João Carlos Correia, Universidade da Beira Interior
Introdução
Este texto procura debruçar-se sobre o papel desempenhado pelas convenções inerentes à linguagem jornalística na compreensão da ordem social e na configuração do espaço público. Nesse sentido, tenta-se, em primeiro lugar, interpelar um fenómeno que costuma ser designado por "mediatização do espaço público". Seguidamente, analisa-se a atitude epistemológica que percorre o jornalismo e se manifesta na crença da adequação entre os enunciados e os factos, relacionando-se essa atitude epistemológica com um conjunto de práticas discursivas, normas estilísticas e orientações reguladoras que indiciam a vocação do jornalismo para superar o carácter aleatório do mundo, permitindo aos acontecimentos inscreverem-se nas grandes regularidades sociais. Procura-se, depois, discernir na linguagem jornalística a vontade de conformidade com o senso comum, com o saber partilhado por todos, tido por adquirido e socialmente aceite, fazendo-se um paralelo entre as atitudes e práticas discursivas consagradas na profissão jornalística e a "atitude natural", pragmática e realista, descrita, por autores como Schutz ou Gurswitch. (GURWITSCH; SCHUTZ, 1976). Finalmente, confrontam-se as dificuldades de uma linguagem jornalística - que se apresentou como tendencialmente homogeneizadora e adequada à formação de consensos sociais através da observação, classificação e denúncia de tudo o que se afigura como desviante em relação à norma - em face de uma sociedade que se apresenta como sendo cada vez mais diversificada e pluralista. Nesse sentido, interpelam-se as dificuldades da relação entre o jornalismo e a cidadania, num momento em que se verificam consideráveis alterações no espaço púbico. De um lado reconhece-se o ressurgimento do poder do jornalismo. (TRAQUINA, 1995: 189-221) Porém, do outro, as diversas tentativas de elaboração de uma teoria crítica dos media redescobrem a necessidade de uma leitura nova da própria ideia de público ( FERRY, 1995: 54-58), além de induzir a necessidade de uma preparação científica sólida por parte dos profissionais de Comunicação Social.
A dimensão simbólica do espaço público
Num certo sentido, o espaço público sempre se relacionou
de forma incontornável com o aparecimento de media simbólicos,
pelo que podemos encontrar uma relação complexa entre variáveis
económicas, culturais e comunicacionais que se interpenetram. (HABERMAS,
1984; STRYDON, 1992: 2.-3) Desde o papel das cartas e da imprensa até
à recente explosão das novas tecnologias, muitas seriam os
pretextos históricos para se encontrarem relações
profundas entre diversas instâncias sociais e o agir dos media. Com
o surgimento dos meios de comunicação social, tal como os
entendemos hoje, enquanto estruturas profissionalizadas de distribuição
de mensagens, aquilo a que assistimos é à própria
profissionalização da actividade mediadora que se instaura
e consolida como uma dimensão constituinte e estruturante da sociabilidade.
O uso dos meios de comunicação transforma, de forma fundamental,
a organização da vida social, criando novas formas de acção
e de interacção e de exercício do poder. Ao utilizarem
os media, os seres humanos estão a construir redes de significação
para si próprios. (THOMSON, 1995: 11)
A linguagem dos jornalistas, fortemente condicionada por normas e convenções
estilísticas, contribuiu para informar a percepção
da ordem social. Qual é, afinal, a relação entre o
estilo jornalístico e a compreensão intersubjectiva da realidade
social? De que forma a linguagem e o estilo praticados no jornalismo se
instala no papel da formação dos consensos e na instituição,
reprodução e discussão das normas? Se o jornalismo
é a principal instância de visibilidade da vida pública,
como é que traz a política à luz, produzindo o nosso
esclarecimento? De que forma o jornalismo se afirma como máquina
produtora de sentido? Todos os dias estas questões atravessam as
nossas interrogações sobre o jornalismo.
Na resposta a estas perplexidades, um elemento que emerge com regularidade
é a suspeita de que a de que a linguagem jornalística tende
a reproduzir o que é socialmente aceitável e predictível.
Os valores-notícia reflectem critérios de selecção
do inesperado que é sempre o negativo do que é tido por adquirido.
O próprio estilo jornalístico, a forma como é entendida
a sua relação com a verdade e sua tradução
nas respectiva normas de organização discursiva parecem muito
mais adequadas a relatar ao mundo na sua evidência, tal como ele
se oferece ao senso comum. Porém, se o jornalismo enfatiza o que
é socialmente predictível correndo, o risco de desenvolver
uma escrita conforme ao estereótipo, também elimina o contingente
e o incerto. Nesse sentido, "o discurso dos media surge para organizar
a experiência do aleatório e lhe conferir racionalidade."
(THOMSON, 1995: 15) As instituições noticiosas debruçam-se
sobre o que está fora do lugar: o que é desviante, equívoco
e imprevisível. A prática jornalística é particularmente
sensível aos acontecimentos mais calamitosos que se mostram mais
difíceis de classificar ou que contrariam, de forma mais clamorosa,
as expectativas sociais. (ERICSON et al, 1991: 4)
Assim, o jornalismo contribuiu para a "construção social
da realidade", para a rotinização da própria dinâmica
social, estabilizando-a em acontecimentos-tipo, comportamentos previsíveis
e erupções controladas.Esta estabilização é
tanto mais violenta quanto deve deveria resultar de uma composição
de normas onde a identificação do que é relevante
resulta de um esquematismo pré-determinado. "Assim, a construção
da notícia implica a utilização de enquadramento (frames),
um conceito aplicado por Erving Goffman à forma como organizamos
a vida quotidiana para compreendermos e respondermos às situações
sociais." (TRAQUINA, 1995: 202) A novidade limita-se ao incidente que assegura,
pela negativa, através do seu carácter excepcional, a permanência
das grandes regularidades. Nesse sentido, enquanto agência de controlo
social, as representações notíciosas dotam as pessoas
com as visões e versões da ordem social que obtêm a
preferência e com base nas quais os agentes tomam as iniciativas
que julgam adequadas. (ERICSON, et al, 1991: 4)
Contemporaneamente, o espaço público contemporâneo
pode ser designado por «espaço público mediatizado»,
no sentido em que é funcional e normativamente indissociável
do papel dos media. (WOLTON, 1995: 167).De entre a actividade mediática
em geral, o jornalismo escrito desempenhou um papel decisivo de estruturação
do próprio espaço público e do consenso social: sem
o jornalismo não se formaria opinião pública ou pelo
menos esta teria uma configuração decerto diversa daquela
que conhecemos. Porém, muitas das vezes graças a ele, e a
dinâmicas que se geraram em seu redor, o mero conformismo com as
atitudes públicas julgadas dominantes substituiu os mecanismos verdadeiramente
públicos de formação da opinião.
Este trabalho pretende ver como a específica linguagem que se
pratica no jornalismo, designadamente no jornalismo escrito, está,
efectivamente, ligada à modulação da compreensão
intersubjectiva da realidade. Trata-se, em suma, de saber se a linguagem
é já ela condicionada por códigos que conduzem inelutavelmente
a uma certa visão do mundo - ou se, pelo contrário, pode
ser um espaço de racionalidade polimórfica, que foge ao estereótipo
e aos signos de condensação que conduzem a uma visão
da realidade que se esgota na celebração do "mesmo". Será
que esta prática discursiva contém, apesar de tudo, várias
possibilidades de dizer o mundo que não se esgotam no estereótipo
e que por isso permitem reconhecer-lhe uma possível dimensão
crítica? Mais ainda, sabendo que o espaço público
está sujeito a múltiplas tensões que apontam para
a sua diferenciação e fragmentação, qual é
o lugar que é reservado aos media na participação
do intercâmbio de opiniões e na formação de
consensos? A resposta não pretende ser nem linear nem maniqueísta.
"Por maiores que possam ser as afinidades entre os mass media e os media
funcionais de regulação ( essencialmente, o dinheiro e o
poder), os primeiros guardam uma especificidade própria, resultado
do seu irredudível carácter simbólico e linguístico.
Eles inscrevem-se em última instância, no universo sócio-cultural,
obedecem às exigências da intercompreensão e, nesta
medida, a sua lógica de funcionamento nunca pode ser estritamente
(nem predominantemente) sistémica e funcional." (ESTEVES: 1995:
98) Nesse sentido, encontramo-nos perante tendências que estão
longe de se tornarem hegemónicas, ou pelo menos definitivamente
hegemónicas. Assim, no dia a dia, a linguagem dos media pode ser
um factor de desestabilização de ordens dominantes, chamando
para o espaço público, elementos de avaliação
que prmaneciam obscuros aos olhos do público e que se constiuam
como "nós" no seio do mundo da vida, originando elementos que contribuam
para a sua reificação. Pelo contrário, ela pode precisamente
reproduzir os compromissos estabelecidos, impedindo a problematização
crítica da realidade, através do recurso a práticas
discursivas que insistem na estabilização do que existe
Salvaguarda-se, assim, a ideia de que estes traços atrás
descritos não conduzem necessariamente a uma espécie de fatalidade:
os media contém, apesar de tudo, uma encruzilhadada de possibilidades
que se jogam no campo do político e do social. A esperança
que aqui se defende de um jornalismo moderno, fundado na ideia de que é
possível fazer uma reflexão crítica, é toda
ela fundada em perplexidades e incertezas, novos desafios e oportunidades.
Sob o ponto de vista da investigação e prática futuras,
parece-nos um ponto de partida profundamente estimulante.
A epistemologia jornalística e a controvérsia da objectividade
A objectividade é um assunto muito debatido, não apenas
em jornalismo e comunicação mas em todas as Ciências
Sociais. A objectividade (o relato da realidade imaculado de opiniões
ou sentimentos) foi defendido como um ideal pelo qual os jornalistas deveriam
lutar. Porém todas as nossas percepções e acções
são influenciadas pelas nossas culturas e experiências. Tornar
o jornalista consciente deste facto permite-lhe questionar e auto-questionar-se
sobre a legitimidade da sua percepção em particular. (GOVIER
1988:99)
De acordo com esta perspectiva, "o ideal da objectividade sugere que
os factos possam ser separados das opiniões ou juízos de
valor, e que os jornalistas consigam uma distanciação relativa
aos acontecimentos do mundo real cujo significado e verdade eles transmitem
ao público através de uma linguagem neutra e competentes
técnicas de reportagem. Assim, os media noticiosos ofereceriam o
resumo fiel dos acontecimentos noticiáveis do dia - os mais relevantes
e interessantes para o público. Os media imparciais dariam, quantitativa
e qualitativamente, uma cobertura equilibrada às perspectivas políticas
e legítimas em concorrência."( HACKETT, 1993: 105 )
Os estudos sociológicos levados a efeito no campo da comunicação
(nomeadamente o newsmaking) acabam por tornar evidente que existe todo
um conjunto de constrangimentos e rotinas - ou seja de elementos que integram
o campo de enunciação - que nunca se deixam ver graças
ao conjunto de mecanismos objectivantes omnipresentes no discurso jornalístico.
O recurso sistemático à terceira pessoa e a omissão
generalizada do sujeito da enunciação; a indicação
específica de omitir os deícticos de lugar e de tempo (hoje,
agora, ali, aqui), por serem marcas que remetem para um sujeito que se
pretende a todo o custo ocultar, constituem mecanismos objectivantes que
visam, antes de tudo, construir um poderoso efeito de adequação
total à realidade. Ou seja, relatam-se os factos, omitindo-se tudo
quanto diga respeito a quem os relatou e em que condições
os fez.
A análise desta problemática conduziu a um conjunto de
teorias que se resumem na ideia central de que a objectividade deve ser
entendida como uma marca ideológica ou um conjunto de procedimentos
tendentes a suportar a credibilidade do relato jornalístico. A necessidade
de proceder sob um ponto de vista idealmente "neutro" que permitisse legitimar
o discurso em nome do bem público contra os chamados interesses
particulares ou de facção, colocando o jornalista ao abrigo
de eventuais dissabores (SCHILLER, 1979: 47); a utilização
desse conjunto de procedimentos a fim de restabelecer a legitimidade do
relato noticioso em face da concorrência crescente de agentes de
relações públicas ou da contra informação
em tempo de guerra, (SCHUDSON, 1978: 22), a obrigação de
obdecer a um ritual estratégico que inclui a observância de
um conjunto de procedimentos, como a audição das partes em
conflito, a apresentação de provas, o uso das aspas, a estruturação
da informação de forma sequencial, que permitam ao jornalista
apresentar-se como objectivo, protegendo-se dos riscos da sua profissão,
como sejam eventuais processos de difamação ou repressões
dos superiores ( TUCHMAN, 1993: 74) têm sido algumas das teorias
avançadas por historiadores e sociólogos que não acreditaram
numa espécie de "ideologização" da objectividade postulada
em nome de uma crença empirista ingénua na possibilidade
de relatar os factos como "verdade.
Finalmente, para Hacket, a teoria de que o equilíbrio entre
visões controvertidas omite uma maior aproximação
em relação à realidade implica uma dificuldade epistemológica
: o relativismo que se esconde através das práticas rituais
de apresentação contraditória do mesmo acontecimento
tornam dificilmente justificáveis às próprias pretensões
de verdade das organizações jornalísticas.. Em alternativa,
a ambição de uma visão imparcial dos factos implica
uma presunção positivista de acordo com a qual, os jornalistas
e os media noticiosos são observadores independentes, separáveis
da realidade social, pelo que, quando correctamente utilizado, o meio noticioso
podia assegurar a sua veracidade.. Qualquer destas posições
implica que se remeta a objectividade do campo jornalístico muito
mais para considerações de ordem prática relacionadas
com a defesa do profissionalismo jornalístico ou com interesses
comerciais do que com verdadeiras preocupações sobre a adequação
do relato à verdade. (HACKETT, 1993: 106) Existe uma inevitabilidade
dos media noticiosos em estruturarem a sua representação
dos acontecimentos sociais e políticos que têm muito mais
a ver com as caraterísticas do próprio trabalho jornalístico
do que com a natureza dos acontecimentos relatados. Assim, para dar conta
dessa inevitabilidade basta chamar à os estudos efectuados no âmbito
do paradigma do "newsmaking" e que têm em conta questões como
as interacções burocráticas dentro das organizações
jornalísticas, as limitações colocadas pelos orçamentos
e pela conquista de audências (HACKETT, 1993:107), as convenções
narrativas de que são exemplo a própria pirâmide invertida,
as metáforas e frases feitas graças aos quais se consegue
facilitar o efeito de reconhecimento (TRAQUINA, 1988: 30), para além
das próprias distorções e limitações
inerentes à natureza do medium, como sejam os valores notícia
aos quais os mediadores recorrem para legitimar a sua própria selecção
no que respeita ao acesso aos media dos assuntos, valores e temas, a determinação
do tempo e do espaço concedidos, a possibilidade de exercício
do direito de resposta. (FERRY, 1995: 62)
Finalmente, a objectividade pode, ela própria ganhar um estatuto
ideológico. Ou seja, ao contruir-se um discurso especialmente virado
para a descrição do que existe, o que é natural, o
que é tido por adquirido, cai-se facilmente, independentemente de
qualquer imputação de intencionalidade conspirativa, no risco
de construir um discurso sobre a norma e o desvio. Os relatos podem ser
ideológicos, não por causa de qualquer forma da parcialidade
ou de manipulação intencional dos dados mas porque são
produzidos no interior de uma determinada matriz ideológica. (HACKETT,
193: 121) Os relatos podem eles próprios tornar-se uma peça
essencial para o funcionamento ideológico do media na medida em
que possam reflectir, sem o recurso a qualquer forma de utilização
distorcida dos dados, os grandes consensos sociais, favocecendo a sua aceitação
e a sua consagração. Determinadas formulações
discursivas seriam ideológicas não por causa das distorçoes
manifestas nos seus conteúdos superficiais, mas porque eram originadas
numa matriz ideológica limitada. (HALL, 1982, 72) Assim, na perspectiva
de Hall, os media só podem sobreviver operando dentro das fronteiras
do que é admitido por todos: o consenso. (HALL, 1982: 87). Os media
tornam-se parte do processo dialéctico de produção
de consenso, modulando-o o consenso à medida que o reflectem. Assim,
o McCarthismo, a Guerra da Coreia, e ao apartheid são alguns dos
exemplos de situações que se tornaram complexas em resultado
de uma interpretação estreita dessas normas. Entre nós,
é possível encontar no Boletim do Sindicato dos Jornalistas
um artigo datado dos anos 40 onde se procede à apologia cerrada
da objectividade, já que segundo o articulista, este me´todo
era o que melhor se adequava à política de neeutralidade
seguida por Portugal durante a Guerra. Curiosamente, pode-se concluir que
a objectividade, feita a pensar na salvaguarda de um outro valor a independência
, era afinal exaltada porque servia os interessses de um poder estabelecido,
no caso uma ditadura.
A notícia como forma narrativa
A narrativa jornalística, através de uma linguagem dotada
de características próprias, intervem na conformação
das dinâmicas sociais, desencadeando mecanismos que afectam toda
a actividade dos agentes na aquisição e reforço dos
conhecimentos e normas pelas quais se pauta a compreensão do mundo.
A questão essencial sobre a qual se incide é também
epistemológica: de que modo o estilo praticado na imprensa - informado
por uma determinada concepção de verdade - tem repercussões
na distribuição do conhecimento e na formação
dos consensos sociais e políticos?
Este tipo de interpelação pressupõe, no nosso
ponto de vista, uma pragmática do saber jornalístico, a qual
deve chamar a atenção para a dimensão narrativa. A
comunicação mediatizada dos tempos modernos transporta consigo
uma forma de vida própria, sintetiza de modo original a constituição
da experiência comum e da memória colectiva, com profundas
implicações no nosso quotidiano- ao nível das formas
de percepção e conhecimento, da prática política,
da vivência das relações de poder e da experiência
íntima de cada um. O seu carácter ambíguo, simultaneamente,
abre espaço a contradições conhecidas. O saber jornalístico,
partilha, por um lado, características do saber narrativo, caracterizado
pela poliformidade de saberes e enunciados (cognitivos, avaliativos, prescritivos),
abertura ao mundo da vida e ao consenso consuetudináriamente fundado.
Por outro lado, parece trazer dentro de si uma ambição de
cientificidade que pressupõe a hegemonia do uso cognitivo da linguagem
e a atribuição do monopólio desta forma de saber a
instituições especializadas e profissões adequadas
nas quais só o "especialista" é possuidor das competências
que asseguram a legitimidade dos enunciados. De uma certa forma, nos rituais
da objectividade, o produtor da informação como que mima,
imita a posição do observador científico. Debrucemo-nos
sobre o primeiro lado da questão.
No que respeita à relação profunda entre o discurso
jornalístico e o saber narrativo, basta recordar que a construção
de uma história pressupõe, como recorda Paul Ricoeur, a intervenção
mediadora de uma intriga. "A intriga é o mediador entre o acontecimento
e a história. O que significa que só é acontecimento
o que contribui para a progressão de uma história." A construção
de uma narrativa pressupõe a selecção dos elementos
que permitem fazer progredir a "estória". Nesse sentido, "um acontecimento
não é apenas uma ocorrência, alguma coisa que acontece,
mas uma componente narrativa." (RICOEUR,1991, 26) A Nesse sentido, "a intriga
é o conjunto das combinações pelos quais há
acontecimentos que são transformados em história ou- correlativamente-
uma história é tirada de acontecimentos." (RICOUER, 1991:
26) A intriga surge assim como um acto de conjugar os ingredientes da acção
humana que, na experiência quotidiana, permanecem heterogéneos
e discordantes. Porém, a progressão da estória desenvolve-se
de acordo com uma lógica socialmente aceite e de acordo com uma
tradição que nos permite a compreensão do acontecimento
subsequente. O jornalismo correspondeu à necessidade de novas classes
urbanas construirem o seu sentido sobre o mundo, ou seja transmitirem a
sua narrativa unificadora que contribui para a explicação
e compreensão de um novo universo que emergiu com capitalismo organizado:
a intriga jornalística organiza o mundo em função
da nova utilização da cultura que é protagonizada
pelas novas classes urbanas emergentes. Nesse sentido, podemos de novo
regressar a Ricoeur para aplicar à nossa concepção
de narrativa jornalística uma reflexão que o autor fizera
a propósito da história: "Uma noção ingénua
de narração, como sucessão desgarrada de acontecimentos,
encontra-se sempre no plano de fundo da crítica do carácter
narrativo da história. Apenas se vê o seu carácter
episódico e esquece-se o seu carácter configurado, que é
a base da sua inteligibilidade. Ao mesmo tempo desconhece-se a distância
que a narração instaura ou estabelece entre ela própria
e a experiência vivida." ( RICOEUR,1991: 27) Aplicando o mesmo raciocínio
para o jornalismo ele surge-nos como uma certa configuração
de sentido, pelo que constitui atitude ingénua aquelas que analizam
as notícias como espelho da realidade e não como configurações
narrativas, dotadas de uma intriga que confere inteligibilidade e unidade
a acontecimentos desligados entre si de acordo com a visão que prevalece
na narração do mundo da vida. É neste sentido que
temos de compreender o papel desempenhado pelos precedentes e a organização
de normas correspondentes aos diferentes géneros jornalísticos.
Referindo-nos aos precedentes que estabilizam as formas de narração
de acontecimentos idênticos ou semelhantes, podemos dizer que "existe
uma organização narrativa preliminar que já qualificou
os acontecimentos como contributo para o progresso de uma intriga."e de
um paradigma jornalístico como "tipo de organização
da intriga, oriundo da sedimentação da prática narrativa."
(RICOEUR, 1991, 27-, 28).
Nesse sentido, não é possível deixar de ter em
conta a concordãncia de Gaye Tuchman com Robert Park, segundo a
qual " a notícia de jornal é uma forma de literatura popular
, uma reincarnação das ainda populares novelas apresentadas
de uma outra forma." ( TUCHMAN IN TRAQUINA, 1993: 258). No mesmo sentido
não é possível deixar-se de se ter em conta as discussões
que se promovem no seio da historiografia contemporãnea acerca da
diferença entre "acontecimentos e histórias sobre acontecimentos."
(BIRD E DARMENNE in TRAQUINA, 1993: p. 264).
A organização dos elementos da notícia, por uma
ordem de importância decrescente, elemento fundamental da identidade
deste género, a introdução do parágrafo universalmente
conhecido por lead, o uso de uma espécie de escrita branca, minutada
que agradasse a todos os clientes, as exigências colocadas para assegurar
a agradaibilidade do relato como a utilização da frase curta
e concisa, a necessidade de evitar ou abusar dos advérbios de modo,
por dificultarem a leitura, o recurso aos verbos na voz activa que conferem
ao jornalismo uma "personalidade própria" são orientações
na criação da narrativa que se devem ter por culturais e
não naturais. ( BIRD E DARDENNE, 1993: 265) Nesse sentido, o género
narrativo universalmente conhecido por notícia pode funcionar, nas
nossas sociedades diferenciadas, como uma espécie de mito, através
dos quais os membros de uma cultura moderna aprendem valores e definições
de bem e de mal ( BIRD e DARDENNE, 1993: 266), no qual se cria ordem da
desordem, oferecendo tranquilidade e familiaridade em experiências
comunitárias (MEAD, 1925-1926 apud BIRD et al, 1993: 266) e se oferecem
informações credíveis e respostas prontas para fenómenos
complexos. ( JENSEN apud BIRD et al, p. 266). O discurso noticioso torna-se
desta forma um discuso sobre a ordem e o comportamento aceitável
A construção social da realidade
O modelo de análise que hoje se configura como mais consentâneo
com os estudos recentes levados a efeito é o que descreve a informação
como "construção da realidade social". Com efeito, a realidade
não pode ser completamente distinta do do modo como os actores a
interpretam, a interiorizam, a reelaboram e a definem histórica
e culturalmente. (GROSSI, 1985, p. 378). Com efeito, "ao escolher o real
que vai narrar e ao escolher o modelo narrativo em que o vai exprimir,
um jornal (…) reduz a infinitude de realidades e significações
a um pequeno conjunto que as representa. (MENDES, 1985: 80), Segundo esta
perspectiva que percorre quer a sociologia americana quer a teoria crítica
auropeia (ADONI E MANE, 1984: 324-325), os media influem decisivamente
nos "processos pelos quaisqualquer corpo de conhecimentos chega a ser estabelecido
como realidade." (BERGER E LUCKMANN, 1973: 13-14) Ganharam uma dimensão
importantíssima no que respeita ao estabelecimento de um significado
comum e intersubjectivo acerca da vida quotidiana. Esta influência
exerce-se sobretudo ao nível da relevância relativa dos temas
em debate.
Na percepção de Adoni e Mane, a relação
dos actores com o horizonte social é organizada em termos de "zonas
de relevância", um termo que provém da Fenomenologia Social.
e que diz respeito à maior ou menor proximidade " em relação
ao "aqui e agora" da esfera imediata de actividade dos indivíduos.
De acordo com o interesse do actor em relação mundo que o
rodeia este divide o seu horizonte social em várias zonas de relevância
cada uma delas exigindo um diferente grau de preparação ou
de conhecimento. Nesse sentido, é possível aceitar a existência
de quatro zonas de relevância: uma primeira zona que se prende com
a esfera de acção imediata do actor social e em relação
à qual é preciso possuir conhecimentos claros e distinctos;
uma segunda zona de relevância que exige uma familiaridade menor;
uma terceira zona relativamente irrelevante e que, nesse momento, não
têm qualquer relação com com os interesses imediatos
do agente; e, finalmente, zonas absloutamernte irrelevantes nas quais qualquer
mudança que se venha a veirificar não influenciará
a esfera de acção imediata do agente. (SCHUTZ, 1976: 124-5).
Procedendo à concepção de três tipos ideais
de actores sociais - o homem da rua, o perito, e o cidadão bem informado-
o primeiro apenas se preocupará com as zonas de relevância
intrínsecas que dizem respeito à sua esfera imediata de actividade;
o perito apenas se debruçara sobre zonas de relevância impostas,
no sentido em que se debruça sobre problemas pré-estabelecidos
qe dizem respeito ao seu campo de actividade, enquanto o cidadão
bem informado encontra-se colocado num domínio situado entre o homem
da rua e o perito, domínio este onde não existem fins pré
definidos, nem fronteiras totalmente no interior dos quais possa encontrar
abrigo. O cidadão bem informado tem que encontrar o seu quadro de
referência escolhendo o seu interesse. O que hoje se lhe oferece
como absolutamente irrelevante pode amanhã parecer-lhe primariamente
relevante ou vice-versa. (SCHUTZ, 1976: 130-31). É aqui que o problema
da distribuição social do conhecimento se torna extremamente
relevante para um plano de trabalho sobre a investigação
sobre os media, na exacta medida em que estes possuem uma importância
decisiva na transformação das nossas relevâncias. Ou
seja, têm uma importância decisiva na selecção
dos temas sobre os quais é importante ter opinião. Se a realidade
individual subjectiva é organizada em termos de relevância,
a realidade social é entendida ao longo de um continuum baeada na
distância dos seus elementos da vida quotidiana dos cidadãos.
Os elementos sociais e os actores com que os individuos interagem em relações
face e a face são parte das zonas mais próximas de relevância.
As zonas mais remotas de relevância são compostas por elementos
mais gerais, abstractos e inacessíveis à experiência
imediata , como a "ordem social", (ADONI E MANE: 1984 326). Assim, os media
podem proceder a uma distrubuição social do conhecimento,
proporcionando informação diferenciada que altera os respectivos
sistemas de relevância.
Esta possibilidade remete-nos para uma redescoberta do poder do jornalismo
que se traduz numa rea-avaliação do poder dos grupos, cuja
exclusividade se questiona enquanto produtores promotor e legitimadores
de decisões (FERRY,1995: 61 ). A "teoria dos efeitos limitados",
nomeadamente na sua versão mais conhecida do "two step flow", que
têm em conta a importância dos grupos de referência e
dos líderes de opinião, conquistara uma hegemonia relativa.
pelo que a uma hortodoxia fundada na evidência dos efeitos esmagadores
dos media ter-se-á seguido outra, fundada nos inquéritos
empíricos e técnicas de sondagem que procuravam demonstrar
que as pessoas tendiam a expor-se, a seleccionar e a recordar de acordo
com disposições preexistentes ( CURRAN, GUREVICH e WOOLACOTT:
1990) Porém, nos anos 60 e 70, alguns investigadores reexaminaram
os dados apresentados e concluíram que afinal, os estudos empíricos
clássicos de Katz e Lazersfeld não haviam demonstrado que
os mass media tinham pouca influência. Pelo contrário, revelaram
o papel central dos media no reforço de valores e atitudes. O entendimento
em sentido oposto apenas se deveu ao facto de os seus trabalhos se tratarem
de uma reacção contrária a uma ortodoxia anterior
que definia a influência de um modo omnipresente.
Esta perspectiva dá-se a conhecer no plano da teoria dos media
através do do pressuposto essencial segundo a qual os media fixam
não tanto a forma como pensamos mas os temas sobre os quais devemos
pensar. Na tradição anglo-saxónica, traduz-se no quadro
das pesquisas empíricas pelo paradigma do "agenda- setting". Na
tradição alemã é possível vislumbrar
uma preocupação semelhante, ainda que reformulada de um modo
original em Elizabeth Noel-Neuman, nomeadamente na tese por ela defendida
segundo a qual as pessoas tendem a orientar as suas opiniões por
aquelas que elas crêm serem dominantes, o que está evidentemente
ligado à influência mediática da comunicação
pública.(NOEL- NEUMANN:, 1995) Na tradição francesa
é compaginável encontrar fundamentos para uma teoria deste
jaez numa concepção da violência simbólica,
entendida como "o poder que consegue impor significações
como legítimas, dissimulando as relações de força
que são a sua força." (BOURDIEU e PASSERON : 23)
Nesse sentido, haverá alguns pressupostos que urge ter em conta:
1. Reitera-se que as mensagens de actualidade chegam aos receptores
quase exclusivamente através do contacto com os mass media. (BOOKELMAN,
1983, 138-143).
2. Dá-se novo enfâse a fenómenos históricos
que contribuem para a relativização das relações
grupais. (BOOKELMAN, 1983, idem). As alterações verificadas
na modernidade, no que diz respeito à percepção quer
do espaço quer do tempo, exigem novas formas de pensar o encontro
entre os agentes sociais." Com o desenvolvimento dos meios de comunicação
social, a interacção social foi parcialmente separada da
ideia de partilha e de comunhão do espaço." (THOMSON, 1995,
81-2).
3. Compreende-se que os temas publicamente institucionalizados são
o objecto das relações interpessoais de formação
de opinião. Os processos interpessoais são a continuação
dos processos públicos de influência. Os diálogos carecem
de reconhecimento geral a não ser que os media lhes disponibilizem
uma arena pública e configurem os temas que são objecto de
controvérsia em itens dotados de «noticiabilidade».
(STRYDOM: 1999, 6).
4. Reforça-se a ideia de que é necessário investigar
as relações entre grupos primários e as organizações
formais. Nesse sentido, aprofunda-se o pressuposto segundo o qual mais
do que estudar as modificações nas opiniões, haveria
que estudar o papel dos media na formação de cognições,
procurando as relações de causalidade entre a agenda mediática
e a agenda pública. ( TRAQUINA, 1995: 193-195) Numa perspectiva
que relaciona, de forma, ainda mais veemente, o jornalismo com as práticas
institucionais afirma-se: "a instituição dos media noticiosos
é central no que respeita à capacidade das autoridades para
apresentarem prentensões convincentes. Oferecem meios de persuasão
através dos quais as autoridades de várias instituições
podem tentar obter um consenso mais alargado para as suas preferências
morais." (ERICSON et al, 1991: 8)
A linguagem jornalistíca: a atitude natural e a formação de consensos.
Para além da importância da fixação de assuntos
susceptíveis de serem objecto de interesse, a relação
que o estilo jornalístico implica com a verdade implica outras consequências.
. O jornalista aprende o que Denis McQuail chama de "teoria da operatividade",
referindo-se ao conjunto de ideias "que sustém os profissionais
de comunicação acerca dos objectivos e natureza do seu trabalho
e acerca de como obter determinados efeitos." (MCQUAIL, 1985: 18-19). Vê-se
confrontado com perguntas como sejam "do que é que o público
gostará", "que será eficaz?", "o que tem interesse jornalístico?"
(MCQUAIL, 1985: 18-19).Os jornalistas afirmam-se, pois, como "bricoleurs"
que apreendem a regularidade em pequenos pedaços, com recurso a
saberes práticos, em contradição com os teóricos
que surpreendem e se debruçam sobre as grandes regularidades pretendendo,
como desejava Platão, impedir esta mesma fragmentação
da realidade. ( PHILIPS, 1993: 329) Se esta é uma condição
intrínseca ao desempenho da sua actividade, importa que se pense
sobre os riscos que ela acarreta: o jornalista torna-se uma espécie
de profissional da atitude natural, no sentido que Schütz dava ao
termo, ou seja uma atitude perante um mundo caracterizada por um interesse
eminentemente prático, e pela fé ingénua na realidade
e na permanência do mundo percepcionado. (SCHUTZ, 1976:73) Schütz
insistia em que o mundo social se interpreta em função de
construções próprias do senso comum. Os objectos naturais
e sociais dão-se por pressupostos, estabilizados na sua identidade,
constituídos dentro de um processo de familiaridade e reconhecimento,
possível graças a um reportório de conhecimentos disponíveis
de origem social, formado e renovado na interacção quotidiana.
A concepção ingénua da objectividade combinada com
a preocupação evidenciada pelo estilo jornalístico
em tornar as narrativas facilmente compreensíveis e reconhecíveis
faz os media correrem o risco de configurarem as suas narrativas no sentido
de acentuarem o conformismo. Descrever-se-ia a realidade tentando adoptar,
conscientemente, uma forma ingénua, pré-reflexiva, independentemente
de qualquer questionação sobre a natureza dessa realidade.
Esta atitude aproximar-se-ia do espírito de "Middle Town", ou seja
do conformismo ingénuo, lançando-o para o centro da formação
do consenso social, no seu sentido mais irreflexivo e menos contrafactual:
aquele de que se fala quando nos referimos prejorativamente à fabricação
do consenso. O jornalismo presupõe a existência de um conhecimento
prévio, de pre-conceitos sobre o que é a norma e o desvio
no seio de uma comunidade. Pressupõe uma comunidade de interesses
e uma reciporcidade de expectativas que tornam o discurso inteligível
e que suportam o próprio conceito de novidade- até porque
o tipo de mensagem que o caracteriza visa precisamente tornar o cidadão
comum seu receptor privilegiado e protagonista preferencial. O próprio
conceito de actualidade, cerne da narrativa noticiosa, pressupõe
um poderoso sentimento de pertença na medida em que o que é
actual tem sempre subjacente um discurso sobre as regularidades vigentes
O jornalismo e a recopção das suas mensagens estão
profundamente associado ao mundo da vida quotidiana, tentando-se mesmo
que os profissionais conformem a sua linguagem de tal forma que ela obtenha
o máximo de sintonia com os pressupostos culturais dos agentes sociais
sociais que se confrontam nesse mundo. Assim graças à sua
identificação com o sentido popular o jornalista esforça-se
em identificar quais os temas, pessoas e interesses que se revelam mais
interessantes para os consunidores de informação. ( GARCIA
1992: 154).Simultaneamente, tenta descobrir as formas de tornar a sua mensagem
mais acessível, mais conforme às próprias competências
linguisticas e culturais dos membros da audiência que funcionam como
menor denominador comum. Nesta perspectiva vale a pena recordar uma descrição
(crítica) do jornalês: o produtor de informação
(...) suprimirá todos os dados susceptíveis de desviar o
futuro leitor dos elementos narrativos "essenciais". Mas , melhor e mais
importante, preferirá os sinónimos com menor número
de caracteres , reduzirá o seu vocabulário às significações
de base da sua língua materna (...), abolirá do seu texto
toda a polisemia , preferirá o ponto final e a vírgula a
formas mais complexas de pontuação , produzirá-mesmo
artificialmente- parágrafos destinados a decompor em curtos "tempos"
a sucessão de movimentos de leitura. (MENDES, 1985: 81)
Como é que se consegue que o desejo de acessibilidade que qualquer
media possui - e que se traduz numa comunhão de saberes pré-
existentes comuns aos emissores e ereceptores - não se torne numa
generalização do conformismo? A questão é colocada
de forma muito clara por Wolton: "O risco está, evidentemente, em
confundir a dimensão comunicacional necessária ao confronto
político com o consenso político, em confundir a aceitação
de um código comum de comunicação com um consenso.
Falar a mesma lingua não implica, de modo algum, estar de acordo.
(…) Desde que (o espaço público) se alargou, com a tendência
para tratar todos os problemas da sociedade no espaço público
e, portanto, para generalizar esse vocabulário comum mínimo,
tem sido grande a tentação para confundir parcialmente a
linguagem comum, necessária à comunicação política,
com o acordo sobre o fundo dos problemas."( WOLTON, 1995: 182)
O jornalismo e os novos desafios do espaço público
A redescoberta do poder do jornalismo surge, curiosamente, ao mesmo
tempo que a redescoberta dos poderes dos públicos. Hoje é
impossível negar a importância da actividade jornalística
na formação de uma concepção do mundo adequada
aos grande s consensos e na construção dos sistemas de relevância
dos actores sociais. Porém, simultaneamente não é
possível deixar de abandonar os pressupostos clássicos de
alguma teoria crítica para ter em conta uma visão mais complexa
das situações de interesse, de conflitos e de poderes nas
sociedades capitalistas avançadas. Como comenta Ferry, "os liberais
já não tem mais o monopólio do pensamento pluralista,
verificando-se mesmo uma dissolução das clivagens teóricas
entre, de um lado, os pesquisadores conotados com a esquerda, orientados
para aproximações holísticas e privilegiando o «macro»,
e do outro, as aproximações dissociativas e o interesse pelos
problemas microsociológicos." (FERRY, 1995: 55) Deixou de fazer
sentido - pelo menos de uma forma como tinha sido imaginada pela ortodoxia
adorniana - a concepção de Teoria Social que estava imanente
nas formulações mais apocalípticas sobre as capacidades
manipuladoras dos media. É evidente que o jornalismo tende a favorecer
uma uma construção social da realidade com uma vocação
ordenadora. Simplesmente, nas sociedades diferenciadas as regularidades
já dificilmente posssuem o mesmo sentido que tinha para os teóricos
das sucessivas teorias críticas: com efeito, há medida que
as as acções e relações sociais são
mais e mais coordenados através da comunicação, o
poder torna-se cada vez mais dependente da aceitação de definições
da realidade (STRYDOM, 1999: 16), as quais por sua vez podem depender de
públicos conflituais (FRASER, 1992: 105 ) As ordens sociais implícitas,
as normas ordenadoras nunca foram sujeitas a um pluralismo tão intenso
como aquele que resulta da emergência de novas identidades sociais
e culturais.. Reconhece-se simultaneamente que novos agentes podem tomar
a palavra para impor outras visões do mundo, dar a conhecer os problemas
de "mundos da vida" que já não se apresentam tão homogéneos
e unificadores, participar de forma conflitual na formulação
da agenda, ou na visão que se constrói sobre a realidade
que se visa representar. Nesse sentido, não nos parece incorrecto
admitir a hipótese segundo a qual a própria consciência
que se ganhou, no plano teórico e profissional, sobre o papel da
linguagem acabou precissmente por permitir uma tentativa de repensar as
relações entre os media e os públicos, no sentido
de exigir uma maior participação. A reabilitação
do público ( STRYDOM, 1999: 2) que os estudos de recepção
realizaram dando do espectador uma imagem activa não faz desaparecer
a questão da influencia, designadamente o facto de que o melhor
espectador do mundo não pode interpretar senão aquilo que
ele recebe. ( FERRY, 1995) A noção de agenda faz cada vez
mais sentido apesar dos elementos teóricos que introduziram as noções
de polisemia do texto, de comunidades interpretativas activas, de resistência
do espectador e de apropriação culturalmente variável
da mensagem. ( FERRY, 1995: 58). Nesse sentido, haveremos de concordar
com Ferry que o facto de uma opinião pública tender a constituir-se
com base no que a função de agenda oferece à tematização
limita desde já de forma estrutural as possibilidades da comunicação
social. Porém, também teremos oportunidade de ripostar que
a selecção não é definida apenas pela emissão.
Ela é também igualmente exercida pelo público ao nível
da recepção, pela escolha entre os programas oferecidos,
pela interpretação que ele faz do texto escolhido, pela confrontação
da interpretração com aquela outra formulada pelos restantes
membros do público, e em especial pela possibilidade de os públicos,
de acordo com uma lógica de redinamização e democratização
da sociedade civil pretenderem eles próprios tomarem a palavra,
fazendo chegar ao espaço público interpretações
conflituais e afirmações em defesa do reconhecimento de identidades
excluidas. Nesse sentido, a definição de realidade é
afinal uma construção realizada não apenas pelos participantes
mas também pela audiência. ( STRYDOM, 1999:17).
Nesse sentido, um pouco por toda a parte, ao lado do reconhecimento
do poder dos media, surgem movimentos académicos e sociais - como
"media literacy"- tendendo a educar as pessoas no sentido de acederem,
avaliarem e produzirem mensagens mediáticas e que visam transformar
os recipentes passivos de mensagens mediáticas em conhecedores habilitados
das tecnologias relacionadas com os media, designadamente verificando a
sua capacidade para manipluarem audiências e introduzirem novos temas.(
Resource Guide: media Literacy , pages 6-7, Ministry of Education, Ontario,
Canada.)
Neste movimento, que se faz sentir de forma generalizada nos Estados
Unidos, mas também na Inglaterrra, Escócia, Canadá,
Austrália, Suécia e Espanha- cada vez se enfatiza mais a
a necessidade saber que tipo de conhecimento, atitudes e competências
se tornaram essenciais para se ser um cidadão na idade dos media.
Ou seja, a liberdade de expressão, cuja defesa é uma exigência
democrática incontornável, exije jornalistas e públicos
bem preparados e exigentes. Se o sacrifício da liberdade de imprensa
é impensável, esta tem de ser confrontada com a possibilidade
de públicos mais exigentes e participativos.
A tomada de consciência desta realidade pode, deste modo, traduzir-se
em duas consquências. Por um lado, verificar-se-á o aumento
da resistência do público, o qual pode tornar-se cada vez
mais interventor em relação ao monopólio dos mecanismos
de produção simbólica. Esta como já vimos,
parece ser uma dinâmica social que, apesar de todas as contradições,
parece tomar novo fôlego: a exigência de educação
para os media, a criação de observatórios de imprensa,
a multiplicação de organizações que procuram
reflectir sobre as consequências do poder dos media sobre a liberdade
dos cidadãos. Por outro lado, parece evidente que quem escreve sobre
o mundo tem que lançar um olhar, ganhando, nomeadamente, uma crescente
consciência crítica sobre os seus próprios instrumentos
profissionais. A complexidade crescente das sociedades exige outros saberes
que permitam ultrapassar o digníssimo saber de experiência
feito. Os problemas inerentes à legitimidade da profissão,
as especializações crescentes, a mundialização
da indústria cultural, a complexidade cada vez maior das sociedades
e as responsabilidades sociais que incumbe à imprensa fazem com
que o jornalista não reduza os seus saberes ao conhecimento do livro
de estilo, à capacidade narrativa, ao uso do prontuário e
ao domínio da língua portuguesa.
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