João Carlos Correia, Universidade da Beira Interior
Introdução
O principal problema sobre o qual pretendo debruçar-me é
o de tentar compreender certa fome de imaginário e de entretenimento
centrada na fruição individual que hoje percorre os media,
relacionando-o com as consequências que esse fenómeno tem
na construção e representação da subjectividade
e chamando a atenção para as pertinentes questões
políticas que levanta. A vocação dos media para despertar
e gerir a emoção e o desejo fez-se, desde logo, sentir quando
a "imprensa de massa" fez a sua aparição em meados do século
XIX, num período de plena afirmação do mercado. A
"penny press" surgiu como uma resposta às necessidades culturais
desencadeadas pelos fenómenos da urbanização que tinham
atraído para as cidades uma massa heterogénea e indiferenciada,
sensibilizada para o consumo de produtos que satisfizessem necessidades
correspondentes aos seus horizontes culturais. O processo de desenvolvimento
capitalista era favorável à emergência de uma mentalidade
igualitarista. As classes emergentes ou em consolidação buscavam
a sua identidade opondo-se às classes aristocráticas que
se sentiam identificadas com a cultura clássica. A origem das notícias
é interpretada na sua relação com a democratização
política, a expansão da economia de mercado e a autoridade
emergente de uma classe média urbana (Michael Schudson,1978: 4).
Estavam reunidas as condições para que o "fait divers", o
crime, o baile de sociedade, o desporto ou o combate de rua se tornassem
assuntos de primeira página.
Um fenómeno idêntico parece acontecer hoje, mais uma vez,
num momento em que se faz sentir um pouco por todo o lado um movimento
de privatização que adquiriu especial visibilidade graças
às televisões comerciais, e que emerge envolto num ambiente
de desilusão em relação aos grandes movimentos colectivos
e de afirmação dos valores do mercado.. Verifica-se um incremento
substancial no volume de horas de ficção; tanto nos canais
públicos como privados, dá-se primazia à função
de entretenimento; aumenta o espaço ocupado pelas emissões
desportivas; escasseia a atenção dada a novos programas de
informação nas novas televisões comerciais; constata-se
uma presença mais substancial de filmes, talk shows, reality shows
e telenovelas. Porém, este movimento estende-se a toda a comunicação
social, dentro da especificidade de cada medium. Privilegia-se o espectáculo
do quotidiano: as histórias de vida da "gente vulgar", as ficções
que retratam o que se considera serem as concepções do cidadão
médio, os programas e as revistas que dizem respeito aos mais famosos.
Os jornais de referência publicam cadernos de "tendências",
um termo impreciso que inclui discussões sobre identidades e novos
conceitos de família, junto a "peças" sobre a moda ou sobre
a família real britânica. Naturalmente, este tipo de "peças"
jornalísticas entram em categorias muito diversas e obedecem a lógicas
diferentes. Porém, entre o que as difere, importa verificar o que
também as une: uma tendência que todos intuimos para uma acentuação
dos problemas que dizem respeito à fruição individual,
aqueles que dizem respeito "ao viver a própria vida" num contexto
de uma sociedade onde se multiplicam tais tipos de apelos.
Como o desejo de imaginário e de fruição parece
centrar-se, mais uma vez, na personalização da informação
e na generalização do entretenimento, vislumbrando-se uma
insistência na fruição individual em detrimento da
acção pública, o problema que emerge na abordagem
desta matéria passa por questionar qual a relação
entre essa insistência na presença dos actores sociais e a
acção dos media no contexto geral da cultura de massa: os
media possibilitam uma afirmação da subjectividade que se
traduz numa vontade de realização pessoal que é um
elemento positivo das sociedades modernas, ou pelo contrário, configuram-se
como um elemento indutor de um narcisismo que percorre essas mesmas sociedades
e é, afinal, sintoma de uma apropriação generalizada
dos valores simbólicos pelo mercado? Será que devemos reduzir
toda a insistência no entretenimento e na afirmação
individual, com todo o seu cortejo de consequências negativas - individualismo,
hedonismo, apatia política - a um apelo às forças
de mercado ou devemos, pelo contrário, ter em conta o facto de que
a insistência na fruição individual é um elemento
que tem a ver com a vontade de realização que é uma
das conquistas da modernidade ? O problema será sempre retomado
com dificuldades acrescidas: a insistência na subjectividade e nos
problemas relacionados com a identidade pode ser também a face visível
de uma espécie de assédio semiótico por parte da cultura
de consumo, a qual efectua a racionalização do mercado, criando
uma procura planeada, capaz de fazer com que os produtos e serviços
possam não mais ser consumidos em face das suas necessidades naturais,
ou seja do seu valor de uso, mas em função do seu valor de
troca. (Gomes, 1995: 303). A completa significação deste
processo de afirmação da fruição individual,
com todas as suas tensões contraditórias, só será
compreendida com o auxílio da perspectiva política.
Uma interpelação deste género supõe um
percurso crítico na qual se põem em destaque alguns elementos:
a) Começa-se por uma análise de um conjunto de propostas
sobre a subjectividade e ainda por uma certa leitura das potencialidades
abertas pelo conceito de "autenticidade", a fim de descobrir as possibilidades
normativas do individualismo moderno;
b) procede-se à análise das relações entre
a subjectividade e a cultura de massa e da forma como essa relações
se manifestam na construção das identidades. Tentaremos compreender
como a afirmação individual e a fruição têm
duas faces: por um lado, podem-se traduzir no grau zero da política
tal como era pensada pelos modernos, ou significar uma reconsideração
dessa política que se traduza na colonização da agenda
pública por questões que dizem respeito ao foro privado,
no sentido do sensacionalismo e da criação de redes apertadas
de vigilância ; por outro lado, podem permitir um novo entendimento
da política onde a dimensão crítica possam servir
para equacionar, de um modo, diverso, o exercício da cidadania e
o entendimento da figura do público.
c) finalmente, interpelam-se os media quanto á representação
que efectuam do privado e da identidade sugerindo uma intervenção
à luz dos conceitos de ética e de responsabilidade colectiva
.
I. Desejo, autenticidade e mediação
Nas sociedades modernas, as pessoas podem, apesar de numerosos constrangimentos,
orientar as suas vidas segundo um conjunto de possibilidades que ultrapassa
tudo quanto os nosssos antecessores podiam prever. Na satisfação
do desejo e na busca do prazer, o afecto e o imaginário, as ordens
implícitas da construção da subjectividade tornaram-se
centrais na modulação da linguagem institucional. As categorias
do prazer, do consumo e da liberdade individual mesclam-se de acordo com
uma lógica em que a busca da pluralidade de caminhos se multiplica
ao infinito. A escolha de percursos individuais torna-se numa espécie
de obsessão absoluta. Na modernidade tardia, o projecto de auto-identidade,
ocorre num contexto de escolha múltipla, em que a noção
de estilo de vida ganha um significado particular. Vive-se assim numa tensão
entre as influências padronizadoras e homogeneizantes, de que os
mecanismos mercantis podem constituir um elemento decisivo e as influências
fragmentadoras onde a abertura da vida social, a pluralidade de contextos
de acção e a diversidade de mecanismos institucionais e autoridades
desempenham um papel decisivo (Giddens, 1997: 7). A reflexividade constante
em que se envolveu a construção da identidade pessoal atinge
os mecanismos psíquicos e o corpo, através de um conjunto
de decisões no qual moldar o corpo, controlá-lo ou, inclusivamente
construir formas de alterar as regularidades biológicas que se tinham
por mais adquiridas (a fruição da sexualidade ou a reprodução)
passam a fazer parte das possibilidades abertas pelo "estilo de vida".
Agnes Heller clama a propósito pelo conceito de contigent person
para se referir à indeterminação em que se encontra
o sujeito moderno, na medida em que a pessoa já não recebe
o destino ou o telos da sua vida no momento do seu nascimento como acontecia
nos tempos pré-modernos onde se nascia para fazer isto ou aquilo,
para se viver desta ou desta forma, morrer desta ou daquela maneira. A
pessoa moderna nasceu com um conjunto de possibilidades que não
a confronta com a existência de um qualquer telos que dê um
sentido unificador a essas probabilidades. De uma certa forma, a pessoa
moderna, escolhe-se a si própria, o seu enquadramento, o telos que
coloca no centro da sua vida (Heller, 1990: 55-56). A questão é
saber o que significa esta indeterminação, esta contigência
ou fragmentação: induz um relativismo permissivo no qual
o sujeito se perde a si próprio? Ou, pelo contrário, relaciona-se
com novas e não testadas possibilidades emancipatórias?
Interessa-nos, aqui, referir os núcleos teóricos que
chamaram a atenção para os processos de dominação
que se desenvolvem na vida quotidiana. Na bem conhecida construção
teórica de Foucault, durante quase toda a parte da sua obra que
precede o 2º volume da "História da Sexualidade", a subjectividade
surge entendida como um puro processo de sujeição, no decurso
do qual os diversos micropoderes contribuem para uma construção
disciplinar do sujeito: a «história da alma moderna em julgamento»
implica uma matriz de construção do sujeito, comum às
técnicas penais e às ciências humanas.(…) (Foucault,
1977: 26). A subjectividade na análise foucauldiana é produzida
permanentemente, em torno, na superfície e no interior do corpo,
através de processos de ortopedização, treinamento,
vigilância, correcção, normalização e
exclusão (Foucault, 1977: 31). A alma "é o elemento onde
se articulam os efeitos de um certo tipo de poder e a referência
de um saber, a engrenagem pela qual as relações de poder
dão lugar a um poder e a um saber possível e o saber reconduz
e reforça os efeitos de poder."( Foucault, 1977: 31). A organização
deste conhecimento e deste poder que lhe está associado agrupa-se
em torno das conhecidas exclusões centradas no interdito, ligado
ao discurso, na oposiçao entre "razão e loucura", e, finalmente,
na oposição "verdadeiro/ falso" centrada no triunfo de uma
certa ideia de ciência (Foucault, 1971: 12-20).
Para a Escola de Frankfurt, e em especial nas obras de Adorno e de
Marcuse, a racionalidade instrumental ter-se-ia tornado responsável
pela uniformização da existência individual que caracteriza
a vida no mundo sob o capitalismo avançado. A história da
razão para dominar a natureza é a história da subjugação
do homem pelo homem. A sobrevivência ou o êxito do indivíduo
perante a sociedade significa em primeiro lugar a adaptabilidade pelo que
cada aspecto dos processos vitais sociais está sujeito à
racionalização e ao planeamento, incluindo os domínios
mais privados do homem. A derrocada do pensamento negativo é a noção
que hegemoniza o pensamento de Marcuse, quando descreve as novas transformações
operadas pela sociedade industrial: "a produção e a distribuição
em massa reivindicam o indivíduo inteiro (…) o resultado não
é o ajustamento mas a mimese; uma identificação imediata
do indivíduo com a sociedade e, através dela, com a sociedade
no seu todo." (Marcuse, 1977: 31) A gestão do desejo surge como
um elemento de dominação do homem no mundo da sociedade administrada:
a tecnologia das sociedades industriais habilitou-as a eliminar o conflito
por efeito de assimilar todos aqueles que em formas anteriores de ordem
social representaram elementos de diferendo ou dissensão. Ora o
mecanismo que Marcuse vislumbra para que o sistema logre este desiderato
é a produção e satisfação de necessidades,
através de um tratamento da subjectividade centrada no consumo,
na fruição individual e na satisfação das necessidades.
Esta espécie de gestão programada do desejo traduz-se na
tese segundo a qual a liberdade torna-se um elemento da própria
dominação: a sexualidade é liberalizada sob formas
socialmente construtivas, isto é adequadas aos próprios mecanismos
de adaptabilidade ao sistema (Marcuse, 1977: 84). O consumo, a exposição
pública, a introdução do sexo na publicidade e nas
relações públicas, aquilo a que ele chama de corrrosão
da indevassibilidade rompe a barreira entre público e privado de
uma forma em que a permissividade torna mais imperativa a submissão
(Marcuse: 1977, 84). Assiste-se a como a "a mobilização e
administração da libido pode ser responsável por por
muita da submissão voluntária, da ausência de terror,
da harmonia pré-estabelecida entre necessidades individuais e desejos,propósitos
e aspirações socialmente necessários." (Marcuse, 1977:
85). Curiosamente, sente-se, ao longo desta tese, o horror pela invasão
pretensamente libertadora do privado que percorre, em palavras admiráveis,
o I Volume da História da Sexualidade: "Nós, de há
dezenas de anos para cá não falamos dele" - do sexo- "sem
assumirmos uma certa afectação: consciência de desafiarmos
a ordem estabelecida, tom de voz que mostra que nos sabemos subversivos,
ardor em esconjuraramos o presente e invocarmos um futuro cuja chegada
pensamos efectivamente estarmos contribuindo para abreviar. Algo da revolta,
da liberdade prometida, da época próxima de uma outra lei
, se introduz facilmente no discurso sobre a opressão exercida sobre
o sexo. O bom sexo será amanhã.(…)parece-me essencial a existência
na nossa época de um discurso em que o sexo , a revelação
da verdade, a inversão da lei no mundo, o anúncio de um outro
dia e a promessa de uma certa felicidade estão ligados entre si.
Hoje é o sexo que serve de suporte a essa velha forma, tão
importante no Ocidente, da pregação." (Foucault, 1994:12-13-36)
Este conjunto de teorias têm, a meu ver, o defeito de parecerem
ignorar o carácter muito mais complexo dos processos de socialização.
Em alternativa, urge encontrar um lugar para o sujeito que não o
reduza a u mero efeito de poder.
As sociedades de consumo, caracterizadas pelo individualismo intenso,
centradas nas satisfações do desejo e na realização
do prazer terão, para alguns, perdido o sentido do ideal, a perspectiva
de um fim pelo qual valesse a pena morrer. É neste sentido que Taylor,
citando Tocqueville, evoca os pequenos e vulgares prazeres que as gentes
procuram na era da democracia. ( Taylor, 1994: 11) A satisfação
do desejo individual na sociedade de consumo surge, nesta perspectiva,
associada à face sombria do individualismo. A exploração
do desejo pode mesmo ser entendida como um recurso ao dispor de uma tirania
que já não será como dantes fundada no terror e na
opressão, mas antes na gestão e programação
das atitudes individuais, consolidada através dos diversos processos
de sedução ao seu dispor- o que curiosamente se aproxima
das hipóteses levantadas por Marcuse (Taylor, 1994: 31). Apesar
de tudo, a afirmação do "eu" se não implica apenas
atitudes de natureza hedonista: há interrogações acerca
de como viver a minha vida de uma forma que seja digna de ser vivida, ou
acerca de que tipo de vida devo levar para realizar as minhas competências
e aptidões particulares, ou acerca do que constitui uma vida rica
de sentido que se oferecem como sendo merecedoras de um tratamento particularmente
delicado, uma atenção particular, aquilo a que Taylor chama
uma "strong evaluation."(Taylor, 1989:14). A autenticidade, tal como é
pensada por Charles Taylor é um conceito que implica, assim, uma
afirmação de subjectividade que não se esgota no escapismo
nem no hedonismo, tendo, pelo contrário, um significado de realização
pessoal que se identifica com a afirmação do sujeito num
horizonte social que admite a existência do Outro, enquanto realidade
próxima geradora de enormes potencialidades éticas. Por detrás
da aparente generalização do hedonismo, esconde-se uma ideia
de autenticidade susceptível de ser considerada como um ideal moral
ou ético e que tem implícita a ideia "de uma existência
melhor e mais elevada, aonde a própria ideia de melhor e de mais
elevado não se definiria em função dos nossos desejos
e necessidades, mas com vista a um ideal ao qual devíamos aspirar"
(Taylor, 1994: 23-24).
Recusando afirmar que tudo vai no melhor dos mundos, Taylor apresenta-se
como adepto de soluções que preservem simultaneamente a liberdade
individual e o reconhecimento da dimensão moral do sujeito. Ou seja:
a autenticidade é um ideal válido; os ideais morais podem
ser discutidos racionalmente, o que implica uma recusa do subjectivismo;
e estas discussões podem trazer consequências para a actuação
dos sujeitos e para o destino da vivência colectiva. Esta posição
nega as perspectivas que nos consideram como prisioneiros de um sistema
económico ou de qualquer "gaiola de aço" burocrática
(Taylor, 1994: 31-33). A descoberta da autenticidade como ideal ético
inscreve-se no subjectiv turn da modernidade na qual a interioridade tem
implicita a ideia de que cada um tem a sua maneira própria de ser
humano. Ser sincero consigo mesmo significa ser fiel à minha própria
originalidade, a qual eu sou o único a poder descobrir, realizando
uma potencialidade que é propriamente minha.
Porém, simultaneamente, a autenticidade implica o reconhecimento
do carácter dialógico da existência humana. "Não
é possível descobrir isoladamente a nossa identidade: ela
é negociada num diálogo, em parte exterior, em parte interior,
com o outro." (Taylor, 1994: 56) Tornamo-nos agentes humanos, capaz de
nos compreender-nos a nós próprios, e logo, de definir uma
identidade graças à aquisição de uma linguagem,
a qual todavia só é adquirida e dominada graças ao
intercâmbio que realizamos com os outros que contam para nós,
aqueles a que George Herbert Mead refere como "outros significativos" (Taylor,
1991: 24). A descoberta da autencidade não é um processo
monológico. Antes, resulta de um encontro com outro. Definimo-nos
num diálogo, por vezes por oposição ou em conflito,
com as identidades que os outros que contam reconhecem em nós (Taylor,
1994: 38-45). A constituição da diferença e da originalidade
só é passível de ser entendida num horizonte de intercompreensão.
O processo de escolha das opções individuais deixa de ser
uma mera afirmação de relativismo, no qual tudo pode ser
escolhido por possuir um valor idêntico. Uma tal concepção
de igualdade tornaria toda a escolha trivial. Ora a ideia de uma escolha
livre não faz sentido senão no caso de certos critérios
possuirem mais valor do que outros. Não é possível
definir a identidade a não ser situando-me em relação
ao que conta. Essa ideia de uma escolha livre fundada numa razão
que se move dentro de um horizonte de intercompreensão, permite
que nos munamos de argumentos susceptíveis de serem opostos aos
que fazem uma interpretação mais fútil da cultura
de autenticidade. Sem um horizonte de intercompreensão, a razão
revela-se impotente para exercer o seu sentido critico.
Taylor considera, finalmente, que sem a noção de bem
comum a autenticidade não se traduz também na transferência
da energia política para agrupamentos minoritários, cada
vez mais incapazes de mobilizar as maiorias democráticas em torno
de programas e políticas comuns. O agir político implica
uma comunidade que seja simultaneamente mobilizadora e unificadora, conferindo
um sentido último à própria afirmação
da autenticidade num contexto moderno (Taylor, 1994: 118). Uma ética
procedualista surge para Taylor como incapaz de proceder a uma mobilização
dos indivíduos, no sentido de os fazer superar os modelos egocêntricos
de vida em que se encontram envolvidos. O simples
respeito pela norma encontra-se
impotente para proceder a essa mobilização e poderá,
quando muito, conduzir a uma relação instrumental com o Outro
em que os sujeitos se demitem da sua cidadania para recorrer a instâncias
judiciais a fim de fazer valer os seus direitos. Só a ideia de uma
república em que a partilha de um destino e a partilha de si próprio
constituam valores em si mesmos pode dar ao espaço público
um sentido em que a liberdade coincida com a activa participação
nos assuntos públicos (Taylor, 1991: 170-175).
Não deixa de ser tentador fazer um paralelo entre Taylor e as
teorias que sem se conformarem com uma concepção neo-aristotélica
da comunidade, conferem uma dimensão ética à subjectividade.
A forma como Habermas se debruça sobre a subjectividade e sobre
o seu significado político remonta já ao seu trabalho clássico
sobre as transformações da esfera pública, na qual
se reconheceu que essa instância passava pelas alterações
da dimensão intíma e por um aprofundamento da subjectividade
individual, cultivada nomeadamente na fruição e na produção
do juízo político e estético. A afirmação
da subjectividade, no sentido moderno, surge relacionado com uma ideia
de cidadania. A subjectividade afirma-se em articulação com
o público. A criação de uma instância onde os
privados se associam enquanto público - denominada esfera pública
- constitui outra estratégia teórica que se salda por um
outro percurso para atingir um efeito idêntico: o lugar conferido
na subjectividade à noção de cidadania.
No discurso ético de Habermas, que funda a justificação
das normas no acordo racional dos sujeitos, o respeito pelas pessoas reflecte-se
no direito de cada participante dizer sim ou não aos argumentados
apresentados. Tal como Taylor também Habermas faz ressurgir o problema
da ética nas relações entre sujeitos, rejeitando o
inevitável devir concentracionário da modernidade, identificado
pelos membros mais tardios da escola de Frankfurt e a presunção
de um consenso a priori, a que inevitavelmente o funcionalismo parece conduzir.
Também Habermas desenvolve a importância dos horizontes de
significação - remetidos para a noção de mundo
da vida - na formação das identidades, utilizando as mesmas
fontes teóricas de Charles Taylor, designamente a importância
de outrem na constituição da subjectividade, através
de uma leitura que privilegiou Hegel e Mead (Habermas, 1991: 11-43). Tal
como Habermas, Taylor também exprime a crença nas possibilidades
da razão para a escolha de caminhos diversos e confere importância
às práticas argumentativas no domínio das escolhas
individuais e colectivas. Finalmente, o próprio Taylor manifesta
a sua concordância com Habermas no que respeita a quatro elementos
essenciais que ele julga descortinar na sua obra mais recente: a relação
entre linguagem e sociabilidade; a complementaridade entre estrutura e
prática, graças à qual a tradição social
pode continuar a exercer influência sobre os indivíduos na
medida em que seja por eles continuamente renovada; a existência
de um conhecimento que funciona como pano de fundo e horizonte de pré
compreensão, e a admissão de uma complementaridade entre
eu e nós que possibilita a ultrapassagem de assuntos que dizem respeito
a "mim" e dizem respeito a "ti" ( Taylor, 1991: 23-29). Porém, o
que existe em Taylor que difere de Habermas é que o segundo peca
pelo facto de fazer depender o acordo racional de uma ética formal
e procedualista. (Taylor, 1991: 30) Segundo esta crítica, as normas,
por si só, não seriam capazes de por si só de mobilizarem
os sujeitos a não ser que por detrás de um princípio
que convoque a reciprocidade mútua dos actores envolvidos exista,
afinal, um ideal escondido de "bem comum".
Para Habermas, ao invés, a relação entre "eu"
e "nós" que Taylor elogia é vista de uma forma que enfatiza
consideravelmente o segundo como um precedente absoluto, de uma forma totalizante
que minimza o poder de negação e de autonomia dos sujeitos
(Habermas, 1991: 217).Embora se admita que o mundo da vida se constitui
como uma dado à partida que implica que o trabalho da racionalidade
se não exerça no vazio - o que admite paralelo com a forma
como Taylor entende os horizontes de significação - é
necessário que se compreenda que a existência de pré-dados
ou de critérios de relevância se confronte com a possibilidade
da sua mudança, só possível pelo trabalho crítico
de racionalidade, no sentido em que o individual não pode ser olhado
como um mero momento da totalidade. Nesse sentido, a teoria habermasiana,
apesar de criticada pelo seu formalismo, convoca o exercício crítico
da razão para o próprio mundo das evidências quotidianas,
convocando os próprios agentes colectivos sociais que lutam, por
exemplo, pelo reconhecimento de novas identidades, a adoptar uma atitude
crítica sobre a interpretação das normas ou a busca
de novos sentidos.
Aqui tem cabimento chamar à colacção a insistência
de Giddens no argumento segundo o qual o "estilo" de vida não significa
um afastamento radical da esfera pública - até porque a reflexão
crítica sobre a subjevtividade é um dos elementos onde radica
o próprio entendimento moderno dessa esfera. Acreditando no facto
de que ter uma identidade pessoal a descobrir e um destino pessoal por
cumprir implica uma força subversiva de grandes proporções,
Giddens assume que é possível distinguir entre os impulsos
no sentido da realização pessoal e as pressões consumistas
no sentida da satisfação de desejos. Nesse sentido, distingue
entre uma política emancipadora -identificada com a racionalidade
que predominou na modernidade em relação aos constrangimentos
que diziam respeito á acção humana e que visava cortar
as amarras do passado, terminando com dominação ilegítima
de uns grupos sobre os outros - e uma política da vida, centrada
na reflexividade sobre os contextos da vida quotidana tal como ela se processa
na modernidade tardia, centrada em questões existenciais que dizem
respeito à pergunta "como vivermos?", o que e é que eu quero
ser ?" (Giddens 1997: 193-207). Este percurso passa afinal por uma relação
entre a política e o quotidiano, onde se pretenda que os assuntos
da vida, isto é, do privado, ascendam ao público, permitindo
que as identidades excluídas e os seus direitos adquiram visibilidade.
A emergência da política da vida tem a ver com os problemas
das identidades e com a ideia de que o espaço público deve
manter uma abertura essencial no sentido de evitar que novas identidades
permaneçam reprimidas e ocultas na esfera sombria da domesticidade.
É a propósito deste tipo de reflexão que faz sentido
lembrar a crítica feminista a Habermas, designdamente quando o acusam
de idealizar o mundo da vida por esquecer as relações de
dominação que nele existem, ao restringir o "poder "às
organizações burocráticas, atenunando a presença
das mesmas relações de poder no mundo da vida. (Fraser, 1992:
102)
Surge, porém, outra dificuldade de sinal contrário que
nos remete de novo a uma certa leitura de Foucault e Marcuse: uma nova
forma de visibilidade dada à agenda dos assuntos que dizem respeito
ao privado manifesta-se através de uma forma paroxística
em que se substitui a política pela ética, criando redes
de normativização e de vigilância cada vez mais apertadas
em nome da actuação que se considera políticamente
correcta. A justa pretensão de que há elementos da vida privada
que têm relevância pública não deve implicar
a ameaça à existência de uma esfera íntima,
onde a normativização dos elementos que dizem respeito à
vida individual se torna uma espécie de substituição
da política. A neutralidade liberal não pode ser substituida
por uma policiamento dos costumes, mesmo que a intenção dos
gendarmes de serviço seja libertadora. Há domínios
em que a discussão pública, mesmo quando efectuada com propósitos
alegadamente emancipatórios, se torna uma forma de multiplicação
de vigilâncias.
Os media e a subjectividade no contexto da cultura de massa
1. O número de variedades e a manipulação do desejo
Na modernidade tardia, a presença dos media, impressos ou electrónicos,
como mecanismo socializador que reconfigura por completo as interacções
no seio dos quais se processa a construção do self é
quase um lugar comum. As teorias críticas da cultura de massa, designadamente
a contundente análise desenvolvida por Adorno e Horkheimer associam
a comunicação com a integração social considerada,
simplesmente, como forma de violência que visa a integração
dos indivíduos na sociedade de troca. Numa análise que antecipa
de forma pessimista a relação da cultura de massa com a configuração
da identidade e a análise da subjectividade, os próprios
desvios em relação à norma são olhadas como
metamorfoses calculadas que servem todas para confirmar mais fortemente
a validade do sistema (Adorno e Horkheimer, 1995: 129). Graças ao
carácter comercial da cultura, a fronteira que a separava da realidade
empírica tornou-se indistinta, adoptando um papel de promoção
das identidades com base nas quais é construída a hierarquia
(Adorno, 1996: 53-54). A individualidade protagonizada pelos media remete
sempre para a realidade standartizada da dominação tecnológica,
tornando impossível qualquer forma de exercício de negatividade
por parte do sujeito. "A cultura de massa é fundamentalmente adaptação"
(Adorno, 1996: 58). Tudo, mesmo o que é individual tem que soar
como susceptível de ser reconhecido, como agindo de acordo com uma
harmonia pré-estabelecida (Adorno, 1996: 58). Surge a apreciação
implacável dirigida à gestão dos desejos e necessidades:
a cultura de massa baseia-se numa permanente auto-reflexão assente
na compulsão infantil de satisfação de necessidades
previamente criadas. (Adorno, 1996: 58)
O regresso inexorável do mercado e a visibilidade adquirida
pelo carácter industrial dos media no recente processo de desregulação
fez com que a as relações dos media com os campos da administração
e da economia voltassem hoje a ser objecto de uma reflexão que reassume
alguns pressupostos da Teoria Crítica. As investigações
relacionadas com o movimento de privatização generalizada
da televisão indiciam uma intromissão na esfera pública
das características próprias da actividade empresarial. A
sedução das aparências, a embriaguez visual, a velocidade,
a beleza a todo o custo, o prazer imediato, histórias e personagens
que podem rapidamente ser identificados, produtos que solicitam uma interpretação
mínima tornam-se o conteúdo fundamental da nova programação.
Nem sabemos se com estes termos estamos a descrever a informação
ou a publicidade, de tal forma é idêntica a «lógica»
que as une (Gomes, 1994: 305).O papel dos media aparece assim recentemente
associado ao triunfo do paradigma publicitário, o qual não
desdenha de intervir directamente na gestão do desejo: "A publicidade
massmediática destina-se exclusivamente a fazer com que os objectos
produzidos sejam mostrados e propostos aos consumidores em potencial. Mas
não se trata apenas da mera exibição, mas da provocação
do desejo, ou, da construção de necessidades não-naturais
do consumo dos objectos. A publicidade não informa sobre a existência
do objecto, a publicidade solicita o desejo do consumidor." (Gomes, 1994
: 304) A presença do inédito, do diferente, da transgressão,
do espectacular, da novidade, do choque, da mudança explica desta
forma a insistência na diferença: "a procura do prazer, mas
também da diferença, do efémero, do encontro e não
tanto da relação, a ideia de uma sociedade puramente «permissiva»
dão ao pensamento e às condutas sociais do nosso tempo um
brilho, uma excitação algo forçada que lembram os
entrudos que reaparecem justamente no meio dos nossos invernos, após
uma ausência secular." (Alain Touraine, 1996: 10) As imagens dos
media correspondem ao desejo desse brilho com um império de pequenos
estremecimentos, de simulacros que preenchem o nosso isolamento cada vez
mais radical: a aventura, o risco e a participação, o jogo
arriscado dos afectos foram substituídos pela fugacidade luminosa
das emoções em segunda mão. À semelhança
do resto da cultura de consumo, a televisão comercial conduz as
pessoas acreditarem que a posse e o consumo de mercadorias trará
felicidade e satisfação. Regresse-se, então, a Adorno
e à metáfora do número de variedades : "O que realmente
constitui o número de variedades, o que realmente excita qualquer
criança no momento em que assiste a esse tipo de actuação,
é o facto de que, em cada ocasião, alguma coisa acontece
e ao mesmo tempo não acontece nada. Cada acto de variedade, especialmente
o do palhaço e o do prestidigitador, é realmente uma forma
de espera. Subsequentemente conclui-se que a espera da coisa, que decorre
enquanto o prestidigitador continua a fazer as bolas girarem , é
a própria coisa esperada. No número de variedade, o aplauso
chega sempre um minuto mais tarde, nomeadmente quando o espectador percebe
que o que era suposto ser uma preparação para algo mais era
o próprio evento." (Adorno, 1996: 60) O jogo do desejo e da permanente
manipulação de necessidades faz-se da permanente espera do
momento em que a beleza e o corpo sadio regressam, o cartão de crédito
fica de novo disponível, e regressamos ágeis, sadios, ricos
e viris. Assim, "aquilo que vida significava outrora para os filósofos
passou a fazer parte da esfera privada e, mais tarde ainda, da esfera do
mero consumo, que o processo de produção arrasta consigo
como um apêndice sem autonomia e sem substância própria."
(Adorno, 1992: 7)
2. A busca da incerteza contra a paz perpétua
O inegável brilhantismo das apreciações de inspiração
adorniana esquecem algumas observações que têm a ver
com a própria teoria social. Os mecanismos desejantes, mesmo que
se traduzissem na absoluta adaptação, traduzem uma vontade,
ainda que frustrada, de mudar a vida. A perfeita adapatabilidade de que
fala Adorno diz respeito a uma dialéctica negativa aonde se antevê
o triunfo do imobilismo final: "rien ne faire comme une bête", como
ele próprio salienta em Minima Moralia onde, numa cruel alusão
a Kant assume a profecia de que " entre os conceitos abstractos nenhum
se aproxima tanto da utopia realizada quanto a paz perpétua" (Adorno,
1992: 38). Ora uma teoria social que não se reduza a uma concepção
totalizante deve descer ao pormenor para descobrir os traços de
incerteza que desmintam a paz perpétua .
É um facto que os media estão sob suspeita.
Num período em que o mercado aparece como o principal mecanismo
económico regulador, as estratégias de captação
dos públicos são por vezes feitas à revelia dos mais
elementares direitos das pessoas, e apresentam duvidosa repercussão
para a qualidade do exercício da cidania. Até o que parecia
indutor de novas possibilidades surge, afinal, gerador de decepções.
O processo de construção de mensagens pelos media conheceu
desde a década dos vídeos ligeiros e das rádios pirata
até à constituição dos grandes grupos multimédia,
desde o new journalism à nova dramatização das narrativas
noticiosas, alterações que passaram por caminhos que incluiram,
desde a alteração dos direitos de antena até ao reconhecimento
de novos direitos dos leitores, espectadores e ouvintes, até a transformação
da própria narrativa ao nível de um registo de maior abertura
à subjectividade, a introdução do texto de autor e
o reconhecimento dos factos noticiáveis como elementos de uma intriga
jornalística. Tratam-se, porém, de elementos que tanto indiciaram
a possibilidade de uma superação do carácter impessoal
da narrativa, adequados à recuperação da subjectividade
como se mostram, simultaneamente, adequados à espectacularização
da informação. O que muitas das vezes se afigurava como experimental,
novo, gerador de riscos e de novas possibilidades acabou por se revelar
como apropriável pelas tendências mais negativas do mercado
das mensagens.
Qualquer que seja a apreciação dos critérios de
qualidade da programação comercial das televisões
privadas, não se pode deixar de admitir que elas traduzem vários
fenómenos que ajudam à reconfiguração, à
dissolução para uns, à transformação
para outros, do espaço público: em vez da concentração
das notícias em umas poucas e reduzidas figuras que apareciam para
produzir discursos de natureza oficial verifica-se o acesso à programação
e até à informação por parte de camadas sociais
que finalmente adquirem alguma visibilidade pública assumindo os
seus gostos e até o seu desprezo ou desencanto por aqueles que eram
os "grandes projectos colectivos." As chamadas estórias de rosto
humano, para além dos concursos e reality-shows, traduzem a chegada
a um espaço de visibilidade pública de gostos, gestos e formas
de estar que não eram socialmente exibíveis. Porém,
defrontamo-nos com um paradoxo: as novas franjas sociais a que nos referimos
conquistam a visibilidade, mas parecem, afinal, confrontadas com diversos
processos de dominação cultural. As massas, como diria Benjamin,
ascendem à sua visibilidade mas parecem continuar arredadas dos
seus destinos (Benjamin, 1997: 195). As conclusões de "A Obra de
Arte na Era da sua Reprodutibilidade Técnica" parecem conhecer uma
admirável segunda vida: a vida das massas é o próprio
conteúdo da televisão. Falta a realização da
política para que esse conteúdo não se circunscreva
à estetização de diversas formas de barbárie
que agora pululam um pouco por todo o lado: a celebração
da miséria, a exaltação da pequenez, a contemplação
cínica das próprias limitações que os reality-shows
tanto insistem em explorar. De quem ri-mos? De nós mesmos, como
parece anunciar a recente vaga de programas na TV brasileira nos quais
marido e mulher apresentam em público as suas desavenças
recorrendo ao insulto e à agressão.
As mais diversas orientações sociais que emergem à
margem do que é socialmente consensual são objecto de um
tratamento que oscila entre o irónico e o fascínio pelo bizarro,
sendo por isso, remetidos pelos media para um domínio que descai
facilmente no sensacionalismo. O sensacionalismo, apesar do seu ar aparentemente
transgressor, é, apesar de tudo, uma forma de denunciar a transgressão,
desempenhando, por isso, um papel socialmente conservador.
A relação entre os media e o espaço público
aparece, apesar de tudo, mergulhada numa teia de contradições.
É em face delas que se desenha a necessidade de manter a tensão
não partindo para a análise com uma opção teórica
de perfil totalizante, que desdenhe as subtilezas, e que por isso condene
a comunicação a uma visão puramente homogeneizadora
e, sobretudo, fatalmente homogeneizadora. Admita-se, enfim,que o jogo político
confinado aos quadros institucionais se transfira para esferas da vida
quotidiana, fixando um novo sentido para o trabalho, para a política
e para as formas de sociabilidade - eventualmente "um sentido mais partilhado,
que procura reabilitar contextos comunicacionais deteriorados, e aspira,
assim, a afirmar a vontade colectiva em termos intercompreensivos." (Esteves,
1995: 94) Nesse sentido, as novas perspectivas levantadas pelas identidades
- com a exigência que hão-de transportar de uma atenção
a problemas relacionados com as formas de vida - são susceptíveis
de, por si próprias, constituirem uma poderosa interpelação
crítica.
Assim, os media e as suas relações com as atitudes individuais
têm oscilado através de sucessivas experiências ora
mais eufóricas, ora mais apocalípticas. Se até aos
anos 50 e 60, a comunicação de massa parece feliz no seu
papel de conseguir o melhor desempenho democrático ao mesmo tempo
que oferece o entretenimento aceitável, colocando a enfâse
na função socializadora e integradora que tanto suscitou
a ira dos críticos da cultura de massa, a partir dos anos 80 e 90,
o papel de entretenimento, de evasão, de sonho torna-se hegemónico,
sendo frequentemente relacionado com a proliferação do conformismo
quer social quer político. A apatia perante o espaço público
assume-se quase como um "direito legítimo" ao repouso por parte
do cidadão, de que o consumismo televisivo constitui parte essencial
(Lazarsfeld e Merton, 1987: 230- 31). A enfâse na realização
individual, no lazer e na fruição pessoal de que os media
fazem eco através da generalização do espectáculo
e de entretenimento, não deve ser objecto de uma pura condenação
que não tenha em conta o facto de que na afirmação
de alguns direitos se encondem desejos de afirmação, de reconhecimento
e de auto-afirmação que têm de ser pensados , numa
perspectiva crítica, à luz das transformações
verificadas nas relações entre público e privado.
Em vez da pura condenação moralista do gosto das audiências
pelo entretenimento, deve-se também, reflectir sobre o significado
da "fome de imaginário" que se esconde por detrás do consumismo
desenfreado por histórias de rosto humano, do sensacionalismo e
da invasão da privacidade, tentando perceber em que medida uma certa
paixão pela personalização das notícias, para
além de ser uma clara aposta na rentabilização de
um certo conceito circense de espectacularização do quotidiano,
não esconde também um desencanto por um espaço público
desenraizado da vida e afastado desse quotidiano. Onde começa a
denúncia da dominação que se oculta no privado e a
brutal colonização do espaço público pelo puro
voyeurismo?
O processo de enfatização por parte dos media da fruição
individual e de concentração numa agenda menos dedicada às
questões públicas não deve ser julgado, de forma apressada.
Se é verdade que os momentos de afirmação do mercado
coincidem quase sempre com a explosão da infortainment e do sensacionalismo
a verdade é que esses momentos devem também ser aproveitados
para a afirmação de novos direitos. Há ainda um trabalho
crítico da racionalidade que não pode ser perdido de vista
mas que não se pode reduzir a tudo considerar como pura manifestação
da dominação. Se é verdade que a análise destas
transformações é feita com base em premissas que implicam
uma atitude crítica, não deixa de ser também verdade
que a afirmação da individualidade não deve ser objecto
de uma leitura apocalíptica. A acentuação da diferença
está relacionada com a afirmação do mercado. Porém,
também se prende com um movimento generalizado de relação
com a subjectividade que, uma vez ultrapassados os excessos dos sociologismos
e dos estruturalismos, permite a adopção de uma perspectiva
crítica. A recusa da homogeneização tanto assume os
contornos de uma certa exploração mercantil e subjugante
da diferença como coexiste com a busca genuína da identidade,
afirmando mecanismos de ruptura e de afirmação individual
e identitária que podem constituir autênticas vias de aprofundamento
dos mecanismos de vivência democrática e do espaço
público. Mais uma vez, esta opção ir-se-á jogar
no plano do social e do político e, mesmo assim, de uma forma que
nunca é totalmente planificável nem transparente, pelo que
nunca será absolutamente resolvida a tensão entre as alternativas
possíveis.
No nossso ponto de vista, a revitalização do espaço
público prende-se ainda com o próprio agir dos media, o que
remete também, mas não só, para a deontologia dos
jornalistas e para as próprias condições de produção
de mensagens. Os media podem ser um factor de desestabilização
de ordens dominantes, chamando para o espaço público, elementos
de avaliação que permaneciam obscuros aos olhos do público
que se constituem como elementos nodosos no seio da sociedade, que contribuiam
para a reificação do mundo da vida. Pelo contrário,
podem precisamente reproduzir os compromissos estabelecidos, impedindo
a problematização crítica dessa realidade. A escolha
entre estas opções implica a existência de uma teoria
social que não negue, ela própria, a responsabilidade dos
actores sociais. Nesse sentido, é dentro das possibilidades que
esta sociedade oferece e das indeterminações que a caracterizam
que há-de jogar-se a possibilidade de ilhas de resistência,
de interstícios que permitam a verdadeira afirmação
das diferenças. Os media em última instância, no universo
sóciocultural, obedecem às exigências de intercompreensão
e, nesta medida, a sua lógica de funcionamento nunca pode ser estritamente
(nem predominantemente) sistémica ou funcional (Esteves: 1995, 98).
A resposta ao papel dos media na formação de um consenso
social, onde predomine a ordem democrática e o respeito pela diversidade,
passa necessariamente pela orientação crítica que
referi, pelo que remete para a ética e para deontologia, não
podendo ser posta em causa a responsabilidade que os próprios agentes
são levados a ter em conta neste domínio. A enfâse
no regresso da participação individual implica que a responsabilidade
impessoal do «sistema» deve pois, ser substituída pela
responsabilidade, individual e colectiva, dos jornalistas. Tudo o que permite
limitar a relação media- receptor em benefício de
uma relação activa, na qual o receptor não é
apenas um comprador mas um indivíduo reconhecido na pluralidade
dos seus papéis sociais, contribui para acelerar o aprofundamento
democrático da sociedade. Porém, esta não se esgota
na mera responsabilização dos profissionais- onde aliás
as respostas deontológicas podem servir muitas das vezes de alibi
e de boa consciência, como por vezes acontece com o fenómeno
com que chamamos de «ideologia do profissionalismo». Remete
também para um olhar sobre os media que não pode privilegiar
o liberalismo puro. Apela ao repensar do próprio conceito de «serviço
público» o qual tão maus resultados deu mas que tem
sentido tornar a equacionar num horizonte de novas possibilidades. É
possível defender um uso dos media no sentido de transmitirem informação
alternativa, legitimadora de lutas pelo reconhecimento por parte de movimentos
sociais ( Kellner, 1985: 79). No caso específico das identidades,
a experiência dos Estados Unidos e da expansão dos sistemas
de cabo deu origem à busca de novos materiais: mais programas de
debate, mais documentários, mais programas informativos, destinados
nomeadamente a culturas minoritárias. Por outro lado, a introdução
da televisão por cabo foi acompanhada da exigência por parte
da Federal Communication Comission de que as empresas concessionárias
disponibilizassem três canais para o estado, governo local , educação
e acesso público comunitário. No caso do acesso público,
foi determinado que a companhia deveria tornar disponível equipamento
e tempo de antena para que toda a gente pudesse fazer uso do canal sem
restrições, excepto as que resultam da interdição
da obscenidade e da calúnia (Kellner, 1985, 81-2). As sondagens,
uma das quais por inciativa da companhia de cabo, indica que todas as noites
em Austin entre dez mil a trinta mil espectadores assistem a um programa
dos canais de acesso público, verificando-se mesmo, numa sondagem
nacional que o acesso público se tornou numa prioridade para muitos
espectadores.( Kellner, 1985: 83-4).O próprio Kellner é co-autor
de um programa, "Alternative Views", que conta com a colaboração
da University of Texas.
Assim, o próprio regresso da política sugere uma perspectiva
em que os direitos da comunicação não pode ser apenas
encarados como puros direito individuais, mas como possuindo uma dimensão
pública. Neste sentido, a fundamentação social, política
e filosófica da especificidade do direito de comunicação
só é possível em homenagem a uma ideia de soberania
democrática que norteie a prática dos media e as atitudes
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