AUTENTICIDADE, DESEJO E MEDIAÇÃO
Algumas reflexões sobre subjectividade e cidadania no contexto da cultura de massa

João Carlos Correia, Universidade da Beira Interior

Introdução

O principal problema sobre o qual pretendo debruçar-me é o de tentar compreender certa fome de imaginário e de entretenimento centrada na fruição individual que hoje percorre os media, relacionando-o com as consequências que esse fenómeno tem na construção e representação da subjectividade e chamando a atenção para as pertinentes questões políticas que levanta. A vocação dos media para despertar e gerir a emoção e o desejo fez-se, desde logo, sentir quando a "imprensa de massa" fez a sua aparição em meados do século XIX, num período de plena afirmação do mercado. A "penny press" surgiu como uma resposta às necessidades culturais desencadeadas pelos fenómenos da urbanização que tinham atraído para as cidades uma massa heterogénea e indiferenciada, sensibilizada para o consumo de produtos que satisfizessem necessidades correspondentes aos seus horizontes culturais. O processo de desenvolvimento capitalista era favorável à emergência de uma mentalidade igualitarista. As classes emergentes ou em consolidação buscavam a sua identidade opondo-se às classes aristocráticas que se sentiam identificadas com a cultura clássica. A origem das notícias é interpretada na sua relação com a democratização política, a expansão da economia de mercado e a autoridade emergente de uma classe média urbana (Michael Schudson,1978: 4). Estavam reunidas as condições para que o "fait divers", o crime, o baile de sociedade, o desporto ou o combate de rua se tornassem assuntos de primeira página.
Um fenómeno idêntico parece acontecer hoje, mais uma vez, num momento em que se faz sentir um pouco por todo o lado um movimento de privatização que adquiriu especial visibilidade graças às televisões comerciais, e que emerge envolto num ambiente de desilusão em relação aos grandes movimentos colectivos e de afirmação dos valores do mercado.. Verifica-se um incremento substancial no volume de horas de ficção; tanto nos canais públicos como privados, dá-se primazia à função de entretenimento; aumenta o espaço ocupado pelas emissões desportivas; escasseia a atenção dada a novos programas de informação nas novas televisões comerciais; constata-se uma presença mais substancial de filmes, talk shows, reality shows e telenovelas. Porém, este movimento estende-se a toda a comunicação social, dentro da especificidade de cada medium. Privilegia-se o espectáculo do quotidiano: as histórias de vida da "gente vulgar", as ficções que retratam o que se considera serem as concepções do cidadão médio, os programas e as revistas que dizem respeito aos mais famosos. Os jornais de referência publicam cadernos de "tendências", um termo impreciso que inclui discussões sobre identidades e novos conceitos de família, junto a "peças" sobre a moda ou sobre a família real britânica. Naturalmente, este tipo de "peças" jornalísticas entram em categorias muito diversas e obedecem a lógicas diferentes. Porém, entre o que as difere, importa verificar o que também as une: uma tendência que todos intuimos para uma acentuação dos problemas que dizem respeito à fruição individual, aqueles que dizem respeito "ao viver a própria vida" num contexto de uma sociedade onde se multiplicam tais tipos de apelos.
Como o desejo de imaginário e de fruição parece centrar-se, mais uma vez, na personalização da informação e na generalização do entretenimento, vislumbrando-se uma insistência na fruição individual em detrimento da acção pública, o problema que emerge na abordagem desta matéria passa por questionar qual a relação entre essa insistência na presença dos actores sociais e a acção dos media no contexto geral da cultura de massa: os media possibilitam uma afirmação da subjectividade que se traduz numa vontade de realização pessoal que é um elemento positivo das sociedades modernas, ou pelo contrário, configuram-se como um elemento indutor de um narcisismo que percorre essas mesmas sociedades e é, afinal, sintoma de uma apropriação generalizada dos valores simbólicos pelo mercado? Será que devemos reduzir toda a insistência no entretenimento e na afirmação individual, com todo o seu cortejo de consequências negativas - individualismo, hedonismo, apatia política - a um apelo às forças de mercado ou devemos, pelo contrário, ter em conta o facto de que a insistência na fruição individual é um elemento que tem a ver com a vontade de realização que é uma das conquistas da modernidade ? O problema será sempre retomado com dificuldades acrescidas: a insistência na subjectividade e nos problemas relacionados com a identidade pode ser também a face visível de uma espécie de assédio semiótico por parte da cultura de consumo, a qual efectua a racionalização do mercado, criando uma procura planeada, capaz de fazer com que os produtos e serviços possam não mais ser consumidos em face das suas necessidades naturais, ou seja do seu valor de uso, mas em função do seu valor de troca. (Gomes, 1995: 303). A completa significação deste processo de afirmação da fruição individual, com todas as suas tensões contraditórias, só será compreendida com o auxílio da perspectiva política.
Uma interpelação deste género supõe um percurso crítico na qual se põem em destaque alguns elementos:
a) Começa-se por uma análise de um conjunto de propostas sobre a subjectividade e ainda por uma certa leitura das potencialidades abertas pelo conceito de "autenticidade", a fim de descobrir as possibilidades normativas do individualismo moderno;
b) procede-se à análise das relações entre a subjectividade e a cultura de massa e da forma como essa relações se manifestam na construção das identidades. Tentaremos compreender como a afirmação individual e a fruição têm duas faces: por um lado, podem-se traduzir no grau zero da política tal como era pensada pelos modernos, ou significar uma reconsideração dessa política que se traduza na colonização da agenda pública por questões que dizem respeito ao foro privado, no sentido do sensacionalismo e da criação de redes apertadas de vigilância ; por outro lado, podem permitir um novo entendimento da política onde a dimensão crítica possam servir para equacionar, de um modo, diverso, o exercício da cidadania e o entendimento da figura do público.
c) finalmente, interpelam-se os media quanto á representação que efectuam do privado e da identidade sugerindo uma intervenção à luz dos conceitos de ética e de responsabilidade colectiva .

I. Desejo, autenticidade e mediação

Nas sociedades modernas, as pessoas podem, apesar de numerosos constrangimentos, orientar as suas vidas segundo um conjunto de possibilidades que ultrapassa tudo quanto os nosssos antecessores podiam prever. Na satisfação do desejo e na busca do prazer, o afecto e o imaginário, as ordens implícitas da construção da subjectividade tornaram-se centrais na modulação da linguagem institucional. As categorias do prazer, do consumo e da liberdade individual mesclam-se de acordo com uma lógica em que a busca da pluralidade de caminhos se multiplica ao infinito. A escolha de percursos individuais torna-se numa espécie de obsessão absoluta. Na modernidade tardia, o projecto de auto-identidade, ocorre num contexto de escolha múltipla, em que a noção de estilo de vida ganha um significado particular. Vive-se assim numa tensão entre as influências padronizadoras e homogeneizantes, de que os mecanismos mercantis podem constituir um elemento decisivo e as influências fragmentadoras onde a abertura da vida social, a pluralidade de contextos de acção e a diversidade de mecanismos institucionais e autoridades desempenham um papel decisivo (Giddens, 1997: 7). A reflexividade constante em que se envolveu a construção da identidade pessoal atinge os mecanismos psíquicos e o corpo, através de um conjunto de decisões no qual moldar o corpo, controlá-lo ou, inclusivamente construir formas de alterar as regularidades biológicas que se tinham por mais adquiridas (a fruição da sexualidade ou a reprodução) passam a fazer parte das possibilidades abertas pelo "estilo de vida". Agnes Heller clama a propósito pelo conceito de contigent person para se referir à indeterminação em que se encontra o sujeito moderno, na medida em que a pessoa já não recebe o destino ou o telos da sua vida no momento do seu nascimento como acontecia nos tempos pré-modernos onde se nascia para fazer isto ou aquilo, para se viver desta ou desta forma, morrer desta ou daquela maneira. A pessoa moderna nasceu com um conjunto de possibilidades que não a confronta com a existência de um qualquer telos que dê um sentido unificador a essas probabilidades. De uma certa forma, a pessoa moderna, escolhe-se a si própria, o seu enquadramento, o telos que coloca no centro da sua vida (Heller, 1990: 55-56). A questão é saber o que significa esta indeterminação, esta contigência ou fragmentação: induz um relativismo permissivo no qual o sujeito se perde a si próprio? Ou, pelo contrário, relaciona-se com novas e não testadas possibilidades emancipatórias?
Interessa-nos, aqui, referir os núcleos teóricos que chamaram a atenção para os processos de dominação que se desenvolvem na vida quotidiana. Na bem conhecida construção teórica de Foucault, durante quase toda a parte da sua obra que precede o 2º volume da "História da Sexualidade", a subjectividade surge entendida como um puro processo de sujeição, no decurso do qual os diversos micropoderes contribuem para uma construção disciplinar do sujeito: a «história da alma moderna em julgamento» implica uma matriz de construção do sujeito, comum às técnicas penais e às ciências humanas.(…) (Foucault, 1977: 26). A subjectividade na análise foucauldiana é produzida permanentemente, em torno, na superfície e no interior do corpo, através de processos de ortopedização, treinamento, vigilância, correcção, normalização e exclusão (Foucault, 1977: 31). A alma "é o elemento onde se articulam os efeitos de um certo tipo de poder e a referência de um saber, a engrenagem pela qual as relações de poder dão lugar a um poder e a um saber possível e o saber reconduz e reforça os efeitos de poder."( Foucault, 1977: 31). A organização deste conhecimento e deste poder que lhe está associado agrupa-se em torno das conhecidas exclusões centradas no interdito, ligado ao discurso, na oposiçao entre "razão e loucura", e, finalmente, na oposição "verdadeiro/ falso" centrada no triunfo de uma certa ideia de ciência (Foucault, 1971: 12-20).
Para a Escola de Frankfurt, e em especial nas obras de Adorno e de Marcuse, a racionalidade instrumental ter-se-ia tornado responsável pela uniformização da existência individual que caracteriza a vida no mundo sob o capitalismo avançado. A história da razão para dominar a natureza é a história da subjugação do homem pelo homem. A sobrevivência ou o êxito do indivíduo perante a sociedade significa em primeiro lugar a adaptabilidade pelo que cada aspecto dos processos vitais sociais está sujeito à racionalização e ao planeamento, incluindo os domínios mais privados do homem. A derrocada do pensamento negativo é a noção que hegemoniza o pensamento de Marcuse, quando descreve as novas transformações operadas pela sociedade industrial: "a produção e a distribuição em massa reivindicam o indivíduo inteiro (…) o resultado não é o ajustamento mas a mimese; uma identificação imediata do indivíduo com a sociedade e, através dela, com a sociedade no seu todo." (Marcuse, 1977: 31) A gestão do desejo surge como um elemento de dominação do homem no mundo da sociedade administrada: a tecnologia das sociedades industriais habilitou-as a eliminar o conflito por efeito de assimilar todos aqueles que em formas anteriores de ordem social representaram elementos de diferendo ou dissensão. Ora o mecanismo que Marcuse vislumbra para que o sistema logre este desiderato é a produção e satisfação de necessidades, através de um tratamento da subjectividade centrada no consumo, na fruição individual e na satisfação das necessidades. Esta espécie de gestão programada do desejo traduz-se na tese segundo a qual a liberdade torna-se um elemento da própria dominação: a sexualidade é liberalizada sob formas socialmente construtivas, isto é adequadas aos próprios mecanismos de adaptabilidade ao sistema (Marcuse, 1977: 84). O consumo, a exposição pública, a introdução do sexo na publicidade e nas relações públicas, aquilo a que ele chama de corrrosão da indevassibilidade rompe a barreira entre público e privado de uma forma em que a permissividade torna mais imperativa a submissão (Marcuse: 1977, 84). Assiste-se a como a "a mobilização e administração da libido pode ser responsável por por muita da submissão voluntária, da ausência de terror, da harmonia pré-estabelecida entre necessidades individuais e desejos,propósitos e aspirações socialmente necessários." (Marcuse, 1977: 85). Curiosamente, sente-se, ao longo desta tese, o horror pela invasão pretensamente libertadora do privado que percorre, em palavras admiráveis, o I Volume da História da Sexualidade: "Nós, de há dezenas de anos para cá não falamos dele" - do sexo- "sem assumirmos uma certa afectação: consciência de desafiarmos a ordem estabelecida, tom de voz que mostra que nos sabemos subversivos, ardor em esconjuraramos o presente e invocarmos um futuro cuja chegada pensamos efectivamente estarmos contribuindo para abreviar. Algo da revolta, da liberdade prometida, da época próxima de uma outra lei , se introduz facilmente no discurso sobre a opressão exercida sobre o sexo. O bom sexo será amanhã.(…)parece-me essencial a existência na nossa época de um discurso em que o sexo , a revelação da verdade, a inversão da lei no mundo, o anúncio de um outro dia e a promessa de uma certa felicidade estão ligados entre si. Hoje é o sexo que serve de suporte a essa velha forma, tão importante no Ocidente, da pregação." (Foucault, 1994:12-13-36)
Este conjunto de teorias têm, a meu ver, o defeito de parecerem ignorar o carácter muito mais complexo dos processos de socialização. Em alternativa, urge encontrar um lugar para o sujeito que não o reduza a u mero efeito de poder.
As sociedades de consumo, caracterizadas pelo individualismo intenso, centradas nas satisfações do desejo e na realização do prazer terão, para alguns, perdido o sentido do ideal, a perspectiva de um fim pelo qual valesse a pena morrer. É neste sentido que Taylor, citando Tocqueville, evoca os pequenos e vulgares prazeres que as gentes procuram na era da democracia. ( Taylor, 1994: 11) A satisfação do desejo individual na sociedade de consumo surge, nesta perspectiva, associada à face sombria do individualismo. A exploração do desejo pode mesmo ser entendida como um recurso ao dispor de uma tirania que já não será como dantes fundada no terror e na opressão, mas antes na gestão e programação das atitudes individuais, consolidada através dos diversos processos de sedução ao seu dispor- o que curiosamente se aproxima das hipóteses levantadas por Marcuse (Taylor, 1994: 31). Apesar de tudo, a afirmação do "eu" se não implica apenas atitudes de natureza hedonista: há interrogações acerca de como viver a minha vida de uma forma que seja digna de ser vivida, ou acerca de que tipo de vida devo levar para realizar as minhas competências e aptidões particulares, ou acerca do que constitui uma vida rica de sentido que se oferecem como sendo merecedoras de um tratamento particularmente delicado, uma atenção particular, aquilo a que Taylor chama uma "strong evaluation."(Taylor, 1989:14). A autenticidade, tal como é pensada por Charles Taylor é um conceito que implica, assim, uma afirmação de subjectividade que não se esgota no escapismo nem no hedonismo, tendo, pelo contrário, um significado de realização pessoal que se identifica com a afirmação do sujeito num horizonte social que admite a existência do Outro, enquanto realidade próxima geradora de enormes potencialidades éticas. Por detrás da aparente generalização do hedonismo, esconde-se uma ideia de autenticidade susceptível de ser considerada como um ideal moral ou ético e que tem implícita a ideia "de uma existência melhor e mais elevada, aonde a própria ideia de melhor e de mais elevado não se definiria em função dos nossos desejos e necessidades, mas com vista a um ideal ao qual devíamos aspirar" (Taylor, 1994: 23-24).
Recusando afirmar que tudo vai no melhor dos mundos, Taylor apresenta-se como adepto de soluções que preservem simultaneamente a liberdade individual e o reconhecimento da dimensão moral do sujeito. Ou seja: a autenticidade é um ideal válido; os ideais morais podem ser discutidos racionalmente, o que implica uma recusa do subjectivismo; e estas discussões podem trazer consequências para a actuação dos sujeitos e para o destino da vivência colectiva. Esta posição nega as perspectivas que nos consideram como prisioneiros de um sistema económico ou de qualquer "gaiola de aço" burocrática (Taylor, 1994: 31-33). A descoberta da autenticidade como ideal ético inscreve-se no subjectiv turn da modernidade na qual a interioridade tem implicita a ideia de que cada um tem a sua maneira própria de ser humano. Ser sincero consigo mesmo significa ser fiel à minha própria originalidade, a qual eu sou o único a poder descobrir, realizando uma potencialidade que é propriamente minha.
Porém, simultaneamente, a autenticidade implica o reconhecimento do carácter dialógico da existência humana. "Não é possível descobrir isoladamente a nossa identidade: ela é negociada num diálogo, em parte exterior, em parte interior, com o outro." (Taylor, 1994: 56) Tornamo-nos agentes humanos, capaz de nos compreender-nos a nós próprios, e logo, de definir uma identidade graças à aquisição de uma linguagem, a qual todavia só é adquirida e dominada graças ao intercâmbio que realizamos com os outros que contam para nós, aqueles a que George Herbert Mead refere como "outros significativos" (Taylor, 1991: 24). A descoberta da autencidade não é um processo monológico. Antes, resulta de um encontro com outro. Definimo-nos num diálogo, por vezes por oposição ou em conflito, com as identidades que os outros que contam reconhecem em nós (Taylor, 1994: 38-45). A constituição da diferença e da originalidade só é passível de ser entendida num horizonte de intercompreensão. O processo de escolha das opções individuais deixa de ser uma mera afirmação de relativismo, no qual tudo pode ser escolhido por possuir um valor idêntico. Uma tal concepção de igualdade tornaria toda a escolha trivial. Ora a ideia de uma escolha livre não faz sentido senão no caso de certos critérios possuirem mais valor do que outros. Não é possível definir a identidade a não ser situando-me em relação ao que conta. Essa ideia de uma escolha livre fundada numa razão que se move dentro de um horizonte de intercompreensão, permite que nos munamos de argumentos susceptíveis de serem opostos aos que fazem uma interpretação mais fútil da cultura de autenticidade. Sem um horizonte de intercompreensão, a razão revela-se impotente para exercer o seu sentido critico.
Taylor considera, finalmente, que sem a noção de bem comum a autenticidade não se traduz também na transferência da energia política para agrupamentos minoritários, cada vez mais incapazes de mobilizar as maiorias democráticas em torno de programas e políticas comuns. O agir político implica uma comunidade que seja simultaneamente mobilizadora e unificadora, conferindo um sentido último à própria afirmação da autenticidade num contexto moderno (Taylor, 1994: 118). Uma ética procedualista surge para Taylor como incapaz de proceder a uma mobilização dos indivíduos, no sentido de os fazer superar os modelos egocêntricos de vida em que se encontram envolvidos. O simples respeito pela norma encontra-se impotente para proceder a essa mobilização e poderá, quando muito, conduzir a uma relação instrumental com o Outro em que os sujeitos se demitem da sua cidadania para recorrer a instâncias judiciais a fim de fazer valer os seus direitos. Só a ideia de uma república em que a partilha de um destino e a partilha de si próprio constituam valores em si mesmos pode dar ao espaço público um sentido em que a liberdade coincida com a activa participação nos assuntos públicos (Taylor, 1991: 170-175).
Não deixa de ser tentador fazer um paralelo entre Taylor e as teorias que sem se conformarem com uma concepção neo-aristotélica da comunidade, conferem uma dimensão ética à subjectividade. A forma como Habermas se debruça sobre a subjectividade e sobre o seu significado político remonta já ao seu trabalho clássico sobre as transformações da esfera pública, na qual se reconheceu que essa instância passava pelas alterações da dimensão intíma e por um aprofundamento da subjectividade individual, cultivada nomeadamente na fruição e na produção do juízo político e estético. A afirmação da subjectividade, no sentido moderno, surge relacionado com uma ideia de cidadania. A subjectividade afirma-se em articulação com o público. A criação de uma instância onde os privados se associam enquanto público - denominada esfera pública - constitui outra estratégia teórica que se salda por um outro percurso para atingir um efeito idêntico: o lugar conferido na subjectividade à noção de cidadania.
No discurso ético de Habermas, que funda a justificação das normas no acordo racional dos sujeitos, o respeito pelas pessoas reflecte-se no direito de cada participante dizer sim ou não aos argumentados apresentados. Tal como Taylor também Habermas faz ressurgir o problema da ética nas relações entre sujeitos, rejeitando o inevitável devir concentracionário da modernidade, identificado pelos membros mais tardios da escola de Frankfurt e a presunção de um consenso a priori, a que inevitavelmente o funcionalismo parece conduzir. Também Habermas desenvolve a importância dos horizontes de significação - remetidos para a noção de mundo da vida - na formação das identidades, utilizando as mesmas fontes teóricas de Charles Taylor, designamente a importância de outrem na constituição da subjectividade, através de uma leitura que privilegiou Hegel e Mead (Habermas, 1991: 11-43). Tal como Habermas, Taylor também exprime a crença nas possibilidades da razão para a escolha de caminhos diversos e confere importância às práticas argumentativas no domínio das escolhas individuais e colectivas. Finalmente, o próprio Taylor manifesta a sua concordância com Habermas no que respeita a quatro elementos essenciais que ele julga descortinar na sua obra mais recente: a relação entre linguagem e sociabilidade; a complementaridade entre estrutura e prática, graças à qual a tradição social pode continuar a exercer influência sobre os indivíduos na medida em que seja por eles continuamente renovada; a existência de um conhecimento que funciona como pano de fundo e horizonte de pré compreensão, e a admissão de uma complementaridade entre eu e nós que possibilita a ultrapassagem de assuntos que dizem respeito a "mim" e dizem respeito a "ti" ( Taylor, 1991: 23-29). Porém, o que existe em Taylor que difere de Habermas é que o segundo peca pelo facto de fazer depender o acordo racional de uma ética formal e procedualista. (Taylor, 1991: 30) Segundo esta crítica, as normas, por si só, não seriam capazes de por si só de mobilizarem os sujeitos a não ser que por detrás de um princípio que convoque a reciprocidade mútua dos actores envolvidos exista, afinal, um ideal escondido de "bem comum".
Para Habermas, ao invés, a relação entre "eu" e "nós" que Taylor elogia é vista de uma forma que enfatiza consideravelmente o segundo como um precedente absoluto, de uma forma totalizante que minimza o poder de negação e de autonomia dos sujeitos (Habermas, 1991: 217).Embora se admita que o mundo da vida se constitui como uma dado à partida que implica que o trabalho da racionalidade se não exerça no vazio - o que admite paralelo com a forma como Taylor entende os horizontes de significação - é necessário que se compreenda que a existência de pré-dados ou de critérios de relevância se confronte com a possibilidade da sua mudança, só possível pelo trabalho crítico de racionalidade, no sentido em que o individual não pode ser olhado como um mero momento da totalidade. Nesse sentido, a teoria habermasiana, apesar de criticada pelo seu formalismo, convoca o exercício crítico da razão para o próprio mundo das evidências quotidianas, convocando os próprios agentes colectivos sociais que lutam, por exemplo, pelo reconhecimento de novas identidades, a adoptar uma atitude crítica sobre a interpretação das normas ou a busca de novos sentidos.
Aqui tem cabimento chamar à colacção a insistência de Giddens no argumento segundo o qual o "estilo" de vida não significa um afastamento radical da esfera pública - até porque a reflexão crítica sobre a subjevtividade é um dos elementos onde radica o próprio entendimento moderno dessa esfera. Acreditando no facto de que ter uma identidade pessoal a descobrir e um destino pessoal por cumprir implica uma força subversiva de grandes proporções, Giddens assume que é possível distinguir entre os impulsos no sentido da realização pessoal e as pressões consumistas no sentida da satisfação de desejos. Nesse sentido, distingue entre uma política emancipadora -identificada com a racionalidade que predominou na modernidade em relação aos constrangimentos que diziam respeito á acção humana e que visava cortar as amarras do passado, terminando com dominação ilegítima de uns grupos sobre os outros - e uma política da vida, centrada na reflexividade sobre os contextos da vida quotidana tal como ela se processa na modernidade tardia, centrada em questões existenciais que dizem respeito à pergunta "como vivermos?", o que e é que eu quero ser ?" (Giddens 1997: 193-207). Este percurso passa afinal por uma relação entre a política e o quotidiano, onde se pretenda que os assuntos da vida, isto é, do privado, ascendam ao público, permitindo que as identidades excluídas e os seus direitos adquiram visibilidade. A emergência da política da vida tem a ver com os problemas das identidades e com a ideia de que o espaço público deve manter uma abertura essencial no sentido de evitar que novas identidades permaneçam reprimidas e ocultas na esfera sombria da domesticidade. É a propósito deste tipo de reflexão que faz sentido lembrar a crítica feminista a Habermas, designdamente quando o acusam de idealizar o mundo da vida por esquecer as relações de dominação que nele existem, ao restringir o "poder "às organizações burocráticas, atenunando a presença das mesmas relações de poder no mundo da vida. (Fraser, 1992: 102)
Surge, porém, outra dificuldade de sinal contrário que nos remete de novo a uma certa leitura de Foucault e Marcuse: uma nova forma de visibilidade dada à agenda dos assuntos que dizem respeito ao privado manifesta-se através de uma forma paroxística em que se substitui a política pela ética, criando redes de normativização e de vigilância cada vez mais apertadas em nome da actuação que se considera políticamente correcta. A justa pretensão de que há elementos da vida privada que têm relevância pública não deve implicar a ameaça à existência de uma esfera íntima, onde a normativização dos elementos que dizem respeito à vida individual se torna uma espécie de substituição da política. A neutralidade liberal não pode ser substituida por uma policiamento dos costumes, mesmo que a intenção dos gendarmes de serviço seja libertadora. Há domínios em que a discussão pública, mesmo quando efectuada com propósitos alegadamente emancipatórios, se torna uma forma de multiplicação de vigilâncias.
 
 

Os media e a subjectividade no contexto da cultura de massa

1. O número de variedades e a manipulação do desejo

Na modernidade tardia, a presença dos media, impressos ou electrónicos, como mecanismo socializador que reconfigura por completo as interacções no seio dos quais se processa a construção do self é quase um lugar comum. As teorias críticas da cultura de massa, designadamente a contundente análise desenvolvida por Adorno e Horkheimer associam a comunicação com a integração social considerada, simplesmente, como forma de violência que visa a integração dos indivíduos na sociedade de troca. Numa análise que antecipa de forma pessimista a relação da cultura de massa com a configuração da identidade e a análise da subjectividade, os próprios desvios em relação à norma são olhadas como metamorfoses calculadas que servem todas para confirmar mais fortemente a validade do sistema (Adorno e Horkheimer, 1995: 129). Graças ao carácter comercial da cultura, a fronteira que a separava da realidade empírica tornou-se indistinta, adoptando um papel de promoção das identidades com base nas quais é construída a hierarquia (Adorno, 1996: 53-54). A individualidade protagonizada pelos media remete sempre para a realidade standartizada da dominação tecnológica, tornando impossível qualquer forma de exercício de negatividade por parte do sujeito. "A cultura de massa é fundamentalmente adaptação" (Adorno, 1996: 58). Tudo, mesmo o que é individual tem que soar como susceptível de ser reconhecido, como agindo de acordo com uma harmonia pré-estabelecida (Adorno, 1996: 58). Surge a apreciação implacável dirigida à gestão dos desejos e necessidades: a cultura de massa baseia-se numa permanente auto-reflexão assente na compulsão infantil de satisfação de necessidades previamente criadas. (Adorno, 1996: 58)
O regresso inexorável do mercado e a visibilidade adquirida pelo carácter industrial dos media no recente processo de desregulação fez com que a as relações dos media com os campos da administração e da economia voltassem hoje a ser objecto de uma reflexão que reassume alguns pressupostos da Teoria Crítica. As investigações relacionadas com o movimento de privatização generalizada da televisão indiciam uma intromissão na esfera pública das características próprias da actividade empresarial. A sedução das aparências, a embriaguez visual, a velocidade, a beleza a todo o custo, o prazer imediato, histórias e personagens que podem rapidamente ser identificados, produtos que solicitam uma interpretação mínima tornam-se o conteúdo fundamental da nova programação. Nem sabemos se com estes termos estamos a descrever a informação ou a publicidade, de tal forma é idêntica a «lógica» que as une (Gomes, 1994: 305).O papel dos media aparece assim recentemente associado ao triunfo do paradigma publicitário, o qual não desdenha de intervir directamente na gestão do desejo: "A publicidade massmediática destina-se exclusivamente a fazer com que os objectos produzidos sejam mostrados e propostos aos consumidores em potencial. Mas não se trata apenas da mera exibição, mas da provocação do desejo, ou, da construção de necessidades não-naturais do consumo dos objectos. A publicidade não informa sobre a existência do objecto, a publicidade solicita o desejo do consumidor." (Gomes, 1994 : 304) A presença do inédito, do diferente, da transgressão, do espectacular, da novidade, do choque, da mudança explica desta forma a insistência na diferença: "a procura do prazer, mas também da diferença, do efémero, do encontro e não tanto da relação, a ideia de uma sociedade puramente «permissiva» dão ao pensamento e às condutas sociais do nosso tempo um brilho, uma excitação algo forçada que lembram os entrudos que reaparecem justamente no meio dos nossos invernos, após uma ausência secular." (Alain Touraine, 1996: 10) As imagens dos media correspondem ao desejo desse brilho com um império de pequenos estremecimentos, de simulacros que preenchem o nosso isolamento cada vez mais radical: a aventura, o risco e a participação, o jogo arriscado dos afectos foram substituídos pela fugacidade luminosa das emoções em segunda mão. À semelhança do resto da cultura de consumo, a televisão comercial conduz as pessoas acreditarem que a posse e o consumo de mercadorias trará felicidade e satisfação. Regresse-se, então, a Adorno e à metáfora do número de variedades : "O que realmente constitui o número de variedades, o que realmente excita qualquer criança no momento em que assiste a esse tipo de actuação, é o facto de que, em cada ocasião, alguma coisa acontece e ao mesmo tempo não acontece nada. Cada acto de variedade, especialmente o do palhaço e o do prestidigitador, é realmente uma forma de espera. Subsequentemente conclui-se que a espera da coisa, que decorre enquanto o prestidigitador continua a fazer as bolas girarem , é a própria coisa esperada. No número de variedade, o aplauso chega sempre um minuto mais tarde, nomeadmente quando o espectador percebe que o que era suposto ser uma preparação para algo mais era o próprio evento." (Adorno, 1996: 60) O jogo do desejo e da permanente manipulação de necessidades faz-se da permanente espera do momento em que a beleza e o corpo sadio regressam, o cartão de crédito fica de novo disponível, e regressamos ágeis, sadios, ricos e viris. Assim, "aquilo que vida significava outrora para os filósofos passou a fazer parte da esfera privada e, mais tarde ainda, da esfera do mero consumo, que o processo de produção arrasta consigo como um apêndice sem autonomia e sem substância própria." (Adorno, 1992: 7)

2. A busca da incerteza contra a paz perpétua

O inegável brilhantismo das apreciações de inspiração adorniana esquecem algumas observações que têm a ver com a própria teoria social. Os mecanismos desejantes, mesmo que se traduzissem na absoluta adaptação, traduzem uma vontade, ainda que frustrada, de mudar a vida. A perfeita adapatabilidade de que fala Adorno diz respeito a uma dialéctica negativa aonde se antevê o triunfo do imobilismo final: "rien ne faire comme une bête", como ele próprio salienta em Minima Moralia onde, numa cruel alusão a Kant assume a profecia de que " entre os conceitos abstractos nenhum se aproxima tanto da utopia realizada quanto a paz perpétua" (Adorno, 1992: 38). Ora uma teoria social que não se reduza a uma concepção totalizante deve descer ao pormenor para descobrir os traços de incerteza que desmintam a paz perpétua .
É um facto que os media estão sob suspeita.
Num período em que o mercado aparece como o principal mecanismo económico regulador, as estratégias de captação dos públicos são por vezes feitas à revelia dos mais elementares direitos das pessoas, e apresentam duvidosa repercussão para a qualidade do exercício da cidania. Até o que parecia indutor de novas possibilidades surge, afinal, gerador de decepções. O processo de construção de mensagens pelos media conheceu desde a década dos vídeos ligeiros e das rádios pirata até à constituição dos grandes grupos multimédia, desde o new journalism à nova dramatização das narrativas noticiosas, alterações que passaram por caminhos que incluiram, desde a alteração dos direitos de antena até ao reconhecimento de novos direitos dos leitores, espectadores e ouvintes, até a transformação da própria narrativa ao nível de um registo de maior abertura à subjectividade, a introdução do texto de autor e o reconhecimento dos factos noticiáveis como elementos de uma intriga jornalística. Tratam-se, porém, de elementos que tanto indiciaram a possibilidade de uma superação do carácter impessoal da narrativa, adequados à recuperação da subjectividade como se mostram, simultaneamente, adequados à espectacularização da informação. O que muitas das vezes se afigurava como experimental, novo, gerador de riscos e de novas possibilidades acabou por se revelar como apropriável pelas tendências mais negativas do mercado das mensagens.
Qualquer que seja a apreciação dos critérios de qualidade da programação comercial das televisões privadas, não se pode deixar de admitir que elas traduzem vários fenómenos que ajudam à reconfiguração, à dissolução para uns, à transformação para outros, do espaço público: em vez da concentração das notícias em umas poucas e reduzidas figuras que apareciam para produzir discursos de natureza oficial verifica-se o acesso à programação e até à informação por parte de camadas sociais que finalmente adquirem alguma visibilidade pública assumindo os seus gostos e até o seu desprezo ou desencanto por aqueles que eram os "grandes projectos colectivos." As chamadas estórias de rosto humano, para além dos concursos e reality-shows, traduzem a chegada a um espaço de visibilidade pública de gostos, gestos e formas de estar que não eram socialmente exibíveis. Porém, defrontamo-nos com um paradoxo: as novas franjas sociais a que nos referimos conquistam a visibilidade, mas parecem, afinal, confrontadas com diversos processos de dominação cultural. As massas, como diria Benjamin, ascendem à sua visibilidade mas parecem continuar arredadas dos seus destinos (Benjamin, 1997: 195). As conclusões de "A Obra de Arte na Era da sua Reprodutibilidade Técnica" parecem conhecer uma admirável segunda vida: a vida das massas é o próprio conteúdo da televisão. Falta a realização da política para que esse conteúdo não se circunscreva à estetização de diversas formas de barbárie que agora pululam um pouco por todo o lado: a celebração da miséria, a exaltação da pequenez, a contemplação cínica das próprias limitações que os reality-shows tanto insistem em explorar. De quem ri-mos? De nós mesmos, como parece anunciar a recente vaga de programas na TV brasileira nos quais marido e mulher apresentam em público as suas desavenças recorrendo ao insulto e à agressão.
As mais diversas orientações sociais que emergem à margem do que é socialmente consensual são objecto de um tratamento que oscila entre o irónico e o fascínio pelo bizarro, sendo por isso, remetidos pelos media para um domínio que descai facilmente no sensacionalismo. O sensacionalismo, apesar do seu ar aparentemente transgressor, é, apesar de tudo, uma forma de denunciar a transgressão, desempenhando, por isso, um papel socialmente conservador.
A relação entre os media e o espaço público aparece, apesar de tudo, mergulhada numa teia de contradições. É em face delas que se desenha a necessidade de manter a tensão não partindo para a análise com uma opção teórica de perfil totalizante, que desdenhe as subtilezas, e que por isso condene a comunicação a uma visão puramente homogeneizadora e, sobretudo, fatalmente homogeneizadora. Admita-se, enfim,que o jogo político confinado aos quadros institucionais se transfira para esferas da vida quotidiana, fixando um novo sentido para o trabalho, para a política e para as formas de sociabilidade - eventualmente "um sentido mais partilhado, que procura reabilitar contextos comunicacionais deteriorados, e aspira, assim, a afirmar a vontade colectiva em termos intercompreensivos." (Esteves, 1995: 94) Nesse sentido, as novas perspectivas levantadas pelas identidades - com a exigência que hão-de transportar de uma atenção a problemas relacionados com as formas de vida - são susceptíveis de, por si próprias, constituirem uma poderosa interpelação crítica.
Assim, os media e as suas relações com as atitudes individuais têm oscilado através de sucessivas experiências ora mais eufóricas, ora mais apocalípticas. Se até aos anos 50 e 60, a comunicação de massa parece feliz no seu papel de conseguir o melhor desempenho democrático ao mesmo tempo que oferece o entretenimento aceitável, colocando a enfâse na função socializadora e integradora que tanto suscitou a ira dos críticos da cultura de massa, a partir dos anos 80 e 90, o papel de entretenimento, de evasão, de sonho torna-se hegemónico, sendo frequentemente relacionado com a proliferação do conformismo quer social quer político. A apatia perante o espaço público assume-se quase como um "direito legítimo" ao repouso por parte do cidadão, de que o consumismo televisivo constitui parte essencial (Lazarsfeld e Merton, 1987: 230- 31). A enfâse na realização individual, no lazer e na fruição pessoal de que os media fazem eco através da generalização do espectáculo e de entretenimento, não deve ser objecto de uma pura condenação que não tenha em conta o facto de que na afirmação de alguns direitos se encondem desejos de afirmação, de reconhecimento e de auto-afirmação que têm de ser pensados , numa perspectiva crítica, à luz das transformações verificadas nas relações entre público e privado. Em vez da pura condenação moralista do gosto das audiências pelo entretenimento, deve-se também, reflectir sobre o significado da "fome de imaginário" que se esconde por detrás do consumismo desenfreado por histórias de rosto humano, do sensacionalismo e da invasão da privacidade, tentando perceber em que medida uma certa paixão pela personalização das notícias, para além de ser uma clara aposta na rentabilização de um certo conceito circense de espectacularização do quotidiano, não esconde também um desencanto por um espaço público desenraizado da vida e afastado desse quotidiano. Onde começa a denúncia da dominação que se oculta no privado e a brutal colonização do espaço público pelo puro voyeurismo?
O processo de enfatização por parte dos media da fruição individual e de concentração numa agenda menos dedicada às questões públicas não deve ser julgado, de forma apressada. Se é verdade que os momentos de afirmação do mercado coincidem quase sempre com a explosão da infortainment e do sensacionalismo a verdade é que esses momentos devem também ser aproveitados para a afirmação de novos direitos. Há ainda um trabalho crítico da racionalidade que não pode ser perdido de vista mas que não se pode reduzir a tudo considerar como pura manifestação da dominação. Se é verdade que a análise destas transformações é feita com base em premissas que implicam uma atitude crítica, não deixa de ser também verdade que a afirmação da individualidade não deve ser objecto de uma leitura apocalíptica. A acentuação da diferença está relacionada com a afirmação do mercado. Porém, também se prende com um movimento generalizado de relação com a subjectividade que, uma vez ultrapassados os excessos dos sociologismos e dos estruturalismos, permite a adopção de uma perspectiva crítica. A recusa da homogeneização tanto assume os contornos de uma certa exploração mercantil e subjugante da diferença como coexiste com a busca genuína da identidade, afirmando mecanismos de ruptura e de afirmação individual e identitária que podem constituir autênticas vias de aprofundamento dos mecanismos de vivência democrática e do espaço público. Mais uma vez, esta opção ir-se-á jogar no plano do social e do político e, mesmo assim, de uma forma que nunca é totalmente planificável nem transparente, pelo que nunca será absolutamente resolvida a tensão entre as alternativas possíveis.
No nossso ponto de vista, a revitalização do espaço público prende-se ainda com o próprio agir dos media, o que remete também, mas não só, para a deontologia dos jornalistas e para as próprias condições de produção de mensagens. Os media podem ser um factor de desestabilização de ordens dominantes, chamando para o espaço público, elementos de avaliação que permaneciam obscuros aos olhos do público que se constituem como elementos nodosos no seio da sociedade, que contribuiam para a reificação do mundo da vida. Pelo contrário, podem precisamente reproduzir os compromissos estabelecidos, impedindo a problematização crítica dessa realidade. A escolha entre estas opções implica a existência de uma teoria social que não negue, ela própria, a responsabilidade dos actores sociais. Nesse sentido, é dentro das possibilidades que esta sociedade oferece e das indeterminações que a caracterizam que há-de jogar-se a possibilidade de ilhas de resistência, de interstícios que permitam a verdadeira afirmação das diferenças. Os media em última instância, no universo sóciocultural, obedecem às exigências de intercompreensão e, nesta medida, a sua lógica de funcionamento nunca pode ser estritamente (nem predominantemente) sistémica ou funcional (Esteves: 1995, 98). A resposta ao papel dos media na formação de um consenso social, onde predomine a ordem democrática e o respeito pela diversidade, passa necessariamente pela orientação crítica que referi, pelo que remete para a ética e para deontologia, não podendo ser posta em causa a responsabilidade que os próprios agentes são levados a ter em conta neste domínio. A enfâse no regresso da participação individual implica que a responsabilidade impessoal do «sistema» deve pois, ser substituída pela responsabilidade, individual e colectiva, dos jornalistas. Tudo o que permite limitar a relação media- receptor em benefício de uma relação activa, na qual o receptor não é apenas um comprador mas um indivíduo reconhecido na pluralidade dos seus papéis sociais, contribui para acelerar o aprofundamento democrático da sociedade. Porém, esta não se esgota na mera responsabilização dos profissionais- onde aliás as respostas deontológicas podem servir muitas das vezes de alibi e de boa consciência, como por vezes acontece com o fenómeno com que chamamos de «ideologia do profissionalismo». Remete também para um olhar sobre os media que não pode privilegiar o liberalismo puro. Apela ao repensar do próprio conceito de «serviço público» o qual tão maus resultados deu mas que tem sentido tornar a equacionar num horizonte de novas possibilidades. É possível defender um uso dos media no sentido de transmitirem informação alternativa, legitimadora de lutas pelo reconhecimento por parte de movimentos sociais ( Kellner, 1985: 79). No caso específico das identidades, a experiência dos Estados Unidos e da expansão dos sistemas de cabo deu origem à busca de novos materiais: mais programas de debate, mais documentários, mais programas informativos, destinados nomeadamente a culturas minoritárias. Por outro lado, a introdução da televisão por cabo foi acompanhada da exigência por parte da Federal Communication Comission de que as empresas concessionárias disponibilizassem três canais para o estado, governo local , educação e acesso público comunitário. No caso do acesso público, foi determinado que a companhia deveria tornar disponível equipamento e tempo de antena para que toda a gente pudesse fazer uso do canal sem restrições, excepto as que resultam da interdição da obscenidade e da calúnia (Kellner, 1985, 81-2). As sondagens, uma das quais por inciativa da companhia de cabo, indica que todas as noites em Austin entre dez mil a trinta mil espectadores assistem a um programa dos canais de acesso público, verificando-se mesmo, numa sondagem nacional que o acesso público se tornou numa prioridade para muitos espectadores.( Kellner, 1985: 83-4).O próprio Kellner é co-autor de um programa, "Alternative Views", que conta com a colaboração da University of Texas.
Assim, o próprio regresso da política sugere uma perspectiva em que os direitos da comunicação não pode ser apenas encarados como puros direito individuais, mas como possuindo uma dimensão pública. Neste sentido, a fundamentação social, política e filosófica da especificidade do direito de comunicação só é possível em homenagem a uma ideia de soberania democrática que norteie a prática dos media e as atitudes dos Estados relativamente a esses mesmos media.
 
 
 



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