Movimentos Sociais, Redes e Comunidades virtuais:
Um olhar sob vários ângulos da Rede Brasileira de Comunicadores Solidários à Criança

Juciano de Sousa Lacerda1


Índice

Resumo
Este texto procura focar possíveis ângulos e questões para a elaboração de um olhar sobre as especificidades da Rede Brasileira de Comunicadores Solidários à Criança como movimento social em rede com características de comunidade virtual. Isso a partir de uma descrição do processo de comunicação/fluxo da Rede de Comunicadores e de um retorno aos próprios conceitos de Rede, Movimento Social e Comunidade/comunidade virtual.

Palavras-chave: movimentos sociais, redes, comunidades virtuais.

Procurando (com)textos sociais

Numa parceria com a Pastoral da Criança, organismo de ação social da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), a União Cristã Brasileira de Comunicação criou em 1994 a Rede Brasileira de Comunicadores Solidários à Criança, que conta hoje com 524 jornalistas, radialistas, relações públicas, artistas e comunicadores populares. Eles fazem um trabalho voluntário de comunicação em favor da criança em 24 estados brasileiros. Esses profissionais da comunicação somam-se aos mais de 130 mil voluntários que a Pastoral da Criança mobiliza em todo o país, através de um projeto de redução da mortalidade infantil apoiado pelo Ministério da Saúde. Trata-se de uma atuação na divulgação de ações em favor da criança e na capacitação dessas dezenas de milhares de voluntários da Pastoral da Criança em ações de comunicação.

Com capacidade de intervenção em todos os estados brasileiros - inclusive em Amapá e Mato Grosso (únicos estados onde a Rede ainda não tem formalizado seu coordenador estadual, embora esteja em operação) - a Rede desenvolveu três linhas de produção e capacitação em comunicação, cujas atividades se espalham hoje por 3.321 municípios brasileiros onde a Pastoral da Criança se faz presente:

Na área de Rádio, a Pastoral da Criança produz o programa Viva a Vida, criado há dez anos, que divulga campanhas e ações básica de saúde e experiências das várias comunidades onde há atuação dos líderes comunitários. São produzidas duas versões: uma para o Sudeste, Sul e Centro-Oeste e outra para o Norte e Nordeste, para se aproximar mais da realidade e universo cultural das regiões. Os comunicadores locais são motivados a tentar espaços gratuitos nas rádios locais para veicular o programa e, principalmente, para criar um programa local, produzido por eles, onde podem mesclar fatos locais e informações produzidas pela coordenação nacional da Pastoral da Criança.

Na área de Assessoria de Comunicação e Mobilização Social, os comunicadores trabalham a relação com as mídias (seja impressa, on line, rádio ou TV) presentes na localidade, produzindo notícias a partir das experiências do lugar ou reeditando notícias produzidas pela equipe de coordenação nacional em Curitiba. Também nesta área, há um produto específico da Pastoral da Criança, o Jornal da Pastoral da Criança, criado em 1987, em convênio com o Ministério da Saúde, voltado para o público interno (líderes, coordenadores, técnicos, assessores e, podemos incluir, financiadores). Os comunicadores são incentivados a enviar notícias sobre experiências da Pastoral que estão dando certo em sua comunidade, para que sejam reconhecidas por outras comunidades. Essa busca de visibilidade da Pastoral na mídia, intra ou extra-organização, têm o objetivo de apresentar resultados para a sociedade, dar transparência dos recursos utilizados, motivar a troca de experiências e legitimar no imaginário dos voluntários (líderes comunitários) a positividade de sua ação, que é, principalmente, a de salvar a vida de crianças desnutridas de 0 a 6 anos.

A Comunicação Pessoal e Grupal é uma área também estratégica da ação da Pastoral da Criança, pois toda atividade na ponta, realizada pelos líderes comunitários, envolve a relação com pessoas e grupos. É a visita do líder às famílias. São os encontros mensais para o ``dia do peso'', quando a família leva a criança para o centro comunitário, onde é feito o acompanhamento. Há também os encontros de formação, avaliação e planejamento da Pastoral, além de visitas a autoridades ou instituições quando os líderes buscam parcerias ou reivindicam melhorias para sua comunidade. Tendo em vista essas práticas, os comunicadores colaboram com os líderes na busca de melhores estratégias que aprofundem e enriqueçam o relacionamento interpessoal e a expressão diante dos diversos grupos (famílias, autoridades, representantes de instituições, outros líderes). Nesta área, são desenvolvidos também vídeos sobre ações básicas e campanhas específicas, para serem trabalhados em grupo. São produzidos também cartilhas, manuais, cartazes, prospectos, camisetas e bonés (e outros brindes) para uso/capacitação em grupos ou divulgação da imagem e ação da Pastoral.

Uma mídia mais recente incorporada pela Pastoral da Criança é a Internet, a partir de um investimento na informatização de todos os seus dados. Em parceria com outras instituições (Fundação Grupo Esquel do Brasil e Fundação Fé e Alegria do Brasil/AMEPPE), foi criada a REBIDIA - Rede Brasileira de Informação e Documentação sobre Infância e Adolescência (www.rebidia.org.br). No portal da Rebidia (cuja página de entrada marca o início dos acessos em 17 de julho de 1996), encontram-se os sites da Pastoral da Criança 2, da Fundação Esquel e da Fundação Fé e Alegria.

O comunicador da Rede é preparado tanto para realizar essas ações de comunicação como para reproduzir seus conhecimentos aplicados à Pastoral aos novos comunicadores, que atuam nos municípios distantes dos grandes centros urbanos, onde não se dispõe de cursos de formação e reciclagem profissional em comunicação. Em cada estado onde a Rede está presente, o objetivo é ter ao menos um comunicador para cada linha de trabalho. Ele se articula com os comunicadores representantes das dioceses, nos principais municípios do estado. Estes, por sua vez, dão continuidade ao fluxo junto aos comunicadores das paróquias de municípios e comunidades pertencentes à sua diocese.3

Para ingressar na Rede, o comunicador deve ser indicado por uma coordenadora Estadual, Diocesana ou Paroquial da Pastoral da Criança, e pode vir a integrar/constituir, respectivamente, a equipe estadual, diocesana ou paroquial da Rede. Para se formar um núcleo em um estado, por exemplo, as coordenações diocesanas indicam até três comunicadores (um para cada área) que participam de um encontro estadual. Neste encontro, o coordenador nacional de comunicação da Pastoral da Criança apresenta o que é a Rede, seus propósitos com a Pastoral e como se realiza o processo a partir das três áreas.4

Em cada estado brasileiro, a Rede vem conseguindo comunicadores para formar uma coordenação estadual. Mas nem todo os estados conseguiram ainda ter seus três voluntários, um para cada área. Há casos que sim, como no Rio Grande do Norte. Em outros não, como na Bahia (Rádio e Assessoria e Mobilização) e em São Paulo (Assessoria e Mobilização). Da mesma forma, não pode se dizer que as três áreas são contempladas em todas as dioceses e, por sua vez, nos municípios e comunidades. O que eles têm procurado é deixar ao menos uma das áreas contempladas nos vários pontos (estados, dioceses, municípios, etc.) como fermento inicial do projeto, a partir da aptidão específica do voluntário.

O coordenador nacional mais dois profissionais de comunicação são contratados e atuam na sede nacional da Pastoral da Criança, em Curitiba (PR), sendo, em última instância, os responsáveis pela articulação das três áreas: Assessoria e Mobilização, Rádio e Comunicação Pessoal e Grupal. Como os demais são voluntários, a Pastoral procura minimizar os custos que eles têm com as ações que realizam. E quando são convocados a participar de encontros de capacitação, reciclagem ou planejamento de estratégias de comunicação, os membros da Rede têm todas suas despesas ressarcidas. E os que atuam como capacitadores recebem uma ajuda financeira simbólica, à parte.

Em busca de um melhor ângulo

Quanto ao fluxo, a Rede Brasileira de Comunicadores se constitui em micro-redes que se atravessam. A tríade nacional e os coordenadores estaduais formam coordenação nacional ou Rede Nacional.. Os estaduais com os coordenadores diocesanos formam a coordenação estadual ou Rede Estadual. Os diocesanos com os comunicadores de paróquias (que às vezes correspondem à municipalidades) formam a Rede Diocesana.

Embora qualquer membro, dentro do fluxo da Rede, seja potencialmente capaz de repassar as práticas comunicativas em forma de cursos, a maioria protagoniza as práticas de comunicação no dia-a-dia da Pastoral. Somente uma parte dos comunicadores é que se firmam, por opção e habilidades pedagógicas, como capacitadores seja em nível nacional, estadual ou diocesano. Esse fato fez surgir mais três micro-redes, formadas por estes comunicadores cuja meta é produzir os manuais da prática de comunicação da Pastoral em cada área.

O fluxo de comunicação entre os membros da Rede se dá, também, em função das micro-redes, de maneira presencial e mediada. O modo presencial é proporcionado pelos a) encontros de avaliação e planejamento nacional, estaduais e diocesanos; b) durante as capacitações no nível estadual e diocesano; c) e nos encontros de reciclagem, avaliação e produção dos núcleos de capacitação. O fluxo mediado acontece por meio de cartas, telefone e e-mail. Como este se dá atravessado pelas micro-redes, têm-se os fluxos internos. Um é o fluxo da Rede Nacional e o das equipes de produção dos manuais de comunicação, em que o telefone, as cartas e o e-mail são todos utilizados, tendo maior incidência o correio eletrônico, seguido do telefone e do correio tradicional. No espaço configurado pela Rede Estadual e Rede Diocesana, a o fluxo mediado se dá quase que totalmente por telefone e cartas, não sendo expressivo o uso do correio eletrônico (salvo em estados do Sudeste/Sul), principalmente no espaço da Rede Diocesana.

A partir desse contexto, começamos a delinear nosso problema, apresentando que o nosso interesse pela Rede Brasileira de Comunicadores Solidários à Criança se dá no fato de termos ocupado, até o início de 2001, a função de coordenador estadual, na Paraíba, para a área de Comunicação Pessoal e Grupal, integrando, assim, a Rede Nacional como representante estadual e, acumulando também, o papel de capacitador na área citada. Enquanto membro da Rede no nível nacional, no fluxo potencializado pelo dispositivo correio eletrônico (lista de discussão comunicalist@rebidia.org.br), percebemos algo que nos chamou a atenção. Como a interação se dar através de uma lista de discussão, todos tem acesso às mensagens enviadas para esse endereço. Esse fato nos possibilitou contemplar que, neste lugar, não só circulavam mensagens em torno de questões da ação da Rede propostas em função da política de comunicação da Pastoral da Criança. Os integrantes da Rede também faziam circular entre si fatos da vida privada como fotos do casamento, do filho recém-nascido, desabafos de frustrações profissionais, pessoais ou desilusões amorosas, poesias, piadas, orações, dicas diversas, mensagens de esperança, etc.

Esse fatos nos fizeram debruçar sobre a premissa de que, para além dos laços efetivos (desenvolver a política de comunicação da Pastoral da Criança, para, na ponta, resgatar a vida das crianças), os membros da Rede constróem outros laços (afetivos, por exemplo), outros lugares, onde também produzem sentido a partir de sua própria experiência, vivência, concepção do que seja construir e estar numa rede. Isto posto, intuímos que, a partir de um processo de ``interação simbólica''5, a Rede Brasileira de Comunicadores Solidários à Criança é o resultado mútuo da relação entre o que ela é e a construção que resulta da prática concreta de cada um dos seus membros. Desta maneira, que novos espaços, ou melhor, que outros lugares se constituem ou são constituídos a partir dos lugares individuais dentro da Rede Brasileira de Comunicadores Solidários à Criança? Que tipos de contribuições, contrastes ou tensões podem ser constituídos, re-conhecidos, na relação entre a lógica de rede proposta pela política de comunicação da Pastoral da Criança e a lógica de rede construída pela prática dos sujeitos/atores que a constituem? Que lugares se manifestam em outras mediações (carta e telefone) e nas interações conversacionais (presenciais)? Em suma, que rede, ou que redes, estão construindo os participantes da RBCSC?

Para onde converter o olhar

Mas antes que responder a essas questões, pretendemos fazer uma digressão, e aqui se apresenta o sentido deste texto, para buscar pistas sobre o conceito de rede e sua relação com movimentos sociais, no contexto da sociedade contemporânea, marcada pela complexidade dos fluxos culturais tecnológicos e midiáticos. Isso, sempre tomando como referência empírica a Rede Brasileira de Comunicadores Solidários à Criança, a partir das características que nos detivemos em descrever longamente à pouco, com o objetivo de encontrar marcas de sua especificidade dentro desse contexto.

A sociedade contemporânea é marcada, segundo Castells, por uma cultura de virtualidade real construída a partir de um sistema de mídia onipresente, interligado e altamente diversificado. E pela transformação das bases materiais da vida - o tempo e o espaço - mediante a criação de um espaço de fluxos e de um tempo intemporal como expressões das atividades e elites dominantes (2000: 17).

Essa virtualidade real construída pela mídia e as transformações por que passam as categorias de tempo e espaço deram visibilidade ao tempo presente, ao atual, ao agora, como única possibilidade de existência dos fatos. Daí, um tempo ``intemporal''. E desta forma, encontramo-nos diante do risco de estabelecer o conceito de rede nesse limite a-histórico, cujo interesse é o agora. E o que nos é mais contemporâneo, enquanto idéia de rede? O conceito que se torna visível a partir das novas tecnologias, da idéia de computadores interconectados que constituem redes de circulação de dados. Daí, poderíamos inferir que a idéia de rede de movimentos sociais nasceria a partir dessa possibilidade de estarem conectados num sistema de comunicação mediada por computadores (CMC).

Historicamente, um dos conceitos importantes nos estudos de comunicação é o de rede. Já no século XIX, a "fisiologia social", de Claude Henri de Saint-Simon, traz a idéia de rede a partir da metáfora da sociedade como um organismo vivo.

A sociedade é concebida como sistema orgânico, justaposição ou tecer de redes, mas também como ``sistema industrial'', gerado por e como indústria. Em estreita filiação ao pensamento de engenheiros e obras públicas de então, ele concede um lugar estratégico à administração do sistema das vias de comunicação e ao estabelecimento de um sistema de crédito (MATTELART, 1999: 16).

O que hoje chamamos de infovias nada mais é do que uma releitura, atualizada, das vias férreas, das rodovias de comunicação transporte, que obedeciam à relação clássica de espaço-tempo. Essa visão da sociedade-industrialização também possibilita, além de um sistema de vias de comunicação, um sistema de crédito - as sociedades bancárias.

A idéia de rede evidencia-se na prática dos movimentos sociais, segundo Ilse Scherer-Warren (1993), a partir dos anos 80 do século passado. É claro que já nos anos 60 se desenvolviam os primeiros ensaios do que viria a ser a Internet, mas foi o conceito de rede, que sendo anterior à esta, pôde antecipar o que viria a se constituir na rede mundial de computadores, a idéia de pontos interconectados em que a informação não teria uma estrutura central, mas cada nó se constituiria como um centro. De um lado, estavam as motivações de estratégia militar dos EUA, temendo um ataque sobre suas bases de informação, que fizeram surgir a Arpanet. De outro, foi dentro do "espírito comunitário dos anos 60", que jovens americanos adeptos do movimento denominado "contracultura", no Vale do Silício, desenvolveram os dispositivos técnicos capazes de fazer funcionar os computadores em rede (PEREIRA DE SÁ, 2001).

Aqui não queremos minimizar o papel das modernas tecnologias de comunicação e o poder de seus dispositivos tecnológicos de interferir nos processos sócio-culturais. Mas, sim, tentar demonstrar que são as práticas sócio-culturais que estão na raiz dos processos tecnológicos, e estes, por sua vez, possibilitam, direcionam, interferem no cotidiano social. Assim sendo, se temos a Internet hoje, é porque toda uma rede de telefonia a precedeu como também toda uma constelação satelital. É claro que hoje esta estrutura está potencializada com a digitalização das vias de informação. O que queremos dizer com isso é que os movimentos sociais, especialmente no caso brasileiro, já pensavam e agiam como rede antes mesmo da Internet se popularizar no Brasil, quando se tornou comercial, em 1995. Um exemplo é a Rede Mulher, uma ONG que já em 1992 atuava como uma "rede de serviços", cuja "vocação" era interconectar grupos e pessoas.

Entendemos que esta é uma forma eficaz de utilizar a comunicação, principalmente quando se atinge a grupos e pessoas com informações por meios como o correio, o telefone e, quando muito, o fax6.

Scherer-Warren Faz um painel sobre a história dos movimentos sociais, dividindo-a em quatro períodos. O primeiro, de meados do século XX até a década de 70, marcado pelas "lutas de classe"; o segundo são os anos 70, tendo como marco "as lutas nacional-populares"; o terceiro como sendo os anos 80, caracterizados pelos "movimentos de base (grassroots)"; e o quarto como perspectiva para os anos 90, com a consolidação das "redes de movimentos (networks)" (1993: 13-25). Como perspectiva porque, para a pesquisadora, a idéia de rede de movimentos já tinha indícios empíricos claros na década de 80.

Pode-se afirmar que há evidências empíricas de que na última década os movimentos populares e seus mediadores passaram por transformações que vão da valorização das organizações de base (grassroots organizations), para mais recentemente o reconhecimento o reconhecimento crescente da importância das articulações, intercâmbios e formação de redes, temáticas e organizacionais (network organizations) (SCHERER-WARREN, 1993: 9).

Vale ressaltar que, embora tenha sido publicado em 1993, o trabalho é de 1990, e para seu artigo em que constrói uma perspectiva de ``rede de movimentos'', a autora propõe como questão de ``opção'' o uso do termo. ``A idéia de `rede' implica pensar, desde um ponto de vista epistemológico, na possibilidade de 'integração de diversidade''' (SCHERER-WARREN, 1993: 9). Em sua Teoria dos Movimentos Sociais, Maria da Glória Gohn registra que na década de 90 os estudos dos movimentos sociais e ONGs entram na perspectiva de rede.

Neste contexto, podemos situar o surgimento da Rede Brasileira de Comunicadores Solidários à Criança, em 1994, um ano antes de a Internet tornar-se comercial no Brasil. Logo, como só existia, até então, a Rede Nacional de Pesquisa (RNP), cujo acesso era restrito às universidades, podemos inferir que os primeiros comunicadores da Rede não usavam o correio eletrônico (e-mail) em sua interlocução. Assim como na Rede Mulher, o correio, o telefone e o fax eram os meios que permitiam a interação entre os participantes. E como ainda hoje, o correio eletrônico não é acessível a todos os mais de 500 participantes da Rede em todo o Brasil, se nos apresenta várias questões, que de certo modo já esboçadas anteriormente. Uma rede se constitui também com dispositivos outros antecessores da Internet, logo que lugar eles ocupam dentro da cultura de comunicação da Rede de Comunicadores Solidários à Criança? Em outras palavras, que interações entre os membros da Rede se dão nesses dispositivos (carta e telefone) que lhes dá especificidade em relação ao dispositivo ``lista de discussão'' (correio eletrônico)? Ou ainda, que tipo de conformações ou reordenamentos acontecem no processo de complementaridade dos dispositivos midiáticos conversacionais com a chegada da lista de discussão via e-mail? Em suma, que usos, que apropriações cada membro da rede faz dos diferentes dispositivos que tem a seu alcance, tendo em vista os laços efetivos (Comunicação institucional da Pastoral da Criança) e afetivos (as relações que tecem entre si)?

Uma outra especificidade da Rede Brasileira de Comunicadores Solidários à Criança é de ser um movimento social com características de redes de movimentos sociais, por sua ação de amplitude nacional e por atuar junto a uma ONG (Pastoral da Criança) com mais de 130 mil voluntários, candidata brasileira ao Nobel da Paz em 2001 e com em vários países da América Latina, África e, agora, Ásia (Timor Leste). Em vista do Nobel, a Pastoral vem criando estratégias para estar na agenda da mídia internacional. E, segundo Scherer-Warren (1993), as redes de movimentos podem se formar a partir da conexão entre vários movimentos locais, tendo em vista um objetivo ou lutas sociais que ultrapassam o local e, hoje, ganham o espaço nacional e transnacional - como é o caso dos movimentos pela paz, pela ecologia, pelos direitos humanos, feministas, étnicos e outros.

Assim, ``a análise em termos de `rede de movimentos' implica buscar as formas de articulação entre o local e o global, entre o particular e o universal, entre o uno e o diverso, nas interconexões das identidades dos atores com o pluralismo'' (SCHERER-WARREN, 1993: 10). A diferença entre a Rede de Comunicadores Solidários à Criança e as redes de movimentos é que o pluralismo não é visto como diversidade de movimentos interconexos, mas diversidade de atores inseridos em realidades regionais, marcadas por especificidades culturais, sociais, político-estratégicas e midiáticas dentro do vasto território brasileiro. E uma outra característica da Rede como movimento social é seu caráter voltado para a comunicação. É uma rede formada por produtores culturais, jornalistas, radialistas, relações públicas, publicitários e comunicadores populares. E desta forma, é um movimento social que assessora uma ONG e não o contrário, que é mais comum no Terceiro Setor.

Vértices do olhar

E a partir de suas características, podemos observar a Rede Brasileira de Comunicadores Solidários à Criança por três ângulos: como movimento social, como rede e como uma comunidade. Como movimento social, enquanto realiza ações coletivas que vão além da defesa de interesses particulares e que buscam ``intervir na formação das políticas gerais de organização ou de transformação social''7. Como rede de trabalho voluntário na área da comunicação à distância em função de dar visibilidade e comunicabilidade à ações institucionais da Pastoral da Criança, reduzindo custos e administração, espaços físicos e deslocamentos com viagens (este saldo da redução de custos pode ser aplicado nas próprias ações de cidadania da Pastoral)8. E, finalmente, na forma de comunidade. Aspecto ainda não comentado neste texto e que em sua proposição apresenta outras angulações, as quais não vamos aprofundar aqui, pois só elas já consistiriam em tema para uma pesquisa. É a possibilidade de a Rede de Comunicadores Solidários poder ser vista sob a perspectiva de uma conceituação atual de comunidade e como comunidade virtual.

No estudo sobre Comunidades em Tempo de Rede (2001), Cicilia M. Krohling Peruzzo parte dos conceitos clássicos de comunidade e analisa o que são comunidades virtuais e os novos tipos de comunidade no contexto dos movimentos sociais. Nessa análise, ela aponta características inovadoras de comunidades em que se pode encontrar especificidades atribuídas aos movimentos sociais:

a passagem de ações individualistas para ações de interesse coletivo, desenvolvimento de processos de interação, a confluência em torno de ações tendo em vista alguns objetivos comuns, constituição de identidades culturais em torno de desenvolvimento de aptidões associativas em prol do interesse público, participação popular ativa e direta e maior conscientização das pessoas sobre a realidade em que estão inseridas. Inclui-se entre essas inovações a utilização das redes de computadores, ou o ciberespaço, como um dos ambientes nos quais podem se desenvolver seus processos de interação e de comunicação. Elas, não todas obviamente, incluem-se como comunidades virtuais, embora sua ação não se resume na virtualidade, mas perpassa o mundo concreto e das práticas cotidianas (PERUZZO, 2001: 10).

A partir da abordagem de Galindo Cárceres, Peruzzo não concorda que se generalize o conceito de comunidade virtual para toda e qualquer forma de ``agregação eletrônica'', uma vez que muitas delas não passam de redes de contato ou grupos de interesse sem chegar a constituírem-se em comunidades virtuais. ``Para uma rede configurar-se enquanto uma comunidade virtual há necessidade de portar características que condizem com os conceitos de comunidade, o que descartaria aquelas de relacionamentos ocasionais, dispersos e de pouca organicidade'' (PERUZZO, 2001: 8). Essas características estariam ligadas ao mundo concreto e às práticas cotidianas, no sentido de que objetivos comuns, ações de interesse coletivo fossem acenados, tivessem ingerência na realidade material local de cada integrante da rede, independente, portanto, da territorialidade comum como uma das característica fundamentais para se constituir comunidade.

E nesse caso, os integrantes da Rede de Comunicadores realizam atividades comuns como a publicização das ações da Pastoral da Criança na mídia local, embora não no mesmo território, mas que geram identidade entre os membros. E para além das relações virtuais, via dispositivo midiático lista de discussão <comunicalist@rebidia.org.br>, há também os encontros presenciais anuais, para avaliação e planejamento estratégico, e os encontros regionais de capacitação. Nesses encontros, inclusive são pautados outros lugares de interação, diferentes do ambiente de reunião, a exemplo de barzinho, teatro, cinema, passeios, em que outros temas entram em pauta, gerando outros tipos de laços para além dos institucionais contidos nas propostas da Pastoral da Criança. Como Artur Serra adverte em relação às ``comunidades virtuais'', estas não são ``vivíveis'', ou seja, não têm vida longa se somente mantêm os laços virtuais. ``Para desgraça de alguns e sorte de outros, nós sapiens não somos somente bits''9, diz. Para ele, é preciso realizar ações no campo virtual e presencial, é necessário ter uma imagem e uma ação concreta no mundo social.

Nessa relação ou esse olhar para comunidades in real life (IRL)10 e comunidades virtuais, Simone Pereira de Sá (2001) faz interessante estudo, fazendo uma revisão história do conceito de comunidade e apresenta o risco de depositarmos toda nossa esperança nas comunidades virtuais como se estas fossem atualizar a nostalgia da comunidade perfeita, que um dia foi perdida no espaço das relações na vida real, e a utopia de que a liberdade de expressão e a democracia são características intrínsecas das comunidades virtuais. Ou seja, não se poderia olhar as comunidades virtuais de um lugar ufanista, pastoral da noção de comunidade, que logo faria emergir uma posição apocalíptica sobre as comunidades virtuais, nem tampouco olhar as relações sociais na vida real de um lugar em que a perfeição da idéia de participação e democracia se dá no plano virtual (visão deslumbrada do virtual), uma vez que no plano da realidade isso não seria mais possível. O que a autora propõe é que não fiquemos entre deslumbrados e apocalípticos, mas que partamos de um lugar de observação em que não há uma ruptura entre processos de relações sociais in real life e nas comunidades virtuais, mas que questões que interrogam os pesquisadores sociais na vida real também se reproduzem no espaço virtual.

Diríamos que o grau de abstração, fluidez e efemeridade destas comunidades pode ou não ser maior do que as comunidades offline; o grau de comprometimento dos participantes pode ou não ser tão intenso; e que a comunicação e trânsito de participantes pode não ser maior do que aquele da socialidade contemporânea IRL. (PEREIRA DE SÁ, 2001: 20).

Para José Luiz Braga, em seu relato crítico sobre o artigo de Simone Pereira de Sá, intitulado A busca do sentido das utopias cibercomunitárias, essa ``indiferenciação'' entre processo comunitário na vida real e no espaço virtual ``serve bem ao propósito de recusar visões deslumbradas e apocalípticas que [...] vem sempre nos fenômenos `novos' uma total separação de todo o anteriormente existente'' (BRAGA, 2001: 4). Mas isso não deixaria por menos a necessidade de expressar o que cada um desses processos tem de específico. E neste ponto, Braga salienta que essa especificidade que vai interessar particularmente ao Campo da Comunicação. ``O que podemos perceber e devemos assinalar, dentre as especificidades das chamadas cibercomunidades, é que se trata de `comunidades de interlocução' - de interação comunicacional'' (BRAGA, 2001: 4).

Além de propor a comunidade virtual como lugar essencialmente de ordem comunicacional, interacional, conversacional, Braga apresenta outras especificidades. Para ele é consensual que ``é a sociedade que determina os graus de envolvimento comunitário, e não a tecnologia'', portanto, com relação ao problema da participação, coloca o problema em outros termos: ``como assegurar pertencimento duradouro através de procedimentos que (de modo estrutural) propiciam a facilidade exacerbada de ingresso/evasão?'' (BRAGA, 2001: 6). Essa seria uma outra especificidade das comunidades virtuais: não poder fugir desse problema. Isso porque o próprio modo tecnológico de socialização criado pela sociedade propicia isso, já que não há necessariamente uma cobrança de vínculos identitários mais fortes, comprometedores, e que para sair basta um clique em uma janela de um programa de computador. Também aponta que nesse tipo de comunidade a relação indivíduo/coletivo, necessariamente não está baseada em ``características sociais e/ou comportamentais `reais', mas sim em decisões individuais totalmente ficcionais'' (BRAGA, 2001: 6). E aqui coloca que na vida real assumimos diversos papeis, que por vezes tornam difuso o conceito de ``identidade'', sendo essa uma questão relevante no estudo das interações presenciais11. Além do que já foi exposto, outras duas questões apontadas por Braga (a partir do seu relato crítico do texto de Pereira de Sá) são relevantes para o estudo das comunidades virtuais e para os processos interacionais presenciais, que são característicos da Rede Brasileira de Comunicadores Solidários à Criança, nosso objeto empírico:

Ampliar o conhecimento sobre as circunstâncias em que o dissenso não se resolve e leva ao rompimento; e ainda sobre as estruturações de hierarquia, comando, obediência, igualdade, procedimentos de polemização viabilizados, etc. - em semelhança ou em diversidade ao que ocorre nas comunidades IRL (BRAGA, 2001:7).

E aqui entram algumas características da Rede de Comunicadores que a tornam um exemplo peculiar de comunidade IRL e de cibercomunidade, na medida em que há uma relação institucional que, de certa maneira, rege as relações entre os participantes. O fato de ter objetivos sociais de grande visibilidade (concreta diminuição da mortalidade infantil no Brasil); estar ligada a uma ONG, a Pastoral da Criança, que é tem um profundo vínculo com a ação social da Igreja Católica, através da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB); ter uma estrutura organizativa clara, que deixa transparecer uma hierarquia, embora haja forte incentivo para que os nós da rede tenham a mesma autonomia que a coordenação nacional de comunicação tem; haver toda uma estratégia de ingresso na Rede, que tem como pré-requisito, por exemplo, ser indicado pela coordenadora local da Pastoral da Criança, e um ritual de socialização que é presencial, físico.

E, ao final, o que resta são novas questões, tendo em vista essa possibilidade de angulações que a Rede Brasileira de Comunicadores Solidários à Criança permite: percebê-la como movimento social em rede, que constrói processos comunitários in real life e virtuais, com fortes ligações institucionais e éticas, enquanto lugar de interação, de conversação capaz de se abrir, ainda assim, para a construção de relações, de processos outros entre os atores sociais que a constituem, para além do que está na aparência daquilo que se vê na superfície desse fenômeno social.

Bibliografia Consultada



Notas de rodapé

... Lacerda1
Professor dos cursos de Comunicação Social e Turismo com Ênfase em Meio Ambiente do IELUSC, em Joinville, SC; Mestre em Comunicação PPGCC da Unisinos/RS; Jornalista graduado pela Universidade Federal da Paraíba.
...ca 2
No site da Pastoral da Criança, podem ser acessados dados sobre demonstrações financeiras, o relatório da situação de Abrangência, ações básicas, números da mortalidade infantil com serviço de busca de estatísticas por municípios e dioceses, rede de amigos, Rede de Comunicadores, publicações da Pastoral, o Jornal da Pastoral da Criança, endereços, número de conta bancária para doações, informações sobre a participação da Pastoral no programa Criança Esperança (Rede Globo) e apoios. Os textos estão em três versões: português, inglês espanhol.
... diocese.3
A Rede realiza seu trabalho seguindo o modelo da Pastoral da Criança que segue a divisão administrativa da Igreja Católica (Dioceses, Paróquias, Áreas Pastorais e Comunidades).
...areas.4
É mais comum que a tríade (quando se consegue formar) que atua na cidade (diocese) onde se encontra a coordenadora estadual (geralmente a capital) fique com a responsabilidade de articular o estado e representá-lo na equipe (rede) nacional. No Espírito Santo, por exemplo, a coordenação está na capital, Vitória. Já no Paraná, a coordenadora estadual atua na Diocese da cidade de Francisco Beltrão.
...olica''5
Segundo Hans Joas, o interacionismo simbólico, linha de pesquisa sociológica e sociopsicológica assim denominada por Herbert Blumer (1938), possibilita perceber as relações sociais ``não como algo estabelecido de uma vez por todas, mas como algo aberto e subordinado ao reconhecimento contínuo por parte dos membros da comunidade'' (Joas, Hans. ``Interacionismo Simbólico'' in Giddens & Turner (org.). Teoria Social Hoje. São Paulo: Unesp, 1999, p. 130).
... fax6
Relato de Tereza Moreira, da Rede Mulher, no XVIII Congresso Brasileiro de Comunicação Social, promovido pela União Cristão Brasileira de Comunicação, em São Leopoldo, RS, em 1993. Este relato está publicado no livro Comunicação e Política - a ação conjunta das ONGs, publicado pela Editora Paulinas em 1995.
... social''7
Noção de movimento social apresentada por Schere-Warren (Redes de Movimentos Sociais, 1993, p. 116) citando Alain Touraine (Palavra e Sangue, 1989, p. 182), em que o autor diz que se tem um movimento social quando se tratar de ``um conflito social que opõe formas sociais contrárias de utilização dos recursos e valores culturais, sejam estes da ordem do conhecimento, da economia ou da ética''.
... Pastoral)8
Uma adaptação a partir dos três tipos de rede compilados por Cicilia M. K. Peruzzo (Comunidades em Tempos de Redes. GT Comunicación y Movimientos Populares: Cuales Redes?, IV Endicom, Montevideo, 2001) em artigo de Suzana Finquelievich, que refere-se a estudos de Barry Wellman e Janet Salaff (Comunidades Eletrônicas - nuevos paradigmas de participación politica a nivel local?, Comunicación - Estudos Venezolanos de Comunicación. Caracas, 1998, nº 102. p. 44-53).
...bits''9
SERRA, Artur. (s.d) Redes ciudadanas: construyendo nuevas sociedades de la era digital. Revista do Terceiro Setor (http://notitia.rits.org.br/).
... (IRL)10
Relações sociais na vida real, termo apresentado por Simone Pereira de Sá no texto Utopias Comunais em Rede - Discutindo a noção de comunidade virtual, apresentado no GT Comunicação e Sociabilidade, X Encontro anual da Compós, 2001.
... presenciais11
Sobre o estudo das interações presenciais, ver o artigo ``Sobre a Conversação'', de José Luiz Braga in Brasil - Comunicação,Cultura & Política, (orgs. Antônio Fausto Neto, Sérgio Dayrell Porto e José Luiz Braga), Ed. Diadorim, Rio de Janeiro, 1994, p. 289-308.