Em busca da perfeita
conspiração de pombos.
Ética e biologia. Alasdair MacIntyre e Richard
Dawkins.
Anabela Gradim, Universidade da Beira Interior
Setembro de 1996
Um dia, em S. Lourenço da Montaria,
uma rã pediu a Deus para ser grande como um boi.
A rã foi. Deus é que rebentou.
António Pedro,
Protopoema da Serra DArga
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O emotivismo contemporâneo,
negação da possibilidade de fundamentação racional
Uma sugestão inquietante dá início ao trabalho de
MacIntyre: poderá a linguagem da moralidade ter sofrido num
passado longínquo uma catástrofe, de tal forma que a
enunciação moral contemporânea se encontra em estado de grave
desordem mas os seus protagonistas não dispõem sequer de meios
que lhes permitam aperceber-se de que trabalham recorrendo a
fragmentos do que outrora foi a perfeita linguagem da moralidade?
Se a hipótese de MacIntyre for verdadeira, possuímos simulacra
da moralidade, fragmentos do antigo esquema conceptual, mas
perdeu-se a compreensão teórica e prática da moralidade e a
catástrofe que conduziu a esta situação foi de tal tipo que
muito poucos a reconheceram como tal. Contra isto,a análise
filosófica não vai ajudar-nos. No mundo real as filosofias
dominantes do presente, analítica e fenomenológica, são tão
impotentes para detectar a desordem do pensamento e práticas
morais como eram impotentes no nosso mundo imaginário (M. 1981:
02).
A história académica não terá mais de 200 anos, diz
MacIntyre, é portanto posterior à catástrofe, de maneira que,
sendo derivada das formas que esta produziu, necessariamente a
catástrofe que atingiu a moralidade permanece-lhe invisível.
Porque a linguagem e a aparência da moralidade persistem, embora
a sua substância se tenha estilhaçado, MacIntyre vai analisar a
sua história, tentando localizar no tempo a catástrofe que
levou ao fracasso do projecto iluminista de justificar a
moralidade apodicticamente, e de que o emotivismo contemporâneo
é fruto.
A característica mais marcante da enunciação moral
contemporânea, diz, é ter-se perdido de vista um meio de
assegurar racionalmente o acordo moral na nossa cultura. A
incomensurabilidade do debate moral contemporâneo, aliada ao
facto dos seus argumentos se apresentarem como racionais e
impessoais, empresta a estes debates um ar paradoxal. O estado
caótico a que o debate moral chegou deve-se ao facto dos
conceitos que utiliza se encontrarem agora privados do contexto
mais vasto em que outrora funcionavam e se inseriam. O facto do
discurso moral ser tratado simultaneamente como um exercício de
poderes racionais e como mera expressão de juizos assertivos é
considerado por MacIntyre sintoma da desordem moral reinante.
Reconstruir, contra a tradição vigente que trata o
pensamento moral como fenómeno a-histórico, uma narrativa que
permita traçar o rasto desta catástrofe e o contexto em que os
fragmentos da linguagem da moralidade se encontravam em ordem é
o propósito do seu trabalho. Ao caos moral reinante tenta
contrapôr, porém, um momento positivo que passaria pelo retorno
às formas de vida próprias do tempo em que a moralidade era
ainda uma linguagem escorreita e ordenada. A nostalgia das
pequenas comunidades no seio das quais urgiria restaurar a
noção de virtude em torno de fins comuns não é, como se
verá, uma solução muito clara, e mais obscuro ainda é como a
tornar prática e funcional passados que são dois milénios
sobre o génio do espírito grego.
O problema fundamental a resolver é reportável aos dias
de hoje. A aparente interminabilidade da discussão moral
contemporânea conduziu muitos a sustentarem que o desacordo
moral tout court não pode, pura e simplesmente, ser resolvido,
não se tratando isto de uma característica contingente da nossa
cultura mas de um aspecto necessário a todo o discurso
avaliativo. Este argumento, nota, é muito semelhante ao
emotivismo, a doutrina que sustenta ser todo o julgamento moral
não mais do que expressão de preferência, reflectindo atitudes
e sentimentos, e cujas proposições não são portanto nem
verdadeiras nem falsas.
O emotivismo, que chegou a ser apresentado como uma
doutrina sobre o significado das frases, enredando-se numa
circularidade viciosa, oblitera a distinção entre expressões
de preferência pessoal e expressões avaliativas, e além disso,
ao propor-se como teoria sobre o significado das frases, falha o
seu objectivo, pois precisamente a forma de veicular expressões
de sentimentos e preferências a um interlocutor passa não pelo
significado das frases em si mas pelas características
pragmáticas da enunciação, já que esta se dirige à
emotividade do locutor mais do que à sua razão.
O emotivismo floreceu neste século como resposta ao
intuicionismo de Moore. Este acreditava ter resolvido de uma vez
por todas os problemas da ética. Moore defende que o bem é uma
propriedade simples, não natural e indefinível. Uma intuição
é a proposição afirmando que algo é bom, ou não, e nunca
pode ser provada. Neste contexto, a doutrina de Moore acaba por
revelar-se como uma versão de utilitarismo: as acções devem
ser avaliadas pelas suas consequências, as melhores são as que
produzem maior quantidade de bem, sendo que nenhuma acção é
certa ou errada enquanto tal. Os maiores bens que se possam
imaginar são as afecções pessoais e o prazer estético, logo
estes tornam-se, para Moore, os únicos fins que justificam
plenamente a acção humana.
Apesar da segurança com que foram apresentadas, todas as
teses de Moore podem facilmente ser postas em questão. MacIntyre
relaciona-as de imediato com o emotivismo. Não é por acidente
que os modernos fundadores do emotivismo foram discípulos de
Moore; não é implausível supôr que eles de facto confundiram
a enunciação moral em Cambridge depois de 1903 com a
enunciação moral enquanto tal - e que portanto apresentaram
essencialmente uma teoria correcta sobre a enunciação moral em
Cambridge como se fosse uma teoria sobre a enunciação moral
em-si (M, 1981: 17). Ora, diz MacIntyre, padrões morais
objectivos e impessoais podem ser justificados racionalmente,
ainda que em algumas culturas a possibilidade de tal
justificação já não esteja disponível. O problema é que
emotivismo toma esta indisponibilidade contingente como sendo uma
realidade universal, pronunciando-se sobre a totalidade da
história da filosofia moral. Mas para MacIntyre a actual
linguagem da moralidade é fruto de uma mutilação, de tal forma
que só possuímos fragmentos desfigurados da antiga totalidade.
Uma maneira de emoldurar a minha afirmação de que a moralidade
não é o que já foi é dizer que num vasto grau as pessoas hoje
falam, pensam e agem como se o emotivismo fosse verdadeiro. O
emotivismo incrustou-se na nossa cultura. O que outrora foi a
moralidade desapareceu - e isto marca uma degenerescência, uma
grande perda cultural.
O emotivismo oblitera a diferença entre relações sociais
manipulativas (que apelam ao sentimento) e não manipulativas
(que apelam à razão), pois no caso de ser verdadeiro a
distinção é ilusória - a impossibilidade de justificar
racionalmente uma enunciação moral reconduz toda e qualquer
proposição deste tipo à relação social manipulativa.
MacIntyre vê o emotivismo dos nossos dias encarnado em
três personagens que o representam em contextos sociais
distintos: o esteta rico, o manager e o terapeuta. O manager
representa a obliteração entre relações sociais manipulativas
e não manipulativas na esfera da produção; enquanto o
terapeuta realiza o mesmo na esfera da vida pessoal. O manager
preocupa-se exclusivamente com a técnica, com a eficácia,
tratando os fins como fora da esfera da sua acção; da mesma
forma que o terapeuta tratará os fins como fora do alcance da
sua acção, preocupando-se com a técnica e com a eficácia, mas
desta feita no campo da vida pessoal. Nem o manager nem o
terapeuta, no desempenho dos seus papéis, se comprometem no
debate moral; pretendem restringir-se aos reinos em que, do seu
ponto de vista, o acordo racional é possível: ao mundo dos
factos, da eficácia mensurável.
Esta transformação do eu nas formas emotivistas
contemporâneas só foi possível porque também as formas do
discurso moral, a linguagem da moralidade, se foi simultaneamente
transformando. Por isso, defende MacIntyre, só à luz da
história podemos compreender as condições que viriam a dar
corpo ao eu emotivista contemporâneo, para o que foi decisiva a
filosofia moral produzida no seio da cultura iluminista, e que
tendo por fim justificar de uma vez por todas a moralidade,
falhou os seus intentos preparando assim o caminho para a
descrença generalizada do século na exequibilidade de tal
projecto.
Foi no século XVIII, no apogeu da cultura iluminista, que
o projecto de uma justificação racional da moralidade se tornou
central para os pensadores do norte da Europa, e foi o falhanço
desse projecto que forneceu o background no qual a nossa cultura
se torna inteligível: uma cultura onde o debate moral é visto
como um confronto entre premissas incompatíveis e
incomensuráveis, e o comprometimento moral como expressão de
uma escolha entre tais premissas que não é justificável
racionalmente.
Este elemento de arbitrariedade foi uma descoberta de
Kierkegaard no Enten-Eller, obra que MacIntyre considera o
epitáfio do projecto iluminista. Neste diálogo Kierkegaard põe
em cena três personagens, uma que recomenda o modo de vida
ético, outra que recomenda o modo de vida estético, e uma
terceira que anota a posição dos dois. MacIntyre aponta depois
o que chama de inconsistência interna da obra: é que o ético
é apresentado como o reino dos princípios que têm autoridade
sobre o homem independentemente de factores subjectivos, mas em
Enten-Eller vai defender também que os princípios que sustentam
o modo ético de vida devem ser adoptados por uma escolha que
está para além da razão, porque é a escolha do que deve
contar para o homem como uma razão. A contradição é
manifesta: como pode então o ético ter autoridade sobre o
indivíduo?
O fracasso iluminista
Foi o fracasso de Kant que preparou o terreno para o
aparecimento de Enten-Eller. Kant, acreditando que as regras da
moralidade são racionais, e portanto idênticas para todos os
homens, tinha por projecto justificar a moralidade através de um
teste racional que discriminasse as máximas que são genuína
expressão da lei moral. Rejeita também as concepções
tradicionais de que resultam morais heterónomas, como a que vê
o seu fundamento na felicidade do indivíduo ou na palavra de
Deus, pois a lei moral tem, acredita, um carácter
incondicionalmente categórico. A razão prática, segundo Kant,
não emprega critérios exteriores a ela própria, nem pode
apelar para conteúdos derivados da experiência. É da essência
da razão estabelecer princípios que são universais,
categóricos e internamente consistentes - portanto a moralidade
racional estabelecerá princípios que devem ser seguidos por
todos os homens. Neste sentido, a primeira formulação
encontrada para o imperativo categórico é: Devo proceder sempre
de maneira que eu possa querer também que a minha máxima se
torne uma lei universal. A lei moral é universal, necessária e
apodíctica e expressa-se no imperativo categórico: a acção é
representada como boa em si mesma e não como visando um fim,
sendo portanto objectivamente necessária. Daí as máximas do
imperativo categórico: age sempre sempre segundo uma máxima que
possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal, age
de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na
de qualquer outro, sempre simultaneamente como fim e nunca
simplesmente como meio, e que a vontade se possa considerar a si
mesma como constituindo simultaneamente por intermédio da sua
máxima uma legislação universal.
A principal crítica de MacIntyre a esta formulação da
lei moral enquanto proposição universalizável é que ela
poderá validar com sucesso também máximas triviais ou mesmo
imorais. Por isso a formulação do imperativo categórico nestes
termos desaba pois deixa de ser critério distintivo para o que
é específicamente moral. Assim, a tentativa de fundar a
moralidade na razão humana falha, como falhará posteriormente a
tentativa de Kierkegaard de descobrir a fundamentação do ético
num acto de escolha.
É certo que anteriormente a religião fornecera o
background sustentador da moral, mas agora, em plena cultura
iluminista, cumpriria à razão desempenhar essa tarefa. O
fracasso de Kant teve, defende MacIntyre, consequências
desastrosas para a nossa cultura. De agora em diante à
moralidade faltará sempre uma justificação racional; e essas
consequências reflectiram-se mesmo no destino da filosofia,
levando-a a perder o papel central que desempenhara até então.
Por que falhou o projecto iluminista?
A hipótese colocada aqui por MacIntyre é de que o
projecto iluminista estava condenado a falhar porque assentava
numa mutilação do esquema moral aristotélico-medieval que lhe
elimina a concepção teleológica. Como a catástrofe que
desmembrou o antigo esquema não foi sentida como tal, aos
filósofos restaria tentar colocá-lo em funcionamento utilizando
os fragmentos então disponíveis; mas por causa da mutilação
original, tal tarefa, a que Kant e Kierkegaard meteram ombros,
estava votada ao insucesso.
MacIntyre prossegue explicando que o esquema moral
dominante na Idade Média é basicamente o mesmo que Aristóteles
tematizou na Ética a Nicómano. Compõe-se ele de três
elementos: o homem-tal-como-é, o
homem-tal-como-poderia-ser-se-compreendesse-a-sua
natureza-essencial, e a ética como o instrumento que permite ao
homem passar de um estado ao outro. Estes três elementos estão
estreitamente interligados, são co-dependentes no seu
funcionamento e necessários à inteligibilidade de cada um
deles.
Esta estrutura triádica mantém-se praticamente inalterada
durante a Idade Média, e serão os modernos a rejeitar esta
concepção teleológica da natureza humana, a visão do homem
como tendo uma essência que define o seu fim. Compreender isto
é compreender por que o seu projecto de encontrar uma base para
a moralidade tinha de falhar. O esquema moral que forma o
background para o seu pensamento tinha uma estrutura que requeria
três elementos: natureza humana sem tutor,
homem-como-poderia-ser-se-compreendesse-o- seu-telos e os
preceitos morais que permitem a passagem de um estado ao outro.
Mas o efeito conjunto da rejeição secular da teologia católica
e protestante, e a rejeição científica e filosófica do
aristotelismo eliminou qualquer noção de
homem-como-poderia-ser-se-compreendesse-o-seu-telos. Como o
objectivo da ética é permitir ao homem passar do seu estado
presente ao seu verdadeiro fim, a eliminação de qualquer
noção de natureza humana essencial, e com isto o abandono da
noção de telos, deixa para trás um esquema moral composto dos
dois elementos remanescentes, cujo relacionamento se torna
bastante obscuro. Há por um lado um certo conteúdo para a
moralidade, e por outro uma certa visão da natureza humana
autónoma tal como é. Os preceitos da moralidade assim
entendidos são provavelmente do tipo que a natureza humana,
assim entendida, tem fortes tendências para desobedecer.
Portanto os filósofos morais do século XVIII comprometeram-se
no que era um processo inevitavelmente mal sucedido, pois
tentaram encontrar uma base racional para as suas crenças morais
dentro de um entendimento particular da natureza humana, enquanto
herdaram um conjunto de preceitos morais, por um lado, e uma
concepção de natureza humana, por outro, que tinham sido
expressamente concebidos para serem discrepantes uma da outra.
Herdaram fragmentos incoerentes de um esquema de pensamento e
acção que já fora coerente e, como não reconheciam a sua
peculiar situação cultural e histórica, não podiam reconhecer
o carácter impossível e quixotesco da sua tarefa (M, 1981: 57 e
ss.)
Esta mudança do carácter da moralidade já é
perceptível nos escritos dos filósofos morais do século XVIII.
Embora cada um deles tentasse fundar a moralidade na natureza
humana, cada vez se aproximam mais de versões da tese de que
não se podem derivar argumentos morais válidos de premissas
factuais, e esta tese constitui um epitáfio ao seu próprio
projecto de justificar a moral.
O argumento, que bem explorado conduz inevitavelmente ao
emotivismo, deriva do princípio dos lógicos medievais de que
num argumento válido nada pode aparecer na conclusão que não
esteja já contido na premissa. O que foi ignorado, claro, é que
tal só é válido para o silogismo aristotélico, e que há
inúmeros argumentos válidos em que os elementos da conclusão
podem não estar contidos na premissa. O que se passa, diz
MacIntyre, é que os argumentos morais da tradição clássica -
aristotélica e medieval - envolvem pelo menos um conceito
funcional, que entretanto na modenidade deixou de o ser: o
conceito de homem entendido como tendo uma natureza e função
essenciais. Quando esta tradição é rejeitada, a natureza do
argumento moral altera-se, sendo que deixa de ser possível
derivar conclusões morais válidas de premissas factuais. É que
para a tradição clássica ser um homem é prencher um conjunto
de papéis. Só quando o homem é pensado como um indivíduo
separado destes papéis deixa de ser um conceito funcional.
Portanto, este vocabulário moral enfraquecido conduz filósofos
iluministas a admitirem como verdade lógica que argumentos
morais não podem ser derivados de premissas factuais, mas a
verdade é que quando homem era um conceito funcional tal era
possível. Isto, diz MacIntyre, assinala simultaneamente a quebra
final com a tradição clássica e o fracasso do projecto
iluminista de justificar a moralidade no contexto dos herdados,
mas já incoerentes, fragmentos deixados para trás pela
tradição (M,1981: 59).
Também a noção de Bem foi substancialmente alterada.
Para Aristóteles chamar boa a uma coisa é dizer que essa coisa
serve perfeitamente o propósito para a qual é geralmente
requerida. Aplicar um julgamento moral, dizendo que algo é bom,
é portanto fazer uma afirmação factual. Mas quando a noção
teleológica de natureza humana desaparece, deixa de ser
possível tratar os julgamentos morais como afirmações
factuais. No contexto clássico, os julgamentos morais são
simultaneamente hipotéticos (enquanto pressupõem determinado
telos ) e categóricos (enquanto se reportam à lei universal
divina). Quando estes elementos desaparecem, os julgamentos
morais perdem o estatuto claro de que gozavam.
Todos os problemas da moderna teoria moral emergem do
fracasso do projecto das luzes. Privada do seu carácter
teleológico, é necessário encontrar para a moral ou uma
fundamentação racional - empresa levada a cabo por Kant -, ou
um novo telos - tarefa a que se dedicaram os arautos do
utilitarsmo: Bentham, Stuart Mill e Sidgwick. O fracasso de ambas
as correntes viria a determinar o aparecimento das versões
emotivistas de moral hoje profundamente enraizadas na nossa
cultura.
Bentham tenta dotar a moral com um novo telos : a
atracção pelo prazer e ausência de dor constituiriam o fim
para que tende a acção humana. A acção boa é portanto aquela
que produz a maior quantidade de prazer, e a menor quantidade
possível de dor. Esta visão foi critcada por Stuart Mill,
demonstrando que noções como prazer e felicidade são
polimorfas e não podem fornecer um critério seguro para a
realização de escolhas. Não se podem pesar diferentes prazeres
ou felicidades. Estas noções, quando contrapostas, apresentam
um elemento de incomensurablidade, não têm um conteúdo claro e
a sua eficácia como critério decisor esvai-se assim que as
situações se complexificam.
Sidgwick, por seu turno, conclui que as nossas crenças
morais são largamente infundadas e irredutivelmente
heterogéneas, não se devendo a sua escolha a critérios
racionais. Por trás das proposições morais, jaz o que chama de
intuições, e a conclusão do trabalho de Sidgwick é, mau grado
os seus esforços, de um grande pessimismo: procurara o cosmos e
de facto apenas encontrara o caos (M, 1981: 61). MacIntyre acusa
depois Moore de ter aproveitado largamente as teses de Sidgwick,
mas onde este descobre impotência e pessimismo, Moore vai
reclamar ter feito uma descoberta iluminadora e exaltante.
A evolução histórica do utilitarismo, MacIntyre não se
cansa de repeti-lo, conduziu às modernas formas de emotivismo.
Mas agora o autor quer provar que as personagens do emotivismo -
o esteta, o terapeuta e o manager - habitam um mundo de ficções
morais, e mais ainda, que a personagem do manager, que existe
enquanto agente portador de eficácia, é ela própria uma
ficção. A vida social, diz, comporta elementos previsíveis e
imprevisíveis, estes últimos assimiláveis ao conceito de
fortuna de Maquiavel. Consequentemente, as ciências sociais não
podem de todo fornecer previsões inequívocas nem leis
absolutas, mas apenas estabelecer algum tipo de generalizações.
Claro que esta constatação põe em risco o estatuto do manager
, pois se a imprevisibilidade ameaça toda a vida humana, as suas
pretensões de eficácia perdem grande parte da sua força e
rigor. E contudo, o status do manager nunca é posto em causa, o
que leva MacIntyre a concluir que o conceito de eficácia que a
personagem do manager encarna não passa de mais uma ficção
moral contemporânea - o seu mundo e os apelos à objectividade
que protagoniza sustém-se num sistemático mal entendido e na
crença em ficções
MacIntyre defende que foi Nietzsche o primeiro filósofo a
dar conta de que os apelos à objectividade eram afinal
expressão da vontade subjectiva, apercebendo-se também dos
problemas que isto coloca à filosofia moral. Para tanto,
apresenta o seguinte argumento na Gaia Ciência: se a moralidade
não é mais que uma expressão da vontade, a minha moralidade
só pode ser o que a minha vontade cria. Não há pois lugar para
ficções como direitos naturais, felicidade, e fundamentação
racional. A vontade deve substituir a razão constituindo o
sujeito moral autónomo. Nietzsche constitui-se como o filósofo
que melhor representa os tempos conturbados que a
contemporaneidade atravessa, diz MacIntyre, pois agora a norma
moral e o bem devem necessariamente ser construção de cada
indvíduo.
MacIntyre contrapõe Nietzsche a Aristóteles, defendendo
que entre estes dois filósofos se joga o que há de decisivo nos
destinos da moral e, claro, toma decisivamente partido pelo
estagirita. O argumento é simples: foi por causa da rejeição
da moral clássica de inspiração aristotélica que o projecto
iluminista de justificar a moralidade surgiu, e a essa rejeição
se ficou também a dever o seu fracasso. Ora a posição de
Nietzsche depende da constatação de que as tentativas de fundar
racionalmente a moral falharam, daí que defensibilidade de
Nietzsche acabe por remeter para a questão de se foi correcto em
primeiro lugar rejeitar as concepções aristotélicas. Como se
verá, MacIntyre está decididamente convicto que o pecado da
modernidade que conduziu ao emotivismo contemporâneo se ficou
precisamente a dever à abolição da concepção teleológica
clássica.
As virtudes na sociedade heróica e clássica
Para a caracterização da sociedade clássica MacIntyre
decide fazer uma incursão nas narrativas àcerca das virtudes
das sociedades heróicas, pois acredita que estas fornecem o
background que virá a enquadrar o aristotelismo e a sua
assimilação posterior pelos autores medievais.
Na sociedade homérica cada indivíduo tem um papel e
estatuto bem definidos no conjunto dos estatutos e papéis
encarnados pelos que o rodeiam. O homem sabe quem é, em tal
sociedade, pelo papel que lhe foi atribuído, que determina os
seus deveres e privilégios, mas também as acções
convenientes. O homem é aquilo que faz e julgá-lo é julgar as
suas acções. A aretê homérica é a excelência de qualquer
tipo num determinado campo, e a virtude nas sociedades heróicas
encontra-se intimamente ligada a conceitos como coragem, amizade,
destino e morte. A coragem é provavelmente a mais importante de
todas as virtudes, pois só ela permite garantir a segurança do
núcleo familiar e dos que o rodeiam. A moralidade identifca-se
assim com a estrutura social e, enquanto tal, ainda não existe -
as questões avaliativas são, de facto, questões sociais, e
todas muito simples de responder devido ao rígido determinismo
estabelecido nos papéis a desempenhar por cada actor social.
Confrontado por um lado com a morte, e por outro com o destino e
poderes que o transcendem, o homem que cumpre o seu papel move-se
entre o destino e a morte, sabendo que no final a derrota o
aguarda.
A que propósito as personagens da Ilíada observam as
regras que observam e honram os preceitos que honram? O que se
passa é que apenas no interior da sua moldura de regras e
preceitos são capazes de enquadrar qualquer propósito... Todas
as questões de escolha se colocam no interior desta moldura; a
moldura ela própria não pode ser escolhida. Há então um agudo
contraste entre o eu emotivista da modernidade e o eu da idade
heróica. Ao eu da idade heróica falta precisamente aquela
característica que já vimos alguns filósofos morais modernos
tomam por ser a característica essencial do eu humano, a
capacidade de se desligar de qualquer ponto de vista particular,
dar um passo atrás e ver e julgar o próprio ponto de vista a
partir do exterior. Na sociedade heróica não há nenhum lá
fora excepto o do estrangeiro. Um homem que tentasse retirar-se a
ele próprio desta posição dada na sociedade heróica estaria a
comprometer-se na aventura de tentar fazer-se desaparecer a ele
próprio (M, 1981:126).
Destas sociedades heróicas MacIntyre diz termos duas
lições fundamentais a aprender: Primeiro, que toda a moralidade
está, em alguma medida, ligada ao social local e particular, e
que as aspirações da moral da modernidade à universalidade
liberta de toda a particularidade são uma ilusão; e segundo,
que não há nenhuma maneira de possuír as virtudes a não ser
como parte de uma tradição na qual as herdamos, juntamente com
a sua compreensão, de uma série de predecessores na qual
séries de sociedades heróicas assumem o primeiro lugar (M,
1981:127).
A unidade da noção de virtude reside no facto de esta
constituir aquilo que possiblita a um homem desempenhar o seu
papel. A grande diferença entre a sociedade homérica e a polis
aristotélica é a alteração do contexto social. Doravante as
relações sociais deixam de se basear nas relações de
parentesco para se inserirem no contexto mais vasto da
cidade-estado. E contudo, a diiferença entre a visão homérica
e a visão clássica das virtudes não pode ser explicada somente
por este factor, em parte porque as relações de parentesco
sobrevivem quase inalteradas na polis, mas também porque já
não são os valores homéricos que definem o horizonte moral e
porque a concepção de virtude se desligou de qualquer papel
social particular. Em geral o ateniense vê a virtude como
estreitamente ligada ao contexto geral da cidade-estado. Ser um
homem bom é ser um bom cidadão.
Platão rejeita decididamente o relativismo que os sofistas
encontrarão nas virtudes, pois toma-as como coerentes e
absolutas - bens rivais nunca poderão entrar em conflito entre
si - e contudo é este assunto que fornecerá grande parte dos
temas da tragédia grega. Para Platão as virtudes são não
apenas compatíveis entre si, mas a presença de cada uma exige a
presença das demais. Esta tese àcerca da unidade das virtudes
é reiterada quer por Aristóteles quer por São Tomás, que
acreditam na existência de uma ordem cósmica que dita o lugar
de cada virtude no esquema harmonioso da vida humana.
Esta concepção acaba por contrastar vivamente com a
crença moderna de que os bens humanos são variados e
heterogéneos e que a sua busca não pode ser conciliada com uma
única ordem moral. Trata-se de uma visão que implica que a
escolha entre diferentes argumentos a respeito das virtudes e
bens não pode ser tomada como verdadeira ou falsa.
Aristóteles estabelece a concepção clássica das
virtudes, e fá-lo acreditando estar a exprimir as concepções
comuns a qualquer ateniense educado, apresentando-se assim como a
voz racional do cidadão, que articula o que estava disperso. O
ser humano possui uma natureza específica que o dota com certos
fins e objectivos, e portanto move-se naturalmente em direcção
a um telos. Qual é então, do ponto de vista aristotélico, o
bem para o homem? MacIntyre responde Aristóteles tem fortes
argumentos contra identificar o bem com dinheiro, honra ou
prazer. Dá-lhe o nome de eudaimonia : bênçãos, felicidade,
prosperidade. É o estado de estar bem e fazer bem estando bem...
As virtudes são precisamente aquelas qualidades cuja posse
permitirá a um indivíduo alcançar a eudaimonia, e a falta das
quais frustrará o seu movimento em direcção a esse telos ... O
agente genuinamente virtuoso, contudo, age num julgamento
racional e verdadeiro. Uma teoria aristotélica das virtudes
pressupõe uma distinção crucial entre o que um indivíduo toma
por ser o bem para si e o que é realmente bom para ele enquanto
homem. É para atingir este último bem que praticamos as
virtudes e fazêmo-lo através de escolhas que requerem
julgamento. O exercício das virtudes implica portanto a
capacidade de julgar e de fazer a coisa certa, no local certo, na
altura certa e da maneira certa. (M, 1981:148 e ss.).
A capacidade de julgar desempenha um papel central na vida
do homem virtuoso, pois o que numa circunstância pode ser a
atitude correcta, noutra pode constituir vício. É por isso que
uma virtude central ao homem é a phronêsis , a temperança -
sem ela, nenhuma das outras virtudes pode ser exercida e esta
virtude, dita intelectual, adquire-se através do estudo e requer
inteligência por parte do agente. É por isso que para Kant uma
pessoa pode ser boa e estúpida, mas para Aristóteles a
estupidez de determinado tipo exclui a possibilidade de ser bom
(M, 1981:155).
Tradição, narratividade da vida humana e virtudes
Qualquer tentativa contemporânea para encarar a vida
humana como um todo, como uma unidade, cujo carácter fornece às
virtudes um telos adequado, encontra dois tipos de obstáculos -
um social e outro filosófico. O primeiro prende-se com a forma
como a modernidade divide cada vida humana numa variedade de
segmentos, cada um com as suas próprias normas; o filosófico
consiste em pensar atomisticamente a acção humana e analisar
acções complexas em termos de componentes simples - esta é a
versão analítica; a versão existencialista reporta-se à
separação estrita entre o indivíduo e os papéis que este
desempenha.
Não é portanto surpreendente, diz MacIntyre, que o eu
assim compreendido não possa ser encarado como portador das
virtudes aristotélicas. Um eu separado dos seus papéis perde a
arena de relações sociais na qual as virtudes aristotélicas
funcionam. A unidade de uma virtude na vida de alguém só é
inteligível como característica de uma vida unitária, uma vida
que pode ser concebida e avaliada como um todo. As acções
humanas só são inteligíveis no conjunto de uma narrativa que
enforma o própro eu e dá sentido à sua prática. Identificar e
compreender uma acção é sempre colocar um episódio particular
no contexto de um conjunto de narrativas, histórias dos
indivíduos envolvidos e do cenário onde se inserem e evoluem. O
agende nunca é mais do que o co-autor da sua narrativa; só em
sonhos o homem se auto-determina perfeitamente, no mundo estará
sempre sujeito a uma série de constrangimentos.
O homem é nas suas acções e práticas, bem como nas suas
ficções, essencialmente um animal contador de histórias. Não
há nenhuma maneira de compreender uma sociedade a não ser
através do conjunto de histórias, de mitos, que constituem os
seus recursos dramáticos iniciais. As histórias desempenham um
papel essencial na educação para as virtudes. Esta concepção
narrativa do eu exige duas coisas: o homem é aquilo que os
outros o tomam por ser; e é também o sujeito de uma história
que é a sua e de mais ninguém e que tem o seu sentido
particular. A unidade de uma vida individual consiste assim na
unidade de uma narrativa encarnada numa vida particular. A
unidade da vida humana é a unidade de uma demanda (quest)
narrativa. As demandas podem às vezes falhar, ser frustradas,
abandonadas ou dissiparem-se em distracções; e as vidas humanas
podem falhar em qualquer uma destas maneiras. Mas os únicos
critérios de sucesso ou de fracasso numa vida humana como
um todo são os critérios de sucesso ou de fracasso numa demanda
narrada ou para-ser-narrada.
Para os medievais, sem a concepção de um determinado
telos final a demanda não pode ser iniciada. É necessária uma
concepção do bem para o homem. De onde retiram essa
concepção? É procurando uma concepção do bem que nos
permitirá ordenar os outros bens, por uma compreensão do bem
que nos permitirá compreender o lugar da integridade e
constância na vida, que inicialmente se define o tipo de vida
que é uma demanda do bem. A demanda medieval também não é
inicialmente uma busca de algo já dado; só no decurso da
demanda o seu objectivo virá a ser compreendido.
As virtudes, defende MacIntyre, devem portanto ser
entendidas como aquelas disposições que não apenas sustéem as
práticas e nos permitem alcançar os bens internos às
práticas, mas que também nos mantém na demanda relevante do
bem, permitindo-nos ultrapassar os perigos, males e tentações
que encontramos, e que nos fornecerão cada vez mais
auto-conhecimento e cada vez mais conhecimento do bem. O
catálogo das virtudes inclui portanto virtudes que nos
permitirão manter o tipo de comunidades nas quais os homens
podem procurar pelo bem em conjunto, e as virtudes necessárias
à investigação filosófica sobre o carácter do bem. Chega
então MacIntyre a uma conclusão provisória sobre a boa vida
para o homem: a boa vida para o homem é a vida passada na
procura da boa vida para o homem, e as virtudes necessárias à
busca são aquelas que nos permitirão compreender o que é a boa
vida para o homem.
As virtudes relacionam-se então com as práticas, mas
também com a boa vida para o homem. Requerem contudo uma
terceira fase. Nunca posso procurar pelo bem ou exercer as
virtudes unicamente como indivíduo, parcialmente porque viver
uma boa vida varia concretamente de circunstância para
circunstância. Além disso, o que é bom para um homem tem de
ser bom para alguém que habita determinados papéis - eles
constituem o ponto de partida moral e individualizam a vida
moral. Para o individualismo moderno isto é, claro está,
estranho, pois o homem é o que escolhe ser. Mas na verdade a
história de uma vida está sempre embutida na história das
comunidades donde o sujeito deriva a sua identidade. O homem
nasce com um passado e tentar recortar-se desse passado, à
maneira do individualista, é deformar todas as relações
sociais presentes - a posse de uma identidade histórica e a
posse de uma identidade pessoal coincidem.
O facto do homem ter de procurar a sua identidade através
da comunidade a que pertence não é em si uma limitação, mas
sem isso estaria desprovido de ponto de partida; é movendo-se
para além dessa particularidade que a busca do bem, do universal
consiste. Contudo a particularidade nunca pode ser completamente
abandonada. A noção de lhe escapar para um reino de máximas
inteiramente universais que pertençam ao homem enquanto tal,
quer na forma kantiana que na forma de alguns filósofos morais
analíticos, é pura ilusão. Quando os homens identificam o que
é o seu caso parcial e particular demasiado completamente com
algum princípio universal comportam-se geralmente pior do que
fariam de outra forma.
O que sou é portanto em grande parte o que herdei, um
passado específico que se apresenta de alguma forma no meu
presente. Encontro-me como parte de uma história, isto é, como
portador de uma tradição. Uma tradição é sempre parcialmente
constituída por um argumento sobre os bens cuja busca dota essa
tradição com o seu objectivo particular. Dentro de uma
tradição a busca dos bens estende-se para lá de uma geração,
portanto a busca do indivíduo pelo seu bem é geralmente
conduzida no interior de um contexto definido por aquelas
tradições de que a vida do indivíduo faz parte, e isto é
verdadeiro tanto para os bens internos às práticas como para os
bens de uma vida individual.
O que sustém uma tradição é o exercício das virtudes
relevantes. As virtudes encontram o seu objectivo não apenas
sustendo as relações sociais necessárias a atingir os bens
internos a uma prática, e não apenas sustendo uma forma de vida
individual na qual o indivíduo busca o seu próprio bem, mas
também sustendo as tradições que fornecem às práticas e à
vida individual o seu contexto.
Só podemos entender a noção de bem para alguém
encarando essa vida como uma narrativa - é a falta de qualquer
concepção unificadora àcerca da vida humana que subjaz à
negação moderna de que os julgamentos morais possam ser
factuais.
Que fazer com estas virtudes?
Da Idade Média ao presente a lista das virtudes
alterou-se e sofreu uma evolução - nem poderia ser de outra
maneira pois o conceito de unidade narrativa e de prática
alterou-se no mesmo período. Ora, desaparecendo os conceitos de
práticas com bens internos e de unidade da vida humana, em que
se transformam as virtudes? Há uma maneira nova de compreender
as virtudes assim que mutiladas do seu contexto tradicional: ou
as virtudes são entendidas como expressão das paixões naturais
de cada um, ou podem ser entendidas como as disposições
necessárias a limitar essas mesmas paixões.
Foi no século XVII e XVIII que a moralidade veio a ser
entendida como um freio limitador do egoísmo dos indivíduos. Na
visão tradicional aristotélica tal problema não ocorre pois o
que a educação nas virtudes ensina é que o meu bem enquanto
homem é o mesmo que o bem dos outros homens com quem eu estou
ligado numa comunidade humana. Não há nenhuma maneira pela qual
a prossecução do meu bem seja antagónica à prossecução do
bem do outro, pois os bens não são propriedade privada. O
egoísta é, nesta visão, alguém que se enganou sobre onde o
seu bem jaz. Mas para o século XVII e XVIII a noção
aristotélica de um bem partilhado é uma quimera - aqui cada
homem aspira apenas a satisfazer os seus desejos.
Claro que quando a teleologia é abandonada há sempre
tendência a substituí-la por alguma versão do estoicismo. As
virtudes já não são praticadas por nenhum bem exterior à
prática das virtudes ela própria. A virtude passa a ser o seu
próprio fim e o seu próprio motivo. Esta tendência estóica
acredita que há um único padrão de virtude . Cada vez se torna
mais comum a substituição da teleologia aristotélica ou
cristã por uma definição das virtudes em termos das paixões.
Escritores que no século XVIII escrevem sobre as virtudes
relacionando-as com as paixões tratam a sociedade como uma arena
onde os indivíduos procuram assegurar o que lhes é útil ou
agradável. Excluem então da sua perspectiva a concepção da
sociedade como uma comunidade unida numa visão partilhada do bem
para o homem, e consequentemente como prática partilhada das
virtudes.
A ser verdade que a linguagem da moralidade está em
estado de grave desordem, que desde que a teleologia
aristotélica foi rejeitada os filósofos têm tentado fornecer
uma alternativa racional e secular da moralidade, e que foi
Nietzsche a aperceber-se da verdadeira amplitude desse fracasso,
a questão coloca-se inevitável: Nietzsche ou Aristóteles?
MacIntyre está convencido de que a moralidade moderna só
é inteligível como um conjunto de fragmentos sobreviventes da
tradição aristotélica, e a rejeição desta tradição foi a
rejeição de uma moral na qual as regras tomam o seu lugar num
esquema mais vasto, onde as virtudes encontram um lugar central.
Logo a refutação nietzscheana das modernas moralidades
normativas não pode estender-se à primitiva tradição
aristotélica.
O homem nietzscheano não estabelece relações mediadas
pelo apelo a padrões partilhados de virtudes ou bens, ele é a
sua própria autoridade e dota-se com a sua própria lei.
Excluir-se da actividade partilhada é isolar-se das comunidades
que encontram o seu objectivo em tais actividades. O homem que
não pode encontrar nenhum bem fora de si próprio está
condenado ao solipsismo moral. MacIntyre encara por isso
Nietzsche como último antagonista da tradição aristotélica,
mas também o vê como apenas mais uma faceta da cultura moral
que Nietzsche pretende criticar. O super-homem nietzscheano não
é mais do que o eu moderno do liberalismo individualista levado
às últimas consequências. Portanto, a oposição crucial que
encontra estará entre qualquer versão do liberalismo e qualquer
versão da tradição aristotélica.
MacIntyre conclui então que por um lado, apesar dos
esforços de três séculos de filosofia moral e um de
sociologia, ainda não temos nenhuma versão coerente e
racionalmente defensável do ponto de vista do liberalismo
individualista; e que, por poutro lado, a tradição
aristotélica pode ser reafirmada de uma forma que restaure a
inteligibilidade e racionalidade às nossas atitudes e
compromissos sociais e morais. Se a minha visão da nossa
condição moral estiver correcta, devemos também concluir que
chegamos a um ponto de viragem. O que importa nesta fase é a
construção de formas locais de comunidade no seio das quais a
civilidade e a vida moral e intelectual possam ser mantidas
através das novas idades das trevas que já se encontram sobre
nós. E se a tradição das virtudes conseguiu sobreviver aos
horrores da última idade das trevas, não nos encontramos
inteiramente destituídos de fundamento para ter esperança (M,
1981: 263)
Da história como narrativa ficcional
MacIntyre é um excelente contador de histórias, e
consegue, por via do seu método, recheado de flashbacks e
flashforwards, construir uma leitura espantosamente coerente de
história da ética, onde cada episódio se articula
perfeitamente com o anterior, a que constitui reacção ou, pelo
contário, aproveitamento e continuação. E, falta dizê-lo, é
indubitavelmente convincente na forma narrativa a que chegou.
O problema aqui é que, sabe-se desde há muito, quem quer
que conte uma história tem primeiro de encontrar uma
perspectiva, um a priori, a partir do qual selecciona e organiza
os factos pertinentes à narração em causa. Nunca encontramos,
pois, a pura história de algo mas uma selecção e encadeamento
de factos pertinentes para as premissas em jogo. Fazer história
é então um pouco como fazer ciência, lança-se uma hipótese -
no caso que nos ocupa inquietante - e tenta-se verificar se é
confirmada ou infirmada pelos factos. Mas enquanto em física ou
química os ditos não se compadecem com as expectativas do
cientista; em geral nas ciências humanas são mais dóceis e
cordatos e a possibilidade de os manipular é evidente - em todo
o caso, conta-se a história que se quer contar, nem outra coisa
seria possível. A introdução de uma variável objectividade ou
história-em-si-tal-como-foi-realmente apenas serviria a reificar
uma ilusão tanto mais perigosa quanto apenas tem por função
fazer com que Alice se perca mais profundamente no bosque das
suas ficções.
Parte-se então do princípio de que é isto que,
honestamente, MacIntyre faz: criteriosa selecção de factos em
ordem a servir uma hipótese inicial, a da inquietante
catástrofe que se abateu sobre a moralidade abastecendo-nos de
fragmentos que, sem sucesso, tentamos ainda fazer funcionar. Mas
isto também significa, portanto, que muitas outras maneiras
haveria de contar os mesmos episódios. Os méritos da leitura
que da história faz este After Virtue serão, oportunamente,
discutidos. Por ora, trata-se apenas de defender que outras
narrativas seriam possíveis partindo da mesma matéria prima. E
aqui a crítica tanto poderia abater-se sobre a perspectiva geral
que confere unidade à narrativa como sobre qualquer um dos
episódios que aí são narrados.
Quanto à hipótese unificadora geral, seria possível
constituir uma narrativa que ao invés de seguir a ordem
aristotelismo-classicismo, iluminismo, emotivismo, Nietzsche
versus Aristóteles; partisse da tradição clássica, passando
pelas luzes, crítica hegeliana e marxista da universalidade e
formalismo kantianos, para terminar na tentativa de Rawls de
restaurar, na medida do possível, uma versão mais modesta do
desacreditado projecto kantiano.
Episódios particulares desta saga levada à cena por
MacIntyre também poderiam ser alvo, pela mesma ordem de razões,
de contestação quanto à leitura que vai fazendo de cada autor.
Aqui é mister evocar as críticas implacáveis que lhe dirige
Robert Wokler, em After MacIntyre, quanto à leitura que fez do
iluminismo e do projecto que lhe dava forma. E tentar lançar a
suspeita de que outras formas haveria de encarar e ler um autor,
dependendo do ponto de vista que conviesse à narração.
Nietzsche e Kierkegaard servirão de cobaia neste exemplo, que
não pretende de modo nenhum contestar a forma como MacIntyre os
insere na sua história, mas apenas ilustrar que outras formas
haveria.
Não é difícil, por exemplo, questionar a postulada
irracionalidade e falta de fundamentação na escolha subjacente
a Either/Or. A obra apresenta uma disjunção absoluta entre os
dois volumes e respectivas personagens, em que A representa o
jovem esteta romântico e B um magistrado já em idade madura que
pratica convictamente o modo de vida ético. É certo que nenhum
volume representa o que sabemos ser a posição final de
Kierkegaard, que passa pela entrega absoluta e infinita a Deus no
religioso, mas em Either/Or esta questão não se coloca e a
disjunção cinge-se ao plano do estético e do ético. Com este
livro, diz Howard Johnson, o seu tradutor, Kierkegaard pretende
apenas que sejamos observadores atentos das duas filosofias de
vida em contraste, o ético e o estético, e depois que
escolhamos entre elas - ou, talvez, que sejamos impelidos a
procurar a resposta noutro lado. Fiel a este método Kierkegaard
não ditará a resposta. O que efectivamente faz,
incansavelmente, é compelir-nos a tomar nota da questão e da
necessidade de decisão (Kierkegaard, 1971: 06).
O próprio Kierkegaard falará posteriormente desta obra em
termos muito semelhantes, dizendo: Trata-se de uma polémica
indirecta contra a filosofia especulativa, que é indiferente ao
existencial. O facto de que não há nenhum resultado, nem
nenhuma decisão finita, é uma expressão indirecta da verdade
enquanto interioridade, e talvez uma polémica contra a verdade
como conhecimento... A primeira parte representa uma
possibilidade existencial que não se pode realizar, uma
melancolia que necessita de ser trabalhada eticamente. A
melancolia é o seu carácter essencial e é tão profunda que
embora doente de si própria, se ocupa enganadoramente com o
sofrimento dos outros; por outro lado engana escondendo-se atrás
da máscara do prazer, racionalidade, desmoralização, sendo o
engano e a ocultação simultaneamente a sua força e a sua
fraqueza... Na paixão estética vive-se uma existência de
fantasia, portanto paradoxal e colidindo com o tempo; encontra-se
no seu máximo desespero; é portanto não existência mas uma
possibilidade existencial tendendo para a existência, da qual se
encontra tão próxima que sentimos o quanto cada momento é
desperdiçado enquanto não se chega a uma decisão. Mas a
possibilidade existencial no A existente recusa tornar-se
consciente disto, e mantém a existência afastada pelo mais
subtil de todos os enganos - pensando; ele pensou que tudo era
possível, e contudo não conseguiu existir... Se este livro tem
algum mérito consiste essencialmente em não oferecer nenhum
resultado, mas em transformar tudo em interioridade: na primeira
parte uma interioridade imaginativa que evoca as possibilidades
com uma paixão intensificada, com suficiente poder dialético
para transformar tudo em nada e em desespero; na segunda parte um
pathos ético, que com uma calma, incorruptível e contudo
infinita paixão de resolver abraça o modesto projecto ético, e
assim edificado permanece auto-revelado diante de Deus e do homem
(Kierkegaard, 1971:11).
MacIntyre aponta a irracionalidade de Kierkegaard na
escolha das razões que podem depois levar alguém a abraçar o
modo estético ou ético de vida, mas esta tese é discutível.
É certo que não temos aqui uma fundamentação de tipo
kantiano, universal e deduzida da natureza da razão, mas a
escolha é, ainda assim, racional - trata-se apenas de uma
racionalidade diferente da postulada pelos arautos do iluminismo
e, em certo sentido, muito próxima do tipo de racionalidade que
MacIntyre reclamará para o seu próprio projecto.
Para que a escolha do homem kierkegaardiano fosse
irracional teria de ser trabalho das paixões ou dos instintos.
Ora, não é isso que encontramos aqui. O que se vê é que a
melancolia e desespero que são o culminar do estético acabam
por compelir o homem ao ético e, noutra fase, ao religioso - e
isto é um trabalho da razão na sua interioridade. Não é, como
reclama MacIntyre, que Kierkegaard tenha abraçado o formalismo
kantiano e falhado - ele simplesmente não deseja fazê-lo,
pressupondo uma racionalidade diferente para as necessárias
escolhas do homem - aquela precisamente que se revelará na
interioridade à medida que os diversos estádios da existência
se vão consumindo. O próprio facto do livro não concluir, e
Kierkegaard vê nisso o seu maior mérito, é um apelo e um
convite à racionalidade dos que o lêem e são necessariamente
confrontados com a escolha, o either/or, escolha essa que se
fará por um trabalho da razão.
Ora este quadro assim posto é bem diferente de dizer -
tentou uma fundamentação de tipo kantiano, retomando a questão
a partir do fracasso de Kant, e falhou pois a contradição na
obra é clara entre o ético que se deve impor ao homem e a falta
de razões para o escolher. O ético impõe-se como resposta à
angústia e melancolia que são o culminar do estético, não é
nunca uma escolha desordenada das paixões. Kierkgaard, tal como
MacIntyre, não é um emotivista. O que se passa é que ambos
reconheceram a impossibilidade de uma fundamentação de tipo
kantiano e procuram deslizar entre estas duas posições
extremas, inventando uma nova racionalidade.
Nietzsche, por seu turno, comporta leituras menos imediatas
que a que dá conta dele como prestando penhor ao eu do
liberalismo individualista. Pessoalmente, concordo com a visão
que deste autor tem MacIntyre, mas como nos cingimos aqui ao
universo do exemplo, o que importa é mostrar que, não se
concordando, a discussão daí emergente é virtualmente
interminável.
Dizem os amantes de Nietzsche, e esta tese foi defendida
por Heidegger: o eterno retorno é a categoria fundamental à luz
da qual se deverá perspectivar toda a sua filosofia. Num resumo
breve, o argumento é o seguinte: ao nihilismo a que a doença
platónico-cristã condenou o homem é preciso contrapôr uma
vontade de poder fortalecida pela ideia do eterno retorno, que é
exigido pelo princípio de conservação de energia. O eterno
retorno, sabe-se, é selectivo, eliminará os fracos; mas também
possibilita o progresso moral pois doravante toda a vontade de
poder fiel à terra sabe que o seu gesto ecoará eterna e
infinitamente. Não é, como MacIntyre defende, que todo o homem
se venha a dotar com a sua lei. Nietzsche propõe claramente uma
moral: a moral aristocrática dos senhores que se contrapõe à
do escravo engendrada na civilização socrática. Exaltação
dos valores dionisíacos e do que é poderosamente animal e
instintivo no homem contra a civilização judaico-cristã do
recalcamento. Só a vontade de poder, a paixão de superação
dos fortes, permitiria suportar a ideia de eterno retorno - os
fracos perecerão. Ora, temos aqui uma proposta clara de uma
moral para todos quantos a puderem seguir: o super-homem não é
um único homem mas a raça dos fortes, dos senhores. Em última
análise, Nietzsche almejaria a libertar da doença
civilizacional todos os homens, mas por saber que tal não é
possível, concede que parte deles estão destinados a perder-se
no caminho.
Quem propõe uma moral com características tão definidas
quanto esta, e que permite progresso e aperfeiçoamento de um
grupo de extensão indefinida não está, claramente, a defender
um tipo de indivíduo que se deverá dotar a si próprio com o
seu valor e a sua lei. O eu do individualismo não pode assim
estar vinculado a esta ideia de super-homem porque é
irresponsável perante a comunidade que o rodeia e o futuro. O
super-homem, pelo contrário, carrega aos ombros a gigantesca
tarefa de se afastar do rebanho e tentar, seguindo a nova moral,
dar um novo sentido à existência. Afinal, ele é o que não
teme e se deslumbra quando os demónios lhe falam do eterno
retorno.
Destituída de fundamentos de coisa-em-si, ou pelo menos
abalada essa crença, temos que nos resta na estrutura da
história narrada em After Virtue apreciar a sua operatividade
enquanto projecto que se destina a propôr, à luz da história,
uma nova concepção de racionalidade e de moral. E aqui o que
mais salta à vista são as obscuridades patentes na formulação
dessa alternativa comunitarista postulada por MacIntyre no
revivalismo aristotélico que propõe. Tudo o que nessa obra é
pouco claro e mesmo perplexificante ocupará portanto as
próximas linhas.
After Virtue conhece dois momentos, um de diagnóstico, e
depois a correspondente tentativa de constituir um projecto que
permita escapar à teia que o desvelamento inicial revelou.
Quanto ao primeiro, nada a apontar. É inegável que se
vive numa cultura tão radicalmente emotivista que a perspectiva
de lhe escapar saiu há muito do horizonte do homem comum. A
única excepção são pequenos nichos de gente religiosa que
funda seguramente a sua moral e acção nos preceitos
estabelecidos por Deus. Os restantes gerem, melhor ou pior, uma
crise que se vêem impotentes para resolver, e nem sequer
vislumbram a possibilidade de solucionar racionalmente os
conflitos entre as diversas oposições morais que vão surgindo
nas suas vidas. O diagnóstico de MacIntyre é unívoco: o
emotivismo incrustou-se na vida do homem e uma fundamentação
formal e universal da ética, do tipo kantiano, não é nem nunca
foi possível.
E agora, que fazer com esta revelação? É precisamente
aqui que as coisas se complicam. Não são muito claras as
propostas defendidas por esta versão de neoaristotelismo. Breve
resumo, portanto, do estado da arte em After Virtue.
Retorno às pequenas comunidades no seio das quais se
tentaria restaurar a noção de virtude erigida em torno de fins
partilhados, abandono das pretensões de universalidade e estrito
formalismo mas não de racionalidade interna às práticas e ao
telos de uma comunidade é, quando se tenta configurar a
actualizar estes conceitos numa prática quotidiana, uma proposta
demasiado vaga.
Se uma moral universal, abstracta e normativa já não é
possível, e se a promessa de racionalidade trazida pelo
iluminismo falhou tão estrondosamente, tal não significa, diz
MacIntyre, que a racionalidade no debate moral não seja
possível - terá é de ser contextualizada em termos da
história e tradições que regem uma comunidade e assim
perspectivada, poderá fornecer padrões de justificação que
mostrem, indesmentivelmente, por que uma acção é preferível a
outra.
Formas de justificação racional são possíveis não só
no interior de uma tradição como entre tradições rivais que
não são, de forma nenhuma, incomensuráveis e intraduzíveis.
Com isto, acredita MacIntyre, o espectro do relativismo fica
definitivamente afastado.
Esta defesa de um tipo híbrido de racionalidade mostra
claramente que face à ambição universalista e absolutizante do
iluminismo e ao seu contraponto emotivista contemporâneo,
MacIntyre vai procurar uma via intermédia - tenta
habilidosamente deslizar entre as duas posições: sabendo que a
universalidade estrita é impossível, mas tentando evitar a todo
o custo ceder ao relativismo que ameaça a sua visão da
história. O critério para a acção moral passa a ser as
práticas em que o indivíduo está envolvido, ao invés de ser
procurado em normas abstractas e universais. É que o eu tem de
ser compreendido narrativamente, enquanto produto de uma
determinada história e membro de uma comunidade comprometida com
determinadas práticas - são estes factores que determinarão,
em cada caso, o que é a virtude e o agir moralmente.
Temos assim que o eu, portador de uma história individual,
se encontra envolvido num conjunto de práticas que definem as
virtudes e formam o contexto social no qual se insere, e que, por
sua vez, devem ser enquadradas numa tradição que constituem a
ajudam a manter. É no interior desta moldura que o indivíduo
deverá prosseguir a sua busca da boa vida para o homem que é,
já se sabe, a vida passada na busca da boa vida para o homem.
O problema mais grave que aqui se coloca é que a crítica
da modernidade em After Virtue é tão virulenta, certeira e
desencantada que a possibilidade de, nas condições actuais que
o próprio MacIntyre diz vivermos, poder vir a colocar-se este
esquema em prática parece muito remota - tal exigiria
transformações tão radicais que, a darem-se, também uma moral
universalista de tipo kantiano teria exequibilidade assegurada na
nova sociedade daí nascida.
MacIntyre é, além disso, demasiado vago no esquema que
propõe. Afinal, de que comunidades falamos aqui? Ruas, bairros,
freguesias, aldeias, cidades, distritos, países ou continentes?
Um convicto emotivista dirá que este revivalismo aristotélico
só é possível no seio de uma família, onde, aliás, em
condições normais, nunca deixou de ser praticado. Por isso é
que só neste caso se conseguem configurar satisfatoriamente na
prática as propostas de MacIntyre. Agora o que define e delimita
uma comunidade mais vasta, como aquelas de que fala, é questão
fundamental a que MacIntyre não responde.
Também não consegue resolver satisfatoriamente o problema
de como, a partir do interior de uma tradição, ter acesso a
outras não ficando preso de um relativismo dependente de um dado
registo histórico. É que é difícil compreender como pode um
indivíduo, se é formado e moldado por determinada tradição,
conseguir sair verdadeiramente fora do seu ponto de vista para
avaliar outros, e o problema da incomensurabilidade, a despeito
dos esforços de MacIntyre, mantém-se.
Outro ponto pouco claro prende-se com as relações das
comunidades entre si. Snell, falando dos gregos, explicita uma
tendência preocupante:
Como vão estas comunidades fechadas relacionar-se se a questão
da incomensurabilidade não foi resolvida? Ignorar-se-ão? Cada
vez mais, nos dias de hoje, esta hipótese parece implausível.
Para resolver a questão seria necessário existir, pelo menos,
uma noção comum e universal de determinados valores básicos.
Quando não, vale a pena, num mundo global e atómico, perder o
sono por causa do que os vizinhos mais próximos possam vir a
fazer. É por isso que a noção de virtude exclusivamente
dependente de práticas e tradições é algo redutora: é
necessário um mínimo denominador comum de valores partilhados,
à volta dos quais se poderiam então desenvolver formas locais e
particulares de moralidade e virtude.
Sem estes valores universais e indiscutivelmente válidos,
à maneira kantiana, para todos os homens, temos que sociedades
como a Alemanha nazi ou o Iraque de há poucos anos se podem
facilmente constituir como modelos de comunidades onde impera e
funciona na perfeição este revivalismo aristotélico. Senão
veja-se: estamos perante comunidades fortemente unidas em torno
de certos fins comuns e de uma mundividência que enraíza
directamente numa tradição local que, pelo menos no caso
alemão, recua até mitos fundadores muito remotos. No seio
destes grupos os indivíduos encontravam-se envolvidos em
práticas que retiravam o seu sentido e simultaneamente davam
sentido à tradição envolvente. Perseguiam, além disso, bens
internos às práticas, a aretê , e tinham uma concepção muito
clara de qual o papel que desempenhavam nessa comunidade, e do
telos que dava sentido ao grupo e às suas vidas.
Parece assim que nos encontramos perante comunidades
exemplares, que poderiam pefeitamente estar a intentar um tipo de
revivalismo da noção de virtude aristotélica idêntico ao que
MacIntyre defende. E, no entanto, há algo de errado aqui. É que
a falta de alguns bens mínimos partilhados como justiça ou
importância da vida humana teve as consequências desastrosas
que se conhecem, e isto mostra que se o projecto das luzes não
pode, em todo o seu fôlego e ambição, ser repescado, também
não pertence inteiramente ao caixote de lixo da história:
alguns pincípios abstractos e universais são necessários para
garantir um relacionamento eficaz e pacífico entre comunidades,
evitando que estas constituam paradigmas fechados, jogos de
linguagem incomensuráveis permanentemente à beira do abismo.
MacIntyre parece não se ter apercebido desta dificuldade
de relacionamento entre comunidades, ou então relega-a para a
tal possibilidade de debate racional entre tradições rivais.
Mas é pouco prático um debate se o tempo urge e um conflito se
agrava. Nestas circunstâncias, uma noção partilhada de valores
essenciais seria bem mais eficaz e funcional.
Pouco claro, também, é o que determina o telos de uma
comunidade. Existe a priori ou a posteriori? Como escolher entre
telos rivais? Qual a tradição que deverá prevalecer numa
comunidade no caso desta se encontrar envolvida num conjunto
diversificado de práticas?
Parece extremamente difícil fundamentar unívoca e
apodicticamente uma determinada tradição e as virtudes daí
emergentes sem recorrer à figura divina, e portanto o que
encontraremos sempre são homens envolvidos em práticas
contingentes que não conseguem harmonizar com as de comunidades
exteriores, e a quem faltam os meios para escapar à prisão
intelectual que a sua própria tradição constitui.
Outra dificuldade deste After Virtue é a questão da
motivação, que se relaciona com o aludido problema de como
fazer nascer comunidades neoaristotélicas num mundo
fundamentalmente emotivista. De facto, como convencer este eu,
produto do liberalismo e de séculos de desencanto, habituado à
absoluta autodeterminação, a imaginar-se separado dos papéis e
comunidade que a história lhe acometeu, e ainda por cima,
convencido de que o desacordo moral não pode ser sanado
racionalmente a vestir, de súbito, a pele do cordeiro
aristotélico, deixando-se envolver e participando activamente no
esquema que MacIntyre postula? Tamanha revolução exigiria
transformações sociais, intelectuais e míticas1 que
parecem bem fora do alcance do comum dos mortais, quanto mais de
comunidades inteiras desses mortais...
O principal problema deste After Virtue bem pode ser
ilustrado pelo provérbio entrada de leão - pelo brilhante
diagnóstico da modernidade - saída de sendeiro - pela
impossibilidade de resolver os problemas que o seu próprio
trabalho levantou. E muitos mais poderiam ser suscitados, se
MacIntyre não ladeasse habilmente a questão. É que raramente
concretiza propostas bem definidas, prefere sempre, para usar a
expressão de John Horton, assobiar no escuro para manter os
espíritos alerta, mas a resposta à pergunta ética fundamental:
que devo fazer - MacIntyre não a dá claramente e assim
procedendo, ao ser tão pouco concreto, escapa ileso a muitas
críticas possíveis - pois são sempre os aspectos práticos o
mais fácil de criticar numa teoria.
Agora, tudo tem um preço, e o desta solução esquiva não
é barato. De pouco serve uma ética que não consegue
aproximar-se dos homens, permanecendo no reino do puro ideal. Uma
ética que não consiga resolver os problemas quotidianos do
homem comum, que não seja vivida concretamente, é pouco mais
que um exercício de retórica, espécie de teia de Penélope que
se vai dedilhando para entreter os dias; e a verdade é que
MacIntyre deixa muito poucas pistas sobre como isso possa ser
feito.
E apesar disto há aspectos sedutores no seu trabalho. O
diagnóstico sobre as aporias com que a ética se vem debatendo
é um documento precioso, e as conclusões a que chega também.
Contudo, o mais impressionante na personagem MacIntyre é a
persistência com que tenta, sem efectivamente atingir o seu fim,
salvar a moral e a racionalidade, tarefa que antes praticamente
transformou nas penas de Sísifo, pois traça dela um retrato
tão debilitado que legitima a suspeita de já nada haver a
salvar.
Percebe-se que MacIntyre vai tomar esta missão salvífica
como um verdadeiro compromisso ético, no qual está disposto a
investir muito do seu tempo e energia. Que, dada a espinhosidade
da missão, não tenha ainda chegado a bom porto só aumenta o
valor do esforço e a grandeza de quem o intenta. Salvas as
devidas proporções, o essencial desta atitude está contido nas
caricaturas de Cervantes. Nunca é para o pragmático Sancho
Pança que se inclinam as simpatias; é a desmesura dos trabalhos
a que o frágil e solitário D. Quixote mete ombros que está
destinada a provocar admiração e ternura nos corações mais
sânchicos. Mesmo confundindo moínhos com gigantes e taberneiras
com princesas, a grandeza do homem está em ser capaz de aceitar
uma luta assim desigual.
Bill Waterson, que de tão eclético parece um sábio
renascentista, faz um curtíssimo atalho para chegar a uma das
conclusões mais fundamentais deste After Virtue - desde que se
eliminou a figura de Deus, não há eficiência, não há
responsabilidade e ficamos assim, MacIntyre incluído, como o
pobre Calvin, um pouco perdidos e a tentar projectar no futuro a
sua interrogação: que irá acontecer à palavra ética?
Ética e Biologia
A ética, e em geral todo o discurso dos filósofos
vive, como MacIntyre bem notou, dias difíceis, e isto certamente
devido às alterações que foi sofrendo à medida que se
autonomizavam e desenvolviam as ciências científicas. Se há
coisa clara no paradigma ético aristotélico-medieval é a sua
concepção de natureza humana: maculado pelo pecado original
redimido na figura de Cristo, o homem é um ser dotado de livre
arbítrio que pode, consequentemente, escolher entre o pecado e a
salvação. Hoje, como nessa altura, talvez valha a pena formular
explícitamente a concepção que se perfilha de natureza humana
antes de iniciado o esforço de constituir uma ética. Não faz
de facto sentido uma ciência que pretende vincular o homem não
apresentar , claramente, a concepção que tem dele, e depois
daí sim tentar extraír uma moral, provavelmente mais
consentânea com o animal que pretende domar.
Se hoje já não mais é possível conceber o homem em
termos bíblicos, em função de uma teologia ou através de
noções vagas e abstractas como criatura universalmente dotada
de razão, a biologia parece ser a ciência destinada a reanimar
apaixonadamente o debate ético porque aí se joga a pergunta
fundamental - que é o homem? - a que se seguirá então a
questão - que pode/deve este homem fazer?.
O debate seria, evidentemente, apaixonado e apaixonante
porque na verdade não se espera que os biólogos venham informar
friamente o que é este bípede implume e o que se pode dele
esperar. Eles próprios se encontram envolvidos numa discussão
interminável sobre o tema, debate tão fundamental para todos
que a activa contribuição de outras experiências e visões do
mundo viria certamente enriquecer.
Que tem a biologia a ver com a moral? Dependendo da
concepção que se adopte, daí decorrerão éticas diversas que
se arrogam ter capturado a essência do que é específicamente
humano. É aliás possível analisar éticas que jamais se
preocuparam com estas questões descobrindo os pressupostos
biológicos que implicitamente encerram.
Richard Dawkins, que representa uma das correntes mais
radicais da sociobiologia, fornece, por exemplo, bons
instrumentos para ler e questionar MacIntyre. A sua é uma
biologia liberal que tão bem acompanha com o individualismo
moderno e que poderia almejar com sucesso, se fosse caso disso, a
fornecer uma base epistemológica e científica para o emotivismo
contemporâneo2 .
A querela entre os partidários de Lamarcke e os
darwinistas está hoje definitivamente sanada a favor destes
últimos. Enquanto as biologias de sabor lamarckizante, caras aos
marxistas, propunham que os organismos são capazes de
variações dirigidas de acordo com as pressões do meio, Darwin
concebera estas mutações como cegas e aleatórias,
encarregando-se o meio de seleccionar diferencialmente as
adaptativas, uma escassa minoria, das que o não são.
Aqui entra Dawkins e a sua leitura da história dos
últimos sucessos do darwinismo, cujos pressupostos aplica até
às últimas consequências em ordem a servir a sua teoria do
gene egoísta. Segundo este autor, há três tipos de leitores de
Darwin: os que acreditam que a natureza opera através de
selecção de espécie, os defensores da selecção de grupo, e
os apologistas da selecção individual protagonizada pelo gene,
constituindo esta última corrente a sociobiologia.
Se a natureza seleccionasse cegamente espécies inteiras,
um indistinto altruísmo teria de vigorar entre todos os seus
membros e seria viável uma moral universal de tipo kantiano,
aplicável a toda a espécie humana, ou todas as éticas que se
baseiam na noção de maior bem possível como consequência de
uma acção. Aqui, porém, importam sobretudo os argumentos
lançados por Dawkins contra a selecção de grupo, hipótese que
a ser verdadeira nos vincularia a uma ética comunitarista como a
defendida por MacIntyre. É óbvio que a teoria de que a
selecção opera ao nível individual mais baixo, o gene,
desemboca no emotivismo. Dawkins não assume claramente que este
seja um destino inexorável, mas avisa: qualquer outra
formulação de moral contará com dificuldades crescidas pois,
além de tudo, terá de lutar contra a natureza humana.
Sigamos, pois, os argumentos contra a selecção de grupo,
mas antes, urge definir alguns dos conceitos que Dawkins utiliza
e que, pese embora a traição da linguagem, não são conceitos
subjectivos nem psicolgizantes. Gene é definido como porção de
material genético com capacidade para se replicar permanecendo
inalterada durante um tempo consideravelmente longo. Altruísmo
é toda a acção encetada por um indivíduo em favor de outro
que aumente as suas hipóteses de sobrevivência, sendo o
egoísmo a maximização das hipóteses de sobrevivência do
próprio organismo.
A tese da sociobiologia, recordemo-lo, é que a selecção
natural opera ao nível mínimo da vida. São os genes, e não os
organismos, grupos ou espécies que são seleccionados. Como,
evidentemente, um organismo depende dos seus genes, os genes
ganhadores tenderão a produzir populações e espécies de
indivíduos, mas isso não passa de um acidente, acidente esse
que possibilita, do ponto de vista da sociobiologia, confusões
sobre o nível a que a selecção opera.
A estrita aplicação do darwinismo prova que, na natureza,
o altruísmo é uma estratégia de sobrevivência muito pouco
viável. O tema é analisado em pormenor no capítulo que Dawkins
dedica à agressão e o argumento é simples. Um organismo
altruísta, que sistematicamente maximize as hipóteses de
sobrevivência de genes seus concorrentes, está destinado a
desaparecer dentro de algum tempo, porque os egoístas se
aproveitarão impiedosamente da sua tendência para o altruísmo
e, assim, acabarão por espalhar os seus genes e constituir-se
como maioritários dentro da população. Mais, mesmo uma
comunidade pura, habitada exclusivamente por altruístas, é
instável e não pode permanecer nessas condições muito tempo.
De facto, assim que um organismo egoísta surgisse, tenderia a
aproveitar-se de todos os outros e a disseminar em pouco tempo os
seus genes egoístas pela população, de forma que os
altruístas rapidamente seriam uma minoria e, a breve trecho,
tenderiam a desaparecer.
Dawkins analisa, e a estes modelos foi dada uma
configuração matemática, as estratégias evolutivamente
estáveis. A conclusão a que chega é que comunidades formadas
por indivíduos altruístas/egoístas, agressivos/pacifistas
tendem a conhecer oscilações pendulares, até que estabilizam
numa estratégia evolutivamente estável (EEE), definida como
aquela que é imune à traição interna - neste caso o
surgimento de um organismo que se aproveita das melhores
condições para a propagação dos seus genes. A sua tese
fundamental é de que toda vida é egoísta pela simples razão
de que é esta a estratégia evolutivamente mais estável e que
portanto acabou por ser seleccionada em termos genéticos.
O que fará isto às comunidades de neoaristotélicas
postuladas por MacIntyre? Ele advoga um modelo semelhante ao da
selecção de grupo, de acordo com o qual o bem da comunidade se
deverá sobrepôr ao bem do indivíduo. Mas é óbvio que uma
comunidade deste tipo, ainda que formada por conspiração, não
é imune à traição interna. Um único indivíduo egoísta, que
se aproveitasse de todos os outros, tenderia a espalhar mais
consistentemente os seus genes entre a população e, dentro de
poucas gerações, os egoístas seriam já uma percentagem
apreciável no interior da comunidade. Note-se que um biólogo
poderia matematizar este esquema, utilizando os instrumentos
disponíveis dentro da sua ciência, e concluír, para uma dada
população, qual a EEE viável, embora aqui, por razões
óbvias, se opte por uma aproximação intuitiva à teoria.
As estratégias evolutivamente estáveis, conclui Dawkins,
passam pelo egoísmo a nível individual pois nenhuma outra
fórmula assegura por muito tempo a sobrevivência de quem a
pratica, simplesmente porque aumenta a sua vulnerabilidade face a
um verdadeiro egoísta. A conspiração está condenada a ser
destruída por traição a partir do interior da população. Uma
EEE é estável não porque seja particularmente boa para os
indivíduos que nela participam, mas simplesmente porque é imune
à traição interna... Assim, mesmo no homem, uma espécie com
capacidade de previsão consciente, os pactos ou conspirações
baseados nos melhores interesses a longo prazo vivem
constantemente à beira do colapso, por traição interna. Nos
animais selvagens, controlados por genes em luta constante, é
ainda mais difícil imaginar formas de acordo, através das quais
benefícios de grupo ou estratégias de conspiração poderiam,
possivelmente, evoluir. Temos de esperar encontrar estratégias
evolutivamente estáveis em toda a parte. (Dawkins, 1989:130).
As consequências desta sobrevivência diferencial dos mais
aptos são óbvias: Na verdade, devemos esperar que surjam
mentiras, fraudes e exploração egoísta da comunicação sempre
que os interesses dos genes de diferentes indivíduos divirjam.
Isso incluirá indivíduos da mesma espécie. Devemos esperar
até mesmo que filhos enganem os pais, que os maridos enganem as
esposas e que o irmão minta ao irmão (Dawkins, 1989:119), sendo
que ...os genes que tendem a levar a criança a enganar têm
vantagem sobre os outros no pool genético. Se há uma moral
humana a ser extraída é a de que devemos ensinar o altruísmo
aos nossos filhos, pois não podemos esperar que este
comportamento releve da sua natureza biológica (Dawkins,
1989:226).
Este é um esquema, como bem se vê, destinado a servir às
mil maravilhas o individualismo liberal e até o emotivismo
contemporâneo. Contudo, o próprio Dawkins reconhece que um
homem não é uma bactéria e que se alguma promessa os nossos
grandes e complicados cérebros encerram é, precisamente, a
possibilidade de conspirarem e, porque não, libertarem-se da
tirania dos genes. Mesmo que olhemos para o lado sombrio e
assumamos o pressuposto de que o homem é, basicamente, egoísta,
a nossa antecipação consciente - a nossa capacidade de simular
o futuro usando a imaginação - poderia salvar-nos dos piores
excessos egoístas dos replicadores cegos. Pelo menos, temos o
equipamento mental para promover os nossos interesses egoístas a
longo prazo, e não somente os de curto prazo. Podemos ver os
benefícios de participar numa conspiração de pombos e podemos
juntar-nos para discutir maneiras de fazer com que a
conspiração funcione... Podemos até discutir maneiras de
estimular e ensinar deliberadamente o altruísmo puro e
desinteressado - algo que não existe na natureza e nunca existiu
na história do mundo (Dawkins, 1989:311).
Ao analisar a agressão numa comunidade mista de pombos e
falcões, Dawkins conclui que, em geral, os falcões perdem
sempre porque tendem a saír magoados dos confrontos, enquanto os
pombos simplesmente fogem. Esta não é uma boa estratégia do
ponto de vista de cada falcão individual. Seria possível uma
conspiração em que todos os falcões acordassem, doravante,
comportar-se como pombos? A resposta é, evidentemente, negativa.
Uma conspiração de pombos não é estável porque não está
imune à intervenção de um mutante egoísta e essa
intervenção, num tempo relativamente longo, ocorreria
necessariamente.
As comunidades neoaristotélicas que retiram o seu sentido
de fins exteriores ao indivíduo enraízados numa tradição
parecem-se um pouco com as conspirações de pombos de que fala
Dawkins. A pergunta que falta fazer é portanto a seguinte: será
possível ao homem constituir perfeitas conspirações e pombos?
É óbvio que, mesmo que habitada por genes egoístas, para a
nossa espécie a resposta não está previamente definida.
Algumas formas de conspiração terão de ser possíveis e
foram-no no passado. Mas terão existido alguma vez
conspirações perfeitas ? E mesmo que não, poderá sonhar-se
com a forma de urdir uma estratégia deste tipo que se revele
estável? Parece evidente que é esta a pergunta a que MacIntyre
procura responder na sua incansável busca pela perfeita
conspiração de pombos. E porque a busca? A culpa, diria ele,
está do lado da ambição verde e viscosa que habita os piores e
os melhores de nós. É que há 300 anos, quando uma rã quis ser
grande, grande, grande, de tal forma que Deus rebentou, não
imaginava os trabalhos e dias que estava a comprar para a sua
espécie e hoje, no mundo hostil e desencantado que herdamos, o
homem vai ter de encontrar o seu caminho de volta ao charco
ABSOLUTAMENTE SÓZINHO.
Notas:
1 - Pois é já mito fundador a cultura
iluminista que nos dá forma
2 - Claro que a cientificidade do trabalho de
Dawkins, e da sociobiologia em geral,tem sido largamente
contestada por uma biologia de tendência mais humanista e
humanizante que recusa ver no homem o produto das forças cegas
da natureza.
Bibliografia
Aristóteles, 1970, LÉthique à Nicomaque, Tome I - Introduction par René-Antoine Gauthier, Centre de Wulf-Mansion, Publications Universitaires, Louvain.
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Dawkins, Richard, 1989, O Gene Egoísta, Col. Ciência Aberta, Gradiva, Lisboa.
Gauthier, René-Antoine, sd, Introdução à moral de Aristóteles, col. Saber, Publicações Europa-América, Mem Martins.
Horton, John, et all., 1994, After MacIntyre - Critical Perspectives on the Work of Alasdair MacIntyre, Polity Press, Cambridge, UK.
Kant, sd, Fundamentação da Metafísica dos Costumes, Lisboa Editora, Lisboa.
Kierkegaard, Soren, 1971, Either/Or, Princeton University Press, New Jersey, USA.
MacIntyre, Alasdair, 1981, After Virtue - A Study in Moral Theory, Gerald Duckworth & Co., London.
Nietzsche, 1990, A Genealogia da Moral, Guimarães Editores Lda., Lisboa.
Nietzsche, 1987, A Gaia Ciência, Guimarães Editores Lda., Lisboa
Snell, Bruno, 1975, A descoberta do espírito, col. História das Ideias e do Pensamento, Edições 70, Lisboa.