A INFORMAÇÃO COMO UTOPIA

Paulo Serra, Universidade da Beira Interior

 

Introdução

"Nasce um Deus. Outros morrem. A verdade / Nem veio nem se foi: o Erro mudou." - Fernando Pessoa

O problema da informação - a informação como problema - não é de hoje. Tal problema remonta, pelo menos, a Platão que, no Fedro, citando um velho mito egípcio, alerta para o perigo de, com a escrita, a mera informação (considerada, pelo filósofo, como "uma aparência de sabedoria") ir, progressivamente, substituindo a educação (sem a qual não pode existir "a sabedoria em si mesma"). (1) Já mais perto de nós, em "O Narrador" (publicado em 1936), Walter Benjamin constata, num tom não isento de nostalgia, a crise da narrativa, da "capacidade de trocar experiências", que se torna manifesta a partir da 1ª Guerra Mundial. Segundo o filósofo alemão, essa crise tem a sua origem mais remota (e fundamental) na arte da impressão, que vai constituir um dos instrumentos fundamentais da afirmação da burguesia; consolidado o seu domínio, a burguesia cria uma forma de comunicação que vai pôr em causa quer a narrativa quer o próprio romance (que contribuira, a seu tempo, para a perda de importância da narrativa): a informação. (2) Desde a época em que Benjamin publicou o seu texto - e sobretudo após os finais da 2ª Guerra Mundial - a problemática da informação (e da comunicação) não deixou de ir ganhando uma importância crescente, começando-se mesmo a falar, a partir dos anos 60, do surgimento de uma "sociedade da informação".
À primeira vista, Platão e Benjamin nada têm a ver com essa "sociedade da informação". No entanto - e esse não será, porventura, o menor dos paradoxos da sociedade da informação -, o problema colocado por Platão e Benjamin, e da forma como cada um, a seu modo, o coloca, só hoje é, de forma clara, o nosso problema. A perspectiva de Platão sugere-nos, desde logo, um conjunto de questões de que que se destacam as seguintes: porque é que mais informação não significa, necessariamente, mais saber? Qual a relação entre informação e saber? Quem e como pode ter acesso à informação e ao saber? Qual o papel da educação (e da instrução) nesse processo? Quanto ao diagnóstico de Benjamin acerca da crise da narrativa, da capacidade humana de trocar experiências, não representa ele a tomada de consciência do facto de, num século constantemente chamado "da comunicação", estarmos cada vez mais informados mas, ao mesmo tempo, termos cada vez menos coisas a dizer, a ouvir, a partilhar com os outros? Do empobrecimento irremediável das próprias ideias de comunicação e de comunidade?
Estas são algumas das questões que levam a que a chamada "sociedade da informação" esteja, de há alguns anos a esta parte, na agenda de organizações internacionais, de governos, de políticos, de empresários, de universidades, de cientistas sociais e de filósofos - suscitando um conjunto de atitudes e de perspectivas de análise claramente dicotómico. Tal dicotomia de atitudes e de perspectivas de análise acerca da sociedade da informação pode ser reconduzida a uma dicotomia hoje clássica nas ciências sociais: a dicotomia entre ideologia e utopia
A caracterização da sociedade da informação como "ideologia" tem vindo a ser feita, por diversos investigadores, num duplo sentido. Em primeiro lugar, no sentido em que a "sociedade da informação" não constitui um conceito científico, mas sobretudo "uma forma emblemática de um certo discurso social recente" (3). Em segundo lugar, no sentido em que ela pode ser vista como "um conjunto de crenças, que expressam as necessidades e aspirações" dos grupos que estão na base da produção e da venda dos sistemas de informação. (4)
De acordo com esta caracterização, esta ideologia surge da necessidade de os países capitalistas mais "desenvolvidos" - confrontados, por um lado, com os poblemas crescentes da sociedade industrial e a crise do "Estado-providência", e, por outro lado, com o esgotamento das velhas ideologias políticas e dos projectos sociais mobilizadores - encontrarem um projecto verdadeiramente universalizável e partilhável por todos os cidadãos do mundo; um projecto que pudesse fazer cessar, finalmente, os grandes confrontos políticos e militares entre países e grupos sociais com interesses contraditórios. No mundo que se perspectiva, todos (países e indivíduos) terão, mais cedo ou mais tarde, o seu lugar no banquete da informação - que se trata de produzir, fazer circular e distribuir da forma mais rápida e eficiente possível; todos os problemas, qualquer que seja o seu tipo e a sua gravidade, terão na informação a sua resolução última. Na "nova" sociedade, cada vez mais homogénea, global e consensual, as ideologias e a política poderão, finalmente, retirar-se da boca da cena, dando o seu lugar à ciência e à tecnologia, agora que elas atingem a sua realização plena. Neste sentido, a "ideologia da informação" representa não uma "revolução" (ou uma ruptura) com o passado mas a sua continuação - ainda que sob uma nova forma.
A eficácia (e o sucesso) desta ideologia reside, em grande medida, no carácter das "tecnologias da informação" que a suportam. Essas tecnologias correspondem a um momento em que, para utilizarmos a linguagem de Heidegger, a "língua" se torna "técnica" - e em que, por isso mesmo, a "técnica" se torna "língua" -, num acasalamento entre linguagem e tecnologia que aponta, no limite, para a vivência da técnica como magia, para a transformação dos gestos técnicos em ritos mágicos e simbólicos. Construir um mundo não exige, agora, a dor e o peso do corpo, mas a justa medida do símbolo - aí reside, precisamente, o fascínio do "virtual". A este fascínio não são, no entanto, alheios uma certa inquietude e um certo temor, que têm vindo a tornar-se cada vez mais visíveis nos últimos tempos. Experimentamos assim, perante as novas tecnologias, a mesma ambivalência (composta de fascinação e de inquietação, de respeito e de temor) que autores como R. Otto e Roger Callois, para citar apenas estes, identificaram a propósito do sagrado. (5)

Não pondo de parte a caracterização da "sociedade da informação" como ideologia pretendemos, neste trabalho, olhar para a "sociedade da informação" como utopia. (6) Tal pretensão implica desde logo que, na linha de autores como Mannheim e Ricoeur, nos recusemos a estabelecer uma linha de demarcação absoluta entre ideologia e utopia, tentando antes pensá-las em conjunto - até porque existe, entre elas, uma fronteira ténue, que facilmente se deixa transpor. (7)
Enquanto utopia, a "sociedade da informação" tem as suas raízes no ideal iluminista de uma sociedade constituída por cidadãos que, partilhando o saber, podem decidir democraticamente, partilhando o poder. Para o Iluminismo, tal sociedade seria a resultante "natural" do desenvolvimento científico-tecnológico - que se apresenta, assim, como o chão em que vão medrar todas as utopias modernas. A diferença entre a "sociedade esclarecida" do Iluminismo e a "sociedade informada" que agora se perspectiva seria, no fundo, uma diferença de grau (em termos de menor ou maior oportunidade de acesso ao saber e ao poder) e de amplitude (em termos de menor ou maior carácter global). O ideal político de ambas as utopias, que vem de longe (ele elabora-se no seio da democracia grega e do cristianismo) e tem sido permanentemente diferido, é o da construção de uma "comunidade humana justa habitada por homens livres" - entendida pelo Iluminismo como "sociedade cosmopolita" e actualmente como "ágora virtual". (8)
Neste sentido, podemos dizer que o Iluminismo constitui para nós, "pós-modernos", uma verdadeira aporia: já não podemos ser iluministas, mas ainda não podemos (e alguma vez poderemos?) deixar de o ser. Queremos com isto dizer que o Iluminismo não é mais uma utopia - ele é a utopia por excelência: o momento e a forma em que, para parafrasearmos a célebre fórmula de Hegel, se antevê a possibilidade de o real se tornar racional e o racional real, a possibilidade de a Ideia, tornada liberdade absoluta, retornar a si própria como Espírito. Ou, por outras palavras, a possibilidade escatológica da realização do "reino de Deus" na Terra.
No entanto, se é inegável que os ideais iluministas levaram a grandes progressos económicos, políticos e culturais, convém não esquecer que tais ideais também desembocaram muitas vezes no terror, na apropriação da sociedade por um grupo privilegiado, na destruição das culturas não científicas e não ocidentais - conduzindo a níveis de desigualdade, de opressão e de violência tão grandes ou maiores do que os verificados no passado. (9) Ora, a sociedade da informação revela-se-nos dotada desta duplicidade histórica do Iluminismo (e das utopias em geral). Um dos domínios em que tal duplicidade é mais manifesta é aquele a que chamámos "a partilha do saber e do poder" - domínio simbolizado, por um lado, na chamada "biblioteca universal" e, por outro lado, nas chamadas "comunidades virtuais".

Tendo em conta os pressupostos anteriores, o nosso trabalho visa dois objectivos fundamentais:
i) Enquadrar a sociedade da informação, enquanto utopia, no movimento mais vasto que, desde os inícios da Modernidade, deposita as suas esperanças utópicas na Tecnociência - vista como o meio que pode permitir a construção de uma sociedade mais livre, mais fraterna e mais igualitária.
ii) Analisar criticamente aqueles que nos parecem ser os dois aspectos mais utópicos da sociedade da informação, e que se enquadram no movimento referido anteriormente: a "biblioteca virtual" (e a a partilha do saber que ela, supostamente, permite) e as "comunidades virtuais" (e a partilha do poder a que elas, supostamente, dão lugar).
Para atingirmos tais objectivos, dividimos o nosso trabalho em cinco Capítulos, antecedidos de um Preâmbulo.
No Preâmbulo procuramos, por um lado, fixar o sentido e a relação dos conceitos de ideologia e utopia, que balizam a reflexão feita no decorrer de todo o trabalho, e, por outro lado, mostrar a relevância desses conceitos para a compreensão da dinâmica social.
No Capítulo I ("A Tecnociência da utopia à ideologia"), analisamos o processo mediante o qual a visão utópica da ciência e da tecnologia, surgida nos séculos XVII/XVIII (com Descartes e o Iluminismo), conduziu, a partir do (com o) Positivismo de Comte, à transformação dessa utopia em ideologia cientista e tecnocrática (processo que, como sabemos, Marcuse e Habermas qualificam como transformação da tecnologia e da ciência em "ideologia").
No Capítulo II ("Um novo paradigma da Ciência e da Técnica"), procurarmos analisar as principais características do paradigma - a que autores como Boaventura Sousa Santos chamam "pós-moderno" - que, recusando a ideologia cientista e tecnocrática, permite pensar (e pôr em prática) uma nova visão da Ciência e da Técnica.
No Capítulo III ("A Sociedade da Informação entre a ideologia e a utopia"), começamos por analisar a teorização que Bell faz da sociedade da informação, bem como a posição dos poderes políticos perante tal realidade, de forma a identificarmos o conjunto de postulados ideológicos que estão subjacentes a essa teorização e a essa posição. Num segundo momento analisaremos, de forma sucinta (que será desenvolvida nos capítulos seguintes), as perspectivas utópicas e distópicas sobre a sociedade da informação - perspectivas centradas no fenómeno das Redes e do Ciberespaço - que coexistem, hoje, com a visão ideológica.
Nos Capítulos IV ("A 'biblioteca universal' e a partilha do saber") e V ("As comunidades virtuais e a partilha do poder"), debruçamo-nos sobre aquelas que consideramos serem duas das mais importantes orientações utópicas da "sociedade da informação": a "biblioteca universal" e as "comunidades virtuais" (e a partilha do saber e do poder que, supostamente, elas permitem). Na análise destas duas orientações - análise que constituirá uma parte substancial do nosso trabalho - procuraremos passar, constantemente, de um plano de descrição a um plano de problematização, tentando evitar quer a ideologização quer a utopização acríticas da "sociedade da informação" a que, nos últimos tempos, temos vindo a assistir de forma crescente.

Como qualquer trabalho, este é o resultado do confronto (feito de discordâncias mas também, obviamente, de muitas concordâncias) com múltiplos autores e perspectivas. No conjunto desses autores e perspectivas não podemos deixar de destacar - sobretudo como ponto de partida problemático - a posição da chamada "teoria crítica" (e, nomeadamente, de Adorno e Horkheimer, Marcuse e Habermas) acerca da ciência e da tecnologia. Esse destaque justifica-se por duas ordens de razões: em primeiro lugar, porque a "teoria crítica" parece-nos, ainda hoje, uma referência incontornável para pensarmos a sociedade que emerge com a Modernidade. Em segundo lugar, porque há, da nossa parte - porque não confessá-lo? - uma simpatia especial por um tipo de pensamento que se pretende profundamente iconoclasta. Mas que, ao mesmo tempo, parece revelar uma certa pena por não poder deixar de sê-lo...

Notas

1-Cf. Platão, Fedro, 274e-275b, Lisboa, Guimarães Editores, 1989, pp120-123. Ver, acerca desta posição de Platão, Paul Ricoeur, Teoria da Interpretação, Porto, Porto Editora, 1995, p. 87. Uma interpretação desta posição de Platão no contexto mais vasto das tecnologias aparece em Neil Postman, Tecnopolia. Quando a Cultura se Rende à Tecnologia, Lisboa, Difusão Cultural, 1994, pp. 11-25.

2-Sobre o conceito de informação, diz Benjamin: "Villemessant, o fundador do "Figaro", definiu a essência da informação com uma fórmula famosa: 'Para os meus leitores - costumava dizer - é mais importante um incêndio numa mansarda do Quartier Latin do que uma revolução em Madrid.' Isto explica definitivamente porque é que, actualmente, se prefere escutar a informação que fornece pontos de referência sobre algo que está próximo, ao relato que vem de longe." Walter Benjamin, "O Narrador", in Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política, Lisboa, Relógio d'Água, 1992, p. 33.

3-João José Pissarra Nunes Esteves, A Ética da Comunicação e os Media Modernos. O Campo dos Media e a Questão da Legitimidade nas Sociedades Complexas, Tese de Doutoramento, Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, 1994, p. 223. Ver, sobre a caracterização desta ideologia, pp. 224 ss.

4-Langdon Winner, "O mito da infromação na era da alta tecnologia", in Tom Forester (Ed.), Informática e Sociedade, Volume I, Lisboa, Edições Salamandra, 1993, p. 145.

5-Cf. Roger Callois, O Homem e o Sagrado, Lisboa, Edições 70, 1979. Parece-me esclarecedora, a este respeito, a análise patente em José Manuel Santos, "O virtual e as virtudes", artigo a publicar na Revista de Comunicação e Linguagens, Lisboa, Edições Cosmos, Dezembro de 1997.

6-O que não significa, como é óbvio, olhar "utopicamente" (de forma não crítica) para a sociedade da informação.

7-Neste aspecto, os casos do Iluminismo e do Marxismo (que se apresenta a si próprio como a verdadeira realização dos ideais iluministas) são exemplares. Assumindo-se inicialmente como movimentos utópicos que visavam a emancipação e a libertação da humanidade no seu conjunto, eles acabam por se transformar, pelo menos parcialmente, em ideologias legitimadoras dos interesses e dos privilégios de classes e grupos sociais bem determinados.

8-Cf. José Bragança de Miranda, Política e Modernidade, Lisboa, Colibri, 1997, p. 158.

9-António Fidalgo fala, a este propósito, em "luzes" e "trevas" do Iluminismo. Cf. António Fidalgo, "Luzes e trevas do iluminismo", in Brotéria, Nº 138, Março de 1994.

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