O Poder do Jornalismo e a Mediatização do Espaço Público

João Carlos Correia, Universidade da Beira Interior

Introdução

Este texto procura debruçar-se sobre o papel desempenhado pelas convenções inerentes à linguagem jornalística na compreensão da ordem social e na configuração do espaço público. Nesse sentido, tenta-se, em primeiro lugar, interpelar um fenómeno que costuma ser designado por "mediatização do espaço público". Seguidamente, analisa-se a atitude epistemológica que percorre o jornalismo e se manifesta na crença da adequação entre os enunciados e os factos, relacionando-se essa atitude epistemológica com um conjunto de práticas discursivas, normas estilísticas e orientações reguladoras que indiciam a vocação do jornalismo para superar o carácter aleatório do mundo, permitindo aos acontecimentos inscreverem-se nas grandes regularidades sociais. Procura-se, depois, discernir na linguagem jornalística a vontade de conformidade com o senso comum, com o saber partilhado por todos, tido por adquirido e socialmente aceite, fazendo-se um paralelo entre as atitudes e práticas discursivas consagradas na profissão jornalística e a "atitude natural", pragmática e realista, descrita, por autores como Schutz ou Gurswitch. (GURWITSCH; SCHUTZ, 1976). Finalmente, confrontam-se as dificuldades de uma linguagem jornalística - que se apresentou como tendencialmente homogeneizadora e adequada à formação de consensos sociais através da observação, classificação e denúncia de tudo o que se afigura como desviante em relação à norma - em face de uma sociedade que se apresenta como sendo cada vez mais diversificada e pluralista. Nesse sentido, interpelam-se as dificuldades da relação entre o jornalismo e a cidadania, num momento em que se verificam consideráveis alterações no espaço púbico. De um lado reconhece-se o ressurgimento do poder do jornalismo. (TRAQUINA, 1995: 189-221) Porém, do outro, as diversas tentativas de elaboração de uma teoria crítica dos media redescobrem a necessidade de uma leitura nova da própria ideia de público ( FERRY, 1995: 54-58), além de induzir a necessidade de uma preparação científica sólida por parte dos profissionais de Comunicação Social.

A dimensão simbólica do espaço público

Num certo sentido, o espaço público sempre se relacionou de forma incontornável com o aparecimento de media simbólicos, pelo que podemos encontrar uma relação complexa entre variáveis económicas, culturais e comunicacionais que se interpenetram. (HABERMAS, 1984; STRYDON, 1992: 2.-3) Desde o papel das cartas e da imprensa até à recente explosão das novas tecnologias, muitas seriam os pretextos históricos para se encontrarem relações profundas entre diversas instâncias sociais e o agir dos media. Com o surgimento dos meios de comunicação social, tal como os entendemos hoje, enquanto estruturas profissionalizadas de distribuição de mensagens, aquilo a que assistimos é à própria profissionalização da actividade mediadora que se instaura e consolida como uma dimensão constituinte e estruturante da sociabilidade.
O uso dos meios de comunicação transforma, de forma fundamental, a organização da vida social, criando novas formas de acção e de interacção e de exercício do poder. Ao utilizarem os media, os seres humanos estão a construir redes de significação para si próprios. (THOMSON, 1995: 11)
A linguagem dos jornalistas, fortemente condicionada por normas e convenções estilísticas, contribuiu para informar a percepção da ordem social. Qual é, afinal, a relação entre o estilo jornalístico e a compreensão intersubjectiva da realidade social? De que forma a linguagem e o estilo praticados no jornalismo se instala no papel da formação dos consensos e na instituição, reprodução e discussão das normas? Se o jornalismo é a principal instância de visibilidade da vida pública, como é que traz a política à luz, produzindo o nosso esclarecimento? De que forma o jornalismo se afirma como máquina produtora de sentido? Todos os dias estas questões atravessam as nossas interrogações sobre o jornalismo.
Na resposta a estas perplexidades, um elemento que emerge com regularidade é a suspeita de que a de que a linguagem jornalística tende a reproduzir o que é socialmente aceitável e predictível. Os valores-notícia reflectem critérios de selecção do inesperado que é sempre o negativo do que é tido por adquirido. O próprio estilo jornalístico, a forma como é entendida a sua relação com a verdade e sua tradução nas respectiva normas de organização discursiva parecem muito mais adequadas a relatar ao mundo na sua evidência, tal como ele se oferece ao senso comum. Porém, se o jornalismo enfatiza o que é socialmente predictível correndo, o risco de desenvolver uma escrita conforme ao estereótipo, também elimina o contingente e o incerto. Nesse sentido, "o discurso dos media surge para organizar a experiência do aleatório e lhe conferir racionalidade." (THOMSON, 1995: 15) As instituições noticiosas debruçam-se sobre o que está fora do lugar: o que é desviante, equívoco e imprevisível. A prática jornalística é particularmente sensível aos acontecimentos mais calamitosos que se mostram mais difíceis de classificar ou que contrariam, de forma mais clamorosa, as expectativas sociais. (ERICSON et al, 1991: 4)
Assim, o jornalismo contribuiu para a "construção social da realidade", para a rotinização da própria dinâmica social, estabilizando-a em acontecimentos-tipo, comportamentos previsíveis e erupções controladas.Esta estabilização é tanto mais violenta quanto deve deveria resultar de uma composição de normas onde a identificação do que é relevante resulta de um esquematismo pré-determinado. "Assim, a construção da notícia implica a utilização de enquadramento (frames), um conceito aplicado por Erving Goffman à forma como organizamos a vida quotidiana para compreendermos e respondermos às situações sociais." (TRAQUINA, 1995: 202) A novidade limita-se ao incidente que assegura, pela negativa, através do seu carácter excepcional, a permanência das grandes regularidades. Nesse sentido, enquanto agência de controlo social, as representações notíciosas dotam as pessoas com as visões e versões da ordem social que obtêm a preferência e com base nas quais os agentes tomam as iniciativas que julgam adequadas. (ERICSON, et al, 1991: 4)
Contemporaneamente, o espaço público contemporâneo pode ser designado por «espaço público mediatizado», no sentido em que é funcional e normativamente indissociável do papel dos media. (WOLTON, 1995: 167).De entre a actividade mediática em geral, o jornalismo escrito desempenhou um papel decisivo de estruturação do próprio espaço público e do consenso social: sem o jornalismo não se formaria opinião pública ou pelo menos esta teria uma configuração decerto diversa daquela que conhecemos. Porém, muitas das vezes graças a ele, e a dinâmicas que se geraram em seu redor, o mero conformismo com as atitudes públicas julgadas dominantes substituiu os mecanismos verdadeiramente públicos de formação da opinião.
Este trabalho pretende ver como a específica linguagem que se pratica no jornalismo, designadamente no jornalismo escrito, está, efectivamente, ligada à modulação da compreensão intersubjectiva da realidade. Trata-se, em suma, de saber se a linguagem é já ela condicionada por códigos que conduzem inelutavelmente a uma certa visão do mundo - ou se, pelo contrário, pode ser um espaço de racionalidade polimórfica, que foge ao estereótipo e aos signos de condensação que conduzem a uma visão da realidade que se esgota na celebração do "mesmo". Será que esta prática discursiva contém, apesar de tudo, várias possibilidades de dizer o mundo que não se esgotam no estereótipo e que por isso permitem reconhecer-lhe uma possível dimensão crítica? Mais ainda, sabendo que o espaço público está sujeito a múltiplas tensões que apontam para a sua diferenciação e fragmentação, qual é o lugar que é reservado aos media na participação do intercâmbio de opiniões e na formação de consensos? A resposta não pretende ser nem linear nem maniqueísta. "Por maiores que possam ser as afinidades entre os mass media e os media funcionais de regulação ( essencialmente, o dinheiro e o poder), os primeiros guardam uma especificidade própria, resultado do seu irredudível carácter simbólico e linguístico. Eles inscrevem-se em última instância, no universo sócio-cultural, obedecem às exigências da intercompreensão e, nesta medida, a sua lógica de funcionamento nunca pode ser estritamente (nem predominantemente) sistémica e funcional." (ESTEVES: 1995: 98) Nesse sentido, encontramo-nos perante tendências que estão longe de se tornarem hegemónicas, ou pelo menos definitivamente hegemónicas. Assim, no dia a dia, a linguagem dos media pode ser um factor de desestabilização de ordens dominantes, chamando para o espaço público, elementos de avaliação que prmaneciam obscuros aos olhos do público e que se constiuam como "nós" no seio do mundo da vida, originando elementos que contribuam para a sua reificação. Pelo contrário, ela pode precisamente reproduzir os compromissos estabelecidos, impedindo a problematização crítica da realidade, através do recurso a práticas discursivas que insistem na estabilização do que existe
Salvaguarda-se, assim, a ideia de que estes traços atrás descritos não conduzem necessariamente a uma espécie de fatalidade: os media contém, apesar de tudo, uma encruzilhadada de possibilidades que se jogam no campo do político e do social. A esperança que aqui se defende de um jornalismo moderno, fundado na ideia de que é possível fazer uma reflexão crítica, é toda ela fundada em perplexidades e incertezas, novos desafios e oportunidades. Sob o ponto de vista da investigação e prática futuras, parece-nos um ponto de partida profundamente estimulante.

A epistemologia jornalística e a controvérsia da objectividade

A objectividade é um assunto muito debatido, não apenas em jornalismo e comunicação mas em todas as Ciências Sociais. A objectividade (o relato da realidade imaculado de opiniões ou sentimentos) foi defendido como um ideal pelo qual os jornalistas deveriam lutar. Porém todas as nossas percepções e acções são influenciadas pelas nossas culturas e experiências. Tornar o jornalista consciente deste facto permite-lhe questionar e auto-questionar-se sobre a legitimidade da sua percepção em particular. (GOVIER 1988:99)
De acordo com esta perspectiva, "o ideal da objectividade sugere que os factos possam ser separados das opiniões ou juízos de valor, e que os jornalistas consigam uma distanciação relativa aos acontecimentos do mundo real cujo significado e verdade eles transmitem ao público através de uma linguagem neutra e competentes técnicas de reportagem. Assim, os media noticiosos ofereceriam o resumo fiel dos acontecimentos noticiáveis do dia - os mais relevantes e interessantes para o público. Os media imparciais dariam, quantitativa e qualitativamente, uma cobertura equilibrada às perspectivas políticas e legítimas em concorrência."( HACKETT, 1993: 105 )
Os estudos sociológicos levados a efeito no campo da comunicação (nomeadamente o newsmaking) acabam por tornar evidente que existe todo um conjunto de constrangimentos e rotinas - ou seja de elementos que integram o campo de enunciação - que nunca se deixam ver graças ao conjunto de mecanismos objectivantes omnipresentes no discurso jornalístico. O recurso sistemático à terceira pessoa e a omissão generalizada do sujeito da enunciação; a indicação específica de omitir os deícticos de lugar e de tempo (hoje, agora, ali, aqui), por serem marcas que remetem para um sujeito que se pretende a todo o custo ocultar, constituem mecanismos objectivantes que visam, antes de tudo, construir um poderoso efeito de adequação total à realidade. Ou seja, relatam-se os factos, omitindo-se tudo quanto diga respeito a quem os relatou e em que condições os fez.
A análise desta problemática conduziu a um conjunto de teorias que se resumem na ideia central de que a objectividade deve ser entendida como uma marca ideológica ou um conjunto de procedimentos tendentes a suportar a credibilidade do relato jornalístico. A necessidade de proceder sob um ponto de vista idealmente "neutro" que permitisse legitimar o discurso em nome do bem público contra os chamados interesses particulares ou de facção, colocando o jornalista ao abrigo de eventuais dissabores (SCHILLER, 1979: 47); a utilização desse conjunto de procedimentos a fim de restabelecer a legitimidade do relato noticioso em face da concorrência crescente de agentes de relações públicas ou da contra informação em tempo de guerra, (SCHUDSON, 1978: 22), a obrigação de obdecer a um ritual estratégico que inclui a observância de um conjunto de procedimentos, como a audição das partes em conflito, a apresentação de provas, o uso das aspas, a estruturação da informação de forma sequencial, que permitam ao jornalista apresentar-se como objectivo, protegendo-se dos riscos da sua profissão, como sejam eventuais processos de difamação ou repressões dos superiores ( TUCHMAN, 1993: 74) têm sido algumas das teorias avançadas por historiadores e sociólogos que não acreditaram numa espécie de "ideologização" da objectividade postulada em nome de uma crença empirista ingénua na possibilidade de relatar os factos como "verdade.
Finalmente, para Hacket, a teoria de que o equilíbrio entre visões controvertidas omite uma maior aproximação em relação à realidade implica uma dificuldade epistemológica : o relativismo que se esconde através das práticas rituais de apresentação contraditória do mesmo acontecimento tornam dificilmente justificáveis às próprias pretensões de verdade das organizações jornalísticas.. Em alternativa, a ambição de uma visão imparcial dos factos implica uma presunção positivista de acordo com a qual, os jornalistas e os media noticiosos são observadores independentes, separáveis da realidade social, pelo que, quando correctamente utilizado, o meio noticioso podia assegurar a sua veracidade.. Qualquer destas posições implica que se remeta a objectividade do campo jornalístico muito mais para considerações de ordem prática relacionadas com a defesa do profissionalismo jornalístico ou com interesses comerciais do que com verdadeiras preocupações sobre a adequação do relato à verdade. (HACKETT, 1993: 106) Existe uma inevitabilidade dos media noticiosos em estruturarem a sua representação dos acontecimentos sociais e políticos que têm muito mais a ver com as caraterísticas do próprio trabalho jornalístico do que com a natureza dos acontecimentos relatados. Assim, para dar conta dessa inevitabilidade basta chamar à os estudos efectuados no âmbito do paradigma do "newsmaking" e que têm em conta questões como as interacções burocráticas dentro das organizações jornalísticas, as limitações colocadas pelos orçamentos e pela conquista de audências (HACKETT, 1993:107), as convenções narrativas de que são exemplo a própria pirâmide invertida, as metáforas e frases feitas graças aos quais se consegue facilitar o efeito de reconhecimento (TRAQUINA, 1988: 30), para além das próprias distorções e limitações inerentes à natureza do medium, como sejam os valores notícia aos quais os mediadores recorrem para legitimar a sua própria selecção no que respeita ao acesso aos media dos assuntos, valores e temas, a determinação do tempo e do espaço concedidos, a possibilidade de exercício do direito de resposta. (FERRY, 1995: 62)
Finalmente, a objectividade pode, ela própria ganhar um estatuto ideológico. Ou seja, ao contruir-se um discurso especialmente virado para a descrição do que existe, o que é natural, o que é tido por adquirido, cai-se facilmente, independentemente de qualquer imputação de intencionalidade conspirativa, no risco de construir um discurso sobre a norma e o desvio. Os relatos podem ser ideológicos, não por causa de qualquer forma da parcialidade ou de manipulação intencional dos dados mas porque são produzidos no interior de uma determinada matriz ideológica. (HACKETT, 193: 121) Os relatos podem eles próprios tornar-se uma peça essencial para o funcionamento ideológico do media na medida em que possam reflectir, sem o recurso a qualquer forma de utilização distorcida dos dados, os grandes consensos sociais, favocecendo a sua aceitação e a sua consagração. Determinadas formulações discursivas seriam ideológicas não por causa das distorçoes manifestas nos seus conteúdos superficiais, mas porque eram originadas numa matriz ideológica limitada. (HALL, 1982, 72) Assim, na perspectiva de Hall, os media só podem sobreviver operando dentro das fronteiras do que é admitido por todos: o consenso. (HALL, 1982: 87). Os media tornam-se parte do processo dialéctico de produção de consenso, modulando-o o consenso à medida que o reflectem. Assim, o McCarthismo, a Guerra da Coreia, e ao apartheid são alguns dos exemplos de situações que se tornaram complexas em resultado de uma interpretação estreita dessas normas. Entre nós, é possível encontar no Boletim do Sindicato dos Jornalistas um artigo datado dos anos 40 onde se procede à apologia cerrada da objectividade, já que segundo o articulista, este me´todo era o que melhor se adequava à política de neeutralidade seguida por Portugal durante a Guerra. Curiosamente, pode-se concluir que a objectividade, feita a pensar na salvaguarda de um outro valor a independência , era afinal exaltada porque servia os interessses de um poder estabelecido, no caso uma ditadura.

A notícia como forma narrativa

A narrativa jornalística, através de uma linguagem dotada de características próprias, intervem na conformação das dinâmicas sociais, desencadeando mecanismos que afectam toda a actividade dos agentes na aquisição e reforço dos conhecimentos e normas pelas quais se pauta a compreensão do mundo. A questão essencial sobre a qual se incide é também epistemológica: de que modo o estilo praticado na imprensa - informado por uma determinada concepção de verdade - tem repercussões na distribuição do conhecimento e na formação dos consensos sociais e políticos?
Este tipo de interpelação pressupõe, no nosso ponto de vista, uma pragmática do saber jornalístico, a qual deve chamar a atenção para a dimensão narrativa. A comunicação mediatizada dos tempos modernos transporta consigo uma forma de vida própria, sintetiza de modo original a constituição da experiência comum e da memória colectiva, com profundas implicações no nosso quotidiano- ao nível das formas de percepção e conhecimento, da prática política, da vivência das relações de poder e da experiência íntima de cada um. O seu carácter ambíguo, simultaneamente, abre espaço a contradições conhecidas. O saber jornalístico, partilha, por um lado, características do saber narrativo, caracterizado pela poliformidade de saberes e enunciados (cognitivos, avaliativos, prescritivos), abertura ao mundo da vida e ao consenso consuetudináriamente fundado. Por outro lado, parece trazer dentro de si uma ambição de cientificidade que pressupõe a hegemonia do uso cognitivo da linguagem e a atribuição do monopólio desta forma de saber a instituições especializadas e profissões adequadas nas quais só o "especialista" é possuidor das competências que asseguram a legitimidade dos enunciados. De uma certa forma, nos rituais da objectividade, o produtor da informação como que mima, imita a posição do observador científico. Debrucemo-nos sobre o primeiro lado da questão.
No que respeita à relação profunda entre o discurso jornalístico e o saber narrativo, basta recordar que a construção de uma história pressupõe, como recorda Paul Ricoeur, a intervenção mediadora de uma intriga. "A intriga é o mediador entre o acontecimento e a história. O que significa que só é acontecimento o que contribui para a progressão de uma história." A construção de uma narrativa pressupõe a selecção dos elementos que permitem fazer progredir a "estória". Nesse sentido, "um acontecimento não é apenas uma ocorrência, alguma coisa que acontece, mas uma componente narrativa." (RICOEUR,1991, 26) A Nesse sentido, "a intriga é o conjunto das combinações pelos quais há acontecimentos que são transformados em história ou- correlativamente- uma história é tirada de acontecimentos." (RICOUER, 1991: 26) A intriga surge assim como um acto de conjugar os ingredientes da acção humana que, na experiência quotidiana, permanecem heterogéneos e discordantes. Porém, a progressão da estória desenvolve-se de acordo com uma lógica socialmente aceite e de acordo com uma tradição que nos permite a compreensão do acontecimento subsequente. O jornalismo correspondeu à necessidade de novas classes urbanas construirem o seu sentido sobre o mundo, ou seja transmitirem a sua narrativa unificadora que contribui para a explicação e compreensão de um novo universo que emergiu com capitalismo organizado: a intriga jornalística organiza o mundo em função da nova utilização da cultura que é protagonizada pelas novas classes urbanas emergentes. Nesse sentido, podemos de novo regressar a Ricoeur para aplicar à nossa concepção de narrativa jornalística uma reflexão que o autor fizera a propósito da história: "Uma noção ingénua de narração, como sucessão desgarrada de acontecimentos, encontra-se sempre no plano de fundo da crítica do carácter narrativo da história. Apenas se vê o seu carácter episódico e esquece-se o seu carácter configurado, que é a base da sua inteligibilidade. Ao mesmo tempo desconhece-se a distância que a narração instaura ou estabelece entre ela própria e a experiência vivida." ( RICOEUR,1991: 27) Aplicando o mesmo raciocínio para o jornalismo ele surge-nos como uma certa configuração de sentido, pelo que constitui atitude ingénua aquelas que analizam as notícias como espelho da realidade e não como configurações narrativas, dotadas de uma intriga que confere inteligibilidade e unidade a acontecimentos desligados entre si de acordo com a visão que prevalece na narração do mundo da vida. É neste sentido que temos de compreender o papel desempenhado pelos precedentes e a organização de normas correspondentes aos diferentes géneros jornalísticos.
Referindo-nos aos precedentes que estabilizam as formas de narração de acontecimentos idênticos ou semelhantes, podemos dizer que "existe uma organização narrativa preliminar que já qualificou os acontecimentos como contributo para o progresso de uma intriga."e de um paradigma jornalístico como "tipo de organização da intriga, oriundo da sedimentação da prática narrativa." (RICOEUR, 1991, 27-, 28).
Nesse sentido, não é possível deixar de ter em conta a concordãncia de Gaye Tuchman com Robert Park, segundo a qual " a notícia de jornal é uma forma de literatura popular , uma reincarnação das ainda populares novelas apresentadas de uma outra forma." ( TUCHMAN IN TRAQUINA, 1993: 258). No mesmo sentido não é possível deixar-se de se ter em conta as discussões que se promovem no seio da historiografia contemporãnea acerca da diferença entre "acontecimentos e histórias sobre acontecimentos." (BIRD E DARMENNE in TRAQUINA, 1993: p. 264).
A organização dos elementos da notícia, por uma ordem de importância decrescente, elemento fundamental da identidade deste género, a introdução do parágrafo universalmente conhecido por lead, o uso de uma espécie de escrita branca, minutada que agradasse a todos os clientes, as exigências colocadas para assegurar a agradaibilidade do relato como a utilização da frase curta e concisa, a necessidade de evitar ou abusar dos advérbios de modo, por dificultarem a leitura, o recurso aos verbos na voz activa que conferem ao jornalismo uma "personalidade própria" são orientações na criação da narrativa que se devem ter por culturais e não naturais. ( BIRD E DARDENNE, 1993: 265) Nesse sentido, o género narrativo universalmente conhecido por notícia pode funcionar, nas nossas sociedades diferenciadas, como uma espécie de mito, através dos quais os membros de uma cultura moderna aprendem valores e definições de bem e de mal ( BIRD e DARDENNE, 1993: 266), no qual se cria ordem da desordem, oferecendo tranquilidade e familiaridade em experiências comunitárias (MEAD, 1925-1926 apud BIRD et al, 1993: 266) e se oferecem informações credíveis e respostas prontas para fenómenos complexos. ( JENSEN apud BIRD et al, p. 266). O discurso noticioso torna-se desta forma um discuso sobre a ordem e o comportamento aceitável

A construção social da realidade

O modelo de análise que hoje se configura como mais consentâneo com os estudos recentes levados a efeito é o que descreve a informação como "construção da realidade social". Com efeito, a realidade não pode ser completamente distinta do do modo como os actores a interpretam, a interiorizam, a reelaboram e a definem histórica e culturalmente. (GROSSI, 1985, p. 378). Com efeito, "ao escolher o real que vai narrar e ao escolher o modelo narrativo em que o vai exprimir, um jornal (…) reduz a infinitude de realidades e significações a um pequeno conjunto que as representa. (MENDES, 1985: 80), Segundo esta perspectiva que percorre quer a sociologia americana quer a teoria crítica auropeia (ADONI E MANE, 1984: 324-325), os media influem decisivamente nos "processos pelos quaisqualquer corpo de conhecimentos chega a ser estabelecido como realidade." (BERGER E LUCKMANN, 1973: 13-14) Ganharam uma dimensão importantíssima no que respeita ao estabelecimento de um significado comum e intersubjectivo acerca da vida quotidiana. Esta influência exerce-se sobretudo ao nível da relevância relativa dos temas em debate.
Na percepção de Adoni e Mane, a relação dos actores com o horizonte social é organizada em termos de "zonas de relevância", um termo que provém da Fenomenologia Social. e que diz respeito à maior ou menor proximidade " em relação ao "aqui e agora" da esfera imediata de actividade dos indivíduos. De acordo com o interesse do actor em relação mundo que o rodeia este divide o seu horizonte social em várias zonas de relevância cada uma delas exigindo um diferente grau de preparação ou de conhecimento. Nesse sentido, é possível aceitar a existência de quatro zonas de relevância: uma primeira zona que se prende com a esfera de acção imediata do actor social e em relação à qual é preciso possuir conhecimentos claros e distinctos; uma segunda zona de relevância que exige uma familiaridade menor; uma terceira zona relativamente irrelevante e que, nesse momento, não têm qualquer relação com com os interesses imediatos do agente; e, finalmente, zonas absloutamernte irrelevantes nas quais qualquer mudança que se venha a veirificar não influenciará a esfera de acção imediata do agente. (SCHUTZ, 1976: 124-5). Procedendo à concepção de três tipos ideais de actores sociais - o homem da rua, o perito, e o cidadão bem informado- o primeiro apenas se preocupará com as zonas de relevância intrínsecas que dizem respeito à sua esfera imediata de actividade; o perito apenas se debruçara sobre zonas de relevância impostas, no sentido em que se debruça sobre problemas pré-estabelecidos qe dizem respeito ao seu campo de actividade, enquanto o cidadão bem informado encontra-se colocado num domínio situado entre o homem da rua e o perito, domínio este onde não existem fins pré definidos, nem fronteiras totalmente no interior dos quais possa encontrar abrigo. O cidadão bem informado tem que encontrar o seu quadro de referência escolhendo o seu interesse. O que hoje se lhe oferece como absolutamente irrelevante pode amanhã parecer-lhe primariamente relevante ou vice-versa. (SCHUTZ, 1976: 130-31). É aqui que o problema da distribuição social do conhecimento se torna extremamente relevante para um plano de trabalho sobre a investigação sobre os media, na exacta medida em que estes possuem uma importância decisiva na transformação das nossas relevâncias. Ou seja, têm uma importância decisiva na selecção dos temas sobre os quais é importante ter opinião. Se a realidade individual subjectiva é organizada em termos de relevância, a realidade social é entendida ao longo de um continuum baeada na distância dos seus elementos da vida quotidiana dos cidadãos. Os elementos sociais e os actores com que os individuos interagem em relações face e a face são parte das zonas mais próximas de relevância. As zonas mais remotas de relevância são compostas por elementos mais gerais, abstractos e inacessíveis à experiência imediata , como a "ordem social", (ADONI E MANE: 1984 326). Assim, os media podem proceder a uma distrubuição social do conhecimento, proporcionando informação diferenciada que altera os respectivos sistemas de relevância.
Esta possibilidade remete-nos para uma redescoberta do poder do jornalismo que se traduz numa rea-avaliação do poder dos grupos, cuja exclusividade se questiona enquanto produtores promotor e legitimadores de decisões (FERRY,1995: 61 ). A "teoria dos efeitos limitados", nomeadamente na sua versão mais conhecida do "two step flow", que têm em conta a importância dos grupos de referência e dos líderes de opinião, conquistara uma hegemonia relativa. pelo que a uma hortodoxia fundada na evidência dos efeitos esmagadores dos media ter-se-á seguido outra, fundada nos inquéritos empíricos e técnicas de sondagem que procuravam demonstrar que as pessoas tendiam a expor-se, a seleccionar e a recordar de acordo com disposições preexistentes ( CURRAN, GUREVICH e WOOLACOTT: 1990) Porém, nos anos 60 e 70, alguns investigadores reexaminaram os dados apresentados e concluíram que afinal, os estudos empíricos clássicos de Katz e Lazersfeld não haviam demonstrado que os mass media tinham pouca influência. Pelo contrário, revelaram o papel central dos media no reforço de valores e atitudes. O entendimento em sentido oposto apenas se deveu ao facto de os seus trabalhos se tratarem de uma reacção contrária a uma ortodoxia anterior que definia a influência de um modo omnipresente.
Esta perspectiva dá-se a conhecer no plano da teoria dos media através do do pressuposto essencial segundo a qual os media fixam não tanto a forma como pensamos mas os temas sobre os quais devemos pensar. Na tradição anglo-saxónica, traduz-se no quadro das pesquisas empíricas pelo paradigma do "agenda- setting". Na tradição alemã é possível vislumbrar uma preocupação semelhante, ainda que reformulada de um modo original em Elizabeth Noel-Neuman, nomeadamente na tese por ela defendida segundo a qual as pessoas tendem a orientar as suas opiniões por aquelas que elas crêm serem dominantes, o que está evidentemente ligado à influência mediática da comunicação pública.(NOEL- NEUMANN:, 1995) Na tradição francesa é compaginável encontrar fundamentos para uma teoria deste jaez numa concepção da violência simbólica, entendida como "o poder que consegue impor significações como legítimas, dissimulando as relações de força que são a sua força." (BOURDIEU e PASSERON : 23)
Nesse sentido, haverá alguns pressupostos que urge ter em conta:
1. Reitera-se que as mensagens de actualidade chegam aos receptores quase exclusivamente através do contacto com os mass media. (BOOKELMAN, 1983, 138-143).
2. Dá-se novo enfâse a fenómenos históricos que contribuem para a relativização das relações grupais. (BOOKELMAN, 1983, idem). As alterações verificadas na modernidade, no que diz respeito à percepção quer do espaço quer do tempo, exigem novas formas de pensar o encontro entre os agentes sociais." Com o desenvolvimento dos meios de comunicação social, a interacção social foi parcialmente separada da ideia de partilha e de comunhão do espaço." (THOMSON, 1995, 81-2).
3. Compreende-se que os temas publicamente institucionalizados são o objecto das relações interpessoais de formação de opinião. Os processos interpessoais são a continuação dos processos públicos de influência. Os diálogos carecem de reconhecimento geral a não ser que os media lhes disponibilizem uma arena pública e configurem os temas que são objecto de controvérsia em itens dotados de «noticiabilidade». (STRYDOM: 1999, 6).
4. Reforça-se a ideia de que é necessário investigar as relações entre grupos primários e as organizações formais. Nesse sentido, aprofunda-se o pressuposto segundo o qual mais do que estudar as modificações nas opiniões, haveria que estudar o papel dos media na formação de cognições, procurando as relações de causalidade entre a agenda mediática e a agenda pública. ( TRAQUINA, 1995: 193-195) Numa perspectiva que relaciona, de forma, ainda mais veemente, o jornalismo com as práticas institucionais afirma-se: "a instituição dos media noticiosos é central no que respeita à capacidade das autoridades para apresentarem prentensões convincentes. Oferecem meios de persuasão através dos quais as autoridades de várias instituições podem tentar obter um consenso mais alargado para as suas preferências morais." (ERICSON et al, 1991: 8)

A linguagem jornalistíca: a atitude natural e a formação de consensos.

Para além da importância da fixação de assuntos susceptíveis de serem objecto de interesse, a relação que o estilo jornalístico implica com a verdade implica outras consequências. . O jornalista aprende o que Denis McQuail chama de "teoria da operatividade", referindo-se ao conjunto de ideias "que sustém os profissionais de comunicação acerca dos objectivos e natureza do seu trabalho e acerca de como obter determinados efeitos." (MCQUAIL, 1985: 18-19). Vê-se confrontado com perguntas como sejam "do que é que o público gostará", "que será eficaz?", "o que tem interesse jornalístico?" (MCQUAIL, 1985: 18-19).Os jornalistas afirmam-se, pois, como "bricoleurs" que apreendem a regularidade em pequenos pedaços, com recurso a saberes práticos, em contradição com os teóricos que surpreendem e se debruçam sobre as grandes regularidades pretendendo, como desejava Platão, impedir esta mesma fragmentação da realidade. ( PHILIPS, 1993: 329) Se esta é uma condição intrínseca ao desempenho da sua actividade, importa que se pense sobre os riscos que ela acarreta: o jornalista torna-se uma espécie de profissional da atitude natural, no sentido que Schütz dava ao termo, ou seja uma atitude perante um mundo caracterizada por um interesse eminentemente prático, e pela fé ingénua na realidade e na permanência do mundo percepcionado. (SCHUTZ, 1976:73) Schütz insistia em que o mundo social se interpreta em função de construções próprias do senso comum. Os objectos naturais e sociais dão-se por pressupostos, estabilizados na sua identidade, constituídos dentro de um processo de familiaridade e reconhecimento, possível graças a um reportório de conhecimentos disponíveis de origem social, formado e renovado na interacção quotidiana. A concepção ingénua da objectividade combinada com a preocupação evidenciada pelo estilo jornalístico em tornar as narrativas facilmente compreensíveis e reconhecíveis faz os media correrem o risco de configurarem as suas narrativas no sentido de acentuarem o conformismo. Descrever-se-ia a realidade tentando adoptar, conscientemente, uma forma ingénua, pré-reflexiva, independentemente de qualquer questionação sobre a natureza dessa realidade. Esta atitude aproximar-se-ia do espírito de "Middle Town", ou seja do conformismo ingénuo, lançando-o para o centro da formação do consenso social, no seu sentido mais irreflexivo e menos contrafactual: aquele de que se fala quando nos referimos prejorativamente à fabricação do consenso. O jornalismo presupõe a existência de um conhecimento prévio, de pre-conceitos sobre o que é a norma e o desvio no seio de uma comunidade. Pressupõe uma comunidade de interesses e uma reciporcidade de expectativas que tornam o discurso inteligível e que suportam o próprio conceito de novidade- até porque o tipo de mensagem que o caracteriza visa precisamente tornar o cidadão comum seu receptor privilegiado e protagonista preferencial. O próprio conceito de actualidade, cerne da narrativa noticiosa, pressupõe um poderoso sentimento de pertença na medida em que o que é actual tem sempre subjacente um discurso sobre as regularidades vigentes O jornalismo e a recopção das suas mensagens estão profundamente associado ao mundo da vida quotidiana, tentando-se mesmo que os profissionais conformem a sua linguagem de tal forma que ela obtenha o máximo de sintonia com os pressupostos culturais dos agentes sociais sociais que se confrontam nesse mundo. Assim graças à sua identificação com o sentido popular o jornalista esforça-se em identificar quais os temas, pessoas e interesses que se revelam mais interessantes para os consunidores de informação. ( GARCIA 1992: 154).Simultaneamente, tenta descobrir as formas de tornar a sua mensagem mais acessível, mais conforme às próprias competências linguisticas e culturais dos membros da audiência que funcionam como menor denominador comum. Nesta perspectiva vale a pena recordar uma descrição (crítica) do jornalês: o produtor de informação (...) suprimirá todos os dados susceptíveis de desviar o futuro leitor dos elementos narrativos "essenciais". Mas , melhor e mais importante, preferirá os sinónimos com menor número de caracteres , reduzirá o seu vocabulário às significações de base da sua língua materna (...), abolirá do seu texto toda a polisemia , preferirá o ponto final e a vírgula a formas mais complexas de pontuação , produzirá-mesmo artificialmente- parágrafos destinados a decompor em curtos "tempos" a sucessão de movimentos de leitura. (MENDES, 1985: 81)
Como é que se consegue que o desejo de acessibilidade que qualquer media possui - e que se traduz numa comunhão de saberes pré- existentes comuns aos emissores e ereceptores - não se torne numa generalização do conformismo? A questão é colocada de forma muito clara por Wolton: "O risco está, evidentemente, em confundir a dimensão comunicacional necessária ao confronto político com o consenso político, em confundir a aceitação de um código comum de comunicação com um consenso. Falar a mesma lingua não implica, de modo algum, estar de acordo. (…) Desde que (o espaço público) se alargou, com a tendência para tratar todos os problemas da sociedade no espaço público e, portanto, para generalizar esse vocabulário comum mínimo, tem sido grande a tentação para confundir parcialmente a linguagem comum, necessária à comunicação política, com o acordo sobre o fundo dos problemas."( WOLTON, 1995: 182)

O jornalismo e os novos desafios do espaço público

A redescoberta do poder do jornalismo surge, curiosamente, ao mesmo tempo que a redescoberta dos poderes dos públicos. Hoje é impossível negar a importância da actividade jornalística na formação de uma concepção do mundo adequada aos grande s consensos e na construção dos sistemas de relevância dos actores sociais. Porém, simultaneamente não é possível deixar de abandonar os pressupostos clássicos de alguma teoria crítica para ter em conta uma visão mais complexa das situações de interesse, de conflitos e de poderes nas sociedades capitalistas avançadas. Como comenta Ferry, "os liberais já não tem mais o monopólio do pensamento pluralista, verificando-se mesmo uma dissolução das clivagens teóricas entre, de um lado, os pesquisadores conotados com a esquerda, orientados para aproximações holísticas e privilegiando o «macro», e do outro, as aproximações dissociativas e o interesse pelos problemas microsociológicos." (FERRY, 1995: 55) Deixou de fazer sentido - pelo menos de uma forma como tinha sido imaginada pela ortodoxia adorniana - a concepção de Teoria Social que estava imanente nas formulações mais apocalípticas sobre as capacidades manipuladoras dos media. É evidente que o jornalismo tende a favorecer uma uma construção social da realidade com uma vocação ordenadora. Simplesmente, nas sociedades diferenciadas as regularidades já dificilmente posssuem o mesmo sentido que tinha para os teóricos das sucessivas teorias críticas: com efeito, há medida que as as acções e relações sociais são mais e mais coordenados através da comunicação, o poder torna-se cada vez mais dependente da aceitação de definições da realidade (STRYDOM, 1999: 16), as quais por sua vez podem depender de públicos conflituais (FRASER, 1992: 105 ) As ordens sociais implícitas, as normas ordenadoras nunca foram sujeitas a um pluralismo tão intenso como aquele que resulta da emergência de novas identidades sociais e culturais.. Reconhece-se simultaneamente que novos agentes podem tomar a palavra para impor outras visões do mundo, dar a conhecer os problemas de "mundos da vida" que já não se apresentam tão homogéneos e unificadores, participar de forma conflitual na formulação da agenda, ou na visão que se constrói sobre a realidade que se visa representar. Nesse sentido, não nos parece incorrecto admitir a hipótese segundo a qual a própria consciência que se ganhou, no plano teórico e profissional, sobre o papel da linguagem acabou precissmente por permitir uma tentativa de repensar as relações entre os media e os públicos, no sentido de exigir uma maior participação. A reabilitação do público ( STRYDOM, 1999: 2) que os estudos de recepção realizaram dando do espectador uma imagem activa não faz desaparecer a questão da influencia, designadamente o facto de que o melhor espectador do mundo não pode interpretar senão aquilo que ele recebe. ( FERRY, 1995) A noção de agenda faz cada vez mais sentido apesar dos elementos teóricos que introduziram as noções de polisemia do texto, de comunidades interpretativas activas, de resistência do espectador e de apropriação culturalmente variável da mensagem. ( FERRY, 1995: 58). Nesse sentido, haveremos de concordar com Ferry que o facto de uma opinião pública tender a constituir-se com base no que a função de agenda oferece à tematização limita desde já de forma estrutural as possibilidades da comunicação social. Porém, também teremos oportunidade de ripostar que a selecção não é definida apenas pela emissão. Ela é também igualmente exercida pelo público ao nível da recepção, pela escolha entre os programas oferecidos, pela interpretação que ele faz do texto escolhido, pela confrontação da interpretração com aquela outra formulada pelos restantes membros do público, e em especial pela possibilidade de os públicos, de acordo com uma lógica de redinamização e democratização da sociedade civil pretenderem eles próprios tomarem a palavra, fazendo chegar ao espaço público interpretações conflituais e afirmações em defesa do reconhecimento de identidades excluidas. Nesse sentido, a definição de realidade é afinal uma construção realizada não apenas pelos participantes mas também pela audiência. ( STRYDOM, 1999:17).
Nesse sentido, um pouco por toda a parte, ao lado do reconhecimento do poder dos media, surgem movimentos académicos e sociais - como "media literacy"- tendendo a educar as pessoas no sentido de acederem, avaliarem e produzirem mensagens mediáticas e que visam transformar os recipentes passivos de mensagens mediáticas em conhecedores habilitados das tecnologias relacionadas com os media, designadamente verificando a sua capacidade para manipluarem audiências e introduzirem novos temas.( Resource Guide: media Literacy , pages 6-7, Ministry of Education, Ontario, Canada.)
Neste movimento, que se faz sentir de forma generalizada nos Estados Unidos, mas também na Inglaterrra, Escócia, Canadá, Austrália, Suécia e Espanha- cada vez se enfatiza mais a a necessidade saber que tipo de conhecimento, atitudes e competências se tornaram essenciais para se ser um cidadão na idade dos media. Ou seja, a liberdade de expressão, cuja defesa é uma exigência democrática incontornável, exije jornalistas e públicos bem preparados e exigentes. Se o sacrifício da liberdade de imprensa é impensável, esta tem de ser confrontada com a possibilidade de públicos mais exigentes e participativos.
A tomada de consciência desta realidade pode, deste modo, traduzir-se em duas consquências. Por um lado, verificar-se-á o aumento da resistência do público, o qual pode tornar-se cada vez mais interventor em relação ao monopólio dos mecanismos de produção simbólica. Esta como já vimos, parece ser uma dinâmica social que, apesar de todas as contradições, parece tomar novo fôlego: a exigência de educação para os media, a criação de observatórios de imprensa, a multiplicação de organizações que procuram reflectir sobre as consequências do poder dos media sobre a liberdade dos cidadãos. Por outro lado, parece evidente que quem escreve sobre o mundo tem que lançar um olhar, ganhando, nomeadamente, uma crescente consciência crítica sobre os seus próprios instrumentos profissionais. A complexidade crescente das sociedades exige outros saberes que permitam ultrapassar o digníssimo saber de experiência feito. Os problemas inerentes à legitimidade da profissão, as especializações crescentes, a mundialização da indústria cultural, a complexidade cada vez maior das sociedades e as responsabilidades sociais que incumbe à imprensa fazem com que o jornalista não reduza os seus saberes ao conhecimento do livro de estilo, à capacidade narrativa, ao uso do prontuário e ao domínio da língua portuguesa.

Referências Bibliográficas

Adoni, Hanna e Mane, Sherril, 1984, Media and the Social Construction of Reality in Communication Research, Vol. 11, Beverly Hills, Sage.

Alsina, Miguel Rodrígo, 1996, La construcíon de la notícia, Barcelona, Paidós,

Berger, Peter e Luckmann, Thomas, 1973, A Construção Social da Realidade, Petropólis, Editora Vozes.

Bird, S. Elizabeth e Dardenne, Robert. W., 1993, «Mito, registo e "estórias": explorando as qualidades narrativas das notícias» in Nelson Traquina (Org.), Jornalismos: Questões, Teorias e Estórias, Lisboa, Vega.

Bourdieu, Pierre e Passeron, Jean Claude, s/d, A Reprodução, Lisboa, Vega.

Curran, James,Gurevich, Michael and Woolacott, Janet, The study of the media: tehoretical aproaches in Michael Gurevitch, Tonny Bennett, James Curran and Janet Woolacott (org.) Culture, Society and the Media, Londres, Edward Arnold, 1990.

Ericson, Richard; Baraneck, Patrícia; Chan, Janet, B.L., 1991 Representing Order- Crime, Law and Justice in the News Media, Canada, Open University Press.

Esteves, João Pissarra, 1995 Novos Desafios Para Uma Teoria Crítica da Sociedade in Revista de Comunicação e Linguagens, "Comunicação e Política", Lisboa, Cosmos, nº 21-22.

Ferry, Jean-Marc, 1995, Quelle Téorie critique des médias aujord'hui in Lisbois, Boris et Haarscher, Les Médias entre Droit et pouvoir, Bruxelles, Ed. Université de Bruxelles.

Fraser, 1992, Rethinking Public Sphere in Calhoun, Craig (org.),Jürgen Habermas and the public sphere, Cambridge, MIT Press.

Garcia, José Luís Dader, 1992, El Periodista en el Espacio Publico, Barcelona, Bosch.

Govier, Trudy. (ed.) 1988. Selected Issues in Logic and Communication. California: Wadsworth.

Habermas, Jurgen,1984, Mudança Estrutural da Esfera Pública, Rio de Janeiro, Edições Tempo Brasileiro.

Hall, S. (1982). The rediscovery of "ideology": Return of the repressed in media studies. In M. Gurevitch, T. Bennett, J. Curran, & J. Woollacott (Eds.), Culture, society and the media. London: Methuen.

Hackett, Robert, 1993, Declínio de um Paradigma? A Parcialidade e a Objectividade nos estudos dos media noticiosos in Nelson Traquina (Org.), Jornalismos: Questões, Teorias e Estórias, Lisboa, Vega.

McQuail, Denis, 1985, Introdúccion a la teoria de comunicación de massas, Barcelona, Paidós Comunicacíon.

Mendes, José Maria Ribeiro Mendes, 1985, Mudança Vigiada no Discurso da Imprensa in Revista de Comunicação e Linguagens, Máquinas Censurantes Modernas, Lisboa, Edições Afrontamento, nº 1.

Ministry of Education, s/d Resource Guide: media Literacy , Ministry of Education, Ontario, Canada.

Phillips, 1993, E. Barbara, 1993, Novidade Sem Mudança in Nelson Traquina (Org.), Jornalismos: Questões, Teorias e "Estórias", Lisboa, Vega.

Ricoeur,1991, Paul, Do Texto à Acção, Lisboa, Rés Editora.

Schiller, Dan, 1979, An Historical Approach to Objectivity and Professionalism in American News Reporting in Journal of Communication , Vol 29, (4),.

Schudson, Michael, 1978, Discovering The News, New York, Free Press, 1978.

Schütz, 1976, Alfred, Collected Papers, Haya, Marthinnus Nijjoff.

Strydom, Piet, 1999, Triple contigency: The theoretical problem of the public in communication societies, in Philosophy & Social Criticism, vol. 25, nº 2, London Thousan Oaks, ca and New Delhi, Sage publications.

Thomson, 1995, John B., The media and Modernity: a social theory of media, Cambridge, Polity Press, 1995

Traquina, Nelson, 1988, As Notícias, in Revista de Comunicação e Linguagens, Jornalismos, nº8.

Traquina, Nelson, 1995, O Paradigma do Agenda Setting, Redescoberta do Poder do Jornalismo in Revista de Comunicação e Linguagens- Comunicação e Política, Lisboa, Edições Cosmos, nºs 21/22.

Tuchman,Gaye, 1993, A objectividade como ritual estratégico: uma análise das noções de objectividade dos jornalistas, in Nelson Traquina (Org.), Jornalismos: Questões, Teorias e Estórias, Lisboa, Vega.

Wolton, Dominique, 1995, As Contradições do Espaço Público Mediatizado, in Revista de Comunicação e Linguagens,Comunicação e Política, Lisboa, Cosmos, nº 21-22.