Paulo Serra, Universidade da Beira Interior
Ano lectivo 1995/96
PLANO DO TRABALHO
I. INTRODUÇÃO
II. DA RETÓRICA À TEORIA DA ARGUMENTAÇÃO
1. A RETÓRICA ANTIGA
2. PERELMAN E A "NOVA RETÓRICA"
III. DUCROT: A ARGUMENTAÇÃO NA
LÍNGUA
1. ARGUMENTAÇÃO E RACIOCÍNIO
2. OPERADORES E CONECTORES ARGUMENTATIVOS
3. CLASSES E ESCALAS ARGUMENTATIVAS
4. O PRESSUPOSTO E O IMPLÍCITO
IV. ANÁLISE DE UM TEXTO DE PLATÃO
1. SITUAÇÃO DE DISCURSO
2. A LÓGICA DA ARGUMENTAÇÃO
3. CLASSES E ESCALAS ARGUMENTATIVAS
4. O PRESSUPOSTO E O IMPLÍCITO
4.1. O PRESSUPOSTO
4.2. O IMPLÍCITO
5. OS ACTOS ILOCUTÓRIOS
6. OPERADORES E CONECTORES ARGUMENTATIVOS
NOTAS
BIBLIOGRAFIA
ANEXO
I. INTRODUÇÃO
É um lugar comum, hoje em dia, dizer-se
que o século XX é o "século da linguagem".
Factores como o desenvolvimento das novas tecnologias
de informação e comunica-ção (mediante as quais
toda a experiência humana tende a tornar-se linguagem e comuni-cação),
a consolidação dos regimes democráticos (em que a
palavra, e não a violência ou a força, se assume como
instrumento da actividade política), a "crise de fundamentos" que
sacudiu as Matemáticas nos princípios do século, o
desenvolvimento científico e técnico em geral, vêm
trazer para primeiro plano a necessidade de estudar os fenómenos
da comunicação e da linguagem. Como resultado desta necessidade,
a problemática da linguagem "invadiu as ciências humanas e
a filosofia." (Meyer, 1992: 5).
Mas, se a "invasão" das ciências
humanas e da filosofia pela problemática da linguagem é um
fenómeno (relativamente) recente, a preocupação prático-teórica
do homem com a linguagem é bem mais antiga. Mais precisamente, ela
remonta aos Gregos, à filosofia grega. Com efeito, segundo Kristeva,
"a filosofia grega forneceu (...) os princípios fundamentais segundo
os quais a linguagem foi pensada até aos nossos dias." (Kristeva,
s/d:149). Toda a filosofia teve (tem), desde o seu início, de confrontar-se
com esse fenómeno tipicamente humano que é a linguagem. A
etimologia confirma-nos, justamente, essa ligação entre filosofia
e linguagem: a palavra grega logos, que costuma traduzir-se por "razão",
pode também traduzir-se por "discurso" (a Filosofia aparece, desde
o seu início, como um "discurso racional" ou uma "razão discursiva").
Assim, tem todo o sentido que, na Grécia, os estudos sobre a linguagem
sejam inseparáveis da filosofia (da linguagem) - situação
que, no Ocidente, se vai manter até ao aparecimento de Peirce, no
século XIX. (ver Ducrot e Todorov, 1978: 66).
A partir dos finais do século XIX, a problemática
da linguagem vai interessar especialmente três disciplinas:
a) a Lógica - em que se destacam os trabalhos
de autores como Frege (cuja distinção entre "sentido" e "referência"
desencadeia todo um conjunto de discussões fundamentais), Russell,
Wittgenstein, Peirce (para quem a Lógica se identificava com a Semiótica),
Morris, Carnap, Quine, etc.
b) a Linguística - que Saussure, o seu
fundador, concebia como fazendo parte de uma ciência mais geral,
que deveria estudar a vida dos signos no seio da vida social, a que chamou
Semiologia ou "ciência dos signos"; a Saussure juntam-se autores
como Hjelmeslev, Jakobson, Barthes, Eco, Benveniste, Prieto, Ducrot, Chomsky,
etc.
c) a Filosofia da Linguagem - que inclui muitos
dos autores citados a respeito da Lógica, e outros mais recentes
como Austin, Searle, Ricoeur, Habermas, Perelman, Meyer, etc.
Da confluência (não isenta de conflitos)
dos trabalhos de lógicos, linguistas e filóso-fos da linguagem
acabaria por surgir o projecto de uma ciência geral dos signos, a
que Peirce, retomando um termo inventado por Locke no século XVII,
chamaria Semiótica, e Saussure chamaria Semiologia - termos que,
embora com a mesma etimologia (ambos derivam do grego semeion, "signo"
ou "sinal"), correspondem a orientações teóricas divergentes.
Na actualidade, o projecto semiótico continua por realizar - tão
grandes são a diversidade e a conflitualidade das abordagens da
linguagem que coexistem no seio do que se continua a chamar Semiótica.
Esta diversidade e esta conflitualidade não
impedem, no entanto, alguns consensos. É hoje consensual, entre
os especialistas da linguagem, que esta tem três funções
fundamentais: a comunicação indicativa/referencial de factos
e estados de coisas; a expressão da subjectividade e do pensamento;
a persuasão do interlocutor. Também é mais ou menos
admitida (embora discutida quanto à forma que deve assumir) a distinção,
introduzida por Morris (1) e retomada por Carnap, entre
três níveis da linguagem: a Sintaxe (que trata da relação
formal dos signos uns com os outros), a Semântica (que trata da relação
entre os signos e os objectos a que se aplicam) e a Pragmática (que
trata da relação entre os signos e os intérpretes).
(ver Meyer, 1992: 110).
A consciencialização e o estudo
do carácter pragmático da linguagem - inicialmente em polémica
com a linguística de inspiração Saussuriana, assente
na distinção entre língua e fala e centrada no estudo
da primeira - é uma das aquisições fundamentais da
actuais investigações sobre a linguagem. Mas, mais precisamente,
em que consiste a Pragmática?
Segundo Adriano Duarte Rodrigues, a Pragmática
dedica-se "ao estudo da dimensão interlocutiva da linguagem e da
sua relação com as outras dimensões da linguagem."
Esta dimensão interlocutiva pode, segundo o mesmo autor, ser definida
como "a relação de troca de discursos entre homens situados
num espaço específico de interlocução." Este
espaço de interlocução apresenta-se "como um espaço
agonístico, de luta de discursos, como uma logomaquia". (Rodrigues,
1996: 15) Segundo o mesmo autor, apesar de a dimensão interlocutiva
da linguagem ser "de todos os tempos e sociedades", o seu relevo actual
é indissociável dos seguintes factores: a "viragem logotécnica"
característica do mundo actual - viragem que se traduz num conjunto
de "procedimentos técnicos de tratamento e encenação
dos discursos, visando a elaboração de efeitos de sentido
e a sua imposição" (Rodrigues, 1996: 137, nota 4), e que
se materializa na expansão crescente das redes de informação
e telecomunicação; a necessidade de ultrapassagem da "crise
de fundamentos", aberta pela Modernidade (crise que, ao contrário
do que muitos supuseram, não foi resolvida pelo desenvolvimento
da ciência e da técnica), e que exige a interlocução
entre indivíduos e sociedades na procura dos consensos necessários;
a crescente tomada de consciência da importância da linguagem
na nossa relação com o mundo e com os outros. (Rodrigues,
1996: 16-19).
O presente trabalho, ao incidir sobre a problemática
da Argumentação, visa justamente tomar consciência
de alguns dos mecanismos envolvidos na dimensão interlocutiva da
linguagem. Ele constará de três partes fundamentais:
1ª Parte. Analisará sucintamente
o percurso que, da Retórica Antiga (e do seu progressivo apagamento),
nos conduz à (re-)descoberta contemporânea da retórica,
entendida como Teoria da Argumentação.
2ª Parte. Analisará algmas das teses
centrais de Oswald Ducrot sobre a natureza argumentativa da Língua,
configurando uma proposta que nos parece ser bem mais interessante que
a de Perelman.
3ª Parte. Tentará aplicar, a um texto
de Platão, as teses de Ducrot analisadas na II Parte.
II. DA RETÓRICA À TEORIA DA ARGUMENTAÇÃO
1. A RETÓRICA ANTIGA
Porque é que, sendo a dimensão interlocutiva
da linguagem um fenómeno de todos os tempos e de todas as sociedades,
como se referia acima, é o seu estudo científico (a Pragmática)
um fenómeno tão recente?
A partir de Platão, e salvo raras excepções,
a metafísica ocidental, ao olhar para a linguagem, tendeu a privilegiar
a sua dimensão apofântica, declarativa e locutória.
O seu ideal de linguagem (sempre perseguido e nunca alcançado),
é o lógico-matemático (lembremo-nos, a título
de exemplo, dos projectos cartesiano e leibniziano de uma "mathesis universalis",
da constituição da filosofia como uma "ciência de rigor",
para utilizarmos a expressão de Husserl). Esse projecto, irrealizado
pela metafísica, vai ser retomado e realizado pela ciência
moderna, a partir de Kepler, Galileu, Descartes e Newton - e, assim, seria
justificado dizermos que a ciência moderna é, também
neste aspecto, a verdadeira herdeira da metafísica platónica,
que aquela é a realização do sonho desta (2).
Saber é, para os Modernos, fazer Ciência;
e fazer Ciência consiste em formalizar e matematizar, eliminando
os usos "implícitos" ("equívocos") das linguagens naturais,
encaradas como "inadequadas" para traduzir as relações entre
os fenómenos naturais. O discurso científico, entendido como
discurso lógico-matemático, é o modelo totalitário
que a Modernidade se (nos) propõe.
Ora, segundo Perelman, a pretensão da
metafísica e da ciência moderna de tomarem o discurso declarativo
e unívoco como norma de descrição da linguagem, conduziu
a "negar as outras formas de discurso, ou a desvalorizá-las como
fazia Platão, acusando de sofístico todo o uso linguístico
não apoiado na essência, na definição, na clareza
a priori." (Perelman, citado em Meyer, 1992: 120). Ainda segundo o mesmo
autor, "a grande tradição metafísica ocidental, ilustrada
pelos nomes de Platão, Descartes e Kant, opôs sempre a busca
da verdade, objecto proclamado da filosofia, às técnicas
dos retóricos e dos sofistas, que se contentam em fazer admitir
opiniões tão variadas quanto enganadoras." (Perelman, 1993:
25).
Esta posição da metafísica
e da ciência ocidentais foi, seguramente, uma das principais causas
do obscurecimento e mesmo "recalcamento" daquela que foi uma das criações
fundamentais do génio grego: a Retórica, considerada por
alguns como "o primeiro testemunho, na tradição ocidental,
duma reflexão sobre a linguagem." (Ducrot e Todorov, 1978: 99).
E reflexão, nomeadamente, sobre a dimensão pragmática
ou interlocutiva da linguagem (3).
Encontramos a Retórica pela primeira vez
na Sicília, no século V AC. Segundo a lenda, Hiéron,
tirano de Siracusa, teria proibido aos seus súbditos o uso da fala.
Conscientes, assim, da importância da mesma, os sicilianos Corax
e Tísia teriam criado a Retórica, iniciando deste modo o
estudo da linguagem não enquanto "língua" mas enquanto "discurso"
(isto é, resultado de um acto de enunciação concreto
ou "fala").
A Retórica vem a ganhar uma enorme importância
na democracia ateniense, em que o saber falar, para persuadir e convencer,
se torna essencial: nos tribunais, nas assembleias políticas, nas
praças públicas, nos encontros sociais... A Retórica
assume, assim, no seu início, "um carácter pragmático:
convencer o interlocutor da justeza da sua causa." (Ducrot e Todorov, 1978:
99) , aparecendo como "a arte (technê) da persuasão pela palavra"
(Cardoso e Cunha, 1995: 29). Aquilo que se põe em primeiro plano,
com a Retórica, é o que, desde Austin, chamamos a "perfomatividade"
da linguagem. Entendida deste modo, a Retórica vai ter como principais
representantes os Sofistas - que se intitulam, justamente, "mestres de
Retórica" (4).
De "técnica de persuasão", a Retórica
procura transformar-se, com Aristóteles (que lhe dedica três
dos seus livros), em "ciência" - isto é, num corpo de conhecimentos,
categorias e regras - que, quem quiser bem falar e convencer, deve aplicar
no discurso. Segundo Aristóteles (de cuja concepção
indicaremos apenas algumas linhas essenciais), a Retórica visa descobrir
os meios que, relativamente a qualquer argumento, podem levar à
persuasão de um determinado auditório; o seu objecto é
o "verosímil" ou "provável" (tendo portando uma natureza
dialéctica, distinguindo-se da demonstração ou analítica,
que trata do "necessário" e "verdadeiro"). Aristóteles distingue
três tipos de discursos retóricos: o deliberativo (que se
volta para o futuro, procurando persuadir ou dissuadir em relação
a algo a fazer, sendo típico das assembleias políticas);
o judicial (que se volta para o passado, procurando acusar ou defender
em relação a actos mostrados como justos ou injustos, e é
típico dos tribunais); e o epidíctico (que se volta para
o presente e procura louvar ou condenar actos contemporâneos). Quanto
às divisões do discurso retórico, uma obra de retórica
ligeiramente posterior a Aristóteles enumera as seguintes: inventio
(sujeitos, argumentos, lugares, técnicas de persuasão e de
amplificação), dispositio (arrumação das grandes
partes do discurso: exórdio, narração, discussão,
peroração), elocutio (escolha da disposição
das palavras na frase, organização em pormenor), pronuntiatio
(enunciação do discurso) e memoria (memorização).
As Retóricas grega e romana vão manter, em traços
gerais, estas linhas da retórica de Aristóteles. Posteriormente,
e num processo que se arrasta até ao século XIX (século
que marca o seu desaparecimento), a Retórica vai perdendo influência
e reduzindo o seu campo, sofrendo as seguintes modificações:
perde o seu objectivo pragmático imediato, deixando de ensinar como
persuadir para passar a ensinar como fazer "belos discursos"; desinteressa-se
dos três géneros retóricos referidos atrás,
para passar a ocupar-se cada vez mais do género literário;
deixa de integrar, numa primeira fase, a pronuntiatio e a memoria, depois
a inventio e ainda mais tarde a dispositio, para ficar reduzida à
elocutio ou "arte do estilo", limitando-se as obras de Retórica,
nos séculos XVIII e XIX, ao tratamento das "figuras". Com o desaparecimento
da Retórica, são a estilística, a análise do
discurso e a linguística que herdam, dando-lhe uma nova forma, as
problemáticas que tinham constituído o objecto daquela disciplina
(5).
O declínio da Retórica inicia-se
a partir dos finais do século XVI, e deve-se, segundo Perelman,
à ascensão do pensamento burguês, assente no critério
da evidência - seja a evidência pessoal do protestantismo,
seja a evidência racional do cartesianismo ou seja ainda a evidência
sensível do empirismo (Perelman, 1993: 26) Nesse processo, o racionalismo
de Descartes marca, segundo Perelman, um momento essencial: ao erigir a
evidência (matemática) em critério de verdade, propondo
a extensão, a todo o saber, do método (e da linguagem) das
matemáticas, Descartes exclui a argumentação do campo
do saber em geral e da filosofia em particular: o que é "evidente"
só pode "demonstrar-se" (e aceitar-se), nunca discutir-se... (Perelman,
1987: 264).
2. PERELMAN E A "NOVA RETÓRICA"
Na actualidade, autores como Perelman e Toulmin
(que publicaram, no mesmo ano de 1958, as suas obras capitais sobre a Retórica,
respectivamente o Traité de l'Argumentation e The Uses of Argument)
visaram revalorizar a Retórica antiga, inserindo-a no quadro mais
geral de uma teoria da argumentação (6).
Assim, segundo Perelman, "a teoria da argumentação,
concebida como uma nova retórica (ou uma nova dialéctica),
cobre todo o campo do discurso que visa convencer ou persuadir, seja qual
for o auditório a que se dirige e a matéria a que se refere."
(Perelman, 1993: 24) Argumentar é "fornecer argumentos, ou seja,
razões a favor ou contra uma determinada tese. Uma teoria da argumentação,
na sua concepção moderna, vem assim retomar e ao mesmo tempo
renovar a retórica dos Gregos e dos Romanos, concebida como a arte
de bem falar, ou seja, a arte de falar de modo a persuadir e a convencer,
e retoma a dialéctica e a tópica, artes do diálogo
e da controvérsia." (Perelman, 1987: 234).
Das várias condições que,
segundo Perelman, qualquer argumentação implica, citemos
as seguintes: ela é situada, insere-se num determinado contexto,
dirige-se a um auditório determinado; o orador, pelo seu discurso,
visa exercer uma acção (de persuasão ou convicção)
sobre o auditório; os auditores devem estar dispostos a escutar,
a sofrer a acção do orador; querer persuadir implica a renúncia,
pelo orador, a dar ordens ao auditório, procurando antes a sua adesão
intelectual; essa adesão nada tem a ver com a verdade ou a falsidade
das teses que o orador procura defender, mas antes com o seu poder argumentativo;
argumentar implica, finalmente, pressupor que tão possível
é defender uma tese como a sua contrária. (Perelman, 1987:
234).
Nesta concepção da argumentação
aparece como central a noção de auditório, defini-do
por Perelman como "o conjunto daqueles que o orador quer influenciar mediante
o seu discurso." (Perelman, 1987: 237). Visando provocar a adesão
do auditório a certas teses, é fundamental para o orador
começar por conhecer quais as teses e os valores inicialmente admitidos
por esse auditório, pois eles deverão constituir o ponto
de partida do discurso. Assim, o erro mais grave que um orador pode cometer
é a petição de princípio - que consiste em
"supor admitida uma tese que se desejaria fazer admitir pelo auditório."
(Perelman, 1987: 239-240). Para conhecermos as teses e valores do auditório,
se este é constituído apenas por uma ou algumas (poucas)
pessoas, podemos recorrer ao questionamento - é a essa técnica
que Sócrates recorre nos diálogos platónicos. (Perelman,
1987: 240).
Concebida desta forma, a argumentação
(retórica) distingue-se claramente, segundo Perelman, da demontração
(lógica) (7).
Na argumentação, uma proposição
é sugerida por uma outra proposição ou pela situação
(entendendo-se esta como dinâmica); na demonstração,
tudo quanto faz com que a conclusão se imponha deve ser especificado
e tornar a conclusão necessária. A argumentação
assenta na equivocidade da linguagem natural; a demonstração
assenta na univocidade da linguagem simbólica. A argumentação
pode convencer ou não; a demonstração é um
cálculo em que, dadas certas premissas, somos obrigados a aceitar
uma certa conclusão.
Como já dissemos atrás, o discurso
lógico-matemático, ao impor-se na tradição
ocidental, tendeu a excluir, do seio da linguagem, as outras formas de
discurso, nomeadamente as que visam a expressão e a persuasão:
a retórica, a poética, o mito, a linguagem ordinária.
Ora, segundo Perelman, toda a linguagem, mesmo a lógico-matemática
(a científica em geral), tem um carácter argumentativo ou
retórico - ainda que procure obscurecer tal facto. Como acentua
Meyer, "em linguagem de Austin e Searle, dir-se-ia que a formalização
é um acto ilocutório de que qualquer referência ao
ilocutório se quer ausente (...)." (Meyer, 1992:120). O discurso
científico, como qualquer outro discurso, implica a relação
com um auditório, a procura da adesão desse auditório
a determinadas teses, a utilização de técnicas retóricas
que visam suscitar essa adesão em termos de valores-relevantes ou
de valores-referência. Dizer "É verdade que...", ou "É
evidente que...", pondo em jogo valores do auditório como a "verdade"
ou a "evidência", não é a mesma coisa que afirmar,
pura e simplesmente, um certo "conteúdo".(Meyer, 1992: 121).
III PARTE. DUCROT: A ARGUMENTAÇÃO NA LÍNGUA
1. ARGUMENTAÇÃO E RACIOCÍNIO
Oswald Ducrot (8) defende uma
perspectiva intrinsecalista da Pragmática, pretendendo conciliar
a perspectiva pragmática com a Língua. Assim, Ducrot recusa
claramente a distinção entre Semântica e Pragmática,
entre o sentido do enunciado e a intenção da enunciação.
No dizer de Ducrot, "le dire est inscrit dans le dit." (Ducrot, 1980: 9).
E acrescenta Ducrot: se entendermos a Semântica como o estudo do
sentido e a Pragmática como o estudo da acção, "é
preciso dizer, pelo menos, que toda a semântica comporta um aspecto
pragmático." (Ducrot, 1984b: 457).
Dentro da concepção intrinsecalista
da Pragmática (que não é, hoje em dia, uma realidade
homogénea), Ducrot inscreve-se na chamada concepção
integrada da Pragmática, que apresenta as seguintes propostas fundamentais:
a) distinção entre frase e enunciado (e consequente distinção
entre significação da frase e sentido do enunciado); b) a
noção da língua como "instrução"; c)
a noção de pragmática argumentativa, fundada na existência
de topoi ou lugares do processo argumentativo; d) a noção
de "polifonia enunciativa". (Rodrigues, 1996: 30) (9).
Ducrot apresentou pela primeira vez a sua teoria
da argumentação na obra La preuve et le dire, de 1973, dedicada
às relações entre lógica e linguagem. Nesta
obra, a argumentação é vista como relevando de uma
"lógica da linguagem", entendendo-se esta como um conjunto de "regras
internas ao discurso" - regras que comandam o encadeamento dos enunciados
que constituem esse discurso, orientando-o numa certa direcção
ilocutória. Por sua vez, o estudo dos raciocínios pertencerá
ao domínio da "lógica e linguagem", centrado na confrontação
entre a linguagem natural e a linguagem artificial/simbólica dos
lógicos, com o objectivo de analisar as convergências e divergências
entre os dois tipos de linguagens. (ver Ducrot, 1980: 12/13).
Assim, para Ducrot (como para Perelman), argumentação
e raciocínio relevam de duas ordens diferentes: a primeira, da ordem
do "discurso; o segundo da ordem da "lógica". (Ducrot, 1980: 10).
Um raciocínio (por exemplo um silogismo)
distingue-se de um discurso, nos seguin-tes aspectos: os seus enunciados
são independentes uns dos outros, exprimindo cada um uma certa "proposição"
(que designa um estado ou um conjunto de estados do mundo, real ou virtual);
o encadeamento dos enunciados não se funda nos próprios enunciados,
mas nas proposições que eles veiculam, sobre o que dizem
ou supõem acerca do mundo. Num discurso, tudo se passa ao contrário:
o encadeamento dos enunciados tem uma "origem interna", funda-se sobre
a natureza ou sentido do próprio enunciado, nada tendo a ver com
a sua relação com estados de coisas. Ora, "... le thème
central de la théorie argumentative est que le sens d'un enoncé
contient une allusion à son eventuelle continuation: il lui est
essentiel d'appeler tel ou tel type de suite, de prétendre orienter
le discours ultérieur dans telle ou telle direction." (Ducrot, 1980:
10/11) Por outras palavras: o enunciado é argumentativo não
pelo que ele diz acerca do mundo, mas pelo que ele próprio é,
considerado em si mesmo. Tal não significa que se saiba o que o
vai seguir; mas sabe-se que ele deve ser seguido por algo, tem um seguimento
"pretendido" (outro enunciado, o silêncio, mesmo um soco...). Assim,
a teoria argumentativa liga-se ao que se pode chamar "estruturalismo do
discurso ideal", que Ducrot define como "théorie générale
(...) selon laquelle une entité linguistique tire toute sa réalité
du discours où elle prend place - non pas de celui auquel elle est
empiriquement incorporée, mais de celui qu'elle exige, qu'elle revendique.
Et c'est cette revendication qui la constitue". (Ducrot, 1980: 11).
Ao mesmo tempo, segundo Ducrot, a teoria argumentativa
liga-se à Retórica aristotélica dos Tópicos.
Nesta obra, Aristóteles analisa todo um
conjunto de estratégias conclusivas que não se integram na
raciocínio lógico. Essas estratégias centram-se nas
relações entre enunciados aceites como prováveis pelo
bom senso de um época - relações que fazem com que,
a partir de certos enunciados, sejamos orientados em direcção
a outros (o que nos permite influenciar os juízes num tribunal ou
os cidadãos numa assembleia política). Ora, segundo Ducrot,
os seus trabalhos e os de Anscombre permitem generalizar, a toda a Língua,
essas relações entre enunciados tematizadas pela Retórica
antiga: "Selon nous, tous les énoncés d'une langue se donnent,
et tirent leus sens du fait qu'ils se donnent, comme imposant à
l'interlocuteur un type déterminé de conclusions. Toute parole,
au fond d'elle-même, est publicitaire.(...) Elle est publicitaire
par le fait que sa valeur interne se confond avec la suite qu'elle réclame.
Ce qu'elle veut dire, c'est ce qu'elle veut faire dire à l'autre.
Ainsi nos énoncés se présentent, indépendamment
même de leur aptitude à fonder un raisonnement, comme l'origine
ou le relais d'un discours argumentative." (Ducrot, 1980: 11/12).
Esta afirmação marca claramente
o contraste da concepção de Ducrot com a de Perelman, para
quem a conclusão da argumentação reside na adesão
do auditório a uma tese, partindo dos valores desse mesmo auditório
e pondo-os em jogo ao nível do argumento. Para Ducrot o argumento
é, desde logo, linguisticamente portador de uma conclusão,
sugerida pelas variáveis argumentativas imanentes à frase
- quer o auditório concorde quer não concorde com essa conclusão.
Deste modo, segundo Meyer, Ducrot pretende "mostrar como é que a
linguagem natural marca uma conclusão, a sugere, a implica, a suscita,
a pressupõe, sem dizer expressis verbis" (Meyer, 1992: 122).
2. OPERADORES E CONECTORES ARGUMENTATIVOS
A argumentação discursiva põe
em jogo determinados "dispositivos" existentes na língua, designados
operadores e conectores argumentativos.
Vejamos, através de um exemplo, a forma
como funcionam os operadores argumentativos. Os enunciados "Não
são mais que oito horas" e "Já são oito horas" são
diferentes do ponto de vista argumentativo (embora equivalentes do ponto
de vista lógico) na medida em que, com o segundo enunciado, posso
encadear, por exemplo, "Temos de nos apressar" - o que já não
posso fazer com o primeiro, que sugerirá, por exemplo "Ainda vamos
a tempo". Assim, os operadores argumentativos transformam os enunciados
referenciais em premissas das quais podemos tirar uma conclusão
e não outra, situam o enunciado numa certa direcção,
implicitam determinadas conclusões.
São ainda os operadores argumentativos
que permitem o encadeamento dos actos ilocutórios que, como os elos
de uma cadeia, constituem o discurso. Segundo Ducrot, o acto ilocutório
opera um tipo especial de transformação: "trata-se sempre
de uma transformação de ordem jurídica, da criação
de direitos ou de deveres para os participantes do acto de fala." (Ducrot,
1984b: 445). Idealmente, pelo menos, uma pergunta "exige" uma resposta,
uma ordem a sua obediência, uma promessa o seu cumprimento, etc.
Quanto aos conectores argumentativos, eles são
os dispositivos (advérbios, conjun-ções e locuções
de subordinação ou de conjunção, etc.) que
permitem a conexão ou a ligação recíproca de
dois ou mais enunciados. Veja-se o seguinte exemplo: "Como não me
apetece estudar, vou dar uma volta" é equivalente a "Vou dar uma
volta, visto que não me apetece estudar" porque, em ambos os casos,
usamos conectores equivalentes (como, visto que) para ligar "não
me apetece estudar" e "vou dar uma volta". Numa argumentação,
os conectores podem ligar as premissas entre si, as premissas com a conclusão
e a conclusão com as premissas.
3. CLASSES E ESCALAS ARGUMENTATIVAS
As teses de Ducrot inscrevem-se, segundo ele,
na linha da semântica linguística que "vise à introduire
dans la langue elle-même un certain nombre de phénomènes
liés à l'ennonciation et relégués auparavant
dans la parole." (1980: 15)
A sua tese geral é a seguinte: muitos
(todos?) actos de enunciação têm funções
argumentativas, isto é, visam levar o destinatário a uma
certa conclusão ou a desviá-lo dela. Essa função
argumentativa implícita tem marcas explícitas na própria
estrutura da frase: morfemas e expressões que, para além
do seu valor informativo, servem (sobretudo) para dar ao enunciado uma
certa orientação argumentativa. Alguns desses fenómenos,
já estudados, referem-se por exemplo aos morfemas puisque, mais
e même. Assim:
a) "A puisque B": subentende que A implica B,
sendo tal implicação reconhecida como tal. Ducrot dá
o seguinte exemplo: ao ouvir "Il est venu puisque sa voiture est en bas",
eu deduzo "Il est venu" (A) de "sa voiture est en bas" (B). Algo completamente
diferente se passa com "A parce B": se eu disser "Il est vénu parce
qu'il désirait me voir", eu afirmo que o desejo de me ver (B) foi
a causa de ele ter vindo (A), estabeleço uma relação
de causalidade entre A e B. (Ducrot, 1972: 30/32)
b) "A mais B": subentende que A e B são
argumentos contrários em relação a uma conclusão
r (A apoiando r e B apoiando ~r) , mas tendo B mais força em relação
a ~r do que A em relação a r - de tal forma que o conjunto
"A mais B" vai no sentido de ~r. Assim, se eu disser, por exemplo, "O João
é inteligente, mas pouco trabalhador", eu subentendo que "O João
é pouco trabalhador"(B) é argumentativamente mais forte do
que "O João é inteligente" (A) para contrariar a conclusão
possível "O João vai ter boas notas" (r) - inclinando-me,
deste modo, para "O João não vai ter boas notas" (~r) (10).
c) "A et même B": subentende que B, indo
na mesma direcção argumentativa de A, em apoio de uma mesma
conclusão r, é no entanto um argumento decisivo em relação
a A. Ducrot dá o seguinte exemplo: se eu disser "Jacques a fait
ses devoirs et il a même mangé sa soupe sans rechigner", "Jacques
a fait ses devoirs" (A) e "Jacques a mangé sa soupe sans rechigner"
(B), implicitam uma mesma conclusão r (por exemplo "O Jacques portou-se
muito bem"), mas B tem uma força decisiva quando comparado com A.
(ver Ducrot, 1972: 29; 1980: 15 sgs).
A análise destes exemplos leva Ducrot
a introduzir dois conceitos fundamentais para explicitar melhor a função
argumentativa da linguagem: os de classe argumentativa e escala argumentativa.
a) Classe argumentativa (CA): "Nous dirons qu'un
locuteur - en entendant para ce mot un sujet parlant inséré
dans une situation de discours particulière - place deux enoncés
p et p' dans la CA determinée para un enoncé r, s'il considère
p et p' comme des arguments en faveur de r." (Ducrot, 1980: 17). Ducrot
dá o exemplo seguinte: na afirmação "O Pedro, e mesmo
o Paulo, vieram à reunião", p seria "O Pedro veio à
reunião", p' seria "O Paulo veio à reunião", e r poderia
ser "A reunião foi um sucesso".
b) Escala argumentativa (EA): "Supposons qu'un
locuteur place p et p' dans la CA determinée par r. Nous dirons
qu'il tient p' pour un argument supérieur à p (ou plus fort
que p) par rapport à r, si, aux yeux de ce locuteur, accepter de
conclure de p à r implique qu'on accepte de conclure de p' à
r, la réciproque n'étant pas vraie." (Ducrot, 1980: 18).
Veja-se o que acontece com même (mesmo). Dizer "Ele tem a licenciatura
e mesmo o doutoramento", implica supor que existe um certo r (por exemplo
"Ele é competente"), determinando uma escala argumentativa em que
p'- "Ele tem o doutoramento", é argumentativamente superior a p
- "Ele tem a licenciatura". Assim, eu dou a entender que a conclusão
r pode ser acreditada quer por p quer por p', mas mais por p' do que por
p. Por outras palavras: se p implica concluir r, muito mais o implica p',
mas não o inverso.
A definição de EA pode ser generalizada
às frases, da seguinte forma: "Nous dirons que la phrase p' est
plus forte que p si toute classe argumentative contenant p contient aussi
p', et si p' y est chaque fois supérieur à p." (Ducrot, 1980:
20).
Há vários tipos de frases que obedecem
à defnição anterior - e que constituem, portanto,
exemplos de escalas argumentativas. Ducrot analisa os seguintes tipos:
1º Tipo. As frases ligadas por presque (quase):
Seja p' - "É uma obra de arte" e p (presque p') - "É quase
uma obra de arte"; p' é mais forte que p em relação
a um certo r (por exemplo: "O quadro pintado pelo João é
muito bonito"). Por outro lado, presque p' opõe-se a à peine,
pertencem normalmente a classes argumentativas diferentes. Assim, enquanto
por exemplo "Je suis presque en retard" indicia negligência, "Je
suis à peine en retard" pode indiciar boa-vontade. (Ducrot, 1980:
21).
2º Tipo. Frases que constituem uma escala
argumentativa absoluta, como as que contêm os adjectivos que, na
língua francesa, marcam a temperatura. Por exemplo "Il fait frais",
"Il fait froid" e "Il fait glacial", constituem uma escala ordenada do
menos para o mais "frio", algo análogo acontecendo com a escala
do "calor", inversa da anterior ("Il fait assez chaud", "Il fait chaud"
e "Il fait brulant"). Estas EA pertencem, também, a CA diferentes
e incompatíveis: pode dizer-se "Il fai assez chaud, il fait même
très chaud", mas não "Il fait frais, et même assez
chaud". Esta propriedade pode ser utilizada numa situação
argumentativa: suponhamos que queremos refutar uma tese B, se A; podemos
mostrar que uma premissa análoga a A, mas mais forte que A, seria
incompatível com B - o que seria o caso em "Você pensa que
a escola funcionaria melhor se se aligeirassem os programas. A escola ideal,
para si, será portanto uma escola onde nada se ensina." (Ducrot,
1980: 22/23)
3º Tipo. Frases em que aparecem peu e pas
du tout: "Je suis peu inquiet" e "Je ne suis pas inquiet (du tout)" estão
ordenadas por ordem crescente da força argumentativa, e opôem-se
à CA de "Je suis un peu inquiet" e "Je suis très inquiet".
Utilizando esta propriedade, podemos construir um exemplo que mostra bem
a diferença entre compatibilidade lógica e argumentativa:
"Il a peu bu" e "Il n'a pas bu du tout" são contraditórios
do ponto de vista lógico, mas argumentativamente vão na mesma
"direcção" ("Ele não podia estar bêbedo, porque
ou bebeu pouco ou não bebeu mesmo nada"). (Ducrot, 1980: 24)
4º Tipo. Frases que contêm pleine
e vide: "La bouteille est à moitié pleine" e "La bouteille
est à moitié vide" designam a mesma realidade objectiva (têm
o mesmo valor lógico de verdade), mas não pertencem à
mesma CA - no primeiro caso, estamos a referir-nos ao "enchimento" (e a
frase é menos forte que "La bouteille est pleine"); no segundo caso
estamos a referir-nos ao "esvaziamento" (e a frase é menos forte
que "La bouteille est vide").
Também a negação e a implicação
(argumentativas) merecem a atenção de Ducrot. A negação
obedece, segundo Ducrot, a três grandes leis :
1ª lei. Se p pertence à CA determinada
por r, ~p pertence à CA determinada por ~r. Exemplo: se r for "Pedro
é inteligente" e p for "Pedro conseguiu tirar a licenciatura", então
~p - "Pedro não conseguiu tirar a licenciatura" irá no sentido
de ~r - "Pedro não é inteligente".
2ª lei. A EA onde se encontram os enunciados
negativos (determinada por ~r) é inversa da EA dos enunciados afirmativos.
Exemplo: seja r "Pedro é inteligente" e p "Pedro tirou a licenciatura"
e p' (mais forte que p) "Pedro tirou o doutoramento"; nesse caso, a EA
de ~r será (da menor para a maior força argumentativa) ~p'-
"Pedro não tirou o doutoramento" e ~p- "Pedro não tirou a
licenciatura". (ver Ducrot, 1980: 27).
3ª lei ("Lei do abaixamento"): em muitos
casos, a negação descritiva (11) é
equivalente a "menos que". Exemplo: Se eu digo "Il ne fait pas froid",
eu excluo que o tempo esteja mais que "frio" (por exemplo "glacial" ).
Segundo Ducrot, esta lei põe dificuldades, porque não determina
propriamente uma escala argumentativa nem uma graduação física,
mas algo intermédio entre as duas. Essas dificuldades levam Ducrot
a formular a "lei do abaixamneto" do seguinte modo: "On dira que si un
enoncé p d'une échelle E est vérifié dans une
zone I de la graduation homologue à E, l'énoncé ~p
est vérifié dans, et seulement dans, la zone de cette graduation
qui est inférieure à I." (Ducrot, 1980: 32)
Ainda sobre a negação, Ducrot faz
notar que ela pode ser uma negação implícita, dando
o seguinte exemplo: "Je suis encore fatigué de mon voyage", implica
a afirmação "Je suis fatigué de mon voyage" e o pressuposto,
que é uma negação implícita da afirmação
anterior, "Cette fatigue va ultérieurement disparaître". Generalizando
sobre o encore "continuativo", diz Ducrot: "... tout enoncé du type
X est encore dans l'état E au moment t indique à la fois
un posé: "X est dans l'état E en t" (...) et un pressuposé:
"A un moment ultérieur tx, X ne sera pas dans l'état E."
(Ducrot, 1980: 40).
Quanto à implicação, Ducrot
começa por observar que o enunciado implicativo é do tipo
B se A, significando que A pertence a uma CA determinada por B, que A é
um argumento para uma conclusão B. Já o contrário
acontece no enunciado concessivo B mesmo se A, em que se pressupõe
que A é um obstáculo a B, ou seja, um argumento a favor de
~B. Para ilustrar a diferença, vejam-se os seguintes exemplos dados
por Ducrot: "Pierre viendra si Jacques vient" e "Pierre viendra même
si Jacques vient". Aliás, segundo Ducrot, um estudo de J.C. Anscombre
terá mesmo mostrado que a maneira mais "natural" de negar B si A
é Même si A, ~B como se observa no pequeno diálogo
seguinte: "Est-ce que Pierre prendra sa voiture si la route est bonne?
- Non, même si la route est bonne, il viendra en train." (Ducrot,
1980: 48/49).
4. O PRESSUPOSTO E O IMPLÍCITO
A problemática da pressuposição
foi inicialmente levantada por Frege, Russel e Strawson, fazendo os linguistas
contemporâneos um uso cada vez mais espalhado deste conceito. (Ducrot,
1972: 27).
Para esclarecer o conceito de pressuposição,
Ducrot dá o seguinte exemplo: o enunciado "Foi Pedro quem veio"
informa-me, do ponto de vista semântico, que
(1) Alguém veio;
(2) Apenas uma pessoa veio;
(3) Pedro veio.
Enquanto (3) é a "posição"
(afirmação), (1) e (2) representam pressuposições,
independentes da verdade ou da falsidade do enunciado de partida. O que
se verifica facilmente aplicando o teste da negação(12):
"Não foi Pedro quem veio" continua a pressupor (1) e (2). Qual a
natureza da pressuposição? Utilizando a terminologia de Austin
devemos dizer, segundo Ducrot, que a pressuposição é
um acto ilocucionário.
É certo que podemos tentar recorrer à
noção de "evidência" para explicar a pressuposição;
mas pressupor uma proposição não é a mesma
coisa que declará-la evidente: "L'evidence, dans le cas de la préssuposition,
est jouée." (Ducrot, 1972: 28). Que significa "pôr em jogo"
uma evidência? Significa tomá-la como "pano de fundo" do diálogo
entre os interlocutores. É diferente contestar o que o interlocutor
"põe" (afirma) e contestar o que ele "pressupõe". Contestar
o que o interlocutor "põe" é efectuar uma negação;
contestar o que o interlocutor pressupõe é situar-se (e ao
seu interlocutor) fora do espaço da interlocução.
Os pressupostos são o "quadro do diálogo" - quadro que se
aceita ou se recusa, mas que não se pode discutir. Quebrar os pressupostos
representa sempre um acto de "violência simbólica", equivalendo
a acabar a conversa - ou a dar-lhe um novo rumo, assente em novos pressupostos.(Rodrigues,
1996: 126).
Ao contrário de Strawson e de Searle,
para quem o pressuposto de um enunciado é a condição
do emprego desse mesmo enunciado, para Ducrot "il s'agit d'un effet illocucionaire
attaché conventionnellement à l'énoncé." (Ducrot,
1972: 29). Longe de se lhe juntar a partir do exterior, o pressuposto tem
raízes "na estrutura interna da língua, mesmo no sentido
mais restrito do termo (isto é, no léxico e na sintaxe)".
(Ducrot, 1984: 406).
Assim, o sentido "explícito" constitui
apenas um dos niveis da semântica das línguas naturais, e
sob esse nível podem "dissimular-se" várias camadas de significações
implícitas (Ducrot, 1984: 394) (13). Veja-se um
outro exemplo de Ducrot: o enunciado "O Pedro deixou de fumar" implica
que
(1) Dantes o Pedro fumava;
(2) No momento em que estou a falar, o Pedro
não fuma.
Destas duas expressões, apenas (1) constitui
um pressuposto, constituindo (2) uma implicitação. O exemplo
mostra claramente que o pressuposto "é dito de uma forma particular:
não é apresentado como aquilo que se quer dizer.". Mais do
que afirmado, o pressuposto aparece como "insinuado". Por isso ele pode
ser considerado um "implícito", ou seja, um "querer dizer que é,
ao mesmo tempo, querer não ter o ar de dizer.". A pressuposição
apresenta, assim, duas características fundamentais e inseparáveis:
o seu carácter intencional e o seu carácter implícito.
(Ducrot, 1984: 398).
Foram Frege e Collingwood quem, pela primeira
vez, fez notar que a pressuposição é preservada quer
pela negação quer pela interrogação. Apesar
dos desacordos quanto à definição do conceito de "pressuposição",
todos os "pragmáticos" aceitam, hoje em dia, a interrogação
e a negação como critérios para determinar os pressupostos.
A estes critérios, Ducrot acrescenta um outro - o de encadeamento.
(ver Ducrot, 1984: 401 sgs).
Vejamos cada um destes critérios, aplicando-os
ao enunciado "O Pedro deixou de fumar":
1. Critério da interrogação:
"O Pedro deixou de fumar?" continua a pressupor que "Dantes o Pedro fumava".
2. Critério da negação:
"Pedro não deixou de fumar" continua a pressupor que "Dan-tes o
Pedro fumava".
3. Critério do encadeamento: baseia-se
na hipótese, posta por Ducrot, de que "é constitutivo do
sentido de um enunciado dar directivas para a sequência do discurso
ou do diálogo, antecipar, por assim dizer, a sua própria
continuação, ou, por outras palavras, ter uma orientação
argumentativa." (Ducrot, 1984: 403). Adriano Duarte Rodrigues explicita
este critério da seguinte forma: "A pressupõe B, se B for
o enquadramento em que se devem situar os enunciados susceptíveis
de serem encadeados com A." (Rodrigues, 1996: 125). Ducrot dá os
seguintes exemplos: no diálogo "O Pedro deixou de fumar. - Tanto
melhor!", o enunciado "Tanto melhor" continua a pressupor que "Dantes,
o Pedro fumava"; também a afirmação "O Pedro está
bem porque deixou de fumar", que encadeia dois enunciados, continua a pressupor
que "Dantes o Pedro fumava". (Ducrot, 1984: 403).
Ducrot distingue duas modalidades do implícito:
o do enunciado e o da enunciação. Os implícitos do
enunciado consistem "em deixar não expressa um afirmação
necessária, de maneira evidente, para a completude ou para a coerência
do enunciado, afirmação à qual a sua ausência
confere uma presença de um tipo particular: a proposição
implícita assinala-se - e assinala-se apenas - por uma lacuna no
encadeamento das proposições explícitas" (Ducrot,
citado em Rodrigues, 1996: 122). Assim, os implícitos do enunciado
são proposições que, apesar de estarem ausentes, são
essenciais ao encadeamento do discurso. Por sua vez, os implícitos
da enunciação, que não analisaremos aqui, têm
a ver "com aquilo que o locutor dá a entender ou subentende pelo
próprio facto de falar ou de não falar, de dizer ou de calar."
(Rodrigues, 1996: 122/123).
IV. ANÁLISE DE UM TEXTO DE PLATÃO
1. SITUAÇÃO DE DISCURSO (14)
Platão, que ataca no Górgias a Retórica
sofística - considerando-a demagógica e propícia à
persuasão das multidões ignorantes - defende, no Fedro, uma
Retórica própria do filósofo, que procura convencer
todos os seres dotados de "Razão". A palavra "Razão" designa,
a partir de Platão, o auditório ideal e universal, constituído
por todos os seres "racionais" ou "dotados de razão". Parte-se do
princípio de que o que é racionalmente "evidente", o é
para a "Razão" de todos os seres "racionais", passe o pleonasmo.
É esta característica que, segundo Perelman, permite distinguir
entre os discursos que visam persuadir (isto é, os que visam a adesão
de um auditório particular), e os discursos, como o filosófico
(e mais tarde o científico), que visam convencer (isto é,
os que procuram a adesão de um auditório universal). (Perelman,
1987: 239).
No entanto, Platão, "ao propor o diálogo
maiêutico como o método do conhecimento da verdade, do desvendamento
do ser, e da denúncia dos mecanismos discursivos de manipulação
e de coacção, não podia deixar de pôr também
em cena dispositivos logomáquicos visando o convencimento dos seus
interlocutores." (Rodrigues, 1996: 16)
Com o objectivo de tentar esclarecer alguns desses
"dispositivos logomáquicos", escolhi um pequeno extracto do Livro
I de A República, a que irei tentar aplicar algumas das teses fundamentais
de Ducrot, analisadas na I Parte deste trabalho.
A justiça, a coragem (tratada no Laques),
a temperança (tratada no Cármides) e a piedade (tratada no
Êutifron) constituíam para os Gregos, desde Ésquilo
e Píndaro, o grupo das virtudes cardiais. Para completar a análise
desse conjunto, faltava a Platão tratar a justiça - tarefa
que é levada a cabo no Livro I de A República. Ao longo do
diálogo, Sócrates vai examinando e refutando as definições
de justiça que vão sendo propostas pelos interlocutores,
nomeadamente:
- a de Céfalo ("dizer a verdade e restituir
o que se tomou", 331d)
- a de Polemarco (que adopta a definição
do poeta Simónides: "restituir a cada um o que se lhe deve", 331e
)
- a do Sofista Trasímaco ("a conveniência
do mais forte", 338c).
A conversa decorre no Pireu, em casa de Polemarco.
Estão presentes (embora nem todas participem na discussão),
as seguintes personagens: Sócrates, o sofista Trasímaco,
Polemarco e seus irmãos Lísias e Eutidemo, Céfalo
(pai dos três anteriores), Carmantidas e Clitofonte (talvez discípulos
de Trasímaco), Adimanto e Gláucon (irmãos de Platão)
e Nicérato (15).
O extracto (em Anexo a este trabalho) refere-se
ao momento em que Sócrates procura refutar a definição
que o sofista Trasímaco dá de justiça, e tem como
interlocutores apenas estas duas personagens.
2. A LÓGICA DA ARGUMENTAÇÃO
Gostaria de dizer, como nota prévia ao
que vai seguir-se, que a análise que farei se inspira, nas suas
linhas gerais, no modelo que Ducrot aplica, na sua obra Les Échelles
Argumentatives, a textos de Pascal e de Montesquieu. No entanto, e diferentemente
de Ducrot (que utiliza o cálculo de predicados), decidi recorrer
à lógica proposicional para tentar apreender a lógica
da argumentação de Platão (mas tendo sempre em atenção
que o que se pretende não é, propriamente, uma análise
"lógica" do texto, sendo esta apenas um meio para a clarificação
dos "dispositivos logomáquicos" atrás referidos). Gostaria
ainda de acrescentar que, numa primeira fase (16), reduzi
o texto de Platão a um conjunto de proposições ("conteúdos
proposicionais") - processo que, se bem que simplificador, pode ser também
algo redutor.
O extracto em análise pode ser dividido
em três partes fundamentais:
1ª. Parte. Tese de Trasímaco (linhas 1-2): A justiça não é outra coisa senão a conveniência do mais forte. Esta tese é posteriormente explicitada, pelo seu autor, como A justiça é a conveniência dos governantes (17).
2ª Parte. Justificação, por parte de Sócrates, da necessidade de "examinar" (implicitamente, de refutar) a tese de Trasímaco - e acordo de Trasímaco em relação a esse procedimento (linhas 3-6).
3ª Parte. Refutação, por Sócrates, da tese de Trasímaco, recorrendo ao célebre esquema pergunta-resposta a que se costuma chamar "maiêutica" (linhas 7-22). Essa refutação pode ser sintetizada nas seguintes proposições:
p - Obedecer aos que governam é acto de
justiça.
(e) (dado que se recusa implicitamente q - Os
governantes são infalíveis )
~q - Os governantes são capazes de cometer
algum erro.
(portanto)
r - Os governantes formulam bem algumas leis.
(e)
~r - Os governantes formulam mal algumas leis.
(mas)
s - Formular bem as leis é promulgar aquilo
que convém aos governantes.
(e)
~s - Formular mal as leis é promulgar
aquilo que é prejudicial aos governantes.
(mas)
t - O que os governantes promulgam tem de ser
feito pelos súbditos.
(e)
u - A justiça é (consiste em) os
súbditos fazerem o promulgado pelos governantes.
(logo ) ("segundo o teu raciocínio")
v - É justo fazer aquilo que convém
ao mais forte.
(mas também)
~v - É justo fazer o que é prejudicial
ao mais forte.
Em relação ao anterior, devemos
ter em conta o seguinte:
a) Colocámos, entre parêntesis,
os conectores utilizados por Platão no seu texto;
b) p é equivalente à conjunção
de t e u, pelo que estas representam uma repetição (lógica,
que não argumentativa) de p;
c) q já é, por sua vez, a conclusão
do seguinte raciocínio implícito, sugerido por Sócrates
e admitido, sem o pôr em questão, por Trasímaco:
Os governantes são infalíveis ou
são capazes de cometer algum erro.
(Ora) Os governantes não são infalíveis
(implícita na resposta de Trasímaco).
(Logo) Os governantes são capazes de cometer
algum erro.
Este silogismo disjuntivo obedece ao modelo chamado modus tollendo ponens, cujo esquema formal é o seguinte:
Ou p ou q
Ora não p
Logo q.
Se quiséssemos traduzir a refutação
de Sócrates em termos de lógica proposicional (tomando em
conta os conectores por ele utilizados), teríamos o seguinte esquema
lógico(18):
íp Ù [(~s Þ ~r) Ù
(~r Þ ~q)]ýÞ ~v, o que é equivalente a (p Ù
~s) Þ ~v.
O que, revertido para a linguagem da lógica aritotélica, com algumas adaptações que não alteram o fundamental, daria o seguinte silogismo regular - que resume, em meu entender, o essencial da lógica da refutação de Sócrates:
É justo obedecer aos (isto é, fazer
o que mandam fazer os) governantes.
(Ora) Os governantes promulgam (isto é,
mandam fazer) o que lhes é prejudicial.
(Logo) É justo fazer o que é prejudicial
aos governantes.
Sendo assim, podemos concluir que as proposições
~q, ~r, t e u não são logicamente necessárias para
estabelecer a conclusão ~v, que refuta a tese de Trasímaco
- mas elas são imprescindíveis do ponto de vista argumentativo.
Quanto a t e u, sendo uma repetição
de p (uma "tautologia"), destinam-se a confir-mar, mais uma vez, que Trasímaco
aceita p como um dos fundamentos da sua tese, sendo sua a responsabilidade
pelas consequências que, a partir da sua conjunção
com ~s, Sócrates se prepara para tirar...
Fica assim mais uma vez demonstrado que, como
pretende Ducrot, a argumentação, ainda que envolva um conjunto
de operações lógicas, nunca se pode reduzir a essas
operações. Com efeito, a lógica não nos dá
conta do essencial da argumentação de Sócrates, como
iremos vendo a seguir...
3. CLASSES E ESCALAS ARGUMENTATIVAS
Utilizando o conceito de Classe Argumentativa (CA) vemos que, dos enunciados anteriores, alguns constituem argumentos a favor de v , enquanto outros constituem argumentos a favor de ~v, formando CA opostas:
CA de v: q, r, s;
CA de ~v: ~q, ~r, ~s.
Deste modo, todo o argumento a favor de v é
um argumento contra ~v, e vice-
-versa), não podendo coexistir argumentos
das duas CA (em consequência, não teria sentido, no contexto
desta argumentação, dizer por exemplo "Formular mal as leis
é promulgar o que convém aos governantes").
Por outro lado, utilizando o conceito de Escala Argumentativa (EA), podemos dizer que, no seio de cada uma das CA, aos diferentes enunciados correspondem diferentes forças argumentativas:
EA de v: s>r> q (s tem maior força argumentativa
que r e este que q);
EA de ~v: ~s <~r <~q (~s tem menor força
argumentativa que ~r e este que ~q).
Tal significa que, dentro de cada uma das CA,
concluir a partir de um argumento com menor força argumentativa
(por exemplo de q para v), implica concluir também a partir de um
mais forte (por exemplo de s para v), mas não o inverso.
Esta distribuição dos enunciados
pelas CA e EA obedece às duas primeiras leis da negação,
enunciadas por Ducrot e vistas mais acima. No presente contexto, essas
leis devem ser lidas da seguinte maneira:
1ª lei. Se q, r e s pertencem à CA
determinada por v, então ~q, ~r e ~s pertencem à CA determinada
por ~v.
2ª lei. A EA onde se encontram os enunciados
negativos ~q, ~r e ~s, determinada por ~v, é inversa da EA dos enunciados
afirmativos q, r e s, determinada por v.
Por outro lado, os enunciados de cada CA vão-se
encadeando uns nos outros de acordo com a regra da implicação.
Vejamos
o caso da CA de ~v: ~s é um argumento para ~r, ~r é um argumento
para ~q, ~s, ~r e ~q, em conjunção com p, são argumentos
para a conclusão ~v (estas observações são,
mutatis mutandis, aplicáveis à CA de v).
A argumentação de Sócrates
vai aplicando, à medida que se desenrola, estas leis da negação
e da implicação. Com efeito, ele vai mostrando, em cada passo
dessa argumentação, que a tese de Trasímaco implica
argumentos que pertencem simultaneamente às CA de v e de ~v - argumentos
que nos levarão irrevogavelmente a admitir quer v quer ~v (e a ter
de abandonar v), embora Trasímaco não se dê conta disso.
Como é isto possível? Como vimos
acima, ~q é o resultado do raciocínio disjuntivo que assenta
na premissa em torno da qual se "joga", na minha opinião, toda a
argumentação de Sócrates: "Ou os governantes são
infalíveis ou os governantes são capazes de cometer algum
erro." A disjunção impõe, aqui, as duas orientações
divergentes que poderá vir a assumir a argumentação:
a primeira, partindo do enunciado "Os governantes são infalíveis",
levaria necessariamente à conclusão v; a outra, partindo
do enunciado "Os governantes cometem alguns erros", poderá levar
quer a v quer (como interessa a Sócrates mostrar) a ~v. Ora, é
justamente na possibilidade de chegar a esta conclusão auto-contraditória
que se desenrola o essencial da refutação de Sócrates.
Podemos dizer que, a partir do momento em que Trasímaco aceita de
bom grado (como implicita o seu "Certamente que...") que "Os governantes
cometem alguns erros", a sua tese está irremediavelmente perdida.
Segundo a argumentação de Sócrates,
a tese de Trasímaco só poderia ser aceite se pudéssemos
aceitar a premissa "Os governantes são infalíveis". Ora,
porque não podemos aceitar tal premissa? Basicamente porque ela
vai contra o "senso comum" e a "evidência dos factos" - sendo, pelo
contrário, um "lugar comum" a ideia de que "Os governantes cometem
algum erro" (isto é, não são infalíveis).
4. O PRESSUPOSTO E O IMPLÍCITO
4.1. O PRESSUPOSTO
a) A tese de Trasímaco: "A justiça não é outra coisa senão a conveniência do mais forte", pressupõe que:
(1) A justiça existe.
(2) A justiça pode ser definida.
(3) Há (homens ) fortes e fracos.
(4) Há coisas convenientes e coisas prejudiciais
ao mais forte .
b) O enunciado p - "Obedecer aos governantes é
acto de justiça", pressupõe que:
(1) Há governantes e governados.
(2) Os governantes mandam (fazer alguma coisa).
(3) Os governados podem obedecer ou desobedecer
aos governantes.
c) Os enunciados q - "Os governantes são
infalíveis" e ~q - "Os governantes são capa-zes de cometer
erros", pressupõem que:
(1) Há governantes e governados.
(2) Os governantes têm de tomar decisões.
d) Os enunciados r - "Os governantes formulam
bem algumas leis" e ~r - "Os governantes formulam mal algumas leis", pressupõem
que:
(1) Há governantes e governados.
(2) Os governantes formulam leis.
e) Os enunciados s - "Formular bem as leis é
promulgar aquilo que convém aos governantes" e ~s - "Formular mal
as leis é promulgar aquilo que é prejudicial aos governantes",
pressupõem que:
(1) Há governantes e governados.
(2) Formular leis é promulgar qualquer
coisa.
(3) Há coisas que convêm e coisas
que são prejudiciais aos governantes.
f) O enunciado t - "O que os governantes promulgam
tem de ser feito pelos súbditos", e o enunciado u - "A justiça
é os súbditos fazerem o promulgado pelos governantes", pressupõem
que:
(1) Há governantes e súbditos.
(2) Os governantes promulgam algo.
(3) Os súbditos podem ou não fazer
o que foi promulgado.
g) As conclusões v - "É justo fazer aquilo que convém ao mais forte" e ~v - "É justo fazer o que é prejudicial ao mais forte" têm os pressupostos já vistos em a).
h) Também determinadas expressões
utilizadas no diálogo envolvem certos pressupos-tos. É o
caso, nomeadamente, da expressão, utilizada por Sócrates,
"Não manténs que... ?", que pressupõe:
(1) "Defendias antes que...";
Se, neste momento, ordenarmos os pressupostos
anteriores, eliminando as repetições, obtemos o quadro seguinte:
(1) A justiça existe.
(2) A justiça pode ser definida.
(3) Há (homens ) fortes e fracos.
(4) Há governantes e governados (súbditos).
(5) Há coisas convenientes e coisas prejudiciais
ao mais forte.
(6) Os governantes mandam (fazer alguma coisa).
(variante: Os governantes
promulgam algo)
(7) Os governados podem obedecer ou desobedecer
aos governantes (variante: Os
súbditos podem fazer ou não fazer
o que foi promulgado).
(8) Os governantes têm de tomar decisões.
(9) Os governantes formulam leis.
(10) Formular leis é promulgar qualquer
coisa.
É este conjunto de pressupostos - dos quais
nenhum vai ser posto em causa por Sócrates e Trasímaco -
que vai constituir o "quadro" ou "moldura" no interior do qual se vai desenrolar
todo o diálogo e toda a argumentação...
4.2. O IMPLÍCITO
a) Na tese de Trasímaco ("A justiça não é outra coisa senão a conveniência do mais forte"), a expressão " A não é outra coisa senão B " (sendo, no caso em apreço, A "a justiça" e B "a conveniência do mais forte"), utilizada em vez de "A é B", dá desde logo a entender que se pretende, não apenas avançar uma tese, mas excluir liminarmente outras teses que eventualmente se poderiam defender - pretensão que é reforçada pela utilização da expressão verbal "Afirmo que...", que introduz a tese de Trasímaco com uma força ilocutória diferente da que teria se, pura e simplesmente, Trasímaco afirmasse a tese, sem mais.
b) Na primeira fala de Trasímaco, a expressão
"Ouve então." implicita que Trasímaco vai responder a um
pedido (ou a uma solicitação) feita previamente por Sócrates,
significando algo como:
(1) "Vou então responder ao que me pediste".
c) O enunciado q - "Os governantes são
capazes de cometer algum erro", subentende que:
(1) "Os governantes não são infalíveis".
Como vimos acima, o enunciado q é a conclusão
de um raciocínio disjuntivo, cuja premissa maior é "Os governantes
são infalíveis ou são capazes de cometer algum erro"
e cuja premissa menor, implícita, é o enunciado (1).
d) As respostas de Trasímaco às perguntas de Sócrates implicitam os conteúdos proposicionais envolvidos nessas mesmas perguntas. Assim:
-"Examina" subentende "Examina a questão
(de saber se a justiça é ou não a conveniência
do mais forte)";
- "Sim, senhor" subentende a resposta "Mantenho
que obedecer aos que governam é acto de justiça";
- "Julgo bem que sim" é utilizado para
dizer que "Tenho a certeza que quando os governantes experimentam formular
leis, formulam umas bem e outras mal";
- "Acho" é utilizado para dizer "Acho
que fazer bem leis é naturalmente promulgar aquilo que convém
aos governantes; não as fazer bem, aquilo que lhes é prejudicial";
- "Como não?" representa não uma
pergunta, mas a afirmação implícita, feita em resposta
a uma pergunta de Sócrates, de que "Concordo que o que os governantes
promulgaram tem de ser feito pelos súbditos, e isso é que
é a justiça."
e) Várias das expressões constantes das falas de Sócrates envolvem subentendidos. Assim:
- A expressão "... e eu ignoro se é
assim..." implicita a discordância de Sócrates em relação
à tese avançada por Trasímaco de que " a justiça
é a conveniência do mais forte";
- "Assim farei", quer dizer "Irei examinar a
questão (de saber se a justiça é ou não a conveniência
do mais forte)";
- "Segundo o teu raciocínio" implicita
que Sócrates vai extrair uma conclusão pela qual não
é (supostamente) responsável, dado essa conclusão
ser consequência da tese de Trasímaco.
De notar que, no decorrer da sua argumentação, o trabalho de Sócrates consiste em ir explicitando estes enunciados implícitos, justificando assim a definição que Meyer propõe para o conceito de argumentação: "estudo da relação entre o implícito e o explícito." (Meyer, 1992: 118) )
5. OS ACTOS ILOCUTÓRIOS
O diálogo entre Sócrates e Trasímaco desenvolve-se como uma espécie de jogo de ping-pong ilocutório, em que um pergunta e o outro responde, um afirma e o outro concorda ou discorda, um pede e o outro satisfaz o pedido, etc. Utilizando a terminologia de Austin, podemos afirmar que apenas alguns desses actos ilocutórios são expressos (por exemplo: "Afirmo que..."), sendo a maioria primários (perguntar, responder, afirmar, etc.). A tentativa de recenseamento dos actos ilocutórios presentes no diálogo dá-nos o seguinte "mapa" (cada travessão correspondendo a cada uma das falas de Sócrates e Trasímaco):
- Trasímaco satisfaz um pedido prévio
de Sócrates para que diga qualquer coisa ("Ouve então.")
e afirma a sua tese (de que "a justiça não é outra
coisa senão a conveniência do mais forte");
- Sócrates constata o acordo ("concordamos
em que a justiça é algo de conveniente") e, simultaneamente,
o desacordo ("tu acrescentas a esta definição que essa conveniência
é a do mais forte, e eu ignoro se é assim") entre si e Trasímaco,
concluindo daí a necessidade de examinar a questão ("temos
de examinar a questão");
- Trasímaco pede a Sócrates que
examine a questão ("Examina");
- Sócrates promete aceder ao pedido de
Trasímaco ("Assim farei"), satisfazendo esse pedido/cumprindo a
promessa já nesta e nas falas seguintes; ordena a Trasímaco
que lhe responda a uma pergunta ("Diz-me lá"), e pergunta ("não
manténs que obedecer aos que governam é acto de justiça
?");
- Trasímaco responde à pergunta
de Sócrates ("Sim, senhor");
- Sócrates pergunta ("E os governantes
em cada um dos Estados são infalíveis, ou capazes de cometer
algum erro?");
- Trasímaco responde à pergunta
de Sócrates ("Certamente que são capazes de come-ter algum
erro");
- Sócrates conclui ("Portanto... ") e
pergunta a Trasímaco se está de acordo com esssa conclusão
("... quando experimentam formular leis, formulam umas bem, outras não?");
- Trasímaco concorda com a conclusão
de Sócrates ("Julgo bem que sim");
- Sócrates afirma ("Mas fazer bem leis
é naturalmente promulgar aquilo que lhes con-vém; não
as fazer bem, aquilo que é prejudicial") e pergunta a Trasímaco
se concorda com essa afirmação ("Não achas?");
- Trasímaco concorda com a afirmação
de Sócrates ("Acho");
- Sócrates afirma ("Mas o que eles promulgaram
tem de ser feito pelos súbditos ...") e pergunta a Trasímaco
se está de acordo com essa afirmação ("... e isso
é que é a justiça?");
- Trasímaco concorda com a afirmação
de Sócrates, mediante uma pergunta que, de facto, não o é
("Como não?");
- Sócrates conclui as consequências
da tese de Trasímaco ("Segundo o teu racio-cínio...").
Uma breve análise do "mapa" anterior mostra-nos
que:
a) As falas de Sócrates e Trasímaco
implicam actos ilocutórios diferentes quer quanto à quantidade
quer quanto à qualidade. Indicamos, a seguir, os actos ilocutórios
de cada um e a respectiva frequência:
- Trasímaco: pedir (1), satisfazer um
pedido (1), afirmar (1), responder (2), concordar (3), num total de 8;
- Sócrates: constatar (1), concluir (3),
prometer (1), ordenar (1) satisfazer o pedido /cumprir a promessa (1),
perguntar (5), afirmar (2), num total de 14.
b) Os actos ilocutórios em jogo no diálogo
pertencem às classes a que Austin chama de actos promissivos (1),
actos exercitivos (1), actos comportamentativos (3) e, sobretudo, actos
expositivos (como afirmar, perguntar, responder, concordar, constatar,
concluir - num total de 17)...
O que nos permite, desde logo, concluir o seguinte:
1. O diálogo é francamente "expositivo",
como seria de esperar de um texto que se pretende "filosófico" e
"racional";
2. Enquanto Sócrates assume um papel activo
(centrado no perguntar, no concluir, no afirmar), Trasímaco assume
um papel predominantemente passivo (centrado no responder e no concordar)
- o que mostra, sem sombra de dúvida, que é Sócrates
quem conduz a situação de interlocução.
As conclusões anteriores parecem justificar
plenamente a opinião de Ducrot de que "... a interrogação
é muito menos inocente do que parece à primeira vista: tendo
o ar de respeitar a liberdade do destinatário, ela pode, no entanto,
impor-lhe ideias prévias. Particularidade esta que torna suspeitas
numerosas "sondagens de opinião", e que leva a desconfiar também
da "pedagogia interrogativa" de inspiração socrática.
Porque as perguntas do professor afirmam geralmente tanto quanto perguntam.
Daí os limites da "maiêutica", parto que pode ter certas características
de inseminação." (Ducrot, 1984a: 401).
De facto, a única verdadeira pergunta,
aquela que possibilitaria a verdadeira discus-são entre Sócrates
e Trasímaco, é a que vai fazer derivar a argumentação
para o rumo pretendido por Sócrates: "E os governantes, são
infalíveis ou são capazes de cometer algum erro?".
6. OPERADORES E CONECTORES ARGUMENTATIVOS
a) "Uma vez que..." (linha 3): em termos gramaticais pode ser classificada como uma locução subordinativa condicional, na medida em que exprime uma condição ("Uma vez que A, então B). Assim sendo, é equivalente ao enunciado implicativo, do tipo B se A, significando que A é favorável a B - ou, por outras palavras, que deve reconhecer-se que A pertence a uma CA determinada por B, que A é um argumento para uma hipotética consequência B, que B deve ser encadeado com A. O que acontece no texto - com a diferença de que A é, neste caso, uma conjunção dos argumentos que podemos designar por A1 ("tu e eu concordamos em que a justiça é algo de conveniente") e A2 ("tu acrescentas a esta definição que essa conveniência é a do mais forte e eu ignoro se é assim"), a que se segue a consequência "temos de examinar a questão" (B).
b) "e" (linhas 3, 4, 10 e 18): gramaticalmente, é uma conjunção coordenativa copu-lativa, que tem a função de estabelecer a ligação entre um enunciado anterior e um enunciado posterior, indicando que eles têm a mesma orientação argumentativa (ou seja, que fazem parte da mesma CA) (19).
c) "ora" (linha 7): gramaticalmente, é uma conjunção coordenativa conclusiva, expri-mindo que o enunciado que se lhe segue é uma premissa que, em conjunção com outro(s) enunciado(s) anterior(es), vai permitir extrair uma conclusão (implicitando um raciocínio que obedece ao seguinte esquema: p, q...n; ora, s; logo, z).
d) "ou" (linha 10): gramaticalmente é uma conjunção disjuntiva, que indica uma alternativa ou disjunção, marcando a divergência de orientação argumentativa dos enunciados que podem vir a derivar de um ou de outro dos termos da disjunção; por outras palavras, ou marca a oposição entre duas CA diferentes.
e) "Certamente que..." (linha 12) subentende que o que vai seguir-se é uma afirmação inquestionável, que não pode ser posta em dúvida.
f) "portanto" (linha 13): gramaticalmente é uma conjunção coordenativa conclusiva, exprimindo que o enunciado que se lhe segue é uma consequência do(s) anterior(es).
g) Na expressão "Julgo bem que..." (linha 14), bem subentende que a proposição que se segue é uma proposição que tem um grau de necessidade maior (maior força argumentativa) do que se dissesse apenas "Julgo que...".
h) Na expressão "Mas fazer bem leis é naturalmente..." (linha 15), naturalmente implicita a ideia de que o que se vai seguir é "evidente", não pode ser posto em dúvida de forma alguma.
i) "mas" (linhas 15 e 18): gramaticalmente é uma conjunção coordenativa adversativa, que indica normalmente oposição entre um enunciado e o anterior. No entanto, no presente contexto argumentativo, deve ser tomado como sinónimo de "ora", com as funções acima descritas.
j) "Não só... mas também"
(linhas 21/22): gramaticalmente é uma conjunção coordena-tiva
copulativa, que serve para ligar dois enunciados que têm a mesma
orientação argumentativa. No caso do texto, Sócrates
tem de marcar o contrário deste uso habitual utilizando o advérbio
"inversamente".
V. CONCLUSÃO
Se, como pretende Ducrot (e se ilustra com esta
análise do texto de Platão), a dimensão argumentativa
é inerente a todo o discurso, a todo o acto de linguagem, o que
acontece aos valores universais que, desde o seu início, foram perseguidos
pela metafísica e pela ciência ocidentais? Não nos
restará a palavra de Protágoras de que "o homem é
a medida de todas as coisas"? Mas aceitar esta palavra não é
cair no subjectivismo absoluto, na impossibilidade da própria interlocução?
Não necessariamente. Platão, com
a sua "vontade de verdade" universal, formal e unívoca, é
talvez o maior responsável pelo desprezo a que uma certa história
da filosofia e da ciência (e da cultura ocidental em geral) votou
os Sofistas e a Retórica. Na realidade, a palavra de Protágoras
pode (deve) ser interpretada num sentido diferente do subjectivismo - no
sentido do relativismo cultural 19. Isto é, no sentido de que toda
a "verdade", todo o "bem", todo o "belo", só acedem à existência
num determinado contexto discursivo, num determinado "jogo de linguagem",
para utilizarmos a expressão de Wittgenstein - não tendo
qualquer sentido fora desse contexto e desse "jogo". O que significa que
todo o discurso, toda a linguagem, tem a sua retórica própria,
a sua argumentatividade intrínseca. Pretender, como no caso dos
discursos filosófico e científico, "apagar" (disfarçando-o)
esse carácter retórico-argumentativo, não é
senão criar uma outra retórica. A este respeito, o caso de
Platão é exemplar: o facto de ele ter persuadido toda uma
tradição acerca da sua visão da linguagem, depreciando
todos os outros usos da linguagem como "sofísticos", só mostra
como ele dominava perfeitamente o poder retórico-argumentativo da
linguagem. Esse domínio é tão evidente nos diálogos
de Platão como por exemplo no Discurso do Método de Descartes.
Platão e Descartes são, cada um, cada uma a seu modo, "retóricos"
exímios...
A concepção retórico-argumentativa
da linguagem tem consequências filosóficas e culturais relevantes.
Talvez a principal resida na ideia de que todos os discursos, todos os
"jogos de linguagem" têm direito a existir, a confrontar-se, a dialogar
- assumindo, mas nunca anulando, as suas discordâncias e diferenças.
Numa palavra: relativizando-se. Talvez resida aí, nessa relativização,
o verdadeiro universalismo (que não a "universalidade") dos "homens
de boa vontade".
NOTAS
1 - Cf. Charles Morris, "Fundamentos
da Teoria dos Signos", tradução policopiada na Universidade
da
Beira Interior (Tradução de António
Fidalgo), 1994, p.7.
2 -Como sabemos, esta é, grosso modo, a tese defendida por Heidegger, ao longo de várias das suas obras.
3 - A este proópsito, diz Tito Cardoso e Cunha: "Com Platão assiste-se à derrota teórica dos Sofistas que perdurará até bem perto de nós. Daí provém também certamente a desconfiança que ainda nos desperta a simples menção do termo retórica, nomeadamente na comunicação política."(Cardoso e Cunha, 1995: 25). E acrescenta: "É assim que, no emprego corrente e pejorativo que fazemos do termo retórica como discurso feito de aparência e falsidade, estamos, ainda hoje, a ser platónicos." (idem, 27)
4 - A consciência que estes têm do poder ilocutório/perlocutório da palavra está bem patente na seguinte citação de Górgias: "A palavra é uma grande dominadora que, com pequeníssimo e sumamente invisível corpo, realiza obras diviníssimas, pois pode fazer cessar o medo e tirar as dores, infundir a alegria e inspirar a piedade... O discurso, persuadindo a alma, obriga-a, convencida, a ter fé nas palavras e a consentir nos factos... A persuasão, unida à palavra, impressiona a alma como quer... O poder do discurso com respeito à disposição da alma é idêntico ao dos remédios em relação à natureza do corpo. Com efeito, assim como os diferentes remédios expelem do corpo de cada um diferentes humores, e alguns fazem cessar o mal, outros a vida, assim também entre os discursos alguns afligem e outros deleitam, outros espantam, outros excitam até ao ardor os seus ouvintes, outros envenenam e fascinam a alma com persuasões malvadas." (Górgias, Elogio de Helena, 8, 12-14, in Mondolfo, Rodolfo (1966), O Pensamento Antigo, I Volume I, S. Paulo, Editora Mestre Jou).
5 - Sobre esta breve síntese histórica acerca da Retórica, ver Ducrot e Todorov, 1978: 99/100 e Lausberg, 1972: 82/93.
6 - O "renascimento" da Retórica (como teoria da argumentação), no nosso século, tem origem, segundo Perelman, na importância actualmente atribuída à filosofia da linguagem e aos valores - e à tomada de consciência de que não é possível, com a "evidência" racional, resolver os problemas colocados nesses domínios. (Perelman, 1987: 264).
7 - Por "lógica" Perelman entende, mais concretamente, a lógica simbólica ou matemática.
8 - E Jean-Claude Anscombre, com quem Ducrot efectuou muito do seu trabalho sobre a teoria da argumentação.
9 - Para percebermos melhor as
posições de Ducrot, é essencial termos presentes as
suas definições seguintes:
Frase: "Chamamos 'frase' ao material linguístico
de que o locutor se serviu, isto é, a entidade abstracta Vou-me
embora."
Texto: "Sequência de frases (por exemplo:
Vou-me embora. Despacha-te."
Enunciado: "... aquilo que foi efectivamente
pronunciado ou escrito..."; a mesma frase, sendo uma entidade abstracta
(type), pode ser objecto de infinitos enunciados (token), sendo cada um
dos enunciados um acto único e original.
Discurso: "... uma sequência de enunciados
ligados entre si; um discurso será, portanto, uma realização
(...) de um texto".
Enunciação: "... acontecimento
histórico, isto é, o facto de uma frase ter sido objecto
de um enunciado (ou de um discurso)."
Actividade linguística: "... o conjunto
de mecanismos que produz a enunciação de um enunciado ou
de um discurso." (Ducrot, 1984: 369)
Enquanto à frase corresponde uma "significação",
ao enunciado corresponde um "sentido" (idem, 372).
10 - A importância do "mas"
revela-se, desde logo, no facto de Ducrot lhe dedicar um dos Anexos do
seu livro Les Échelles Argumentatives. Segundo Ducrot, o "mas" (
de "p mas q") mostra não só que o valor argumentativo de
um enunciado é, em grande medida, independente do seu conteúdo
informativo, mas também que esse valor argumentativo determina parcialmente
o conteúdo do enunciado. Mostrará, igualmente, porque é
que, segundo Ducrot, é impossível separarmos a Semântica
(que se dedica às noções de verdade e de valor informativo)
da Pragmática (que diria respeito aos efeitos, nomeadamente à
influência argumentativa, que a palavra pretende possuir).(Ducrot,
1980: 72). Ao longo do seu texto, Ducrot analisa o seguinte exemplo, conclusão
de uma receita culinária: "Mangez chaud, mais dejà un peu
tiède" - a informação que nos é dada é
que o prato deve ser servido quando se está a deixar arrefecer,
depois de ter estado quente, e não o inverso: "dejà" significa
que antes não estava morno: estaria frio? estaria quente? A ambiguidade
é desfeita pelo "mais": relacionando "chaud" e "tiède", liga
"tiède" ao contrário" de "chaud" (situa-o, portanto, na escala
argumentativa do "frio", indicando um "arrefecimento" - e não o
inverso).
Assim, sendo "mas" um operador argumentativo,
ele produz simultaneamente informação. Ora, conclui Ducrot,
se um operador produz informação, então a mudança
de operador produzirá mudança de informação.
Conclusão que se atesta com a seguinte alteração do
enunciado anterior: "Mangez chaud, ou, en tout cas, dejà un peu
tiède" - que nos dá a informação de que o prato
foi posto a reaquecer ("p, ou en tout cas q" pressupõe que p e q
pertencem à mesma Escala Argumentativa, sendo q inferior a p, neste
caso em termos do "aquecimento" pretendido). Sobre o "mas", conclui Ducrot:
"Ainsi cet mot, opérateur argumentatif par excelence, peut régir
aussi, d'une façon indirecte, le contenu "sémantique" des
phrases où il intervient - même au sens le plus restrictif
du mot "sémantique", sens qui n'est d'ailleurs pas le mien." (Ducrot,
1980: 76).
11 - Ducrot distingue entre negação metalinguística, que visa contradizer uma afirmação prévia e negação descritiva, ou negação "em primeira mão". (Ducrot, 1980: 30).
12 - Teste que, como veremos adiante, é apenas um dos testes possíveis para averiguarmos os pressupos-tos de um enunciado.
13 - A este propósito, afirma Meyer que a "Nova Linguística", de Anscombre e Ducrot, terá mostrado bem que "em qualquer sentido literal , há uma significação implícita ou implicitada (uma ou menos) que permanece. O literal é aliás produzido em função deste sentido implícito, e não independentemente, como se este estivesse 'a mais'". (Meyer, 1992: 123).
14 - "Chama-se situação de discurso ao conjunto das circunstâncias no meio das quais se desenrola um acto de enunciação (oral ou escrito)." A situação de discurso compreende, nomeadamente, o ambiente físico e social, os interlocutores, os outros participantes, os acontecimentos precedentes ao acto de enunciação, etc. Por vezes, também se usa (impropriamente) o termo "contexto" para referir a situação de discurso. (Ducrot e Todorov, 1978: 391).
15 - Sobre este assunto, ver a Introdução (citada na Bibliografia) de Maria Helena da Rocha Pereira.
16 - Mais concretamente, até ao estudo do pressuposto e do implícito.
17 - Esta explicitação, que não consta do extracto, para não o alongar demasiado, está substituída por "(...)" nas primeiras falas de Sócrates e de Trasímaco..
18 - Utilizamos, ao longo deste trabalho, a seguinte notação simbólica, hoje mais ou menos consagrada: ~ para a negação, Ù para a conjunção, Ú para a disjunção, Þ para a implicação, Û para a dupla implicação.
19- É esta a interpretação
de Paul Feyerabend, por exemplo em O Adeus à Razão (ver Bibliografia).
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Rodrigues, Adriano Duarte (1996a), Pragmática
da Comunicação (apontamentos de), Curso de Mestrado de Ciências
da Comunicação, Universidade da Beira Interior.
ANEXO
EXTRACTO DE A REPÚBLICA, DE PLATÃO
(Começa com a fala de Trasímaco):
- Ouve então. Afirmo que a justiça
não é outra coisa senão a conveniência do mais
forte. (...)
- (...) Uma vez que tu e eu concordamos em que
a justiça é algo de conveniente, e
que tu acrescentas a esta definição
que essa conveniência é a do mais forte, e eu
5 ignoro se é assim, temos de examinar
a questão.
- Examina - disse ele.
- Assim farei - respondi -. Ora diz-me lá:
não manténs que obedecer aos que
governam é acto de justiça?
- Sim, senhor.
10 - E os governantes em cada um dos Estados
são infalíveis, ou capazes de cometer
algum erro?
- Certamente que são capazes de cometer
algum erro.
- Portanto, quando experimentam formular leis,
formulam umas bem, outras não?
- Julgo bem que sim.
15 - Mas fazer bem leis é naturalmente
promulgar aquilo que lhes convém; não as fazer
bem, aquilo que é prejudicial. Não
achas?
- Acho.
- Mas o que eles promulgaram tem de ser feito
pelos súbditos, e isso é que é a
justiça?
20 - Como não?
- Segundo o teu raciocínio, não
só é justo fazer aquilo que convém ao mais forte,
mas também, inversamente, aquilo que lhe
é prejudicial. (...)
(Platão, A República, 338c-339d, pp. 23-25).