidade informativa dessa narrativa. Pois o jornalismo se baseia num pacto de credibilidade com seu leitor, a ser posto em xeque e reafirmado na elaboração e na recepção de cada uma de suas histórias. Muito dessa credibilidade vem exatamente da apresentação do repórter como testemunha dos fatos. Sua presença no local dos acontecimentos é um dos elementos-chave para a autenticidade e, conseqüentemente, credibilidade, do relato que produz. No entanto, o surgimento de textos que dispensam o testemunho modifica significativamente essa relação histórica.

Aparentemente, a presença, no jornalismo diário, de textos cujas informações são de segunda mão não seria exatamente um problema. Aliás, é exatamente esse ``rechaço'' à experiência que permite ao crítico literário brasileiro Silviano Santiago, num ensaio bastante difundido? O narrador pós-moderno? tomar o narrador jornalístico como paradigma do narrador pós-moderno. Segundo Santiago, o narrador jornalístico:

``...narra a ação enquanto espetáculo a que assiste (literalmente ou não) da platéia, da arquibancada ou de uma poltrona na sala de estar ou na biblioteca; ele não narra como atuante'' 1

Se para Santiago, a experiência de um olhar ``de fora'' é que marca a narrativa pós-moderna (e a jornalística), a autenticidade, e conseqüentemente a credibilidade, desse relato deixa ser vinculado a algo externo a ele. Assim, o pacto de credibilidade jornalística não dependeria da presença do repórter na ``cena do crime''. Assumir tal postura, porém, implica a percepção de um problema mais complexo, pois, segundo Santiago, a autenticidade do relato que ``rechaça'' a experiência dependeria, então, ``...da verossimilhança que é produto da lógica interna do relato. O narrador pós-moderno sabe que o `real' e o `autêntico' são construções da linguagem'' (1989:40)

Silviano Santiago tem em perspectiva, em suas reflexões, a narrativa ficcional. Assim, para ele, a afirmação de que o narrador pós-moderno ``é o puro ficcionista'' não é de certo problemática. A narrativa jornalística, porém, não sobrevive a tal desvinculação com o real. Até mesmo por oposição à narrativa ficcional, o jornalismo apresenta-se como narrativa de fatos ``reais'', justificando-se, a partir disso, como produto a ser consumido.

A imagem do narrador pós-moderno de Santiago, além disso, é a daquele que se subtrai completamente à ação narrada. É ausente. O que ele elabora, mais que o fato narrado, é o próprio olhar, o modo de ver. Assim, o narrador pós-moderno se constitui não a partir de uma atenção ao fato a ser contato, àquilo que teria passado diante dos olhos de alguém, personagem ou pessoa. Isso pouco importa, da mesma forma que pouco importa a natureza dos textos nos quais se apresenta. Ele pode se afirmar, então, como ``puro ficcionista", pois o que justifica a narrativa é a experiência do olhar, de como e porque se vê o que se vê.

O jornalismo, no entanto, já é um modo de ver, um olhar construído historicamente por força de rotinas produtivas, transformações sociais, relações e interesses comerciais, políticos, etc, etc. O grande e autônomo exercício da experiência do olhar não serve, então, como autenticador de cada narrativa jornalística, pois é constrangido pelas condições peculiares do Jornalismo. Com isso, ainda que haja margens para exploração e desenvolvimento desse olhar jornalístico, a autenticidade/credibilidade do relato dependem mais intensamente da força da verossimilhança, ``da lógica interna'' do relato levado ao leitor. No jornalismo, porém, tal dependência não leva, frequentemente, a uma criatividade no narrar, mas, ao contrário, marca-se pela estabilização de formas, fórmulas, padronizações que, ao ser tornarem familiares aos leitores, ``naturalizam'' o relato. No Brasil, a adoção de estruturas típicas do jornalismo americano, como o ``lead'', e de Manuais de Redação, por exemplo, reforçaram o caráter ``formulaico'' dos textos jornalísticos.

Com isso, lembra-se que o ``narrador jornalístico'', aquele que se percebe nos textos lidos, não é uma ``pessoa'', mas um lugar, constituído numa cadeia produtiva. Esse lugar é altamente impessoal. Por mais que a experiência/visão de um acontecimento seduza um jornalista, seu relato, na grande maioria dos jornais brasileiros, será frio e desapaixonado. Nesse sentido, o reaproveitamento de textos pré-fabricados e o enraizamento do jornalista nas redações como que acentua essa frieza, transformando o narrador num olhar vazio, tal o distanciamento do relato e da matéria narrada.

Afinal, uma ``notícia ampliada'' sobre uma greve de mineiros na Sibéria, feita com a reprodução de material de agência de notícia ou press-releases da mineradora multinacional, completada com mapas indicando o local da greve e material de arquivo que ajudariam a ``entender'' o caso, repete e reafirma um formato de texto, uma forma de composição narrativa. Além disso, quem seria seu ``narrador''? Nesse caso, não se tem nem mesmo a afirmação de um olhar, local, sobre um acontecimento distante. O critério de noticiabilidade que rege transformação do fato em notícia se estabeleceu primeiro em algum lugar distante da redação, por sua vez um lugar outro daquele em que vive o leitor.

Ao tecer suas reflexões sobre o narrador pós-moderno, Santiago realiza uma leitura do ensaio bastante conhecido de Walter Benjamin sobre Leskov. Ampliando a concepção benjaminiana de narrador e narrativa, qualificando-os como ``clássico'', Santiago concebe o narrador pós-moderno como uma espécie de leitor, capaz de articular a experiência do olhar.

Seguindo-se nessa linha, a autenticidade e a credibilidade do relato jornalístico, então, poderiam vir da capacidade do jornalista de ler a diversidade de textos à sua volta, organizando as diversas experiências do mundo ali presentes, ampliando as visões de mundo ali contidas e contribuindo para "arejar" as retinas do leitor/espectador.

O desafio deveria ser, então, o da existência, nas redações, de jornalistas com tal formação cultural que seriam capazes de inserir tais dados num relato elaborado sob o crivo de um olhar crítico e criterioso, além de investigativo. O jornalista assumiria, então, claramente, seu papel de leitor, um leitor qualificado, peculiar, capaz de, na sua leitura, reescrever, reorganizar o excesso e a dispersão à sua volta.

A esse relato, ainda que atendesse à exigência de padronização da narrativa imposta pelos veículos, a relação autenticidade/credibilidade estaria baseada na figura desse narrador, desse outro olhar, e na sua capacidade de articulação de diferentes saberes a partir do lugar que ocupa.

No entanto, esse jornalista não é certamente a personagem que se encontra na maioria das redações, especialmente quando se tem em perspectiva não apenas os grandes jornais, mas, principalmente, os veículos jornalísticos em sua diversidade. A reescrita de press-releases, por exemplo, dá-se antes como reprodução e não como leitura, no sentido atribuído aqui ao termo. Pode-se pensar, então, no oposto: a emergência dessas narrativas prontas, pré-fabricadas, ao invés de valorizar o jornalista como contador de histórias, faz que este se apague e veja diminuída sua capacidade narrativa. A economia propiciada por uma redação enxuta envolve também uma economia do narrar.

Além das implicações ideológicas e políticas, pode-se observar, no próprio texto jornalístico, resultado desse fluxo controlado e internacionalizado de notícias, uma ausência, que seria a do narrador que, segundo Santiago, retém a capacidade do olhar. No reaproveitamento de narrativas, o olhar primeiramente registrado é esvaziado, pois não se trata de reciclagem de relatos, mas numa cadeia de reprodução (não ``produtiva'').

Esse vazio do olhar pode ser melhor vislumbrado quando se tem em mente a informação tal qual foi percebida por Walter Benjamin, retomado aqui em sua tradução brasileira. Utilizando o termo ``narrativa'' num sentido restrito, atribuindo a esta vínculos com a tradição, o saber e o miraculoso, o surpreendente, Benjamin observa que o jornalismo é responsável pelo fim desse narrar.

Afinal, a informação não permite o intercâmbio de experiências e valoriza o próximo, ao contrário da ``narrativa'', que envolveria um saber, ``que vinha de longe'', espacial e temporalmente. Benjamin ressalta que a informação jornalística ``...precisa ser compreensível `em si e para si'''2, destacando a plausibilidade como um dos seus elementos-chave, e observa que, se a arte da ``narrativa'' baseava-se na ausência de explicações, no jornal

``Cada manhã recebemos notícias de todo o mundo. E, no entanto, somos pobres em histórias surpreendentes. A razão é que os fatos já nos chegam acompanhados de explicações. Em outras palavras: quase nada do que acontece está a serviço da narrativa, e quase tudo está a serviço da informação''(1985:203)

Há certamente uma grande distância espacial temporal entre Benjamin, Santiago? que escreveu seu ensaio em 1986? e mundo de hoje. Há, mais ainda, uma grande diferença no jornalismo que se tem neste momento no Brasil, daquele do final do século XX, por sua vez bastante diverso do jornalismo alemão do entre-guerras. Se Benjamin observa que a narrativa jornalística deixa de ser surpreendente, porque explica os fatos, ele certamente tinha contato com um jornalismo bastante diferente daquele baseado no modelo americano que se impõe no Brasil a partir dos anos 60.

O jornalismo hoje, em linhas gerais, rege-se por valores como objetividade, isenção, ``factualidade''. A acentuação do fluxo de notícias e o enxugamento das redações, por um lado, parece intensificar essa objetividade, essa aparente ``neutralidade'' dos relatos. Esse ``neutro'', porém, ao invés de não contaminado ideologicamente, surge como vazio, uma vez que traz aquela ``explicação'' a que se referia Benjamim. Pois ``explicar'' mundo, de modo a retirar-lhe a magia, é conformá-lo a uma lógica produtiva, é ``estandartizá-lo'', torná-lo familiar; é uniformizar a diversidade de experiências sob um olhar e uma forma de narrar.

O jornalismo traz certamente uma forma de conceber o mundo e as relações que nele se dão. O desafio de narrar esse mundo seria, segundo Benjamin, o de resgatar um saber, de apontar para um transcendente, além do aqui e agora; segundo Santiago, seria problematizar o próprio olhar. O jornalismo, por sua vez, se faz eternamente ``aqui agora''; é um sistema de produção que já traz, em si, a priori, um olhar sobre as experiências. O desafio de olhar e narrar, no entanto, talvez seja no jornalismo algo cada vez mais urgente, sob o risco da banalização, da repetição, da indiferença.

Diante desse desafio, o aprofundamento do vazio (da experiência, da explicação, do olhar) no jornalismo contemporâneo parece ser uma das respostas disponíveis. A dependência do material pré-fabricado, um predomínio da notícia, ampliada ou não, em detrimento da reportagem (tanto como gênero quanto como trabalho) reforça a fragmentação e a padronização não só da informação e do texto, como do próprio narrador.

Referências Bibliográficas

Benjamim, Walter. O narrador - considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. Obras escolhidas I: magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 1997-221.

Colombo, Furyo. Conhecer o jornalismo hoje. Lisboa: Ed. Presença, 1998.

Santiago, Silviano. O narrador pós-moderno. Nas malhas da letra. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 38-52.

Traquina, Nélson (org.). Jornalismo: questões, teorias e 'estórias'. 2.${}^{a}$ ed.Lisboa: Veja, 1999



Notas de rodapé

... atuante''1
Santiago, 1989:39
... si'''2
1985:203